o Segredo Das Mil e Uma Noites

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 1/3 O SEGREDO DAS MIL E UMA NOITES Por Rubem Alves* Estou me entregando ao prazer ocioso de reler As mil e uma noites. O encantamento começa com o título que, nas palavras de Jorge Luis Borges, é um dos mais belos do mundo. Segundo ele, a sua beleza particular se deve ao fato de que a palavra mil é, para nós, quase sinônimo de infinito. "Falar em mil noites é falar em infinitas noites. E dizer mil e uma noites é acrescentar uma além do infinito."  As mil e uma noites são a estória de um amor - um amor que não acaba nunca. Não existe ali lugar para os versos imortais do Vinícius (tão belos que o próprio Diabo citou em sua polêmica com o Criador) : "Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure..." Estas são palavras de alguém que já sente o sopro do vento que dentro em pouco apagará a vela: declaração de amor que anuncia uma despedida. Mas é isto que quem ama não aceita. Mesmo aqueles em quem a chama se apagou sonham em ouvir de alguém, um dia, as palavras que Heine escreveu para uma mulher: ''Eu te amarei eternamente e ainda depois." É preciso que a chama não se apague nunca, mesmo que a vela vá se consumindo. A arte de amar é a arte de não deixar que a chama se apague. Não se deve deixar a luz dormir. É preciso se apressar em acordá-la (Bachelard). E, coisa curiosa: a mesma chama que o vento impetuoso apaga volta a se acender pela carícia do sopro suave...

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O Mistério das Mil e Uma Noites é um texto de Rubem Alves que trata da magia nos relacionamentos

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    O SEGREDO DAS MIL E UMA NOITES

    Por Rubem Alves*

    Estou me entregando ao prazer ocioso de reler As mil e uma noites. O

    encantamento comea com o ttulo que, nas palavras de Jorge Luis

    Borges, um dos mais belos do mundo. Segundo ele, a sua beleza

    particular se deve ao fato de que a palavra mil , para ns, quase

    sinnimo de infinito. "Falar em mil noites falar em infinitas noites. E

    dizer mil e uma noites acrescentar uma alm do infinito."

    As mil e uma noites so a estria de um amor - um amor que no acaba

    nunca. No existe ali lugar para os versos imortais do Vincius (to belos

    que o prprio Diabo citou em sua polmica com o Criador) : "Que no

    seja eterno, posto que chama, mas que seja infinito enquanto dure..."

    Estas so palavras de algum que j sente o sopro do vento que dentro

    em pouco apagar a vela: declarao de amor que anuncia uma

    despedida.

    Mas isto que quem ama no aceita. Mesmo aqueles em quem a chama

    se apagou sonham em ouvir de algum, um dia, as palavras que Heine

    escreveu para uma mulher: ''Eu te amarei eternamente e ainda depois."

    preciso que a chama no se apague nunca, mesmo que a vela v se

    consumindo. A arte de amar a arte de no deixar que a chama se

    apague. No se deve deixar a luz dormir. preciso se apressar em

    acord-la (Bachelard). E, coisa curiosa: a mesma chama que o vento

    impetuoso apaga volta a se acender pela carcia do sopro suave...

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    As mil e uma noites so uma estria da luta entre o vento impetuoso e o

    sopro suave. Ela revela o segredo do amor que no se apaga nunca.

    Um sulto, descobrindo-se trado pela esposa a quem amava

    perdidamente, toma uma deciso cruel. No podia viver sem o amor de

    uma mulher. Mas tambm no podia suportar a possibilidade da traio.

    Resolve, ento, que iria se casar com as moas mais belas dos seus

    domnios, mas depois da primeira noite de amor, mandaria decapit-las.

    Assim o amor se renovaria a cada dia em todo o seu vigor de fogo

    impetuoso, sem nenhum sopro de infidelidade que pudesse apag-lo.

    Espalham-se logo, pelo reino, as notcias das coisas terrveis que

    aconteciam no palcio real: as jovens desapareciam, logo depois da

    noite nupcial. Sherazade, filha do vizir, procura ento o seu pai e lhe

    anuncia sua espantosa deciso: desejava tomar-se esposa do sulto. O

    pai, desesperado, lhe revela o triste destino que a aguardava, pois ele

    mesmo era quem cuidava das execues. Mas a jovem se mantm

    irredutvel.

    A forma como o texto descreve a jovem Sherazade reveladora. Quase

    nada diz sobre sua beleza. Faz silncio total sobre o seu virtuosismo

    ertico. Mas conta que ela lera livros de toda espcie, que havia

    memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os

    provrbios populares e as sentenas dos filsofos.

    E Sherazade se casa com o sulto. Realizados os atos de amor fsico

    que acontecem nas noites de npcias, quando o fogo do amor carnal j

    se esgotara no corpo do esposo, quando s restava esperar o raiar do

    dia para que a jovem fosse sacrificada, ela comea a falar. Conta

    estrias. Suas palavras penetram os ouvidos vaginais do sulto.

    Suavemente, como msica.

    O ouvido feminino, vazio que espera e acolhe, que se permite ser

    penetrado. A fala masculina, algo que cresce e penetra nos vazios da

    alma. Segundo antiqssima tradio, foi assim que o deus humano foi

    concebido: pelo sopro potico do Verbo divino, penetrando os ouvidos

    encantados e acolhedores de uma Virgem.

    O corpo um lugar maravilhoso de delcias. Mas Sherazade sabia que

    todo amor construdo sobre as delcias do corpo tem vida breve. A

    chama se apaga to logo o corpo se tenha esvaziado do seu fogo. O seu

    triste destino ser decapitado pela madrugada: no eterno, posto que

    chama. E ento, quando as chamas dos corpos j se haviam apagado,

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    Sherazade sopra suavemente. Fala. Erotiza os vazios adormecidos do

    sulto. Acorda o mundo mgico da fantasia. Cada estria contm uma

    outra, dentro de si, infinitamente. No h um orgasmo que ponha fim ao

    desejo. E ela lhe parece bela, como nenhuma outra. Porque uma pessoa

    bela, no pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...

    Conta a estria que o sulto, encantado pelas estrias de Sherazade, foi

    adiando a execuo, por mil e uma noites, eternamente e um dia mais.

    No se trata de uma estria de amor, entre outras. , ao contrrio, a

    estria do nascimento e da vida do amor. O amor vive neste sutil fio de

    conversao, balanando-se entre a boca e o ouvido. A Snia Braga, ao

    final do documentrio de celebrao dos 60 anos do Tom Jobim, disse

    que o Tom era o homem que toda mulher gostaria de ter. E explicou:

    ''Porque ele masculino e feminino ao mesmo tempo...'' o segredo do

    amor a androgenia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e

    femininos ao mesmo tempo. preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o

    outro entre dentro da gente. Ouvir em silncio. Sem expuls-lo por meio

    de argumentos e contra-razes. Nada mais fatal contra o amor que a

    resposta rpida. Alfanje que decapita. H pessoas muito velhas cujos

    ouvidos ainda so virginais: nunca foram penetrados. E preciso saber

    falar. H certas falas que so um estupro. Somente sabem falar os que

    sabem fazer silncio e ouvir. E, sobretudo, os que se dedicam difcil

    arte de adivinhar: adivinhar os mundos adormecidos que habitam os

    vazios do outro.

    As mil e uma noites so a estria de cada um. Em cada um mora um

    sulto. Em cada um mora uma Sherazade. Aqueles que se dedicam

    sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes rgos

    sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educao sexual...)

    podem ter a esperana de que as madrugadas no terminaro com o

    vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se..

    *Rubem Alves foi um psicanalista, filsofo, educador, telogo e escritor

    brasileiro.