O SÉCULO DOS CIRURGIÕES

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JURGEN THORWALD O SCULO DOS CIRURGIES Conforme documentos de meu av,, d cirurgio H. E. Hartmann Traduo de MARINA GUASPARI BOA LEITURA EDITORA S. A. Ttulo do original alemo: DAS JAHRHUNDERT DER CHIRURGEN Todos os direitos reservados por BOA LEITURA EDITORA S. A. Caixa Postal, 738 - So Paulo 30 321 817 Biblioteca Pblica do Paran No danifique esta etiqueta

NDICE Prefcio da edio brasileira 9 Antecedentes 11 I PARTE A LONGA NOITE OU ANTIGUIDADE Kentucky 19 Warren 40 Clculos 53 II PARTE LUZ ou O DESPERTAR DO SCULO Descoberta 97 Londres e Edimburgo 123 III PARTE FEBRE Escutri 161 O Inferno de Margaretha Kleb 174 Cesariana 196 IV PARTE

REDENO Mos Sujas 223 Descobre-se o Assassino 247 Os Deuses Cegos 264 Luvas do Amor 287 V PARTE RESULTADOS A Estrada Extensa 315 Bibliografia 349 "A HISTRIA DA CIRURGIA UMA HISTRIA DOS LTIMOS CEM ANOS. INICIOU-SE EM 1846, COM A DESCOBERTA DA ANESTESIA E, PORTANTO, COM A POSSIBILIDA DE DA OPERAO INDOLOR. "TUDO O QUE EXISTIA ANTES ERAM APENAS TREVAS DE IGNORNCIA, DE SOFRIMENTO, DE TENT ATIVAS INFRUTFERAS NA ESCURIDO. "MAS A "HISTRIA DOS LTIMOS CEM ANOS" OFERECE O MAIS EXTRAORDINRIO PANORAMA DE QUE A HUMANIDADE TEM CONHECIME NTO". BERTRAND GOSSET PREFCIO DA EDIO BRASILEIRA

CONVENHAMOS o acerto de Castiglioni, historiador de renome do pensamento mdico, a o afirmar que a Medicina forma parte essencial e fundamental da civilizao moderna; seu progresso o ndice fiel do progresso social; cincia e arte, ela se ressente de todos os fenmenos da vida social que por sua vez lhe determinam seu desenvolvimen to. Continua Castiglioni: a obra do mdico em relao ao indivduo e a coletividade se afirm a de um modo sempre mais evidente, sendo finalidade da histria dar a gnese e a evoluo dessa ao do mdico. O historiador moderno deve proporcionar aos mdicos jove s e aos leigos interessados as bases fundamentais, que levem em considerao todos os fatos da evoluo social e poltica a fim de que o estudioso sob sua orientao s e aproxime equilibrada e ponderadamente da verdade. Precisa a classe mdica entender a necessidade de uma formao histrica suficiente, rig orosa e profunda, a ponto de constituir um hbito intelectual e conhecer e respeitar as conquistas do passado. Urge abandonar quanto antes a idia de que a historiografia mdica seja erudio vazia ou recreao literria. Vimos o conceito acima exposto por Castiglioni mas vale insistir que por intermdio da histria que o mdico valoriza as questes antropolgicas, teraputicas e sociais. A incompreenso por parte do mdico a respeito da histria determina conseqncias por vez es funestas como a emitida h trs quartos de sculo por Thursch, grande cirurgio de Leipzig, quando afirmava sonorosamente que a Medicina havia deixado d e ser filha da Filosofia para ser irm das Cincias Naturais, afirmao falha porque supervalorizava apenas uma faceta de um mtodo geral de pesquisa e do progresso mdi

co. Sem dvida que o grande salto da arte e cincias mdicas resultou da experimentao com suas amplas possibilidades. A ufania da experimentao "positiva", como se s ela nos pudesse levar verdade, no pode empanar um conceito mais amplo: a filosofia que deve nortear a experimentao, sendo esta apenas um mtodo para pesquisar a verdad e. A experimentao que leva ao conhecimento novo no pode todavia levar concluso de que no se deva estudar historicamente o conhecimento anterior. Por isso, refutamos a posio dos que consideram puerilidade ou divulgao literria conhe cer tudo que houvesse ocorrido ou tenha sido conquistado no campo da Medicina anteriormente ao sculo XIX, como defendem os orgulhosos das conquistas mdicas do n osso sculo. Mesmo no campo modernssimo, para s citar um exemplo, da patologia psicossomtica dos ltimos anos, no estaria ela revendo sob novas formas "o incompreensvel personalismo" da medicina semtica antiga? Repitamos, pelo estudo dedicado da histria da Medicina, o exemplo dos grandes cri adores do pensamento mdico contemporneo, como o foram Laennec, Virchow, Wunderlid, Malgaigne entre os do sculo passado; Aschoff, Osler, Bier, Sherrington e Cushing entre os deste sculo. Devemos criar no esprito do estudante e do mdico moderno a noo de que no basta um est udo superficial, inconstante e indisciplinado do conhecimento mdico pretrito, mas, antes, de seu dever emprestar dedicao mais sria e constante aos recursos que a histria mdica nos proporciona, a fim de melhor compreender a grandeza da Medicina atual e a, estupenda potencialidade de sua evoluo.

A histria da cirurgia um dos ramos mais recentes do saber mdico, pois a cirurgia t eve num passado prximo a soluo satisfatrio de operar eliminando a dor durante o ato cirrgico. Antes da descoberta da narcose, em 1846, a cirurgia era o sofrime nto associado a alguns conhecimentos bsicos. Mesmo ficando neste conceito limitad o, foram as tentativas empricas a princpio e, a seguir, um conceito filosfico robustec ido pela experimentao que levaram descoberta da narcose, com as conseqncias de mais de 100 anos de evoluo no campo da cirurgia. Essa evoluo, podemos afirmar, se m temor, foi das mais fantsticas que a humanidade tenha conhecido, como muito bem afirma Bertrand Gosset. Sim, fantstica porque ousou agredir cirurgicame nte com sucesso os rgos mais inacessveis, criando captulos da patologia mdica. Venceu os rgos intratorcicos, o crebro, substituiu artrias por material plstico, hibe nou o homem e, por fim, atingiu o corao, considerado intocvel, a ponto de que o mdico que pensasse em oper-lo corria o risco de faltar ao respeito de si mesmo e ao de seus colegas. Quantos equvocos, como esses, a histria demonstra saciedade e revendo-os nos ensin a que a filosofia guia o pensamento a alturas mais elevadas e que a experimentao, quando em cotejo com ela apesar de seu imenso valor, deve ocupar lugar adequado e talvez mais modesto no progresso da cincia mdica. Tendo estes conceitos em mente, que apreciamos o presente livro de Thorwald "O SC ULO DOS CIRURGIES" de que nos coube a honra da apresentao ao pblico mdico brasileiro e aos leigos, cada vez mais interessados na evoluo do pensamento e das realizaes da Medicina.

Valorizamos, em conseqncia, o esforo de Thorwald, embora faa apenas um estudo do capt ulo cirrgico da Medicina e assim mesmo limitado a um sculo, pois ele ensina ao mdico e aos leigos a dedicao da. profisso mdica para corrigir a doena e lut r pelo estado de higidez do povo, finalidade mais nobre da Medicina. Embora, como dissemos acima, Thorwald se tenha limitado a um captulo da histria mdi ca, ao rever um sculo da cirurgia, fez histria, boa e -magistral histria, salientando seu valor como instrumento precioso de ensino e fazendo-nos compreen

der e respeitar o valor da contribuio das geraes passadas. Realiza o objetivo com simplicidade, o que engrandece sua obra. Recolheu ele os informes valiosos d eixados por seu av Henry Steves Hartmann, rico de recursos, para pessoalmente inf ormar-se da evoluo da medicina de seu tempo, em todas as partes do mundo. Hartmann, que tin ha o bom "vcio" de estudar histria, deixa ao seu neto Thorwald os valiosos recursos do testemunho pessoal das conquistas cirrgicas de seu tempo, permitindo aos leitores de "O SCULO DOS CIRURGIES", o prazer de uma leitura amena, magnfica, segura e sumamente instrutiva. PROF. MRIO DEGNI (Presidente da Associao Paulista de Medicina, Professor Catedrtico de Tcnica Cirrgica e "Fellow" Honorrio do Colgio Internacional de Cirurgies) ANTECEDENTES O ttulo, sob o qual se apresenta este livro, deparou-se-me nos papis legados por m eu av materno, Henrique Estvo Hartmann - hoje quase esquecido, mencionado apenas, e de mau grado, pela famlia; ele o sublinhou de prprio punho, como se quis esse salientar a grande significao que lhe atribua. A 16 de outubro de 1846, cerca de cinqenta anos antes de interromper a sua vida erradia de viajante intern acional - dois anos antes de cujo termo se casou com a minha av -- o jovem Henriq ue Estvo Hartmann assistiu no Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, primeira na rcotizao anestesiante, pedra angular - no dizer de Gosset - da histria da cirurgia. H. E. Hartmann foi testemunha casual desse momento revolucionrio em que a cirurgi a abandonou um campo de ao, estacionrio havia um sculo, reduzido impiedosamente pelo poder absoluto da dor nas operaes, e restrito, por medo febre traumtica, a rar as intervenes de extrema necessidade. A cincia cirrgica transpunha o limiar do novo sculo que se lhe abria, maneira de imensa terra virgem, no arrotead a. Essa terra amadureceu, graas aos seus descobridores e exploradores, filhos desse novo sculo. Foi como se uma comporta se abrisse enfim e desse origem a uma sucesso infinita de feitos pioneiros e de progressos at a inimaginveis. E todos juntos erigiram afinal o monumento imponente que hoje a cirurgia.

H. E. Hartmann descendia duma famlia de professor alemo que emigrara para a Amrica. O chefe dessa famlia, Carlos Guilherme Hartmann, exercia no perodo difcil da colonizao da Nova Inglaterra, alm das funes de mestre-escola, a profisso de mdico as a cincia mdica de Carlos Guilherme consistia principalmente na leitura das misteriosas "Instrues Para Casos de Enfermidade" que o fundador do pur itanismo e governador de Massachusetts, John Winthrop, mandara compilar na Inglaterra. Essas "Instrues" - que existiam de fato e que mais tarde eu mesmo encontrei - tratavam, em substncia, de nove molstias e conheciam dois remdios: o P de Carvo de Stafford e o Herbal de Geritt, aos quais se acrescentava, sem dvida, em toda ocasio, a ajuda de Deus. Os casos cirrgicos, com que se aveio no curso da vida o velho Carlos Guilherme - na opinio do meu tio mais velho, bastante maduro para compreender a personalidade de Henrique Estvo e escutar-lhe as histrias - excetuadas raras hemorragias, gangrenas e febres infe cciosas, sempre terminavam bem. Tratava-se da amputao de braos, pernas e dedos, que (mais uma vez no dizer desse meu tio, nico membro da famlia pronto a falar fra ncamente, enquanto viveu, de Henrique Estvo) o velho Hartmann operava com faca de cozinha e serra de jardineiro. Valha a verdade: naquele tempo, os pacientes no tinham grandes exigncias.

Pelo que parece, durante o seu exerccio involuntrio da medicina Carlos Guilherme H artmann nunca deixou de sentir certo constrangimento. Fosse como fosse, mandava o filho Guilherme aprender com um "doutor" escocs emigrado, que sara da Esccia por embriaguez, mas gozava fama de operador emrito, "quando sbrio", especialmente em casos de hrnias e de lceras duodenais. A falar verdade, Guilherme Hartmann pass ava a maior parte do seu tempo de aprendizado a destilar whisky para o mestre e a cuidar-lhe do carro e do cavalo - o que, segundo fontes contemporneas, nada t inha de extraordinrio. Ainda assim, foi discpulo notvel, no tocante aos dois males citados acima. Clinicava em Nova York e, periodicamente, em Boston. Percor ria, alm disso, de carro, numerosos estados americanos. No setor das operaes de lceras, tornou-se em breve o especialista mais procurado e amealhou uma riqueza c onsidervel. Nisso imitava, sem dvida - sempre no dizer de meu tio - o mais famoso cirurgio de lceras da histria da medicina, o ingls John de Ardenne. Como este prescr evia, guisa de tratamento preventivo da lcera (naturalmente inofensivo) um clister especial de alto preo, Guilherme Hartmann s aplicava um clister anlogo, de efeito precrio, a troco de honorrios que iam de cinco a vinte dlares. Essa mescla de aptido para a cirurgia, gosto pelas viagens e habil idade comercial - no mencionada absolutamente por Henrique Estvo nos seus escritos - foi a herana mais valiosa que Guilherme Hartmann legou aos seus filhos .

Casara-se, j idoso, com uma jovem senhora emigrada da Frana, trinta anos mais nova , muito culta, dada a estudos histricos e a fazer versos. Em 1826, j sexagenrio, Guilherme Hartmann tornou-se pai de dois gmeos. Um destes recebeu o nome de Ricar do; o outro foi Henrique Estvo. Aos doze anos, os gmeos perderam a me. Por desejo do pai, deveriam formar-se regularmente numa academia. Entretanto o siste ma de escolas de medicina desenvolvera-se nos Estados Unidos, a ponto de receber em os dois rapazes, em Harvard, uma instruo de nvel muito elevado, que depois completa ram com viagens de estudo Europa. A julgar pelas aparncias, a herana espiritual e os traos caractersticos de Guilherme repartiram-se irregularmente entre os seus dois filhos. Ricardo herdara exclusivamente as aptides comerciais. J no principio do curso, abandonara o pai e o irmo. Regressou, ao termo de cinco anos, com os pr imeiros duzentos mil dlares. Nunca se soube como os ganhara. Ignora-se tambm como conseguiu, mais tarde, multiplicar essa fortuna. O meu tio j mencionado, pre sumia que um hbil emprego de capital numa estrada de ferro exercera papel importa nte nessa multiplicao. Nos papis que deixou, Henrique Estvo Hartmann nunca alude ao irmo, embora lhe devesse muito. Talvez no fosse propriamente por isso, e sim porque no lhe aprouvesse ocupar-se com a vida de Ricardo. O certo que, morrendo s olteiro e sem prole, aos setenta anos, Ricardo Hartmann deixou ao irmo, que prezava como a parte melhor de si prprio, o maior quinho dos seus bens, colocandoo afinal em situao de viver exclusivamente de rendimento. O rumo da vida de Henrique Estvo Hartmann decidiu-se no dia em que ele assistiu, e m Boston, primeira aplicao da anestesia, descoberta que tanto quanto a sua vocao para a cirurgia, despertou nele o gosto pela histria, herdado da me. Convicto do efeito revolucionrio da anestesia na evoluo da cirurgia, Henrique Estvo s eguiu para a Europa, a fim de participar da marcha triunfal da descoberta americana. A experincia europia fortaleceu-lhe a f na iminncia de grandes progressos na cincia cirrgica e, ao mesmo tempo, o desejo de testemunh-los, como testemunhara a primeira narcotizao. A paixo pelas viagens, herdada do pai, fez o re sto. Nessa circunstncia, o prprio Guilherme se tornou seu auxiliar e aliado, fornecendo-lhe os meios necessrios para dar a volta ao mundo. A partir desse pont o, a vida de Henrique Estvo se converteu numa nica e grande viagem, na esteira dos progressos da cirurgia. S a guerra civil americana, durante a qual ele serviu os Estados do Norte, como cirurgio do exrcito do Potomac, lhe interrompeu o itinerrio.

Isento de preocupaes econmicas, mais tarde rico e independente, familiarizado desde a infncia com trs idiomas, ingls, alemo e francs, Henrique Estvo foi da Amrica Alemanha e Inglaterra; percorreu a Frana, a Itlia, a Espanha, a Rssia, a ia, a frica e muitos outros pases e continentes do globo. Visitou quase todos os cirurgies e cientistas cujos nomes sobressaam da histria do sculo dos cirurgies, em virtude de feitos pioneiros; explorou a bem dizer a totalidade dos maiores museus e bibliotecas do mundo, coligindo copioso acervo de documento s, que fornece em conjunto um quadro movimentado da era pioneira da grande cirur gia, dos seus heris e das suas vtimas, dos seus sucessos e dos seus reveses. Em 1922, depois duma vida excepcionalmente longa e de haver sobrevivido a cinco operaes, Henrique Estvo morreu na Sua dum ataque cardaco. Historiador itinerante da medicina, viveu quase literalmente o grande sculo dos cirurgies; consignou em a pontamentos muitas das suas aventuras, revelando-se freqentemente narrador de extraordinria vivacidade. Henrique Estvo Hartmann foi, na flor da idade, um filho autntico da Amrica daquele t empo, todo voltado para a vida real e a experincia, desdenhando por vezes a erudio morta dos livros. Apesar disso, raros o ultrapassaram provavelmente em conhecimentos mdico-histricos que ele utilizava s na medida em que esses conhecimentos se ligassem ao presente e se rvissem, ou para esclarecer a evoluo dessa cincia, ou para lhe focalizar plenamente

a significao revolucionria. Henrique Estvo iniciou a sua aventura do Sculo dos Cirurg s, com o entusiasmo juvenil do crente certo de que a descoberta da anestesia abriria por si s aos profissionais da cirurgia uma era nova. A verificao ulterior de que nem tudo estava feito e outros obstculos - antes de tudo, as horrveis infeces traumticas, nos hospitais anti-higinicos da sua mocidade e dos se us primeiros anos viris - que se atravessavam no caminho da sua cincia, o abalaram e desiludiram, sem lhe alterar a f arraigada no progresso. Essa f empol gou-o novamente, quando se conseguiu enfim eliminar a infeco ps-operatria. Ele aderiu ento convico em voga de que tudo possvel ao cirurgio, de que finalmente haveria molstia da qual a cirurgia no conseguisse triunfar, nem rgo enfermo que ela no pudesse remover. O entusiasmo da aventura arrastava-o atravs do mundo, e ele observou tudo o que lhe foi dado ver, com os olhos dum fautor do progresso, at ao advento das provas que o ensinaram, com o infortnio pessoal, a reconhecer os limites impostos aos prprios cirurgies de idias avanadas e finalmente a encontrar e aceitar a justa medida entre o possvel e o impossvel, ent re o sonho e a realidade. Henrique Estvo Hartmann legou o seu arquivo e os seus apontamentos aos seus descen dentes para que, um dia e sua semelhana, se interessassem profundamente pela medicina e, na mesma medida, pela histria desta cincia. Nenhum dos seus filhos nas ceu dotado desse interesse. Doze anos aps a morte de meu av materno, eu comecei os meus estudos de medicina.

Tornei-me assim herdeiro casual dum homem que a famlia envolvia numa sombra miste riosa; e duma coleo histrica e literria - j ento, naturalmente, muito incompleta - de apontamentos e valiosssimas fontes de histria e de medicina. J antes que os su cessos da Segunda Guerra Mundial me induzissem a traar o quadro dalguns dos seus perodos trgicos e a tornar-me autor de obras sobre histria contempornea, eu concebera o plano de fazer dessa coletnea uma espcie de grande confisso de Henrique Estvo Hartmann sobre o Sculo dos C rurgies, uma histria da cirurgia moderna vista por um contemporneo. Ela era uma tentao de participar da aventura. E induziu-me tambm a visitar os vrios teatros dos seus acontecimentos e experincias decisivos, na Europa e alhures. Levou-me finalmente a um estudo da Histria da Cirurgia, que no se poderia limitar

aos fatos comuns da medicina. Com o fim de preencher as lacunas do legado de meu av, cumpria-me investigar, no s a atmosfera do sculo, mas tambm o carter, o estil , os hbitos de vida, a existncia privada, todas as manifestaes e falas das personalidades estudadas, e conhec-las, com uma familiaridade mais ou m enos anloga que manteve com elas o seu contemporneo Henrique Estvo Hartmann. Tive de lhes formar a imagem, reunindo dados de centenas de fontes, e cuidar sim ultaneamente de mincias acessrias materiais, como a cor do vesturio ou da gravata, tanto quanto de numerosos pormenores a que, de ordinrio, o historiador no d a devid a ateno, mas que pertencem ao quadro geral, se quisermos que ele seja exato.

Entreguei-me, durante anos, a procurar comprovantes para os informes extraordinri os de meu av, acerca dos quais -- como na histria dos charutos do captulo Warren - cheguei a suspeitar de que o narrador de histrias Henrique Estvo Hartmann suplant ou o cronista. Mas as fontes por mim usadas certificaram-me de que, com raras excees, decorrentes de limitaes dos pontos de vista mdicos e cientficos prprios da meu av escrevia a verdade. E assim, ao termo de anos de estudo dos documentos deixados por H. E. Hartmann e dum trabalho de largo alcance de pesquisa e de complementao, nasceu a narrativa seguinte. PARTE 1 A LONGA NOITE OU ANTIGIDADE KENTUCKY McDowell foi o heri da minha mocidade. Morreu em 1830. Eu tinha ento quatro anos e nunca o vi, Mas meu pai o visitara mu itas vezes; e o que ele me contava acerca do mdico rural itinerante de Danville - que, uns quarenta anos antes da descoberta da anestesia, quase sessenta anos a ntes da assepsia se abalanara, a despeito das teorias vigentes no mundo, a abrir com sucesso o ventre dum ser humano vivo - tinha muitos aspectos. A narrao variava , conforme a minha idade; meu pai adaptava a histria ao grau de conhecimentos mdicos que eu ia adquirindo como seu assistente e tambm s minhas noes de anatomia fem inina, porque a primeira pessoa operada por McDowell fora uma mulher. J no tempo em que ainda me sentava nos joelhos, meu pai falava dessa operao; continu ava a mencion-la anos depois, quando eu j decidira ser mdico operador. A histria de McDowell contribura consideravelmente para essa resoluo; sempre me elevava a reg ies onde o corao pulsa com mais fora. Era ento a poca primitiva da cirurgia; estava-se por assim dizer na ante-sala ttrica, dolorosa, assolada pela tristeza e pela morte, do grande e glorioso sculo dos cirurgies, que s raiaria em 1846. Naquele tempo, a histria de McDowell era a bem dizer um jato de luz forte que me acendia a fantasia viva com vises do futuro. E mais tarde, quando eu prprio me vi envolvido no progresso vertiginoso do sculo dos cirurgies e assisti ao nascimen to e evoluo da cirurgia moderna, a figura de McDowell ficou sendo o smbolo desse passado remoto que j nos custa imaginar, na sua limitao antiquada, lastimosa, de conhecimentos e possibilidades, bem como na desumanidade dos seus processos. Mais tarde, custoume, e ainda me custa compreend-lo, embora eu me tenha criado nele e ouvisse durante o mau aprendizado os gritos das suas vitimas. A hi stria da vida de McDowell sempre me ajudou. Eu o evocava constantemente a cavalo, carregando na sela a bolsa atulhada de instrumentos grosseiros e primitivos, atr avessando os desertos do Kentucky; ouvia meu pai, exmio narrador de histrias, exal tar-lhe o vasto saber e as aventuras como se o heri dessas faanhas estivesse presente, num a narrao viva, colorida, espirituosa, que me ressuscitava ante os olhos o feito prodigioso de McDowell, o local onde ele o praticara, sem testemunhos verbais ou escritos, como s o poderia representar o poder evocativo da imaginao dum narrador.

Mais tarde, quando eu prprio coligi dados histricos, fornecidos pela vida de McDow ell, pude averiguar em que alto grau meu pai se atinha ento verdade dos fatos. A 15 de dezembro de 1809, uma nevasca excepcional castigava o Kentucky. Nevava i ninterruptamente, e a tormenta acumulava a neve em montes e colinas. Quando cheg ou orla da floresta, na embocadura do vale de Motley, em Green County e se viu dian te dos blocausses da colnia, Efraim McDowell estava, como o seu cavalo, incrustad o de neve e de gelo; cristais de gelo lhe reluziam no rosto magro, roxo de frio.

McDowell vinha de Danville, depois de cavalgar vrios dias. Entre essa cidade e a colnia mediavam sessenta milhas de mata cerrada; s acidentalmente se topava com algum fortim no percurso. Mas McDowell era um nativo da regio. Os ndios lhe ha viam exterminado os avs, quando seu pai contava sete anos; e, embora este se houvesse tornado como juiz e poltico uma das personalidades mais importantes do K entucky, Efraim criara-se numa choupana de troncos, na faina rude da lavoura, so b a ameaa constante da guerra com os indgenas. Os homens e mulheres que, na poca dos pioneiros da Amrica do Norte, se estabeleciam nas florestas do Kentucky eram rijos como os troncos que derrubavam, a fim de desbravar terreno para o plantio de trigo e de fumo. A maioria deles, s de ouvir dizer, conhecia a assim chamada civilizao; s recorria ao mdico, em caso de molstia mortal. E o mdico, para os servir, tinha de ser de tmpera dura como a deles. Enquanto McDowell deitava um olhar roda, a porta duma das choupanas maiores abri u-se, empurrada de dentro. Jorrou do interior um bafo quente que formou nuvem no ar claro e glacial. Atrs de ssa neblina apareceu um homem barbado. Ces ladravam, furiosos. Escancararam-se as portas das outras cabanas; homens e mulheres saram ao ar livre. Vendo-os corre rem para a choupana do barbado, McDowell concluiu que esse homem devia ser Tom Crawford que o chamara. Virou o cavalo na mesma direo e apeou-se, alto, magro, com as pernas inteiriadas. - Tom Crawford? - perguntou o mdico. Ela est a dentro - respondeu lacnicamente o colono. Arredou um bando de crianas, e McDowell curvou-se para entrar. Estava familiariza do com o cheiro dos blocausses, mistura peculiar de fumaa com suor e emanaes de roupa mida. McDowell fungou e olhou roda de si. A janela aberta e uma vela de sebo iluminavam tristemente uma mulher deitada sobre um catre de tbuas, num dos cantos - uma criatura de rosto estranhamente lenhoso, encovado, amarelento, que respirava ruidosamente pelo nariz. Um espesso acolchoado de penas cobria-lhe o corpo. Outra mulher, de cara aptica e acobreada, acocorada junto do catre, voltou-se a o lhar McDowell que se aproximava da cama, abaixando a cabea, sob o teto de troncos , negro de fuligem. - Bom dia, doutor - rouquejou ela. - Sou a Senhora Baker, a vizinha. Fiz tudo o que podia. Ela esperava em novembro... Geme como quem est de parto; queixa-se de falta de ar. Mas eu no arejei a casa; s poderia piorar... McDowell guardou silncio. Largou a bolsa perto da cama, tirou as luvas, o capote, chegou-se ao fogo e esfregou as mos.

- Faam o favor de sair - disse aos curiosos que se premiam atrs dele, na cabana. Depois, sentou-se na beira do catre e arregaou as cobertas que se resumiam num ve lho cobertor de l cinzenta. O que tomara por um edredo no era seno o ventre horrivelmente inchado, monstruosamente dilatado dum lado s, que se escondia debai xo dele. McDowell apalpou-lhe em vrios pontos a pele retesada. No se moveu um trao, no rosto da paciente. O mdico notou manchas azuis e esverdeadas no abdmen e enviezou um olhar desconfiado vizinha e a os seus punhos avermelhados. Premeu varias vezes o inchao com firmeza e, pela primeira vez, os dentes da enferma rangeram. O mdico refletia com calma. Afinal, endireitou-se, puxou o cobertor sobre o ventre intumescido, perscrutou a fisiono mia de Crawford, mordeu os lbios e no quebrou o silncio - um silncio angustioso. - Crawford - disse enfim McDowell - no criana.. . - Que , ento? - acudiu a vizinha, em vez do marido. A vela de sebo bruxoleou, exal ando o seu cheiro enjoativo. Crawford alisou nervosamente a testa, com a mo felpuda e, mal reprimindo a aflio, p erguntou: - Doutor, o senhor a endireitar? McDowell alongou o olhar alm da janelinha. Viu l fora, na neve, os curiosos, homen s e mulheres, esperando em grupo macio como uma parede. E rogou: - Crawford, deixe-me um instante a ss com a sua senhora. O olhar sombrio do marido fitou-se na bolsa dos instrumentos, com temor e descon fiana. Mas o homem girou nos calcanhares e saiu. A vizinha acompanhou-o. McDowell ficou s com Jane Crawford. E com o seu diagnstico. Esse diagnstico indicav a uma intumescncia originada por um quisto muito desenvolvido num dos ovrios, afetando j o estmago e os intestinos e forando o corao comprimido a um trabalho deses perado.

McDowell no deixou notas escritas sobre as idias que lhe ocorreram naquela emergnci a; nem de crer que a sua ndole taciturna lhe permitisse dizer a meu pai mais do que o necessrio. No custa, porm, adivinhar o que lhe ia na mente, porque Mc Dowell era filho de seu tempo, quando "cirurgia" era apenas sinnimo de amputao, reduo de hrnias, extrao de clculos, operao de catarata e umas poucas intervenes d mais ou menos importantes, dolorosas e sem esperana de xito para o paciente - nunca, porm de interveno direta no interior do corpo humano. A is to se opunham a impossibilidade de superar a dor da operao, as mortferas febres infecciosas, mais comuns, alis, nas operaes abdominais e prontas a se declararem, mal se abrisse o peritnio. Indubitavelmente, McDowell sabia mais do que muitos mdicos dessa regio ao oeste dos Alleghanys, pobre de profission ais capazes, infestada de curandeiros e de charlates. semelhana destes e como eu prprio mais tarde - mcDowell comeara a trabalhar, sob a orientao dum "dout or" prtico. Tivera, porm, a sorte de poder aprender em Staunton com o Dr. Humphreys, estudioso notvel que realizava com os discpulos at pesquisas de anatomia , o que no constitua absolutamente uma norma do ensino daquele tempo. Humphreys granjeara notoriedade, graas ao escndalo provocado em torno dum esqueleto humano d escoberto numa caverna prxima de Staunton e atribudo vtima dum crime. Tratava-se, na realidade, dos restos do cadver dum negro autopsiado pelos discpulos de Humphre

ys. Ademais, MacDowell gozara do privilgio de ser enviado pelo pai Esccia, afim de l estudar medicina, mais minuciosamente do que era ento possvel na Amrica. A falar verdade, a iminncia da Guerra de 1794 forara o estudante McDowell a abando nar a Esccia, antes de conseguir o diploma de mdico. Em todo caso, no custou averiguar a que estudos ele se dedicara. Provera-se de certo do livro do Profess or Hamilton, "Female Complaints" ("Doenas das Mulheres") e assim tomara conhecime nto da tese desse autor, segundo a qual a abertura do abdmen humano e a ao do ar frio s obre as vsceras provocava imediatamente inflamao de xito fatal; em conseqncia, os tumores dos ovrios femininos tambm deveriam "ser confiados aos cuidados da natu reza". McDowell freqentara em Edimburgo o curso do famoso Professor John Bell, cursos em que este tratara particularmente dos tumores dos ovrios e da nenhuma esperana de cura desse mal, enquanto o deixassem aos cuidados da natureza. Desde milnios, desde os primrdios da espcie humana, inmeras mulheres sofriam e morriam, porque no vazio do abdmen, num ou nos dois ovrios, um tumor benigno ou maligno se lhes de senvolvera desmedidamente. Emagrecidas, plidas, com o ventre crescido, elas arrastavam por assim dizer o seu fardo mais e mais volumoso, atravs dos sculos, at que o mal as consumisse inteiramente. C e l elevavam-se vozes, ponderando que a abertura do ventre e a extirpao, faca, do tumor" poderia salvar essas condenadas morte. Mas ningum se atrevia a pr aticar a ablao, porque a histria das operaes abdominais em feridos de guerra a estava para provar que a abertura do ventre - j sem falar do choque no rar o mortal da dor - provocava peritonites fatais. Tal qual Hamilton, John Bell - a cujos ps se sentava em Edimburgo o jovem McDowel l - no tinha outra doutrina, salvo a da capitulao dos cirurgies, ante quaisquer molstias femininas, inclusive naturalmente os tumores ovarianos; tambm divulgara e ssa impotncia irremedivel, na sua obra "Os Alicerces da Cirurgia". Em conseqncia, nesse dia 15 de dezembro do ano de 1809, na choupana de troncos do vale de Motle y, se Efraim McDowell, sentado no catre de Jane Crawford, recapitulasse o que pr ofessavam at quela data os luminares da medicina do mundo, s poderia concluir pela resignao e p ela desesperana. Talvez lhe cruzasse a mente o teor geral das teorias cirrgicas do seu tempo: "Nunca se conseguir praticar a ablao dos tumores internos, estejam eles localizados no tero, no estmago, no fgado, no bao ou nos intestinos. Neste campo, Deus marcou limites ao cirurgio. Ultrapass-los praticar um assassnio..." Meu pai nunca omitia esta citao nas suas narrativas, para lhe fazer seguir a descr io da luta ntima de McDowell, em termos que me cortavam o flego. A descrio iniciava-se com a palavra "Doutor", saindo dos lbios da enferma Jane Craw ford. Papai dava-lhe a entonao que ela deveria ter na boca da paciente, na choupana coberta de neve, naquele silncio angustioso e solene. - Doutor... Esse apelo sobressaltou McDowell, arrancou-o sua meditao. Era a primeira vez que o uvia a voz da criatura estendida no catre, e ele pressentiu que o olhar dela no o deixara o tempo todo. - Doutor - repetiu Jane Crawford - que isto? McDowell encarou-a e respondeu: - Creio que um tumor. Ela tornou: - Corte essa cousa, doutor! Eu resisto bem ao sofrimento !...

McDowell olhou-a de soslaio; no se moveu. "Apanha a bolsa - sugeria-lhe a voz dis tante do mestre edimburgus - redige uma receita, deixa Jane Crawford morrer em nome de Deus, como est escrit o, e trata de voltar a Danville..." Mais ainda: "No te deixes seduzir - insistia a voz - pelo argumento de que ela est condenada e, na pior das hipteses, a tentati va de salv-la com uma facada lhe trar no mximo a morte. Se ela te morrer nas mos, qualquer tribunal pode condenar-te como assassino, porque ns - ns, as autorida des - predissemos que semelhante operao equivale morte certa. E, ainda que nenhum tribunal te julgasse, o mundo mdico te condenaria". McDowell ouvia o murmrio dos que aguardavam, alm da janela. E no tinha dvidas: - Esses tornaro a ter f em mim, a considerar-me o melhor cirurgio a oeste dos Alleg hanys, se eu fizer o que me aconselham as vozes distantes dos mestres, se eu deixar uma receita qualquer e "entregar Jane Crawford natureza". Mas todos me ch amaro assassino, se eu lutar pela vida dela e sucumbir na luta... - Doutor - articulou a voz fanhosa de Jane Crawford - eu resistirei.. . Resistirei, com certeza...

Ainda dessa vez, McDowell fez um movimento. Mais tarde, nunca soube explicar por que, justamente nesse minuto, lhe vieram memria outras vozes, vozes isoladas de cirurgies at a desatendidos, quando sustentavam apesar de tudo a possibilidade de s alvar, com uma interveno corajosa, as condenadas morte. Sim, John Hunter, o grande ingls, proclamara que essa operao era impossvel. Mas tambm no escrevera um d a que lcito perguntar porque no resistiria a mulher ablao dos ovrios, se a suportam to numerosos animais. Doutor - insistiu a enferma - tenho cinco filhos. Ainda cedo para eu morrer. E m orro, se o senhor no me tirar essa cousa. Resistirei operao; tenho certeza... McDowell fez finalmente um gesto e foi para apanhar a mo de Jane. Disse: - uma mulher corajosa, Senhora Crawford! Sabia-se que McDowell no enganava os seu s doentes. Dizia-lhes a verdade, a custo de se ver taxado de grosseria, ou de crueldade. Em questes de vida e de morte, abominava a mentira. - Sim - continuou, pois o tumor que tem na barriga a matar; no sei dentro de quant o tempo. Talvez ainda aguente um pouco; pode at durar bastante. Agora, se eu lhe extirpar o tumor, a senhora est sujeita a morrer debaixo da faca. Assim dizem todos os professores de cirurgia que eu conheo, mesmo os mais famosos e mais experientes... McDowell desviou os olhos, fitou-os na parede, porm, que o olhar de Jane no o larg ava. - E o senhor que acha? - perguntou ela. O mdico previra a pergunta. No respondeu. - Experimente, doutor - insistiu a enferma. - Se eu morrer da operao, que tinha de ser. prefervel morrer de vez, a viver assim. Faltou-lhe a respirao; ela apertou os lbios e prosseguiu: - Direi a todos que fui eu quem quis; a responsabilidade ser s minha...

McDowell levantou-se e ps-se a percorrer o quarto, entre o catre e a lareira fuma renta. Ouviu de novo o burburinho que faziam l fora os seus futuros juizes. E de novo captou a voz longnqua dos mestres. Mas a paciente estava ali, diante dele , ao alcance da sua mo, ao passo que as vozes admoestadoras vinham duma distncia incalculvel, do deserto. O calor do fogo derretia o gelo agarrado s roupas de Efra im McDowell. Ele, concentrado nas suas reflexes, nem o notava. - Senhora Crawford - disse afinal, rouco, exausto - poderia, nesse estado ir com igo a Danville? Ela no hesitou: - Vou, quando o senhor quiser, doutor. McDowell percebeu novamente as advertncias das vozes longnquas. Mas persistiu. No p oderia explicar o que era, nessa hora decisiva, o que o tentava e impelia a no dar ouvido queles avisos e sim a escutar a criatura condenada morte pela sentena dos grandes e que, no entanto, se negava a morrer. Possivelmente a sua pergunta a Jane Crawford se poderia ir a cavalo a Danville e a esperana de que ela respond esse "no" provinham do desejo de se eximir duma deciso que lhe crescia no ntimo, mais e mais imperiosa - talvez porque, na sua simplicidade, na sua soledade, ele ainda no avaliara perfeitamente a enormidade duma operao, ante a qual vacilavam os mais famosos; e sobretudo porque o mundo onde viviam ele e Jane Crawford no er a um mundo de resignao e sim o mundo da luta quotidiana pela vida. - Senhora Crawford - disse o mdico - l em casa, talvez eu me anilhe a tentar... Um sorriso, contrafeito, doloroso, iluminou o rosto lenhoso da enferma. - Nesse caso, vou com o senhor - disse ela. Chame Tom e deixe-me um instante s co m ele. Eu lhe explicarei tudo; direi que, de qualquer maneira, no espere pela minha volta, e sim que volte s o cavalo. Depois... quero ver as crianas ainda uma vez... At ao fim dos seus dias, Efraim McDowell jamais esqueceu a jornada que ele, Jane Crawford e a Sra. Baker levaram a efeito, entre 15 e 17 de dezembro de 1809. O corpo disforme de Jane, embrulhado em cobertores, fora amarrado ao cavalo. Mas a mulher no deixara escapar uma queixa. E, embora se lamentasse, os seus gemidos se perderiam no bramido da tormenta que iam enfrentar, mal lhes faltasse, em tre chos do percurso, a proteo da floresta. Durante a marcha, McDowell tinha constantemente ante os olhos a cena da despedid a da colnia. Esquecia as crianas desorientadas e chorosas; esquecia tambm a fisiono mia soturna de Tom Crawford que no sabia se via a esposa partir para a salvao ou para a morte; esquecia finalmente as caras dos vizinhos, nas quais se estampavam o receio e a incerteza do que estava para acontecer. Do que se lembrava era o instante em que deixara a choupana hospitaleira onde pa ssara a noite. Nessa noite, a Sra. Baker satisfizera a curiosidade dos hospedeir os, e o acolhimento cordial do anoitecer transformara-se, na manh seguinte, em silncio hostil. Aquela boa gente perguntava a si mesma se no dera guarida a um homem que perdera subitamente a razo e arrastava uma vtima ao matadouro, atravs do desert o.

Ao entardecer do dia 17 de dezembro, a pequena comitiva entrou em Danville, fund ada em 1787 e, ainda na poca destes fatos, aglomerao mais ou menos casual de casas de madeira. Numa das maiores, morava o Dr. McDowell, com sua irm Sara, o sobrinho e assistente Dr. James McDowell e um discpulo chamado Carlos McKinny. J escurecia. A rua principal, coberta de neve, estava deserta e os habitantes de Danville no tomaram conhecimento da nova paciente do Dr. McDowell nem do seu plan o temerrio. Sara apareceu porta com uma luz, quando o irmo se apeava, exausto. Escutou as exp licaes e entendeu, sem fazer muitas perguntas. Chamou James e Carlos. Estes retiraram Jane Crawford do cavalo, deitaram-na e indicaram Sra. Baker outro quar to. Nessa noite, McDowell no dormiu. Sentou-se a ler, luz do candeeiro, nos seus trat ados e revistas de anatomia e cirurgia, tudo o que ali se dizia at poca mais recente, sobre tumores dos ovrios. Nada achou que o animasse. Apenas em Paris, a Academia Real de Cirurgia publicara nesse ano um relatrio em que homens como Flix Plater em Basilia e o cirurgio Diemerbrock eram mencionados, por terem ambos afirm ados teoricamente, muito antes, a possibilidade da extirpao cirrgica dos tumores do ovrio. Havia pouca probabilidade de chegar esse relatrio casa do mdico de Danvil le. E ainda que l chegasse, McDowell no sabia francs. Em conseqncia, o resultado das leituras dessa noite se resumia em "No" "Impo ssvel". Pelas seis horas da manh, o mdico apanhou o candeeiro e entrou no quarto onde Jane Crawford descansava, com o corpo disforme aparentemente imvel na cama. McDowell julgou-a adormecida. Mas a voz da enferma, alterada pelo cansao, soou claramente audvel, na penumbra: - Ento, doutor, o senhor no desiste? Eu no quereria ter andado tanto debalde. McDowell, parado porta, no respondeu. Sentia, no entanto, que em presena dessa mul her, da sua confiana, da sua coragem desesperada, no podia recuar. Enveredara por um caminho que teria de percorrer at ao fim, fosse como fosse. - No, senhora Crawford - disse - eu no desisto. Na manh seguinte, quando as primeiras carroas e trens se aventuravam nas ruas atape tadas de neve, McDowell falou ao sobrinho. Informou-o do que ocorrera e concluiu , perguntando: - Posso contar contigo? James estudara em Filadlfia onde, naquele tempo, funcionava uma das primeiras esc olas de medicina dos Estados Unidos. - Meu tio - respondeu ele, perplexo - James, Physick, os outros todos, te diriam que a senhora Crawford morrer sob a faca. - Disso sei eu; mas no acredito. No acredito - repetiu McDowell, como se quisesse dominar a sua prpria dvida. - Toda a cidade de Danville, o Kentucky inteiro te acusar de homicdio. Se ela morr er, acudir gente; e a casa ser incendiada... - Ela no deve morrer - replicou McDowell. - Por isso preciso de ti...

James cravou os olhos no cho e disse em tom queixoso: - No te posso ajudar. Nisso no. um desastre! O doutor Hunn gritaria ao mundo intei ro que s um assassino. A pele do rosto cansado de McDowell estirou-se sobre o queixo ossudo. O mdico via diante de si esse concorrente que derrotara e que, sem dvida, esperava uma oportunidade de desforra. - No te preocupes com Hunn - disse McDowell ao sobrinho. Eu te perguntei apenas s e queres ajudar-me, ou no. - No posso. Rogo-te que no faas isso - implorou James. Por favor, desiste... McDowell voltou-se. - Ento, operarei com Carlos! - Carlos quase uma criana... No podes fazer isso! No deves... McDowell retirou-se. Entrou na cozinha e prescreveu um regime, para fortalecer J ane Crawford, antes da operao. Depois atendeu os clientes costumeiros que o procur avam em Danville. No outro dia, uma furiosa tormenta de neve assolou a cidade, uivando nas ruas. P or esse motivo, McDowell no estranhou que a sua sala de espera ficasse vazia. Enq uanto a nevasca sacudia portas e janelas, ele se ocupava em instruir Carlos sobre os i nstrumentos necessrios para as grandes operaes. tardinha, Sara assomou porta, e disse: - Efraim, achas que Carlos... - Carlos um rapaz corajoso - atalhou o irmo. - Sim, um rapaz corajoso - tornou Sara. Contudo, se ele fraquejasse... queria ap enas dizer-te, e no o esqueas, que eu estou a... McDowell levantou a cabea e respondeu: - Nunca duvidei disso. J no terceiro dia, amainara a fria da tempestade. Apesar disso, a sala de espera p ermaneceu vazia; no dia seguinte, no apareceu ningum que precisasse dos servios de McDowell. Nessa tarde, um preto, que ele ajudara vrias vezes, desatou a correr , encontrando-o na rua. McDowell chamou-o e ordenou-lhe que esperasse. -- Por que foges de mim? O negro tremia. -Patro, andam dizendo que s o diabo, que esquartejas gente viva, para que v ao infe rno... Ao entardecer de 20 de dezembro, quando McDowell em luta com a sua incerteza rec alcada estudava nos seus livros a anatomia da cavidade abdominal, James bateu-lh e porta.

- Que queres? - perguntou-lhe o tio. - A cidade inteira est em revolta - disse James. - Amanh, o pastor falar pela prime ira vez contra ti. Querem assaltar a casa, se... McDowell ergueu lentamente os olhos. - Suponho que o xerife me guardar a casa contra esses loucos varridos. - Que vale o xerife contra tantos? McDowell no respondeu. Mas enterrou a cabea nas mos, assim que o sobrinho se retiro u. E permaneceu muito tempo calado, com o olhar vago. Mais tarde, dirigiu-se lentamente para a sala de estar onde Sara se ocupava com um trabalho manual. O i rmo ficou a observ-la da porta. -Efraim - disse ela - nem precisas perguntar. Faze o que deves fazer. - Tentarei na manh de Natal - replicou ele. - Talvez nesse dia me deixem em paz.

Na manh de Natal, quando os sinos repicavam e a populao de Danville acudia igreja, McDowell ultimava os preparativos. Armou a mesa de carvalho da sala, forrou-a com um pano branco, atou-lhe aos ps algumas cordas, para amarrar a Sra. Crawford; preparou gua quente e fria, faixas e ataduras. Arrumava os instrumentos e dava a Carlos as ltimas instrues sobre o modo de alcan-los, quando a porta se abriu atrs d le. McDowell voltou-se. James enquadrava-se no portal. - James? - perguntou o mdico. - Sim, meu tio. - Que mais queres? James fechou a porta e replicou. - Pensei que, se no posso dissuadir-te, devo pelo menos ajudar-te. McDowell no respondeu. To pouco impediu que o assistente despisse a sobrecasaca e arregaasse as mangas da tamisa acima dos cotovelos. Nem prestou ateno expresso de alvio que transparecia no rosto juvenil do discpulo. - Carlos, a senhora Crawford pode vir. Est tudo pronto - disse o mdico, encurvando os ombros como naquele dia decisivo, no vale de Motley. Quando Jane Crawford entrou no quarto, amparada pela Sra. Baker, alm das janelas da igreja terminava o cntico de Natal. Ia principiar o sermo. A Sra. Baker despiu Jane Crawford e ajudou a deitar-lhe o corpo disforme e pesado, na mesa de carval ho. -- Doutor - disse a paciente, deitando um olhar s cordas - eu venho decidida a no gritar. No precisa amarrar-me. - Acredito - respondeu McDowell. Mas assim melhor. Introduziu-lhe entre os lbios finos algumas plulas de pio, o nico meio, ento, de abrandar passageiramente a dor - meio que nunca chegava a ser mais do que um sedativo; e, muitas vezes, nem isso. McDowell curvou-se sobre o ventre inchado. Traou com a pena a linha por onde pret

endia praticar a inciso, esquerda, a umas trs polegadas do msculo reto-abdominal. Depois, empunhou o escalpelo. James apanhou o dele. Ouvindo o tinir dos ferros, Jane Crawford fechou os olhos e logo entoou um salmo em voz alta. Na hora decisiva em que a sua energia, a sua determinao ameaavam fraquejar, ela agarrava-se sua f, ao seu Deus. McDowell deu o primeiro talho, separou a epiderme. A voz de Jane Crawford esmore ceu; ela contorceu-se e crispou as mos nos cantos da mesa. Mas, apesar da dor tor turante, no interrompeu o salmo. McDowell continuava a operar nas camadas musculares, atendo-se ao plano que traar a a si prprio nesses dias. Encontrava a parede abdominal bastante pisada pelo pomo do aro da sela. Abriu o peritnio; e as vsceras, como premiadas por um punho, de rramaram-se na mesa. McDowell e James, assustados, tentaram reintroduzi-las na inciso; no o conseguiram; o tumor enorme, que preenchia a maior parte da cavida de abdominal, fechava o caminho. A voz salmodiante elevava-se e baixava. A respirao de Jane Crawford tornava-se irr egular. Ela, porm, fazia o que talvez parea inexplicvel, incompreensvel aos homens do nosso tempo: gritava e, terminado o primeiro salmo, entoou o segundo. As articul aes das suas mos perdiam a cor, e ela cantava. Cantava o salmo mais horripilante e, ao mesmo tempo, mais consolador que McDowell j ouvira. O mdico escorria sangue. O tumor j aparecia, de trs das vsceras, no campo visual. Mc Dowell tentou agarr-lo, O quisto era demasiado volumoso, para sair pela inciso; pousava no oviduto, como fruto enorme e passado, preso ao talo. O operado r apanhou uma atadura de seda e ligou o oviduto bem junto ao tero. Em seguida, ao termo de breve reflexo, abriu com dois talhos o quisto repleto dum a substncia visguenta, gelatinosa. James comeou a junt-la com uma colher. As mos tremiam-lhe. Mais tarde, o assistente pesou o contedo do tumor: quatorze libra s. O salmo continuava. Era o cntico mais terrvel e mais tocante que poderia sair de lbios humanos; perdia a pouco e pouco o vigor. Um "Aleluia" soou, abafado , entrecortado de gritos reprimidos a custo, quando McDowell, banhado em suor, quase sem flego, puxou o saco vazio do quisto, pelo talho do abdmen, separando-o d o tero e fazendo-o deslisar para a mesa. Pesado igualmente, o envoltrio acusou um peso de sete libras. McDowell concentrava-se intensamente em escutar as variaes da salmodia dolorosa de Jane Crawford, a ponto de no ter notado o alarido que j ento alvorotava a rua. James, porm, o percebera e parecia muito alarmado. Relance ando afinal um olhar janela, o operador deu pela multido ameaadora que se aproximava, vociferando, em gritos que lhe chegaram distintamente fundidos nu m coro: "Vamos arranc-los de casa!... Salvemos Jane Crawford!" Com as mos sanguinolentas mergulhadas no talho, meDowell encarou o sobrinho. A va nguarda da chusma j se avizinhava da casa. Jane Crawford tinha os lbios lvidos; a voz, que persistia em cantar, saa-lhe com di ficuldade da garganta; ouvida l fora, bem podia parecer vim lamento de agonizante . Mas para o mdico, significava muito outra cousa: cada som desse canto, por mais p enoso que fosse, era um sinal de que Jane Crawford vivia. - Vamos tir-lo de casa! preciso arranc-lo,dali, antes que ele a mate!... McDowell empurrou as vsceras para dentro da cavidade latejante. Ajudado por James , virou de flanco o ventre aberto e deixou escorrer para o cho o sangue que se

derramara no vazio. Ao mesmo tempo, o canto cessou pela primeira vez e empurres v igorosos abalaram a porta da rua. Dois homens treparam numa rvore prxima da janela e deixaram pender uma corda com a ponta atada em lao. - Saia, doutor! - berrou um deles. Saia da, para que o enforquemos... James encostou o ouvido ao peito de Jane Crawford, apalpou-lhe o pulso. Ela entr eabriu a boca tentando de novo emitir a voz e encontrar nas palavras balbuciadas do salmo alvio para a sua dor. McDowell uniu o talho da parede abdominal. James segurava-o, enquanto o tio mane java a agulha. porta, as pancadas redobravam de violncia. McDowell reconheceu a voz do xerife do minando o tumulto: - Calma, minha gente! Vou ver o que est acontecendo a dentro. Deixem-me passar... deixem-me passar.. Nesse instante, morria pela segunda vez o canto de Jane Crawford. James curvou-s e de novo a lhe auscultar o peito. Fora apenas um delquio o que lhe extinguira a voz. Jane respirava. Mal se lhe ouvia o flego. Mas a operada respirava. McDowell ouviu atrs de si o rangido da porta. Apressou a sutura deixando aberta a parte inferior da inciso, afim de poder puxar para fora as pontas dos fios das ligaduras e exercer vigilncia sobre elas, durante a cicatrizao. Terminando, voltou o rosto desfigurado pelo esforo e reconheceu Sara. - O xerife quer entrar - disse ela. - No permitas - arquejou o mdico. - Segura-o quanto puderes. Os operadores aplicaram o adesivo e sobre ele a atadura. Desataram os ns das cord as, em parte j desfeitos. Mas, enquanto cuidavam disso, ouviram empurrar a porta e o xerife entrou. A operao durara vinte e cinco minutos. O xerife deteve-se; na r ua reinava um silncio precursor de tempestade. A vista da paciente desmaiada, da toalha ensopada em sangue, das mos ensanguentadas, da poa de sangue no soalho o estarrecera. - Ento, vocs a mataram - disse a autoridade, com voz que mal se ouvia. McDowell suspendeu o que fazia sua mesa de operaes, empertigou-se e respondeu: - Ns a operamos. Extirpamos o tumor que ela trazia no ventre e ela... vive... O xerife olhou, indeciso, roda de si. Depois aproximou-se da mesa e curvou-se pa ra a operada. Ouviu-lhe a respirao fraca. Olhou, franzindo o sobrecenho, o saco vazio do quisto. Endireitou-se, muito plido, e caminhou para a porta. Mas voltouse com certa timidez: - Doutor, eu tambm pensava... Esses doidos queriam enforc-lo de verdade. Eu, porm, lhes falarei... eu lhes falarei. .. Eu tambm dizia a mesma cousa... O xerife saiu, apressado. McDowell e o sobrinho, ainda curvados sobre a mesa, ou viram-lhe a voz poderosa: - Retirem-se, retirem-se! Eles a operaram bem, e ela est viva...

Houve um instante de silncio - o silncio do assombro. - Estou dizendo que ela vive - troou o xerife. - Agora, cada um para a sua casa! E no esqueam que dia de Natal. O mesmo silncio. Mas o mdico e o assistente viram os dois rapages, que haviam subid o rvore com o barao, soltarem a corda e deslisarem silenciosamente pelo tronco. Se o Dr. Efraim McDowell nunca esqueceu a cavalgada atravs do deserto, entre os d ias 15 e 17 de dezembro de 1809, menos ainda poderia esquecer os cinco dias que se seguiram imediatamente operao. Esses dias seriam decisivos, para se saber se a interveno cirrgica no abdmen dum ser humano vivo surtira verdadeiramente xito, ou se apenas abrira a porta infeco e morte certa. McDowell esperava. Observava Jane Crawford com olhos fatigados por noites de vigl ia. Aguardava os primeiros sintomas de febre, a rubefao do talho, a repugnante saburra pardacenta, o cheiro de decomposio. Esperou dois, trs, quatro, cinco dias. No descobriu nenhum indcio suspeito. O operador negava-se a crer nessa enormidade. Preparava-se com desconfiana e cepticismo, para a decepo arrasadora que talvez aind a sobreviesse. No quinto dia, porm, surpreendeu Jane Crawford levantada, fazendo a cama. Movia-s e com dificuldade; teve de se deitar outra vez e passar acamada, aguardando que as ligaduras fossem expelidas da cavidade abdominal, prova de que estava cicatri zado o coto deixado pela ablao do quisto. A inciso sarou, e Jane Crawford deixou de estar agrilhoada cama, encerrada em casa do cirurgio. Montou a cavalo e sozinha - porque a Sra. Baker j regressara - percorreu as sesse nta milhas que a separavam da sua colnia da Fonte Azul. Um ano depois da operao, os Crawfords venderam a choupana e mudaram-se para mais longe. Em 1830, Tom Craw ford pereceu no Condado de Jefferson, Indiana, desbravando uma floresta. Jane Cr awford sobreviveu doze anos ao marido. Em maro de 1842, morreu em casa dum seu filho, em Graysville, trinta e trs anos aps a operao. Quanto mais Efraim McDowell se persuadia de que, praticando uma interveno cirrgica no abdmen duma pessoa viva, transpusera uma barreira ante a qual vacilavam, temerosos, os grande cirurgies, tanto menos cuidou, a princpio, de comunicar o seu feito bem sucedido ao mdicos famosos do seu tempo. Efraim McDowell era um prtico e no um escritor.

Continuava a atender a sua numerosa clientela, a varar florestas a cavalo. Ao te rmo de quatro anos, em 1813, foi chamado para examinar uma pobre escrava negra, tambm portadora dum tumor no ovrio; e, em verdade hesitou algumas semanas, porque o tum or parecia slido, difcil de remover e, portanto, de ndole maligna. McDowell receitou mercrio, medicamento to intil nesse caso, quo em voga naquele tempo. Mas de pois decidiu-se e praticou a interveno, essa tambm coroada de xito. S em 1816, porm, quando McDowell se saiu com s cesso duma terceira operao desse gnero, Sara o convenceu a tomar da pena, instrumento inslito e detestado, para redigir um relatrio sobre as suas oper aes. McDowell enviou uma cpia ao seu mestre John Bell, em Edimburgo; outra, ao Dr. Physick, o "pai da cirurgia americana"; e a terceira, finalmente, ao Dr. Thomas C. James, professor de obstetrcia em Filadlfia. No lhe chegou, no entanto, eco algum de Edimburgo; o Dr. Bell j fora escolhido pela morte e o seu substituto John Lizars leu por alto o manuscrito, para o publicar seis anos depois como pa rte duma obra sua. Tambm no respondeu o Dr. Physick. S Thomas C. James publicou a comun

icao de Efraim McDowell em "The Eclectic Reportery"; e, no curso de trs anos, ela mereceu apenas a resposta de dois professores de cirurgia. Declararam estes, no sem arrogncia, que as comunicaes da espcie da de McDowell deveriam ser divulgadas, especialmente para banir de vez do mundo a idia de que "pudessem ter alguma utilidade".

Quando lhe vieram dar s mos essas duas missivas, mcDowell tinha a seu crdito mais d uas operaes, uma delas com resultado positivo. outra, a extirpao dum quisto dermide, sobreviera pela primeira vez a infeco a frustrar a tentativa. De ci nco intervenes, quatro haviam sido realizadas com pleno xito; e McDowell perguntou a si mesmo qual era, pois, a percentagem de curas, em operaes que a ciru rgia do tempo reputava teis e exeqveis: amputaes, reduo de hrnia, extrao de clculos, extirpao de catarata, trepanao de crnios feridos. No morriam, aps essas rvenes, sobretudo nos grandes hospitais, sete, oito ou nove dcimos dos pacientes? Como ousava, no seu caso, aps quatro operaes realizadas com sucesso absoluto, declarar mortal e, portanto, condenvel, em qualquer circunstncia a abertura do abdmen, para extirpar um tumor do ovrio?

Efraim McDowell tomou de novo a pena e deu largas sua estranheza de homem simple s, de homem de corao. Escreveu que tinha, alis, conscincia de que a sua operao era apenas operao para cirur ies de coragem, dotados de senso de responsabilidade e de critrio prprio; ele s podia fazer votos para que essa operao fosse perenemente incompreensvel aos ar tfices e aos papagaios da cirurgia; aos que, tratando-se da "cura dos seus pacientes", no enxergavam alm dos compndios e da opinio dos luminares. A partir da, fz-se definitivamente silncio em torno dele. McDowell foi agraciado, e m verdade, com o ttulo de "doutor honoris causa" pela Universidade de Maryland. Mas ainda por vrios decnios, continuou a imperar, em relao aos tumores dos ovrios e ua cirurgia o conservantismo das autoridades; e continuaram inmeras mulheres a ser "entregues natureza", isto , morte. Muito longe estava ainda a poca das operaes sem dor e da descoberta das causas de inflamao e infeco, bem como do modo de evit-las. Raros eram dotados da fora de vontade e da coragem d e McDowell e tambm da sua simplicidade de homem do Oeste. Antes de tudo, porm, ningum se dava ao trabalho de averiguar porque o sucesso o bafejara. Ningum descon fiava de que a pureza da floresta, a capacidade de resistncia dos pacientes e a higiene - excepcional naquele tempo - que Sara mantinha em casa eram os gran des auxiliares de McDowell. E, como a sua coragem se aliava inconscientemente a circunstncias favorveis e a sua vida se passou longe dos antros infectos das enfermarias cirrgic as de todo o mundo, ele se antecipou sua poca. Efraim McDowell praticou, ao todo treze ovariotomias, oito destas com pleno xito. Quando abandonou a profisso, tinha - sem o saber - trs sucessores: Nathan e Albano Smith e Davi Rogers, cada um com uma operao coroada de xito. Eles tambm trabalhavam na atmosfera virgem do Nov o Mundo. Cansado de lutar com invejosos e adversrios, McDowell recolheu-se a uma plantao e viveu a existncia dos fidalgos fazendeiros do Sul, at morrer - pelo que se sabe - dum mal que s a cirurgia abdominal poderia curar e de fato dominou mais de meio sculo depois. Em 1830, passeando no jardim, McDowell comeu f rutos silvestres; regalava-se ao sol, quando o acometeu de improviso uma clica to violenta, que s a custo lhe foi possvel chegar cama. Sobrevieram febre e vmitos. O criado recorreu ao mdico mais prximo. Este, exa minando o enfermo quase inconsciente, diagnosticou uma inflamao gstrica e receitou em conseqncia. Mas, pelo que lcito presumir com relativa certeza, Efraim McDowell sofria de infl amao do apndice vermicular, hoje denominada inflamao do apndice ou apendicite. Naquele tempo, mdico algum conhecia a natureza desse mal. Em razo disso, tratado e rroneamente, McDowell teve o destino - na maioria dos casos fatal - de centenas de milhares de seus contemporneos em todo o globo terrestre: a ruptura do apndice supurado.

Morreu de peritonite, na solido dos pioneiros, o homem que - graas ao acaso e ao t alento - se adiantara sua poca e evidenciara assim a limitao das teorias, dos conhecimentos e da prtica da cirurgia. Efraim McDowell foi, de fato, o smbolo daquela era primitiva da cincia cirrgica - o mais impressionante, o mais grandioso que conheo. E Jane Crawford personificou a humanidade sofredora daquele tempo, essa humanidade qual no era possvel poupar s equer as dores mais atrozes e para a qual toda operao cirrgica representava uma aventura de vida ou de morte. WARREN Se McDowell foi o smbolo da minha mocidade, John Collins Warren foi o heri dos meu s anos de tirocnio. Meu pai o convertera em meu dolo, j muito antes que eu entrasse, em 1843, para a Escola de Medicina de Harvard, em Boston. Para papai, que ia freqentemente a Boston, John Collins Warren era a personificao do que ele prprio sonhara ser: um professor de cirurgia. No que meu pai estivesse descontente com os frutos da sua existncia. As suas viage ns de operador itinerante de lceras e hrnias, de norte a sul e de leste a oeste dos Estados Unidos, de Nova Inglaterra at ao extremo Sul, constituam uma srie de av enturas interessantes das quais eu prprio participei, nos seus ltimos anos de vida. Mas meu pai no era mdico formado como Warren; era um homem que aprendera o seu ofcio de especialista com um emigrante escocs; nunca se libertara do constrangimento duma posio de segundo plano nem conseguira vencer o desejo de ser mdico e cirurgio autntico. O seu trabalho, nos estados do Sul e do Mdio Oeste, onde as lceras e as quebraduras eram muito comuns, dera-lhe prestgio e fortuna. Ma s a ferroada da inferioridade - uma ferroada genuinamente americana - pungiu-lhe a alma a vida inteira; e ele punha todo o empenho em que eu pelo menos, o seu fi lho, viesse a ser, sendo possvel, um professor de cirurgia to famoso como John Collins Warren.

Ao p da mesma lareira chamejante, ou roda dos mesmos fogos de acampamento - onde, atravs da palavra de meu pai, a vida de McDowell assumira aos meus olhos feio inesquecvel - eu ouvia freqentemente a histria da famosa operao de fstula do rei Lus V, o Rei Sol dos franceses, praticada no ano de 1686. Essa operao memorvel datava j de cento e cinqenta anos. Enc arada do ponto de vista do meu tempo, constitua apenas uma prova de que, nesse sculo e meio, entre a poca do Rei Sol e os dias da minha mocidade, a cirurgi a no fizera, a bem dizer, nenhum progresso. Com efeito, meu pai operava uma fstula, exatamente como o francs Flix operara o seu rei. Embora sofresse - em conse qncia dum furnculo, ou duma contuso proveniente de cavalgar - duma ligao anormal, entre o reto e a pele das ndegas, o Rei Sol espaara quase um ano a operao. Usara e mandara experimentar em numerosos sbditos pomadas e preparados. Todas as tentativas malogravam-se, em razo da tendncia de fstula para endurecer as orlas, de maneira que lhe impedia a cicatrizao. Finalmente, depois de submeter a tratamento os portadores de lceras disponveis em Paris, a fim de ensaiar neles u ma operao adequada, Flix conseguira, graas ao corte radical de todos os tecidos, entre a fstula, o reto e as ndegas, aparar as beiras da lcera e criar outra ferida de orlas lisas que, sarando, produziu a cicatrizao da fstula. S depois de darem bom resultado vrias aplicaes desse mtodo, o rei se deitou, na manh de 8 de n ovembro de 1686, na beira da cama real em Versailles, com uma almofada cilndrica debaixo do ventre. Em presena de Madame de Maintenon, do confessor De Ia Chaise, dos mdicos reais Daquin e Fagon, de quatro farmacuticos da corte e dos cirurgies Bessiers e Levaye, Flix afundou o escalpelo na carne do soberano "im perturbvel e firme quanto possvel", mas que nem por isso deixou de gritar. Flix medicoulhe a fstula at 1687 recebendo pelos seus servios quarenta mil tleres e u

ma propriedade. Meu pai no operava os seus doentes de lceras num castelo real, como Flix. Operava e m verdade, em palcios, isto , nas casas fidalgas dos plantadores do Sul; mas tambm nas choupanas dos cowboys, nas embarcaes fluviais, na sua carruagem e at a o ar livre, enquanto o paciente se encolhia agarrado ao varal da carroa, exalando aos cus a sua dor, ou enterrando os dentes numa tira de couro. Quanto ao mais, porm, operava - j o dissemos - exatamente como Flix. Repudiava outro mtodo de operar lceras, adotado ento no mundo inteiro e que consistia em introduzir uma corda de crina na lcera e no inte stino das pobres vtimas, dar um lao nas pontas e apertar cada vez mais esse lao, em semanas de sofrimento, at separar a carne abrangida pela corda. Meu pai chegav a ao mesmo resultado pelo mtodo de Flix, com uma inciso. Abominava tambm o ferro em brasas aplicado aos doentes de lceras, no canal da fstula, com a esperana de cauterizar a ferida renitente. Meu pai conseguiu numerosas curas, se bem que - apesar do seu extremo asseio pes soal - no tratasse o escalpelo com mais cuidado do que uma faca de mesa, tirasse as ataduras duma caixa exposta continuamente poeira das ms estradas; e as pomadas , com uma lasca de madeira que ele prprio arrancava a um toco de lenha. Tinha, como Flix, a sorte de operar numa parte do corpo que, ao contrrio doutras partes, no reagia com febres mortferas. Houve apenas uma diferena notvel, entre a operao de Versailles e o trabalho de meu p ai, nas vastas, no raro ainda selvagens regies da Amrica. Ela no escapou de certo a meu pai. Por isso ele repetia tantas vezes a histria da fstula real. Es sa operao dolorosa, mas bem sucedida, contribura decisivamente na Frana ento pas-modlo em cultura e medicina - para conduzir os curandeiros, barbeiros e ci rurgies de feira ("to menosprezados pelos mdicos acadmicos, e, desde tempo imemorvel, esteios de todo tratamento cirrgico, isto "praticado com as mos") a uma formao peculiarmente acadmica e a desenvolver a classe cirrgica acadmica, que, j no tempo da minha mocidade, no era inferior dos mdicos. Meu pai via-se no pa pel de antigo curandeiro, ou de charlato de feira, da espcie do alenio "doutor" Eisenbart, ou do ingls Ritters Taylor; e sonhava para mim a situao dum dos cirurgies cuja classe profissional tanto devia fstula de Lus XIV e da qual, aos seus olhos, John Collins Warren, professor de anatomia e cirurgia oper atria da Escola de Medicina da Universidade de Harvard e do Hospital Geral de Mas sachusetts em Boston, era o smbolo contemporneo. Numa sexta-feira de meados de novembro de 1842, entrei pela primeira vez, com ou tros alunos do primeiro ano acadmico, na sala de operaes do Hospital Geral de Massachusetts, instalada nos altos do edifcio, debaixo da cpula do instituto que, fundado vinte e trs anos antes, no s figurava entre os melhores da Amrica, mas podia sustentar o confronto com os hospitais tidos como de primeira ordem da Inglaterra e da Europa. A sala de operaes, alta e isolada, alm de receber boa luz, impedia que chegassem s outras dependncias do edifcio os gritos de dor dos ope rados. Lembro-me exatamente do momento em que avistei pela primeira vez a cadeir a operatria, de encosto reclinvel, forrada de pano encarnado, e as filas de bancos, dispostos em semicrculo, para os estudantes e eventuais espectadores. Ns, os calouros, ramos ento objeto constante de certo interesse de expectativa maliciosa, pois no era de crer que, nos primeiros ensaios cirrgicos, nenhum de ns desmaiasse, ou pelo menos abandonasse a sala, plido de angstia e de nusea. Os enfermeiros tinha m ordem de vigiar particularmente os novatos e afastar imediatamente da sala os que acusassem sintomas de mal-estar, deitando-os com a cabea baixa, na cama pr eparada para esse fim.

Habituado desde os doze anos a ouvir, ao lado de meu pai, as queixas, os primeir os gemidos, os primeiros gritos dos seus pacientes, eu considerava essas manifes taes de dor como complemento to natural da operao, que podia ter certeza de no fraquejar, assistindo pela primeira vez a uma interveno cirrgica, praticada pelo grande Warren. Senti no entanto, o arrepio glacial da expectativa, ao ocupar o m eu lugar entre os colegas, para aguardar a apario do Mestre. O meu primeiro dia, na sala de operaes, era favorecido por circunstncias especiais. Estavam programados nada menos de quatro casos cirrgicos, nmero que hoje nada tem de impressionante. Naquela poca, porm, quando qualquer operao trazia na est eira dores espantosas e a morte espreitava de trs dos cirurgies, s a desesperana absoluta, uma vontade desesperada de viver, ou um sofrimento, ao p do qual desmer ecessem as dores da pior operao, decidiam o doente

a sentar-se na "cadeira vermelha". Num tempo em que os anais do Hospital Geral d e Boston registravam, no perodo 1821/23, apenas quarenta e trs operaes, quatro operaes no espao duma manh eram um fa um tanto extraordinrio. As intervenes anunciadas constavam de: encanar o fmur dum paciente de quarenta e trs anos, luxado muito tempo antes; ablao operatria dum tumor do seio, numa mulher qinquagenria; amputao da perna dum marinheiro de cinqenta e cinco anos; amputao da lngua a um rapaz de idade no determin ada.

Eram exatamente dez horas, quando Warren, seguido de Jorge Hayward, professor de cirurgia clnica, dos doutores internos do instituto, que eu no conhecia, e dos assistentes, entrou na sala de operaes. J ento mais do que sexagenrio, magro, de esta tura mediana, pescoo fino escondido por larga gravata, rosto glabro, de expresso fria, impassvel, emoldurado pela cabeleira grisalha, Warren vinha trajado correiamente, com mais esmero do que o usual entre os membros das melhores famli as da Nova Inglaterra. A sua entrada, o seu passo a caminho da cadeira operatria tin ham um qu de solenidade. Os seus gestos, as suas atitudes dir-se-iam calculados meticulosamente; e essa primeira impresso era justa. Com efeito, embora no operass e com o cronmetro ao lado, como certos cirurgies orgulhosos da velocidade da sua tcnica, Warren era um mestre na diviso rigorosa do tempo, um inimigo de todo s egundo malbaratado, um homem que, no vero como no inverno, deixava pontualmente hora marcada, a sua residncia em Park Street n. 2, e redigia, para cada operao, no s a lista de todos os instrumentos necessrios, como tambm a de todos os incidentes imaginveis. Esprito sistemtico e frio como os seus frios olhos claros , filho do Dr. John Warren, principal fundador da Escola de Medicina de Harvard e do Hospital Geral de Massachusetts, neto do general Josef Warren, morto durant e a Guerra de Independncia, na batalha de Bunker Hill, Warren tivera a sorte de estudar medicina na Europa, em fins do sculo XVIII. No Guys Hospital de Londres cuja sala de operaes, ento famosa, nos pareceria hoje uma pocilga poeirenta e infecta, perpetuada na tradio - John Collins Warren adquirira segundo o uso da poca - por cinqenta libras um lugar de "dresser" (cirurgio adjunto ) e com ele o direito de praticar certas operaes menores, ao passo que os lugares mais baratos de "walker" (ou estagirio) a vinte e cinco libras, s permitia m assistir s operaes como espectador. Warren estudara com Guilherme e Astley Cooper. No tempo em que, empenhados em pesquisar os segredos anatmicos do corpo h umano, os cirurgies ingleses se converteram em ladres de cadveres, ou em comitentes de bandos de violadores de tmulos, apesar da antiquada proibio vigente de obter cor pos para as salas de anatomia, Warren tambm sentira despertar em si o pendor para esses estudos. Conhecera em Paris Depuytren e Lisfranc, este ltimo, heri to en tusiasta do bisturi, que chegava a lamentar houvesse terminado a era napolenica, pois as coxas dos granadeiros se prestavam maravilhosamente para as amputaes. Quan do regressou a Boston, Warren aprendera tudo o que se poderia aprender na Europa .

Na cidade natal, continuou a atividade do pai. O seu museu anatmico, guarnecido d e peas de toda espcie, tornou-se famoso; e o seu retrato preferido representa John Collins Warren segurando um crnio humano. Em razo da sua ndole fria, meticulos a, reflexiva, a sua competncia cirrgica, exaltada na Nova Inglaterra, no se revestia das exterioridade brilhantes do virtuosismo francs que eu prprio conhe ci mais tarde. Mas correspondia aos padres cientficos do tempo. Pelas dez horas, dois enfermeiros introduziram o primeiro paciente na assim cham ada "arena operatria", o espao livre junto da arquibancada. At a, Warren no pronunciara uma palavra. Postado em silncio ao lado da cabea crespa de Hayward, de spiu com gesto solene a elegante sobrecasaca e recebeu das mos dum "dresser" outra, mais antiga, manchada c e l do sangue de operaes precedentes. Antes de se dei tar o paciente - homem corpulento, de fisionomia apreensiva - na mesa de madeira, Warren abriu os lbios finos, para nos explicar o caso. A sua voz, a sua maneira de se exprimir lembravam as dum general ingls ou prussiano. Soa-se, e no sem razo, comparar esse modo de falar ao de Wellington. A falar verdade, no me s obrou ento tempo para escogitar confrontos com o modo de expresso de Warren. Comeava o tratamento do primeiro paciente, portador de luxao do fmur. Deslocado na anca, descurado longamente, o osso fixara-se na posio anormal. Para l he restituir a mobilidade, os enfermeiros enroscaram no tronco do homem, uma corda resistente cuja ponta estava atada a uma das duas colunas encravadas no solo, ao p do passadio lateral das filas de bancos. Correias grossas imobilizaram a coxa e foram ligar-se coluna fronteira, por meio doutra corda qual se adaptara uma ro ldana. Os enfermeiros puxaram a corda; ouviram-se, a princpio, s os rangidos da roldana. Seguiu-se-lhes logo o primeiro grito que irrompeu da garganta do enf ermo e ecoou no recinto. Os enfermeiros continuaram a puxar; o paciente balanava a cabea. O suor inundava-lhe o rosto. Rangiam-lhe os dentes, cerrados desde o pri meiro grito; e esse rilhar era ouvido at nas ltimas filas de bancos. medida que a corda se esticava, dir-se-ia que o corpo se elevava no ar. E os enfermeiro s continuavam a manobra. De repente, o enfermo agitou os braos no ar, abriu os lbi os lvidos e bramiu como um tigre. Warren no se mexeu. Notei, adiante de mim, um aluno lvido, meio desfalecido no ban co. Os enfermeiros continuavam. S ao termo de dez minutos -- dez minutos indizive lmente longos - Warren fez sinal. O homem da roldana afrouxou um pouco a corda. O opera do recaiu na mesa, mas to seguro, que no poderia desvencilhar-se. Ofegava, contraa o corpo numa atitude de defesa. Sem que se lhe movesse um msculo do rosto impassve l, Warren examinou-lhe a anca e a coxa; esta ainda no sara da posio anormal. Warren ordenou que se reatasse a corda e se deitasse o paciente de lado. Depois piscou um olho a um "dresser"; este trouxe um grande charuto preto e introduziuo at ao meio no nus do paciente. Eu desconhecia esse mtodo singular de provocar a dis tenso de msculos crispados; achei to grotesco esse uso dum charuto, que por um triz no esqueci em que lgubre atmosfera aquilo acontecia. Revelando-se inef icazes as grandes quantidades de aguardente e pio administradas de quando em quando, antes das operaes, para atenuar as dores, os msculos do operado contraam-se numa reao involuntria

ao sofrimento, dificultando a interveno. A averiguao de que a intoxicao pela nicotina subseqente ao abuso do fumo, podia causar a atonia de grande parte do sistema muscular, aconselhara em casos difceis e seces musculares resistentes, a injetar uma infuso de fumo no intestino, onde ela era absorvida imediatamente e provocava de ordinrio uma distenso das fibras musculares. Mas, dada a injeo, no ser ia possvel controlar o efeito da nicotina. A operaes realizadas com pleno xito, sucediam intoxicaes fatais. Adotarase, pois, o mtodo de introduzir simpl

esmente um grande charuto no intestino. A absoro era assim mais lenta, e podia-se retirar o charuto, logo que a nicotina houvesse exercido a ao desejada. Tal era o processo que, pela primeira vez, vi ser empregado por Warren. Este concedeu dez minutos de descanso ao paciente, para possibilitar a absoro da n icotina. S o seu olhar glacial e a voz incisiva com que explicou nesse intervalo as restantes intervenes, impediram a risota dos estudantes mais adiantados, j curti dos, vista do quadro tragicmico do paciente com o charuto enfiado no nus. Pontualmente ao termo dos minutos marcados, os enfermeiros voltaram roldana. A p rincpio, o operado conservava uma expresso calma e resignada; nem meio minuto depois, tornou a perturbar-se e um grito marcou o incio de novas manifestaes de dor . Mais dois alunos esgueiraram-se da sala, encurvados, escondendo o rosto nas mos. Por breve espao, eu mesmo tive de fixar os olhos no teto, de medo de no suport ar mais tempo a vista do torturado. Mas embora os meus olhos no vissem a tortura, os meus ouvidos percebiam o que se passava na arena. Escoaram-se vinte minutos, cortados apenas por breve pausa, durante a qual Warre n tornou a examinar a anca e a coxa, declarando malogradas as duas primeiras ten tativas e ordenando que se procedesse terceira. Aps trinta minutos, contados da introduo do charuto, no obtendo resultado, Warren desistiu, declarando - enquanto se desatavam as cordas e se retirava o paciente meio desfalecido, com equimoses no peito e na coxa - que o enfermo se decidira demasiado tarde operao. Mal sabia eu, nesse instante que esse suplicio, executado at ao fim, teria um eplogo, durant e o qual se evidenciaria por que o charuto, aplicado to ostensivamente, no surtira efeito. O jovem "dresser" que, em caso anterior tivera dificuldade em introduzir o charuto, lembrara-se de unt-lo a valer com azeite, em vez de o banhar, segundo o uso, em gua quente. O azeite facilitara a introduo do charuto, mas impossibilitara a absoro da nicotina. I sto, porm, como acabo de dizer, s mais tarde veio luz.

Aparentemente impassvel, apesar da cena recente. Warren voltou-se para o segundo caso. A portadora do tumor do seio foi acomodada na cadeira operatria. Como de hbito, s na hora extrema decidira submeter-se operao. Queixava-se de contnuo, estava lvida, visivelmente exausta e nos olhos transparecia-lhe uma angstia mortal. Dois enfermeiros postaram-se atrs do espaldar; pousaram as mos nos ombros descarnados da mulher. Um interno declarou que a paciente tomara cem gotas de pio. Warren empurrou de leve os punhos para dentro das mangas; sem lavar nem seca r as mos, empunhou o escalpelo, tirando-o dentre as facas, tesouras, pinas, agulha s, esponjas, fios de seda, cordis, pastas de algodo, ataduras de linho, trs tigelas co m gua e uma garrafa de aguardente, arrumados na mesa que entrara com a paciente. Os instrumentos cirrgicos estavam, se tanto, lavados; as pastas de algodo vinham d um cubculo em cujo soalho ficavam amontoadas. Warren experimentou, com o polegar, o gume do escalpelo. Depois, com uma inciso rp ida, separou a epiderme do seio doente, prolongando o corte at axila. Apesar do pio, a paciente gritava e se debatia com tamanha fria, que os enfermeiros tinha m de segur-la fora na cadeira. Entretanto Warren ia cortando os pontos da pele abrangidos pelo tumor, apartando os tecidos e extraindo, sem dar ateno aos gr itos lancinantes da operada, a glndula mamaria atacada pelo mal e uma parte, considerada hoje absolutamente insuficiente, da glndula axilar. O sangue das artri as cortadas jorrava-lhe nas mos e nas mangas. Hayward, assistente dessa operao, puxou algumas artrias com um gancho e ligou-as com o cordel que o "dresser" passa ra ligeiramente num pedao de cera. Enquanto ele estancava sangrias menores com as esponjas, os gritos clamorosos da operada esmoreceram em gemidos, os seus mov imentos foram cessando e o corpo todo se lhe imobilizou como em estado de choque .

Hayward apressava-se. As esponjas eram espremidas precipitadamente em gua fria en sanguentada. Algumas caam ao cho. Recolhidas, mal enxaguadas, eram usadas outra vez. Cessada a hemorragia, as pontas do cordel que atava os vasos sanguneos pendi am da inciso. Warren juntou o tecido conjuntivo com alguns pontos e uniu o talho com esparadrapo. Quando colocava a atadura, o corpo da paciente distendeu-se; o rosto lvido tombou-lhe de lado no espaldar. Hayward apanhou a tigela dgua e despej ou-a na cabea da mulher; depois abriulhe a boca fora e derramou-lhe aguardente nas goel as. Descerrando afinal os olhos, ela correu em torno um olhar vago. Warren concluiu o curativo. Entrou ento na arena o terceiro caso. Warren e Hayward enxugaram s pressas as mos n uma toalha. Um assistente trouxe mais gua, enxaguou as esponjas ensanguentadas, limpou os instrumentos com um trapo manchado e pousou na mesa um torniquete e um a serra.

O marinheiro - a quem iam cortar a parte superior da coxa esquerda, porque numa fratura exposta da tbia j se declarara a gangrena - homenzarro de barbas e cabelos brancos - exigiu fumo para mascar, antes de se deitar para a amputao. Em seguida, declarou que os enfermeiros podiam cuidar doutra cousa; no precisava de quem o segurasse. Warren olhou-o com expresso sarcstica. Estava habituado a ouvir, ante s das operaes, bravatas desse gnero; e assistira depois a capitulaes lastimosas. Hayward adaptou o torniquete acima do ponto marcado para amputar a perna, afim d e conter a hemorragia, durante a interveno. Ao mesmo tempo, Warren subia mais uma vez os punhos sujos. Mal o fumo desapareceu na boca do marinheiro, o cirurgio exe cutou a inciso circular em torno do fmur, com um vigor que eu no esperaria daquele corpo franzino; separou a pele, os msculos e os vasos sanguneos. O marinheiro cusp iu o fumo e desatou a gemer, esmurrando com os punhos tisnados o espaldar da cadeira operatria. Hayward arregaou, com as duas mos, a pele e os msculos acima da inciso, na direo do torniquete. Warren apan hou a serra e decepou prontamente o osso exposto. Um enfermeiro levou a perna amputada, enquanto o assistente distendia os vasos cortados e o cirurgio os ligava. Em vo eu esperava ouvir os gritos do marinheiro; ele crispava os punhos na cadeira e no lhe saa dos lbios mais do que um gemido. S quando Hayward lhe puxara separadamente os vasos e os nervos - operao que, no dizer do meu pai, provoca as dores mais atrozes - o homenzarro lamentara-se em voz alta e, quase en gasgado, exigira mais fumo. J ento, Hayward afrouxara o torniquete. Lembrei-me involuntariamente de meu pai e de tudo quanto ele me dissera da histria da sua pr ofisso. No fazia muito tempo que o mtodo de estancar hemorragia, laqueando os vasos sangneos, era to ignorado como o fato de existir a circulao do sangue. Se, anti gamente, de medo da hemorragia, os cirugies militares e os curandeiros s se atreviam a amputar nas articulaes gangrenadas, onde j no circulava o sangue, mai s tarde adotou-se o sistema de mergulhar o coto, ainda sangrando, em azeite fervente e de cauteriz-lo e adelga-lo com ferro em brasa. Entre as personagens que sempre reapareciam nas narrativas de meu pai, figurava Ambroise Pare, o barbeiro -cirurgio - mdico do rei, que viveu em Paris, no sculo XVI, o primeiro a condenar a bestiali dade da cauterizao, com ferro aquecido a branco, o homem que se bateu pela laqueao dos vasos sangneos, sem obter, contudo, vitria plena e definitiva. A verifica pessoal de que, em determinados casos, a cauterizao a fogo ainda no estava absolutamente abolida deparou-se-me pouco depois, quando Warren, aplica das as pastas de algodo coxa amputada, terminou o curativo com ataduras de linho e esparadrapo. Removido o marinheiro, houve certo alvoroo nas nossas fileiras. Os veteranos romp eram em aplausos, congratulando-se em altas vozes com o operado pela sua coragem , at que o mestre, com um olhar apenas, restabeleceu o silncio. De p, com a roupa salpicada de sangue, as mos ensangentadas, "Warren aguardava a ch

egada do ltimo paciente, um rapaz de aparncia perfeitamente sadia, que entrou na arena, relanceando olhares assustados. Warren sacudiu o sangue dos dedos e, com um gesto rspido, indicou a cadeira cujo espaldar os enfermeiros acabavam de ergue r, colocando-a de modo que a parte de trs ficasse voltada para a porta por onde viri a o doente. Este sentou-se, tremendo. Um enfermeiro trouxe um fogareiro porttil de carvo, j aceso, onde eram aquecidos vrios ferros cirrgicos, e situou-o de modo qu e o rapaz no o visse. Warren tinha na mo esquerda uma pina; na direita o escalpelo. Logo atrs da cadeira, postou-se um dos internos, indivduo alto e vigoroso, para segurar a cabea do operado Warren convidou o rapaz a abrir a boca. Ele obedeceu, hesitando. Mal a lngua apareceu fora dos lbios, mesmo de certa distncia se distinguia bem uma vegetao volumosa. A mo esquerda de Warren, com um gesto pronto, prendeu-a na pina ab erta. O paciente quis recuar, com um grito surdo. Warren no lhe largou a lngua e puxou-a vigorosamente, enquanto o interno apertava nos braos a cabea do ope rado. Em poucas fraes de segundo a mo direita do cirurgio cortou dum s golpe o rgo doente; a parte dianteira, amputada, rolou ao cho, com o tumor; o sangu e jorrou da outra parte. Warren arremessou o escalpelo mesa dos instrumentos e estendeu a mo de lado, to longe da cadeira operatria, que um enfermeiro lhe pde en tregar o cabo dum ferro em brasa, sem que o percebesse o rapaz, ainda aturdido e gorgolej ante. Atrs dele, o cirurgio empunhava o instrumento. Com um movimento sb ito, o interno ps a mo diante dos olhos do paciente, e Warren premeu o ferro no talho ensangentado. Trespassado por uma dor atroz, o rapaz tentou esquivarse; empurrando a cadeira, conseguiu com esforo tremendo afastar-se vrios metros. O interno cambaleava, a custo mantinha presa a cabea do operado. Warren, porm, seguia-o, acompanhando a ca deira. No largara a lngua e premia continuamente o ferro em brasa no talho. O cheiro de carne esturrada impregnou o ar. O ferro candente desusou, atingiu o lbio inferior; mas voltou logo lngua e arrancou-lhe o ltimo frangalho ainda pingando sangue, Warren soltou ento a pina e recuou um passo; o interno afrouxou o s braos. O paciente premeu os punhos na boca, levantou-se dum salto, em gritos indescritveis e ps-se a andar na arena, tropeando como um cego. Dois enfermeiros o ampararam. Warren fitou-o com os seus olhos frios. - Sim, senhor! - disse em tom de censura, aludindo ao lbio chamuscado, mas absolu tamente impassvel, apesar de toda aquela dor, de todo aquele suplcio. - No por sua culpa que a queimadura no foi mais grave! Os enfermeiros levaram o infeliz, cambaleante e transido de dor. vista desse meu primeiro contacto com a grande cirurgia da minha mocidade, poder ia um homem do nosso tempo perguntar se, depois dessa experincia, no desisti de vez de ser cirurgio, embora frustrasse, agindo assim, o desejo mais fervoroso de meu pai. Mas o conceito de desumano, de insuportvel, de horrendo varia, segund o a poca. At o horrvel perde muito do seu horror, quando - como ocorria ento - sob for ma de lei divina, ou diablica, fatal, faz parte da vida da humanidade. Um homem como Warren no era, aos olhos dos seus contemporneos, um algoz; era um homem de energia e firmeza suficientes para presenciar os mais terrveis padecimentos humanos, ouvir os gritos dos supliciados e, apesar disso, praticar o que, em num erosos casos constitua ento o nico recurso. A experincia da amputao da lngua foi, sem dvida, um pesadelo cuja recordao me perseguiu por longo tempo. Aumentou em mim a averso - que j me insuflara meu pai - ao brbaro ferro em brasa. Tambm me fez duvidar, pela primeira vez, de que eu viesse jamais a ser um bom mdico ope rador. Nem porisso John Collins Warren deixou de encarnar aos meus olhos o smbolo

da energia, da severidade, do sangue frio, isto , das qualidades principais que e nto se exigiam dum cirurgio. Alm disto, essa primeira experincia se converteu, para mim, em smbolo da condio e dos mtodos da cirurgia, na ltima fase dos seus primrd os, pouco antes de que a descoberta da anestesia lhe transformasse o mundo. CLCULOS No ano de 1900, quando me encontrei pela ltima vez, num dos seus "octave-dinners" , com Sir Henry Thompson - que, indubitavelmente, formou, com Civiale, o mais fa moso par de urologistas do sculo XIX - ele pediu-me, j pedira outras vezes, que eu cont asse a minha histria de clculos vesicais. O elegante octogenrio que, aos setenta anos, tratara o Rei Leopoldo I da Blgica e o Imperador Napoleo II da Frana de graves molstias da bexiga, oferecia mensalmente um ou dois desses jantares que se realizavam numa sua propriedade, nos arredores de Londres; e, de cada vez, reuniam-se mesa redonda de Thompson oito convidados , e serviam-se exatamente oito pratos - uma das muitas manias de Thompson, que se interessava pela cozinha, tanto quanto pelas afeces dos rins e da bexiga, pela astronomia, pela arte de escrever novelas, pelo aparecimento do automvel e pela c remao de cadveres, esta ltima, motivo duma sua controvrsia com o clero ingls, em fins do sculo. Se havia quem conhecesse a minha histria de clculos vesicais, era Thompson que des empenhava nela um papel bastante significativo e me induzia freqentemente a narrar-lhe o prlogo fantstico.

Cronologicamente, esse prlogo passara-se em maro de 1854, quase oito anos aps a descoberta da anestesia; portanto j dentro da nova era que se denominou o "Sculo dos Cirurgies". Mas, a falar verdade, a minha histria de clculos, com todas as circunstncias acessrias, ainda pertence pr-histria da cirur ia. Era at sintomtica dum dos setores principais em que se aventurava a cirurgia primitiva; e proporciona uma viso particularmente ntida da tremenda crueldade daqueles tempos remotos. A minha aventura comeou na tarde de 3 de maro de 1854, na cidadezinha indiana de Khanpur, durante a minha primeira viagem ndia, vi agem que eu empreendera nessa poca, para estudar a cirurgia primitiva dos indus citada to a mido na Europa, exaltada por certos professores romnticos. Aquele 3 de maro de 1854 foi um dia quente. Apesar disso, senti gelar-me o sangue , quando o esqueltico adolescente indu, deitado no cho imundo da choupana de Mukerji exalou o primeiro grito esganiado. Mukerji, o "litotomista de Khanpur", o perava um garoto portador de clculos vesicais, molstia que ento se manifestava, em todas as partes do mundo, na idade juvenil. Os membros do paciente entesavams e, atenazados nos punhos de ferro dum ajudante seminu que lhe pesava sobre os om bros e os braos e lhe mantinha apartadas quanto possvel as pernas dobradas nos joelhos. O rosto magro, avelhentado, de Mukerji estava impassvel. O operador retirou o ded o untado de azeite, com o qual comprimira, do reto, o clculo no fundo da bexiga. A faca, vermelha de sangue, penetrara profundamente no perneo do menino. Com um m ovimento rpido, Mukerji a introduzira, entre o nus e o escroto, atravs do perneo, at bexiga; quando a retirou, a criana torturada meneou desesperadamente a cabea e r ompeu em gritos horripilantes. Mukerji enfiou o dedo indicador na inciso; apalpou a bexiga, procurando o clculo. No o achando logo, premeu o punho no perneo sanguinolento e continuou a explorar a bexiga com o dedo. Ao mesmo tempo, corria

do alto a outra mo fechada, no baixoventre do operado, empurrando assim a pedra a o encontro do dedo que a procurava no talho. Os gritos degeneraram em uivos crescentes e decrescentes - uivos de animal atorm entado