O Romance Em Teoria

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O Romance Em Teoria da Sandra Guardini

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  • 1

    O romance em teoria

    Sandra Guardini T. Vasconcelos (USP)

    Formao que detm a singularidade de ser o nico gnero que surgiu sob as

    condies da autoconscincia epistemolgica e historiogrfica que caracterizam o

    perodo moderno1, o romance , nas palavras de Claudio Magris, o mundo

    moderno.2 Gnero aberto, anticannico e multiforme por excelncia, o romance exibe

    uma excepcional capacidade de reinveno e de resposta aos materiais sua disposio,

    o que impe ao estudioso, por um lado, o enfrentamento dessa diversidade, com

    implicaes diretas para questes de definio, e, por outro, o desafio de trabalhar as

    tenses que configuram as relaes entre romance e histria, e romance e sociedade.

    Os conceitos tm uma vida e uma histria prprias. Ao discuti-los e sistematiz-

    los, sempre corremos o perigo de congel-los e de apagar seu movimento. A

    providncia, portanto, ser compreender tambm a teoria na sua historicidade e

    considerar como provisrias todas as categorias com as quais se trabalha. Da mesma

    maneira, o gnero, mesmo sendo um sistema de convenes e normas que possibilita

    identificar e descrever as obras individuais e ajuda a enxergar a parte no todo e o todo

    em cada parte, no pode funcionar como uma camisa de fora que iniba a renovao e o

    arejamento. Toda famlia de formas tem uma existncia histrica e, como tal, pode

    surgir, florescer, e se extinguir, como ocorreu com a epopeia, ou sofrer mutaes

    importantes, como ocorreu com a tragdia (refiro-me, por exemplo, s suas diversas

    objetivaes como tragdia clssica, tragdia neoclssica ou tragdia moderna),

    mutaes essas determinadas por desenvolvimentos histricos e enraizadas em

    estruturas de sentimento especficas.3 Na realidade, assim como o romancista obrigado

    a se defrontar com os modelos genricos de seu tempo, a teoria do romance, como

    qualquer teoria dos gneros, pode fornecer ao crtico uma moldura contra ou a partir da

    qual se torna possvel verificar continuidades e descontinuidades, aferir aproximaes e

    1 Michael McKeon. Watts Rise of the Novel within the Tradition of the Rise of the Novel. In:

    Reconsidering the Rise of the Novel. Special Issue of Eighteenth-Century Fiction, volume 12, number 2-

    3, January-April 2000, p. 253-276 (p. 254). 2 Claudio Magris. O romance concebvel sem o mundo moderno? In: Moretti, Franco (org.). A Cultura

    do Romance. Trad. Denise Bottmann. So Paulo: CosacNaify, 2009, p. 1016. 3 A expresso estrutura de sentimento foi cunhada por Raymond Williams para se referir a um

    contedo de experincia e de pensamento que, histrico em sua natureza, encontra sua formalizao mais

    especfica nas obras de arte, marcando, por exemplo, a estrutura de peas, romances, filmes. Ver Raymond Williams. Tragdia Moderna. Traduo de Betina Bischof. So Paulo: Cosac & Naify, 2002, p.

    36, nota 2.

  • 2

    rupturas em relao tradio, e avaliar o acerto de contas que cada escritor realizou, ou

    no, com seus materiais. Se um dos traos fundamentais do romance sua tendncia de

    refletir sobre sua prpria natureza, isso confere ao romancista um grande espao para a

    inveno, para a recriao das formas e para a proposio de novos caminhos. Essa

    liberdade de tal ordem que Marthe Robert chegou a afirmar que suas potencialidades

    quase ilimitadas implicam uma indeterminao fatal, pois, se o gnero indefinido e

    indefinvel, caberia perguntar se ele pode constituir uma forma reconhecvel enquanto

    tal.4 Dentro dessa perspectiva, necessrio pens-lo como um gnero que exibe tanto

    a continuidade de uma entidade integral quanto, no interior dessa continuidade, a

    descontinuidade que confirma sua existncia no tempo e no espao, sua capacidade de

    mudar sem transformar-se em outra coisa.5

    A plasticidade do gnero, sua natureza onvora e inclusiva sua capacidade de

    abarcar e assimilar traos de outros tipos de escrita, incorporar outras formas e tomar

    emprestadas variadas estratgias , seu carter de inacabamento, de forma

    continuamente a se fazer e a se renovar foram igualmente apontados por Mikhail

    Bakhtin.6 bem verdade que o terico russo d o nome de romance a qualquer fora

    que opere no interior de um dado sistema literrio no sentido de lhe revelar os limites.

    Porm, de sua discusso sobre o gnero podemos reter essa ideia de anticanonicidade e

    esse modo de ser proteico, os quais lhe conferem a excepcional capacidade de responder

    aos materiais que tem sua disposio. Nos termos de Fredric Jameson, o romance no

    mais uma forma fechada e estabelecida com convenes embutidas, como a tragdia

    ou a pica; ao contrrio, problemtico na sua prpria estrutura, uma forma hbrida que

    deve ser reinventada a cada momento de seu desenvolvimento.7

    Como gnero que estabelece uma relao estreita com os dados da realidade e

    elege como matria os processos scio-histricos, sua zona de contato com o presente e

    com o tempo histrico um de seus pressupostos, fazendo parte da natureza do romance

    a afirmao de sua relao com a tradio, a transformao dessa relao e, nos seus

    4 Marthe Robert. From Origins of the Novel. In: Michael Mckeon (ed.). Theory of the Novel. A Historical

    Approach, op.cit., p. 59. 5 Michael McKeon. Introduction. In: Michael McKeon (ed.). Theory of the Novel. A Historical Approach.

    Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 2000, p. xiv. Todas as tradues so minhas,

    exceto quando indicado de outra forma. 6 Mikhail Bakhtin. Epic and Novel. The Dialogic Imagination. Austin: University of Texas Press, 1986, p.

    3-40. H traduo brasileira: pica e Romance. Questes de Literatura e Esttica. 2ed. So Paulo:

    Hucitec, 1990. 7 Fredric Jameson. Georg Lukcs. Marxism and Form. Princeton: Princeton University Press, 1974, p.

    172.

  • 3

    mais altos momentos, sua superao. Assim, torna-se possvel atribuir-lhe alguns traos

    que, desde sua origem, j na era moderna, permanecem de certa maneira constantes. De

    modo geral, o romance focaliza a experincia do homem comum, com nfase na

    imitao de sua vida prosaica, e encena o conflito das foras em ao no interior de uma

    sociedade. Desde Hegel, para quem o romance nasceu do choque entre a poesia do

    corao e a prosa do mundo, reconhece-se nesse gnero a presena de um tema que se

    lhe tornou preferencial, o dos embates do indivduo com a ordem social:

    O romance, no sentido moderno da palavra, pressupe uma realidade j prosaica

    e no domnio da qual procura, na medida em que este estado prosaico do mundo

    o permite, restituir aos acontecimentos, assim como s personagens e aos seus

    destinos, a poesia de que a realidade os despojou. Um dos conflitos mais

    frequentemente tratado [sic] pelo romance, e que o tema que mais lhe convm,

    o que se trava entre a poesia do corao e a prosa das circunstncias, conflito

    que se pode resolver cmica ou tragicamente, ou de uma das duas maneiras

    seguintes: ou os caracteres que se tinham revoltado contra a ordem do mundo

    acabam por reconhecer o que ele tem de verdadeiro e substancial, resignam-se s

    suas condies e inserem-se nele de forma ativa; ou despojam da sua forma

    prosaica o que fazem e realizam, para substituir a realidade prosaica em que

    esto mergulhados por uma realidade transformada pela arte e prxima da

    beleza.8

    Nas suas realizaes mais fortes e mais emblemticas, o romance cristaliza na

    sua forma a experincia histrica da relao problemtica entre o indivduo e a

    sociedade e tem, no tempo e no espao, suas coordenadas fundamentais. Se, no universo

    do romanesco,9 a geografia , em princpio, vaga e indiferente, no atuando como um

    impulso que conforma a narrativa de modo profundo, no romance o espao se configura

    como o cho concreto onde se enraza a sucesso de acontecimentos humanos, com

    peso decisivo no destino de personagens e no andamento do enredo. A ilha de

    Robinson, em Daniel Defoe, as propriedades e residncias senhoriais dos romances de

    Jane Austen, as Terras Altas em Walter Scott, a charneca de Emily Bront, a Paris de

    Balzac, a Londres de Charles Dickens, o mar de Josef Conrad e a Dublin de James

    Joyce esses e outros lugares de muitos romances adquirem contornos precisos e

    definem trajetrias individuais, se revestindo de considervel materialidade e

    desempenhando papel central no encaminhamento da trama e no estabelecimento e

    desenvolvimento das relaes pessoais e sociais tematizadas no mbito da narrativa. Em

    seu Atlas do Romance Europeu, Franco Moretti demonstrou com muita clareza a

    8 F. Hegel. Esttica. Poesia. Lisboa: Guimares Ed., 1980, vol. VII, p. 190-1.

    9 Refiro-me aqui ao romance em oposio novel, para usar uma distino comum em lngua inglesa

    entre duas formas ficcionais.

  • 4

    importncia dos lugares para o gnero, com o deslocamento e a mobilidade de

    personagens por diferentes espaos representando e encenando experincias histricas

    especficas excluso, fronteira, colonialismo, alteridade, nacionalismo. Espao

    ficcional, espao geogrfico e espao histrico se cruzam, se sobrepem, e estabelecem

    relaes internas que o gnero incorpora como elemento de composio inerente sua

    forma.

    Intrnseca experincia moderna, a conscincia do tempo, por sua vez, tambm

    se transforma em elemento interno, pois acarreta para a personagem, primordialmente, a

    possibilidade de aprendizagem, de amadurecimento e de mudana. O passado,

    imprescindvel para explicar o presente, conforme observa Lukcs, se transforma em

    trao indispensvel e caracterstico do romance, uma vez que contm a explicao do

    carter do heri e de sua relao com a sociedade.10 O tempo , portanto, categoria

    central do gnero: s o romance (...) assimila o tempo real, a dure de Bergson,

    fileira de seus princpios constitutivos, pois s nele o tempo est implicado na

    forma.11 O homem do sculo XVIII, ao reconhecer descender de pocas anteriores e ao

    passar a se interrogar sobre o presente, ganhou a percepo de sua prpria

    temporalidade, o que o tornou consciente de sua prpria historicidade. O mundo como

    histria o objeto do romance, em que o carter temporal e histrico da ao dos

    homens problema sempre crucial e sempre presente para o romancista. Henry James,

    refletindo sobre os desafios que cabia ao pintor da vida enfrentar, sublinha a

    importncia da temporalidade como elemento constitutivo da forma romanesca:

    Para o romancista, essa eterna questo temporal nunca d trgua. Sempre

    formidvel, ela jamais cessa de insistir, em termos de verossimilhana, no efeito

    do grande salto e da passagem, do negro retrocesso e do abismo e, segundo os termos da estrutura literria, no efeito da compresso, da composio e da

    forma.12

    Esses traos e categorias, evidente, dizem respeito ao romance realista, cuja

    formao e consolidao na Inglaterra e na Frana do sculo XVIII iriam estabelecer os

    parmetros que tornariam o gnero a forma literria dominante do sculo seguinte. E,

    embora ele tenha se tornado hegemnico, vale lembrar, contudo, que desde o incio o

    realismo formal, para utilizar a fecunda definio de Ian Watt, questionou e

    10

    Georg Lukcs. Le Roman. crits de Moscou. Paris: d. Sociales, 1974, p. 90. 11

    Georg Lukcs. A Teoria do Romance. Traduo de Jos Marcos Mariani de Macedo. So Paulo: Duas

    Cidades/Editora 34, 2000, p. 127 e 129. 12

    Henry James. A Arte do Romance: antologia de prefcios. Organizao, traduo e notas de Marcelo

    Pen. So Paulo: Ed. Globo, 2003, p. 126. Em itlico no original.

  • 5

    confrontou mas tambm conviveu e combinou-se com outras modalidades de

    organizao dos materiais, inclusive a que abriu espao, por exemplo, para o que Terry

    Eagleton chamou de anti-romance do sculo, referindo-se a Tristram Shandy (1760-

    1767) de Laurence Sterne, cujo diferencial residiu em se constituir, sobretudo, como

    uma reflexo sobre o processo de sua escrita. A biografia de Tristam expunha as

    dificuldades de se narrar uma vida, explicitando as arbitrariedades do narrador e

    interrogando a prpria possibilidade de se definir em que momento um relato deve se

    iniciar ou quando deve se interromper. Com sua tcnica simultaneamente digressiva e

    progressiva e sua aposta na associao de ideias, Sterne implodiu qualquer noo de

    enredo linear e teleolgico. Tristram Shandy pe em cheque valores caros ao romance

    realista, tais como a referencialidade e a causalidade, num gesto patente de apreender o

    movimento catico da prpria vida. Assim, enquanto virava de ponta-cabea o modelo

    narrativo de aprendizagem da personagem diante da sua experincia, como em Tom

    Jones de Henry Fielding por exemplo, Sterne conseguiu, com um mnimo de dados

    externos e de referncias, criar um sentimento de realidade precisamente por captar o

    caos em que o homem est mergulhado e a falta de linearidade na trajetria de qualquer

    destino, que tem apenas dois acontecimentos certos e inelutveis: o nascimento e a

    morte.

    Igualmente, realismo tambm parece no combinar com romance gtico ou com

    qualquer modalidade de fico que ponha em questo a probabilidade, a constituio do

    prprio real, ou que abra espao para eventos estranhos, bizarros ou incomuns, com

    nfase no maravilhoso, no fantstico, no inslito. Um respeitvel estudioso do gtico

    sublinha o potencial dessa forma literria no tratamento daquilo que escapa aos limites

    da razo e do mundo ordenado e equilibrado, permitindo que se incorporem no seu

    tecido experincias como a represso, os tabus e reas de ambivalncia emocional,

    principalmente no terreno da sexualidade. Na viso de David Punter,13

    enquanto o

    romance realista ocupou o terreno mdio da cultura burguesa, ao romance gtico coube

    se definir nas franjas daquela cultura. Ao encenar dilemas sociais e psicolgicos, ele

    tanto confronta a burguesia em suas limitaes como lhe oferece, dialeticamente, modos

    de transcendncia imaginria. Visto dessa perspectiva, esse tipo de fico projeta os

    temores e ameaas de dissoluo do eu ou da ordem social e se configura como um tipo

    de resoluo, no plano literrio, de conflitos no resolvidos no nvel individual ou

    13

    David Punter. The Literature of Terror: a history of Gothic fictions from 1765 to the present day.

    London: Longman, 1996.

  • 6

    coletivo. Para reforar o argumento de que estamos ainda em territrio realista, no

    custa convocar o comentrio de Maggie Kilgour a respeito do romance gtico, que,

    alm de se aplicar ao contexto do final do sculo XVIII ingls, pode ser estendido s

    mais diversas modalidades de fico que tematizam os pesadelos que assombram o

    homem, seja em que poca for:

    O gtico , portanto, uma viso de pesadelo de um mundo moderno, feito de

    indivduos separados, que se dissolveu em relaes predatrias e demonacas

    que no podem ser reconciliadas numa ordem social saudvel.14

    Como sabemos, a descrio do mundo moderno como pesadelo, a separao dos

    indivduos, as relaes predatrias e demonacas e uma ordem social doente so

    experincias nossas conhecidas, que de diferentes modos continuaram e continuam

    sendo matria dos romancistas. Em que pesem as diferenas de tempo e lugar, Franz

    Kafka e Samuel Beckett no teriam grande dificuldade em reconhecer, nessa descrio,

    o mundo que era o seu e, pode-se supor, concordariam que ela poderia se ajustar, quase

    perfeio, para resumir a experincia de Gregor Samsa ou dos mutilados, impotentes e

    falidos das peas e romances do autor irlands.

    Sem nenhuma pretenso de esgotar assuntos to complexos, quero argumentar

    em favor da necessidade de se ampliar consideravelmente o leque do que

    compreendemos por realismo uma categoria histrica e, por isso mesmo, um conceito

    que se modifica para incluir a noo de que a impresso de realidade nasce da

    capacidade do artista de absorver, para alm dos fragmentos descritos, para alm dos

    dados externos, certos princpios constitutivos da sociedade. A fidelidade realista no

    da ordem do documento. Pelo contrrio, so as circunstncias de natureza social

    profundamente significativas como modos de existncia que encontram uma

    formalizao esttica na obra literria. Nessa perspectiva, o sentimento de realidade

    pressupe os dados reais mas no depende deles, pois sobretudo resultado de uma

    forma que sntese profunda do movimento histrico.

    A fragmentao da vida humana na sociedade moderna coloca para o

    romancista, dessa maneira, desafios formais sempre renovados. Se no romance realista

    do sculo XIX o indivduo burgus se constitui como uma subjetividade que se

    reconhece como sujeito da histria, a perda progressiva dos vnculos do homem consigo

    mesmo e com a comunidade se acentua cada vez mais, no mundo administrado da

    sociedade industrial. A partir de meados do sculo XIX, j testemunhamos a

    14

    Maggie Kilgour. The Rise of the Gothic Novel. London and New York: Routledge, 1995, p. 12.

  • 7

    desagregao desse indivduo e sua diluio na massa, no caos urbano. Desde suas

    origens, o romance instaurou a fratura entre o eu e o mundo, encenando a jornada do

    homem solitrio, que j no se sente em casa em lugar algum. O esforo de recriao da

    totalidade preside o gesto do romancista, cuja tarefa construir o sentido de uma vida e

    de um mundo que perdeu o sentido, por meio de uma forma que a tentativa, na poca

    moderna, de recuperar algo da qualidade da narrao pica como uma reconciliao

    entre matria e esprito, entre vida e essncia.15 Essa empreitada vai se mostrando cada

    vez mais difcil. Matria primordial do gnero, o eu fraturado, numa sociedade

    fraturada, se configura como o tema por excelncia principalmente do romance

    modernista, com consequncias para a forma romanesca, que tambm se estilhaa e se

    refrata na perda da oniscincia ou na multiplicao da voz narrativa, na interiorizao

    dos conflitos e na quebra do encadeamento causal no mbito do enredo. A crise da

    experincia e do indivduo contemporneo encontra rebatimento numa forma tambm

    em crise, obrigando o romancista a reconfigurar os materiais e as tcnicas para dar conta

    de novos contedos. Assim, na histria da ascenso, apogeu e crise do romance se

    inscreve a histria do indivduo burgus, cuja trajetria o gnero formaliza em todos os

    seus impasses, contradies e conflitos.

    Trata-se de um poderoso instrumento de descoberta e interpretao da

    realidade, para emprestar a feliz expresso de Antonio Candido, cuja proposta de

    leitura integrativa, na qual (...) o externo (no caso, o social) importa, no como causa,

    nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituio

    da estrutura, tornando-se, portanto, interno,16 d conta do fenmeno literrio na sua

    dimenso tanto esttica quanto histrica. Do ponto de vista dessa posio terica,

    portanto, o poder de revelao e de conhecimento da obra literria depende de sua

    capacidade de imitar e apreender o ritmo da sociedade contempornea,17 por meio da

    interpenetrao entre inteno subjetiva e contedos objetivos. Assim, as contradies

    sociais e histricas esto no apenas presentes, mas passam a fazer parte da sua

    estrutura interna, conferindo obra um teor de verdade que se depreende de seu esforo

    de reproduzir no o mundo, mas sua lgica. A matria do artista mostra assim no ser

    informe: historicamente formada, e registra de algum modo o processo social a que

    15

    Fredric Jameson. Georg Lukcs. Marxism and Form. Princeton: Princeton University Press, 1974, p.

    171-172. 16

    Antonio Candido. Crtica e Sociologia. Literatura e Sociedade. So Paulo: Companhia Editora

    Nacional, 1975, p. 4. 17

    Roberto Schwarz. Outra Capitu. Minha Vida de Menina. So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.

    45-144 (p. 104).

  • 8

    deve a sua existncia.18 Ao introjetar o princpio de organizao da sociedade e fazer

    dele o prprio princpio de organizao da obra de arte, o artista lhe d um cunho

    realista que est alm da simples reproduo do real. Nas suas mais altas realizaes, o

    romance pode ser compreendido, assim, como a sedimentao formal de uma

    experincia scio-histrica que, plasmada em obra de arte, nos permite perceber a

    sociedade em seu movimento.

    Ainda que de forma breve e incompleta, espero ter exposto aqui algumas noes

    sobre a teoria do romance, para o que tomei o termo teoria no seu sentido grego de

    observao refletida do meu objeto, assim como ter tornado clara a importncia da

    relao entre a teoria e a histria dos objetos. E arremato essa exposio sumria com

    uma passagem de Theodor W. Adorno, que resume de maneira notvel tudo o que

    pretendi dizer at aqui: O momento histrico constitutivo nas obras de arte; as obras

    autnticas so as que se entregam sem reservas ao contedo material histrico da sua

    poca e sem a pretenso sobre ela. So a historiografia inconsciente de si mesma da sua

    poca; o que no o ltimo fator da sua mediao relativamente ao conhecimento.19

    Passo agora a uma apresentao, tambm sucinta, de um exemplo concreto do

    que tentei esboar acima.

    O romance ingls do sculo XVIII representou uma ruptura importante com a

    tradio literria naquele pas e com modos de pensar as relaes entre a literatura e a

    sociedade. Ian Watt identificou uma srie de transformaes que ocorreram no mundo

    ingls mudanas de orientao no pensamento filosfico do perodo, com nfase na

    noo de experincia individual proposta por Locke; a secularizao do protestantismo;

    o desenvolvimento do capitalismo; o poder crescente das classes comerciais e

    industriais e o crescimento do pblico leitor. Com a ascenso do romance, assistimos ao

    processo lento e gradual de transformao das ideias e iluses particulares de uma

    classe em ascenso em valores universais, isto , em representaes coletivas e

    universalmente vlidas, na medida em que muitos romancistas ingleses assumiram o

    papel de seus porta-vozes. O novo gnero parece ter desempenhado, portanto, uma

    funo importante na criao de uma espcie de identidade de classe para os estratos

    18

    Roberto Schwarz. Ao Vencedor as Batatas. So Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 25. 19

    Theodor W. Adorno. Teoria Esttica. So Paulo: Livraria Martins Fontes Ed., 1970, p. 207. A traduo

    em lngua inglesa bastante mais clara: The historical moment is constitutive of artworks; authentic works are those that surrender themselves to the historical substance of their age without reservation and

    without the presumption of being superior to it. They are the self-unconscious historiography of their

    epoch; this, not least of all, establishes their relation to knowledge. Adorno. Aesthetic Theory. Trad. Robert Hullot-Kentor. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997, p. 182.

  • 9

    sociais mdios ascendentes, antes mesmo que essa classe existisse na sua acepo

    moderna e foi arma na obteno de consenso para seu universo de valores, de normas

    morais, de regras de conduta, construo essa que no excluiu, evidentemente, tenses,

    embates e paradoxos.

    Se, por um lado, toda a discusso sobre o novo gnero ao longo do sculo XVIII

    pe em pauta questes tcnicas cruciais como foco narrativo, composio da

    personagem, armao do enredo, transposio da realidade na obra literria e as relaes

    entre arte e moralidade, o romance se configura como um espao de construo da

    figura do indivduo burgus, o que repe a todo instante seu vnculo com a construo

    da nova ordem social. No contexto ingls, o romance poderia ser definido como a saga

    de afirmao desse indivduo, e de seu triunfo, na busca de um lugar na sociedade

    burguesa. De modo geral, com poucas excees, sua histria uma trajetria de

    sucesso. Os percalos e obstculos que enfrenta na sua empresa em nada pem em risco

    o destino vitorioso que aguarda o protagonista no desfecho de suas aventuras e de sua

    luta. Para a maioria, o preo a pagar altssimo tm de abrir mo de seus sonhos,

    vivem perdas, sofrem privaes, so obrigados a alianas, encolhem suas expectativas,

    perdem as esperanas, fazem concesses, mas finalmente se integram, de alguma

    maneira, e encontram um lugar. O aniquilamento ou a morte soluo poucas vezes

    utilizada para essas carreiras abertas ao talento, nos termos precisos de Eric

    Hobsbawm. O que com frequncia fica subentendido nas entrelinhas ou remetido para

    as margens, ocupadas por um contingente expressivo de personagens menores,

    secundrias, excludas socialmente, que o sucesso no est ao alcance de todos, que a

    promessa de felicidade (ou de liberdade, igualdade, fraternidade) que o mundo

    burgus apregoa mercadoria escassa e cara.

    No estranha, portanto, que j quase ao final do sculo XVIII comece a se firmar

    a noo do romance como epopeia burguesa, que vamos encontrar em um terico

    alemo como Blanckenburg (autor de Versuch ber den Roman, de 1774) e tambm em

    Hegel. esse filsofo quem postula que se trata de um gnero de tal maneira adequado

    nova ordem do mundo que o realismo passa a ser um dado determinante e inerente

    sua forma, vinculao que faro tambm Lukcs e, mais tarde, Adorno.20

    Trata-se de

    um veio, assim, que percorre uma longa tradio crtica a respeito do gnero romance.

    20

    O romance foi a forma literria especfica da era burguesa. Em seu incio encontra-se a experincia do mundo desencantado do Dom Quixote, e a capacidade de dominar artisticamente a mera existncia

    continuou sendo seu elemento. O realismo era-lhe imanente; at mesmo os romances que, devido ao

  • 10

    Naturalmente, repito, no se deve conceber o realismo como simples reproduo

    artstica da realidade, obtida mediante a imitao da natureza ou a busca do semelhante,

    como pensaram os primeiros tericos do romance, ainda bastante presos a uma

    concepo clssica de verossimilhana. A obra literria obedece a leis internas, regida

    por processos de composio e depende da ordenao de materiais brutos por parte de

    seu criador, pois o ato de representao um esforo de organizar a experincia e de

    conferir-lhe uma forma. A realidade, portanto, no apenas matria, mas um

    elemento esttico e estilstico das obras literrias. O realismo no resulta da capacidade

    de o romance ser igual ou semelhante ao real, ou vida, mas do empenho do romancista

    de apreender seu movimento e transformar em forma e em organizao interna esse

    material eminentemente histrico e exterior. Seu propsito descobrir e expressar

    foras ou movimentos ocultos ou subjacentes, que a simples observao naturalista

    no poderia captar.21 Essa operao Erich Auerbach a descreveu como Dargestellte

    Wirklichkeit [realidade exposta] no seu fundamental Mimesis, uma sondagem do

    realismo moderno como fenmeno esttico, que o autor alemo explora pelo veio de sua

    total emancipao em relao doutrina clssica dos nveis de representao literria.

    A exposio da realidade, no sentido que lhe d essa tradio crtica, implica ir

    alm do simples uso do pormenor, da mera criao do efeito de real (cf. Roland

    Barthes); significa, respeitando a autonomia relativa da obra de arte, revelar o que

    permanece velado pela figura emprica da realidade.22 A essa providncia, Antonio

    Candido d a seguinte formulao: mesmo dentro do realismo, os textos de maior

    alcance procuram algo mais geral, que pode ser a razo oculta sob a aparncia dos fatos

    narrados ou das coisas descritas, e pode ser a lei destes fatos na sequncia do tempo.23

    Refere-se, portanto, no a uma viso realista na acepo de uma determinada corrente

    literria, mas a uma construo do real que est alm do apego aos detalhes ou iluso

    assunto, eram considerados fantsticos, tratavam de apresentar seu contedo de maneira a provocar a sugesto do real. Ver Theodor W. Adorno. Posio do Narrador no Romance Contemporneo. Notas de Literatura I. Traduo de Jorge de Almeida. So Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003, p. 55. 21

    Raymond Williams. Realismo. Palavras-Chave [um vocabulrio de cultura e sociedade]. Traduo de

    Sandra Guardini Vasconcelos. So Paulo: Boitempo, 2007, p. 346. Williams comenta as dificuldades que

    o termo implica e ressalta que uma das objees que se fazem a ele, modernamente, que existem

    muitas foras reais de sentimentos interiores a movimentos histricos e sociais subjacentes que no so acessveis observao comum, que so imperfeitamente representados, ou no so absolutamente

    representados na maneira como as coisas aparecem, de modo que um realismo de superfcie pode na verdade perder realidades importantes. (p. 346). Negrito do autor. 22

    Theodor W. Adorno. Lukcs y el Equvoco del Realismo. In: Lukcs, G. et alii. Polmica sobre

    Realismo. Buenos Aires: Ed. Tiempo Contemporaneo, 1972, p. 61. 23

    Antonio Candido. Realidade e Realismo (via Marcel Proust). Recortes. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1993, p. 123.

  • 11

    referencial. A articulao entre pormenores e conjunto, entre partes e todo, do ponto de

    vista da organizao interna, tem como verso anloga, no plano externo, a articulao

    entre obra e sociedade, entre individual e social (ou, dito de outro modo, a relao entre

    sujeito e mundo), seus dois elementos constitutivos e matria privilegiada do romance.

    Conforme ressalta Raymond Williams, na tenso viva entre a sociedade, considerada

    em termos fundamentalmente pessoais, e as pessoas, por meio das relaes,

    consideradas em termos fundamentalmente sociais, que se encontra a melhor tradio

    realista e que reside a possibilidade de sua renovao contnua e permanente.24

    Objetivamente, no caso do sculo XVIII, a discusso encetada nos prefcios

    antecipa vrias das questes que sero objeto das diversas teorias do romance propostas

    e articuladas posteriormente. Emergindo numa poca de forte predomnio da esttica

    neoclssica, o novo gnero ir reconfigurar os materiais a sua disposio e, nos termos

    de Michael McKeon, desestabilizar as categorias literrias e sociais vigentes.25

    O debate

    se volta, dessa maneira, para uma srie de temas e problemas que incluem desde os

    assuntos relativos prpria prtica dos romancistas, tais como estilo, estratgias

    narrativas e ponto de vista, at questes de carter mais geral, como a prpria definio

    do gnero, o questionamento do contedo adequado a ele, a figura do leitor, o papel do

    romancista e a relao do romance com os outros gneros literrios. Mas sobretudo o

    esforo de sondar, compreender e conformar o novo sujeito e o mundo que surgiram

    naquele estgio especfico de desenvolvimento da sociedade inglesa que vamos flagrar

    nas diferentes objetivaes da forma romance naquela conjuntura.

    Desde Daniel Defoe constatam-se alteraes formais importantes, que

    significaram uma mudana de direo na prosa de fico que circulava na Inglaterra nas

    primeiras dcadas do sculo XVIII. Robinson Crusoe se estrutura como uma

    combinao dinmica entre dirio e narrativa e cria um jogo temporal que torna mais

    complexa a figura do narrador-protagonista, envolvido numa confisso to empenhada

    na procura de sentido espiritual nos acontecimentos da sua vida quanto na apresentao

    de uma histria de sucesso e independncia financeira. Tanto em Crusoe quanto em

    Moll Flanders, o relato autobiogrfico expe a trajetria de uma personagem em pleno

    exerccio da mobilidade fsica que se converte em mobilidade social. O priplo

    martimo de Crusoe, que culmina na ilha tropical onde obrigado a viver por mais de

    24

    Raymond Williams. Realism and the Contemporary Novel. The Long Revolution. London: The Hogarth

    Press, 1992, p. 278-79. 25

    Ver Michael McKeon. The Origins of the English Novel, 1600-1740. Baltimore: The Johns Hopkins

    University Press, 1991.

  • 12

    duas dcadas, uma viagem de busca de bens materiais e de ascenso social. Com a

    liberdade econmica, social e intelectual que a solido na ilha lhe proporciona, o

    nufrago, longe de se dobrar s consequncias psicolgicas de tamanho isolamento, usa

    sua condio em seu prprio benefcio, literalmente reconstruindo sua vida a partir de

    quase nada. Sua histria de vida, portanto, narra seu progresso material e seu percurso

    espiritual, uma mescla no-conflituosa de motivaes seculares e espirituais, que no

    pe em risco seu projeto de ascenso social.

    Em Samuel Richardson, por sua vez, a narrativa em primeira pessoa vai se valer

    da tcnica epistolar para explorar a subjetividade de personagens postas em situao de

    conflito interior e divididas entre o corao e a conscincia, entre as inclinaes

    pessoais e as convenes morais; por outro lado, as relaes intersubjetivas e o

    confronto entre duas ordens sociais e dois cdigos de conduta o da pequena nobreza (a

    gentry) e o da nascente burguesia encontraro na estruturao dramtica do enredo a

    soluo formal para encenar seus impasses. Fielding, ao contrrio, se mostrava mais

    interessado em compor um panorama da sociedade de seu tempo e fez da pica o quadro

    de referncia sobre o qual estruturou sua obra. Sua adeso ao modelo pico

    essencialmente narrativo lhe permitiu uma visada abrangente da sociedade de sua

    poca, indo, portanto, na direo oposta escolhida por Richardson, mais afeito

    sondagem dos estados de alma de suas personagens. J na autobiografia de Tristram

    Shandy, Sterne questiona a prpria possibilidade de o romancista representar a

    realidade, ao mesmo tempo que capta, com arte e de modo realista, o movimento

    tortuoso da vida, com suas pausas, interrupes e digresses. H mtodo, porm, no

    aparente caos narrativo e o sentimento de realidade resulta de uma construo do

    espao, obtida com um mnimo de detalhes e referncias, e de uma forte percepo do

    tempo, tratado no como medida objetiva, mas como parte essencial da experincia

    humana.

    So sadas e solues diversas, do ponto de vista formal, e opes e interesses

    variados, de uma perspectiva temtica, mas constituem todos eles caminhos abertos para

    decantar na forma a experincia individual, tema preferencial do gnero, e formalizar

    esteticamente processos scio-histricos em curso naquele tempo e lugar. Deles,

    fizeram parte tambm um contingente considervel de mulheres que, alm de se tornar

    leitoras, ganharam papis de destaque como personagens e protagonistas de muitos

    romances e, em muitos casos, entraram na arena pblica como autoras. Passavam elas a

    ocupar, por meio desse duplo mecanismo, o proscnio da discusso acerca de suas

  • 13

    novas funes como elementos fundantes da nova ordem burguesa, compartilhando a

    cena literria com seus sucedneos masculinos, ajudando a forjar as convenes do

    gnero e criando uma tradio do romance feminino.

    Beneficirio de um indito aparato de difuso, representado pela instituio de

    espaos pblicos de leitura e pela ampliao do comrcio internacional do livro, o

    romance europeu setecentista e oitocentista conheceu um trnsito e um desenvolvimento

    espetaculares, graas aos intercmbios, tradues, imitaes, influncias e repercusso

    que caracterizaram o processo de disseminao do gnero pelo continente europeu. O

    ritmo desse desenvolvimento e afirmao do gnero nos diferentes pases foi desigual,

    mas temas e modelos assim como as ideias viajaram, encontraram solo frtil e

    germinaram em produes locais, num movimento de fertilizao recproca sem

    precedentes na histria da literatura. Os caminhos foram mltiplos e a rede romanesca

    estendeu suas malhas em direes diversas por toda a Europa, aclimatando-se s

    particularidades de cada pas, num movimento incessante de busca e descoberta de

    novas formas, temas e modos de narrar. Personagens correram mundo, tramas e

    modelos foram metamorfoseados pelos deslocamentos geogrficos e pelas apropriaes

    por diferentes tradies literrias. Essa mais europeia das formas26 transps fronteiras

    nacionais, disseminando ideias, temas e imagens,27

    adaptando-se s condies e projetos

    locais e configurando-se como um exemplo inegvel de sucessivas fertilizaes

    cruzadas. Para Margaret Cohen e Carolyn Dever, tais processos tanto reivindicam

    quanto contestam os contornos imaginados do estado-nao,28 e sugerem que o

    romance foi, na realidade, uma inveno inter-nacional,29 resultante das constantes e

    efetivas trocas literrias e culturais entre os dois lados da Mancha ao longo dos sculos

    XVIII e XIX. Apesar de instrumento importante nos diferentes processos de construo

    da nacionalidade e de identidade nacional, o romance nunca teve fronteiras e desde seu

    surgimento, por meio de transmigraes e transculturaes, ps em questo o que, nele,

    nacional, e o que estrangeiro; a evidncia mais sintomtica dessa porosidade

    certamente foram as interseces, as mtuas apropriaes e fertilizaes que sempre

    26

    Franco Moretti, Atlas do romance europeu, p. 197. 27

    Ver, por exemplo, Alain Montandon. Le Roman au XVIIIe sicle em Europe. Paris: Presses

    Universitaires de France, 1999. 28

    Margaret Cohen & Carolyn Dever (ed.). The Literary Channel. The Inter-national Invention of the

    Novel. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2002, p. 3. 29

    Margaret Cohen & Carolyn Dever (ed.). The Literary Channel. The Inter-national Invention of the

    Novel, op. cit.

  • 14

    caracterizaram o prprio modo de ser do gnero hbrido, misturado e cosmopolita por

    excelncia.

    So esses traos que levaram Jonathan Arac a definir o romance moderno como

    (...) uma forma transculturalmente extensiva que se espalhou de um centro

    europeu com a dupla ascenso do capitalismo e do estado-nao um exemplo da conjuntura globalmente produtiva de indstria editorial, capital e nao ao

    longo dos ltimos dois sculos.30

    Nesse duplo papel de meio de construo ideolgica do estado-nao e de

    gnero com vocao internacionalista, pela prpria natureza de sua disseminao e de

    sua histria, o romance transita entre o local e o universal, num movimento dialtico

    entre o prprio e o alheio, que se pe e repe, e se soluciona, ou no, de diferentes

    formas e em diversos momentos. Se participamos das redes e relaes da literatura

    mundial sempre a partir de uma situao nacional, conforme sugere Fredric Jameson,

    no h como escapar do enfrentamento das desigualdades intrnsecas do sistema, assim

    como no possvel apagar o sentimento de tempo e lugar que define nossos modos de

    apropriao dos bens culturais e dos repertrios nossa disposio. Apreendemos essa

    dialtica, por exemplo, no convite deglutio antropofgica do estrangeiro pelos

    modernistas brasileiros, ou na concepo de um serto-mundo, por Guimares Rosa,

    passos que cruzam e tensionam tradio interna e sugestes externas, numa troca

    produtiva e de alto teor literrio em seus processos de apropriao.

    Alguns estudiosos decretaram a morte pura e simples do romance. Outros, como

    os estruturalistas e ps-estruturalistas, contestando as prprias categorias de literatura

    e gnero, o subsumiram, cada um a seu modo, dentro da narratologia, destituindo-o

    de qualquer primazia sobre outras modalidades narrativas. O romance, entretanto, no

    parece dar sinais de debilidade ou irrelevncia. Ao contrrio, temos vrias mostras de

    que ele continua a responder aos desafios do tempo e lugar.

    30

    Jonathan Arac. Anglo-Globalism? New Left Review, n. 16, July-Aug 2002, p. 36.