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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS NEOLATINAS Mônica Nascimento Santos Bila O RESGATE DA MEMÓRIA EM HASTA NO VERTE JESÚS MIO:HIBRIDISMO E IDENTIDADE Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS NEOLATINAS

Mônica Nascimento Santos Bila

O RESGATE DA MEMÓRIA EM HASTA NO VERTE JESÚS MIO:HIBRIDISMO E IDENTIDADE

Rio de Janeiro2008

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O RESGATE DA MEMÓRIA EM HASTA NO VERTE JESÚS MIO:HIBRIDISMO E IDENTIDADE

por

Mônica Nascimento Santos Bila

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários Neolatinos - Literaturas Hispânicas.Orientadora: Profa. Dra. Bella Karacuchansky Jozef

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, 15de fevereiro de 2008

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Mônica Nascimento Santos Bila

O resgate da memória em Hasta no verte Jesús mio de Elena Poniatowska: hibridismo e identidade

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós –Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ como parte dos quesitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Estudos Literários Neolatinos - Literaturas Hispânicas.

Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 2008

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________Professora Doutora Bella Karacuchansky Jozef (Orientadora)

__________________________________________________________Professora Doutora Cláudia Heloisa Luna, UFRJ

_____________________________________________________Professora Doutora Helena Parente Cunha, UFRJ

___________________________________________________________Professora Doutora Mariluci Guberman, UFRJ (Suplente)

___________________________________________________________Professora Doutora Silvia Cárcamo, UFRJ (Suplente)

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BILA, Mônica Nascimento Santos.

O resgate da memória em Hasta no verte Jesús mio de Elena Poniatowska: Hibridismo e identidade. Rio de Janeiro: UFRJFaculdade de Letras,2008.

Orientadora: Professora Doutora Bella Karacuchansy Jozef

Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas

1.Literatura Hispano-americana 2. Elena Poniatowska 3. Memória4. Identidade 5. Testemunho 6. Oralidade 7. Alteridade

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Dedicatória

À minha filha Melissa, que desde o ventre participa deste capítulo de minha vida.

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Agradecimentos

A Deus, porque por ele, por meio dele e para ele são todas as coisas.

Ao meu esposo Amaro, pelo incentivo e paciência.

Aos meus pais José Carlos e Maria, que plantaram em minha vida uma preciosa

semente.

À Gisele e Joice, muito mais que irmãs.

À Vanina, que me mostrou esta jornada e por tornar-se amiga de todas as estações.

À professora Cláudia Luna, pelo carinho, e-mails e pelas aulas durante a graduação.

À profa. Bella Jozef, minha orientadora desde a graduação, seus conselhos e amizade

ultrapassaram as margens da literatura e atingiram o centro de minha afeição.

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Sumário

Introdução

Capítulo 1 – A categoria de gênero: construção do feminino

1.1. A mulher e a Revolução Mexicana

1.2. Uma questão de gênero: a escrita da mulher

1.3. A oralidade do subalterno

Capítulo 2 – Memória, História e testemunho

2.1. A externalização da memória do subalterno

2.2. O conceito de mexicanidade presente na obra

2.3. O resgate da memória através do testemunho

Capítulo 3 – Divergências culturais? Hibridismo e subalternidade

1. Hibridismo e processo intercultural

2. Margem e/ou periferia (reordenação do discurso a partir da periferia)

3. A transgressão do cânone através da margem

Conclusão

Bibliografia

Resumo

Abstract

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Introdução

Talvez seja difícil encontrar em outra época, anterior a esta, na qual se tenha escrito e

pensado tanto sobre a mulher e a literatura ou sobre a mulher e sua tarefa literária. É certo que

discurso do feminino, ou seja, a mulher falada e pensada pelos homens, sempre existiu, mas

somente após a metade do século XX começam a dar importância ao discurso feminino

(López, 1995:18). A escritora lituana Biruté Ciplijauskaité afirma que : “O que interessa Às

autoras contemporâneas não é apenas o contar ou contar-se; é falar concretamente como

mulheres, analisando-se, formulando perguntas e descobrindo aspectos desconhecidos e não

expressados”(1994:17). Nos últimos cinqüenta anos, a mulher alcançou conquistas que a um

século atrás eram difíceis de imaginar. Estas conquistas também foram refletidas na literatura.

No fim da década de cinqüenta começa a surgir um novo grupo de narradoras

mexicanas, que se consolida nos anos oitenta, cujo discurso feminino e feminista, entendendo

este último como uma atitude crítica ante o papel tradicional da mulher na sociedade, sendo

um marco importante na história da mulher e quem sabe da literatura mexicana e latino-

americana (López, 1995:27-28). O surgimento deste grupo está intimamente relacionado à

modernização da sociedade mexicana e às mudanças nas relações sociais que a modernidade

implica.

O presente trabalho propõe uma análise de Hasta no verte Jesús mío(1969), escrito

por Elena Poniatowska, uma jornalista. Nesta obra, a escritora revela por meio dos olhos e as

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palavras de uma velha lavadeira a trajetória da Revolução mexicana. O testemunho franco e

vivo de Jesusa Palancares, cujo nome verdadeiro é Josefina Bórquez, traduz os estragos da

Revolução; a esta pobre mulher do povo não lhe deu mais que pontapés e uma vida de pícara.

Na obra Jesusa já está idosa, desiludida e sem inibições relembra suas andanças de mais de

meio século. É uma história trágica e também cômica. Jesusa representa milhões de mulheres

que foram arrastadas pela Revolução dominadas por homens, maltratadas pela classe média e

alta e abandonadas como animais perdidos e desprezados. A protagonista-narradora faz com

que seus leitores a acompanhem em sua peregrinação pelo México que começou nos dias de

Madero. Entretecidos nos muitos detalhes da vida de Jesusa, existem comentários e opiniões

políticas e críticas. Jesusa mulher pobre, inculta e explorada pela família e amigos está

completamente consciente do mundo que a rodeia. Quando recorda sua adolescência que

coincidiu coma segunda década do século e o período da guerra civil no México, Jesusa

descreve este período como o do oportunismo em que a lealdade consistia em aliar-se com o

mais forte. Falando de alguém que era zapatista e que se tornou carrancista, comenta:”Así fue

la Revolución, que ahora soy de éstos, pero mañana seré de los otros, a chaquetazo limpio, el

caso es estar con el más fuerte, el que tiene más parque...”

Para Jesusa a Revolução e seus líderes fracassaram. Segundo ela, os programas de

reforma social não modificaram nada – “Nomás estamos más muertos de hambre...”. o leitor

compartilha com Jesusa suas muitas adversidades, e se compadece , admira suas força

interior, sua agressividade e sua valente luta para sobreviver num mundo cujas instituições e

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habitantes estão empenhados em destruir tanto aos outros quanto a ela.

Esta obra está narrada completamente por Jesusa em tom conversacional. Desta

conversação ou monólogo sustentado por Jesusa, é possível comprovar dados biográficos,

comentários políticos e o conjunto de experiências vividas pela protagonista. A autora não

intervêm nesta narração. Através de um gravador, e com a arte da entrevista, Elena

Poniatowska gravou a história de Jesusa; depois organizou e editou este material para

apresenta-lo na forma em que apareceu publicado. O resultado é a autobiografia de uma

mulher do povo narrada em sua própria linguagem. É importante ressaltar que esta não é uma

mera transcrição de uma entrevista gravada. É uma forma de novela ou relato etnográfico que

o escritor cubano Miguel Barnet chama de “novela testemunho”. Para tornar conhecido um

importante momento histórico de um país, o novelista se vale de um protagonista

representativo do povo que narra os fatos coletivos.

Esta é a função exercida por Jesusa, testemunho dos transtornos que marcaram o

século vinte no México. Na novela testemunho a presença do autor é suprimida a tal ponto

que sua individualidade se funde com a de seu protagonista. Este é o caso de Poniatowska

cuja presença não é notada, mas intuída. Outra característica da novela testemunho é seu

desejo de contribuir para o conhecimento da realidade envolvendo o leitor na novela como se

fosse outro personagem, para que possa opinar ou tomar partido.Barnet afirma que a novela

testemunho”debe servir como eslabón de uma larga cadena em la tradición de su país. Debe

contribuir a articular la memória colectiva, el nosotros y no el yo”. Hasta no verte Jesús mío

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reune as características da novela testemunho.

Poniatowska faz com que o leitor acompanhe a Revolução passo a passo com Jesusa,

mulher do povo, cuja única ambição é sobreviver. E como litania Jesusa salienta a série de

desilusões que lhe trouxeram todos os líderes e seus ambiciosos programas: tudo permaneceu

do mesmo modo. A Revolução vive nas páginas desta obra. As reivindicações de Jesusa

testemunham as frustrações de uma classe esquecida e abandonada por seus líderes.

Elena Poniatowska expressa a realidade mexicana, revelando o complexo mundo

mexicano com sua história, tradição e cultura através da alteridade, dando voz e vez a quem

de fato vivenciou a história não oficial.

.

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1. A categoria de gênero: construção da feminino

1.1. Uma questão de gênero: a escrita da mulher

O termo gênero e sua conversão em categoria de análise pelas Ciências Sociais ganha

terreno a partir de meados dos anos 80, em função, por um lado, da crise que afeta os

paradigmas tradicionais, e por outro, da emergência de novas abordagens teórico-

metodológicas. A História Social, o estudo das mentalidades e do cotidiano; a Psicanálise,

sobretudo os postulados elaborados pelos pós-estruturalistas; e a Lingüística, oferecem

elementos de investigação científica e apontam novas trilhas e uma possibilidade de evidência

que, inter relacionados, abrem dimensões para a construção ou (re)construção do

conhecimento.

Scott (1990: 13) ressalta que o termo gênero é uma tentativa das feministas contemporâneas

de buscar caminhos de definição que difiram das teorias existentes de explicação das origens

da desigualdade entre homens e mulheres.

“É ao meu ver, significativo que o uso da palavra gênero tenha emergido num momento de grande efervescência epistemológica entre os pesquisadores das ciências sociais, efervescência que, em certos casos, toma a forma de uma evolução dos modelos literários (de ênfase posta sobre a causa para a ênfase posta sobre o sentido, confundindo os gêneros da investigação, segundo a formulação do antropólogo Clifford Geertz). Em outros casos, esta evolução toma a forma de debates teóricos entre aqueles que afirmam a transparência dos fatos e aqueles que insistem sobre a idéia de que toda realidade é interpretada ou construída, entre os que defendem e os que põem em questão

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a idéia de que o homem é o mestre racional de seu próprio destino”.

A emergência do gênero como categoria de análise surge como uma tentativa de

estabelecer compreensões teóricas acerca dos questionamentos que emergem na esteira das

práticas políticas que marcam o percurso de alguns movimentos sociais, sobretudo, o

feminista. Estes movimentos trazem à cena um amplo espectro de interrogações e debates

sobre posturas e comportamentos que, tradicionalmente, vinha sendo adotados como

explicações “naturais” para atitudes discricionárias, procedimentos discriminadores e políticas

e práticas de dominação e submissão.

A compreensão atual do gênero como categoria de análise histórica carece de um

exercício retrospectivo que traga visibilidade ao seu entendimento conceitual. Essa

retrospectiva tem uma primeira parada nos anos 60, quando a efervescência da chamada

“revolução cultural” traz à cena a questão da submissão e da opressão feminina, enfocada pela

luta do movimento feminista, que ressurge ampliando bandeiras além das reivindicações

sufragistas e iniciando a discussão acerca de questões como sexualidade, corpo, autonomia

feminina, aborto, etc.

Estes primeiros momentos são marcados pela estreita relação entre a militância política no

movimento feminista e a reflexão e teorização das questões básicas. Dessa forma, ação e

reflexão se misturam nos mesmos indivíduos, - as ativistas feministas -, que “reivindicavam

uma história que estabelecesse heroinas, prova da atuação das mulheres, e também

explicações sobre a opressão e inspiração para a ação” (Scott, 1990: 64). Nos anos 70

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verifica-se a tentativa de separação teoria e política, militância, esquematização e explicação

científica da opressão feminina. Este divórcio acontece, por um lado, a partir das

reivindicações do movimento feminista de que a “história oficial e universal” é parcial,

portanto, ideológica, e, por outro lado, com a crescente participação das feministas nas

academias e Universidades e, ao mesmo tempo, o tratamento marginal que recebem.

O rompimento definitivo entre política e teoria dar-se nos anos 80, com a emergência

do termo “gênero”, que, como define Scott é empregado para designar as relações sociais

entre os sexos significando, assim,

“uma maneira de indicar ‘construções sociais’ - a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre o corpo sexuado.” (Scott, 1990: 07)

A introdução e, de certa forma, uma relativa aceitação de gênero enquanto conceito,

categoria de análise amplia as possibilidades de abordagens históricas, sobretudo porque

minimiza, relativiza ou recusa tradicionais postulados teóricos de explicação da submissão

feminina, como a teoria do patriarcado, por exemplo. Como destaca Scott (1990: 15), o

gênero “é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído

igualmente na economia e na organização política, que, pelo menos em nossa sociedade,

operam atualmente de maneira amplamente independente do parentesco”.

O alargamento dessa visão introduz no debate a complexidade das relações sociais

entre os sexos mostrando que a “dicotomia” masculino e feminino, dominador (macho)

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versus dominada (fêmea) não tem sustentação quando se abre a perspectiva da análise

relacional que assumem decisiva relevância no processo de construção de gênero. Essa

compreensão de gênero como uma construção alicerçada em bases sociais, culturais,

econômicas, psicológicas, traz para a discussão dois aspectos importantes: um deles, a íntima

vinculação de gênero com as relações de poder, e o outro, a definição de gênero enquanto

representação. Tanto um quanto outro aspecto, entretanto, não podem ser admitidos ou

mensurados como elementos separados, estanques, divorciados, mas, constitutivos de

realidades e eventos historicamente situados.

No que concerne a relação gênero e poder, teóricas feministas, como Scott e Laurentis,

buscam inspiração no filósofo francês Michel Foucault, que entende as relações de poder

como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelos discursos nos campos de

forças sociais. Assim é que, de acordo com a concepção foucaultiana de poder, no interior

desses processos e estruturas, abrem-se as perspectivas para a constituição de um agente

humano como resultante da tentativa de construção de uma identidade, uma vida, um conjunto

de relações, uma sociedade permeada por limites e dotada de uma linguagem que, por sua

vez, além de ser conceitual, estabelece fronteiras e apresenta a alternativa da negação, da

resistência, de reelaboração, das estratégias de reinvenção metafóricas e imaginativas.

Considerando a “tecnologia de poder” de Foucault algumas teóricas feministas

reconhecem que o poder produz significados, valores, conhecimentos e práticas, tem aspectos

explicitamente positivos e/ou negativos que explicariam por que, em determinados momentos,

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as pessoas adotam e professam determinadas verdades e não outras. Nessa concepção, o poder

modifica “os investimentos” feitos pelas pessoas ao adotar determinadas posições discursivas

em detrimento de outras, com esta ação significando, na expressão de Laurentis (1994: 225),

“algo entre um comprometimento emocional e um interesse investido no poder relativo

(satisfação, recompensa, vantagem) que tal posição promete (mas não necessariamente

garante)”.

Essa abordagem, adianta Laurentis (1994: 225), é uma interessante tentativa de

reconceitualizar o poder, ao apresentar o “investimento” feito pela pessoa como um dos

elementos que, nas relações de poder, determinam as ações, posturas, comportamentos,

linguagens, representações que se fazem do ser homem e do ser mulher. Dessa forma, esta

autora sugere que seria o agenciamento contextualmente situado que passaria a ser percebido

pelo sujeito, especialmente por aqueles que foram vitimados pela opressão social ou

desautorizados pelo binômio discursivo poder/conhecimento.

“Tal colocação pode explicar, por exemplo, não só por que as mulheres (pessoas de um gênero), têm historicamente feito investimentos diferentes e, conseqüentemente, tomado posições diferentes quanto ao gênero e a práticas e identidades sexuais (celibato, monogamia, frigidez, papéis sexuais, lesbianismo, heterossexualidade, feminismo, antifeminismo, etc.); mas pode explicar também o fato de que “outras importantes dimensões da diferença social, como classe, raça e idade, cruzam o gênero para favorecer ou desfavorecer certas posições.” (Laurentis, 1994: 225)

Essa compreensão de poder e a relação gênero/poder possibilita quebrar a fixidez que

diversas teorias clássicas, como o positivismo e o marxismo, esboçam acerca da questão. Uma

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fixidez que define a condição pessoal de ser mulher ou de ser homem como natural, restrito ao

campo da biologia ou, no mínimo, uma questão de menor importância diluída no embate

maior das classes sociais antagônicas, com a diferença e a opressão da mulher sendo

superadas no compasso da construção de uma sociedade socialista.

O outro aspecto refere-se ao gênero enquanto representação e vem sendo elaborado,

sobretudo, por Teresa de Laurentis, a partir de categoria de análise emprestada de outras áreas

do conhecimento, como a Psicanálise (principalmente a idéia de identidade elaborada pelos

pós-estruturalistas franceses), a Antropologia, e a Lingüística. Laurentis estabelece quatro

proposições que clarificam seu entendimento:

1. gênero enquanto representação;

2. que a representação do gênero é a sua própria construção;

3. que essa construção dar-se hoje no mesmo ritmo dos tempos

passados;

4. que a construção de gênero dar-se também por meio de sua

desconstrução.

Para Laurentis (1994: 221), o termo gênero é uma representação não apenas no sentido

de que cada palavra, cada signo representa seu referente, seja um animal, uma coisa, mas

também por representar uma relação de pertencer a uma classe (não no sentido marxista), um

grupo, uma categoria. Gênero constrói uma relação de pertencimento, uma relação social, não

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podendo ser entendido como sexo, como a condição natural das pessoas, “e sim a

representação de cada indivíduo em termos de uma relação social preexistente ao próprio

indivíduo e predicada sobre a oposição 'conceitual' e rígida (estrutural) dos dois sexos

biológicos”.

Seguindo sua argumentação Laurentis afirma:

“se as representações de gênero são posições sociais que trazem consigo significados diferenciais, então o fato de alguém ser representado ou se representar como masculino ou feminino subentende a totalidade daqueles atributos sociais. Assim, a proposição de que a representação de gênero é a sua construção, sendo cada termo a um tempo o produto e o processo do outro, pode ser reexpressa com mais exatidão: ‘A construção do gênero é tanto o produto quanto o processo de sua representação’.” (1994: 212)

A construção de gênero nos dias atuais, na mesma medida de tempos passados,

segundo Laurentis, se dá não apenas nos meios de comunicação, nos tribunais, na família, no

sistema escolar público e privado; ela se faz, embora de maneira sub-reptícia, “na academia,

na comunidade intelectual, nas práticas artísticas de vanguarda, nas teorias radicais, e até

mesmo, de forma bastante marcada, no feminismo”, não só produzindo, promovendo e

implantando, através dos discursos institucionais e das várias tecnologias do gênero, mas

inscritos em práticas micro-políticas, construindo espaços de resistências, na subjetividade e

na autorepresentação.

Por mais contraditória e paradoxal que se apresente, a construção do gênero, no argumento de

Laurentis, se faz por meio de sua desconstrução, ou seja, através de qualquer discurso, seja

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ele feminista ou não, mas que entenda o gênero apenas como “uma representação ideológica

falsa”. Assim posto, o gênero não é somente a conseqüência, o resultado da representação,

mas também o seu excesso, aquilo que fica fora ou nas entrelinhas do discurso, como um

curso de água que, se não contido, pode romper ou desestruturar qualquer dique de

representação.

Seja como representação das relações sociais, políticas, econômicas e culturais que

definem, historicamente, o ser homem e o ser mulher, seja como elemento necessário e

primeiro da constituição e significação das relações de poder, o gênero somente pode adquirir

a postulação de uma “categoria útil de análise histórica” quando investido do movimento de

tensão, de contradição, de multiplicidade e heteronomia presente no seio das relações

humanas.

O gênero, como define Scott, deve ser utilizado e apreendido como um suplemento

que desafia e desestabiliza as premissas teóricas postas sem, entretanto, oferecer ou se propor

ser a síntese, ou uma resolução fácil da complexidade que permeia e perpassa as relações

sociais entre os sexos. “É algo adicionado, extra, supérfluo, acima e além do que já está

inteiramente presente; e também uma substituição para o que está ausente, incompleto,

carente, por isso requerendo complementação ou integralidade”, acrescenta Scott (1990: 76).

Para Laurentis, este suplemento é definido como o “outro lugar” ou, na linguagem

cinematográfica, o “space-off”, o que está por trás e além das câmaras mas que complementa

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as imagens exibidas, ou seja, os espaços nas fronteiras dos discursos hegemônicos. Espaços

sociais encravados nos intervalos das instituições e nas fendas e brechas dos elementos do

binômio do “discurso universal” poder-conhecimento. São nestes espaços, enfatiza a autora,

que se procede a construção diferente de gênero, que se afirma em termos da subjetividade e

da autorepresentação, e se manifesta

“nas práticas micro-políticas da vida diária e das resistências cotidianas que proporcionam agenciamento e fontes de poder ou investimento de poder; e nas produções culturais das mulheres, feministas, que inscrevem o movimento dentro e fora da ideologia , cruzando e recruzando as fronteiras - e os limites - da(s) diferença(s) sexual(ais).” (Laurentis, 1994: 237)

A ênfase que Laurentis coloca e dispensa ao movimento entre gênero enquanto

representação e o que essa representação exclui, ou melhor, torna irrepresentável, é oportuna

para a compreensão de que os discursos hegemônicos, institucionais e aqueles que se

constituem nas margens, de revés, constituem dois tipos de saberes cuja relação não é

dialética, integrada; mas se traduz na tensão da “contradição”, da “multiplicidade”, da

“heteronomia”.

Neste sentido, Laurentis (1994: 238) ressalta que,

“habitar os dois espaços, ao mesmo tempo, significa viver uma contradição que, como sugeri, é a condição do feminismo aqui e agora: a tensão de uma dupla força em direções contrárias - a negatividade crítica de sua teoria e a positividade afirmativa de sua política - é tanto a condição histórica de existência do feminismo quanto sua condição teórica de possibilidade. O sujeito do feminismo é 'engendrado' lá. Isto é, em outro lugar”.

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Explicitando melhor a sua compreensão de gênero Laurentis (1994: 230-231) advoga

que

“a compreensão da condição pessoal de ser mulher em termos sociais e políticos e a constante revisão, reavaliação e reconceitualização dessa condição vis-à-vis à compreensão que outras mulheres tem de suas posições sócio-sexuais geram um modo de apreender a realidade social como um todo que é derivado da conscientização de gênero. E a partir desse entendimento, desse conhecimento pessoal, íntimo, analítico e político da universalidade do gênero, não há como retornar à inocência da biologia”.

Entretanto, o uso do gênero como categoria de análise das relações sociais entre os

sexos não tem recebido uma aceitação unânime ou consensual. Alguns críticos advertem para

o fato de que os estudos de gênero são apontados como sinônimos de estudos de mulher,

perdendo sua potencialidade relacional que abrangeria as relações sociais instituidoras do

masculino e do feminino. Outros ressaltam que o gênero vem sendo empregado, por outro

lado, como estudos de masculinidade, com o perigo de tornar-se um campo especializado e

específico de análise e interpretação, com o privilégio de elevar a masculinidade como ponto

exclusivo de estudo, negligenciando o caráter relacional que os estudos de gênero devem

preservar. Por fim, outros teóricos defendem que o conceito de gênero não dá conta da

compreensão da dominação masculina, apreendida como “dominação simbólica”, ou seja,

instituída nas relações sociais entre os sexos, naturalizando nos dominados a aceitação da

dominação.

A confusão estabelecida entre gênero como sinônimo de estudos sobre a mulher se

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situa no momento em que ocorre a separação entre política e teoria, ou seja, entre o

feminismo enquanto prática política concreta e o gênero como a tentativa de sistematizar e

teorizar esta prática. Feministas militantes, mas ausentes das academias e universidades,

apontam o gênero como uma forma ideologicamente neutra de tratar os estudos sobre a

mulher, retirando destes a pujança e a capacidade de transformação, emprestados pela ação

política, defendendo um retorno aos estudos sobre a mulher como forma de restabelecer a

necessária relação entre a prática política e o pensar desta prática.

O retorno à categoria “mulher” como referencial de análise das relações sociais entre os

sexos se justifica através da aceitação desta “mulher” como uma entidade histórica e social

multifacetada, construída na prática e nos discursos que a legitimam e consubstanciam.

Segundo Costa (1998: 138),

“Quando peço um retorno à noção de mulher como categoria política (em vez do conceito de gênero transformado em masculinidade) quero simplesmente relembrar o fato de que a 'mulher' é uma categoria heterogênea, construída historicamente por discursos e práticas variadas, sobre os quais repousa o movimento feminista. Dependendo do contento conjuntural e das exigências políticas, esta categoria é usada para articular as mulheres politicamente. Contudo, ela possui diferentes temporalidades e densidades, existindo em relação a outras categorias igualmente instáveis. (...) a história e o significado de uma categoria deve ser entendida à luz das histórias e significados de outras categorias da identidade (classe, raça, etnia, sexualidade, nacionalidade, etc.)”.

A autora argumenta que este retorno à noção de “mulher” como categoria de análise

vem apoiada pela teoria pós-estruturalista, sobretudo na versão delineada por Teresa de

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Laurentis, Chantal Mouffe, Linda Alcoff. Estas teóricas se posicionam avessas ao

essencialismo, ao binarismo e as lógicas identitárias, defendendo uma desconstrução da

categoria “mulher” tendo por base o desmonte de sua natureza essencialista. A partir desta

desconstrução seriam elaboradas novos mapas de práticas articuladas que estabeleceriam

materialidades produtores de identidades e posições para seus sujeitos no campo social.

Finalizando, Costa (1998: 139) argumenta que a mulher, nesta perspectiva, é encarada mais

como projeto político do que descrição de uma realidade, constituindo-se em uma

“identidade politicamente assumida, a qual está invariavelmente ligada aos lugares social, cultural, geográfico, econômico, racial, sexual, libidinal, etc., que ocupamos e a partir do qual lemos e interpretamos o mundo. A categoria mulher torna-se, portanto, uma posição política e o campo movediço e arriscado de ação e reflexão dos estudos feministas em contraposição ao porto seguro dos estudos de gênero (ou de masculinidades) dentro da academia”.

Outro aspecto que vem ganhando tons de polêmica quanto ao uso do gênero como

categoria de análise refere-se a sua utilização nos estudos de masculinidade, sobretudo,

naqueles considerados men’s studies, marcados por uma visão essencialista e parcial. Isto não

implica a existência de um grupo de estudiosos da masculinidade que, a partir da metade da

década de 80, começam a desenvolver um aspecto interessante na discussão de gênero: a

importância de perceber a diversidade de vozes masculinas presentes nas relações sociais

entre os sexos.

O risco dos estudos de gênero voltarem-se para o estudo ou a temática da masculinidade,

adverte Piscitelli (1998: 153-154), prende-se ao fato da identificação ou vinculação de

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masculinidade com masculino, com homem, caindo no pantanoso terreno - que em

determinados momentos, trilhou (ou ainda trilha) o caminho do feminismo -, da

essencialidade de uma natureza masculina. Neste caso, mais perigosa, por ser encarada como

“dominante”. Segundo a autora, sobretudo as revisões antropológicas sobre masculinidade

apontam a tendência de “identificar masculinidade com homens: com qualquer coisa que os

homens pensem e façam; qualquer coisa que pensem e façam para serem homens ou com

qualquer coisa que as mulheres não sejam”.

A saída para esta encruzilhada metodológica, segundo Piscitelli (1998: 155), seria encarar os

estudos de gênero como um campo complexo e grávido de possibilidades de exploração tanto

“das construções de masculinidade quanto as de feminilidade, percebendo como essas

construções são utilizadas como operadores metafóricos para o poder e a diferenciação em

diversos aspectos do social”.

Seguindo uma linha argumentativa no mesmo campo de Piscitelli, Albuquerque Jr. (2000),

reconhece a pouca ênfase que a historiografia de gênero dedica ao masculino e as

“experiências-de-ser-homem”, considerando ser esta uma importante área para os estudos das

relações sociais entre os sexos, desde que abordados pela perspectiva relacional que a

metodologia de gênero possibilita. Ao estudar como os discursos e práticas definiram um

“ser para o nordestino” centrado na “masculinidade”, no ser “macho”, “cabra da peste”,

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Albuquerque Jr. (2000: 08), nos lembra que,

“As práticas cotidianas de gênero, de ser homem não estão determinadas nem pela genitalidade, nem pelos códigos de sexualidade. O gênero nem é natural, sendo uma criação histórica e cultural, nem está preso completamente a uma ordem dominante de prescrições. Mesmo dentro de uma cultura como a nordestina, onde as práticas, imagens e enunciados definem e exigem de forma muito estrita o ser masculino, as maneiras de praticar este gênero são variadas, as trajetórias culturais metaforizam a ordem dominante, impõem a esta microresistências, gestando microdiferenças. Trajetórias culturais de homens que, muitas vezes podem ser exemplos da arte no exercício ao mesmo tempo da ordem e da burla”.

Numa perspectiva que difere das duas concepções expostas acima, temos a vertente

teórica que explica as relações sociais entre os sexos como decorrentes da dominação

masculina situada no campo da dominação simbólica. O principal defensor desta corrente é o

sociólogo francês Pierre Bourdieu para quem a dominação masculina se legitima numa

sociedade que se constitui, em todos os momentos históricos, na perspectiva androcêntrica

que dispensa qualquer estratégia de justificação.

De acordo com esta compreensão, as relações sexuais são socialmente instituídas e

engendram o mundo social e simbólico com os referenciais de masculinidade e feminilidade

compondo dimensões do habitus e da dominação simbólica, cujas manifestações perpassam o

universo habitado por dominantes e dominados.

Tomando como referencial de análise a sociedade, Bourdieu (1999: 18) estende a explicação

da dominação masculina a todas as formações sociais, ao destacar que

“A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que

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tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte masculina, como o salão, e a parte feminina, como o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos.”

Esta dominação simbólica, destaca Bourdieu, opera num campo mágico que incorpora

não somente o assentimento ao dominante, mas a naturalização desta dominação, por parte de

dominantes e dominados, exercendo sobre os corpos um poder que, em nenhum momento,

traz o signo da coação física. O combustível que alimenta e move esta dominação simbólica,

revela Bourdieu (1999: 50-51),

“encontra suas condições de possibilidades e sua contrapartida econômica (no sentido mais amplo da palavra) no imenso trabalho prévio que é necessário para operar uma transformação duradoura dos corpos e produzir as disposições permanentes que ela desencadeia e desperta; ação transformadora ainda mais poderosa por se exercer, nos aspectos mais essenciais, de maneira invisível e insidiosa, através da insensível familiarização com um mundo físico simbolicamente estruturado e de experiência precoce e prolongada de interações permeadas pelas estruturas de dominação”.

Bourdieu enfatiza ainda que a dominação masculina centrada na dominação simbólica

é o princípio que justifica e legitima as demais formas de dominação/submissão, exercitadas

de maneiras singulares e múltiplas e, sendo diferentes em suas formas segundo a posição

social, geográfica, espacial, étnica, de gênero, dos agentes envolvidos, se homogeneiza

separando e unindo, em cada universo social, homens e mulheres, mantendo entre eles, uma

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mística linha de demarcação.

A dominação simbólica explicando, em última instância, a dominação masculina presente em

todas as sociedades marcadas pela composição androcêntrica, finaliza Bourdieu, somente abre

possibilidades de transformação quando os dominados se apercebem de que eles, tais como a

dominação que os constituiu, contribuem para sua dominação.

“Pôr em foco os efeitos que a dominação masculina exerce sobre os habitus masculinos não é, como alguns poderão crer, tentar desculpar os homens. É mostrar que o esforço no sentido de libertar as mulheres da dominação, isto é, das estruturas objetivas e incorporadas que se lhes impõe, não pode se dar sem um esforço paralelo no sentido de liberar os homens dessas mesmas estruturas que fazem com que eles contribuam para impô-la” (Bourdieu: 1999: 136).

Diante dos conflitos e paradoxos teóricos acima relacionados estaria a categoria

gênero perdendo consistência enquanto paradigma metodológico de análise e explicação das

relações entre os sexos vistas como relações sociais?

A resposta se constitui num desafio que, para alguns teóricos (as), seria amenizado ou

amortecido pela tentativa de historicização das relações sociais, impressas em campos

pontilhados por práticas e discursos, suplementos, resistências, assentimentos, ordens,

tensões, silêncios, tesões.

Scott (1990) concorda com a posição de Bourdieu de que a história das mulheres,

enquanto parcela considerada diferente, é parte da história da dominação masculina, porque

são os homens que formulam as regras, que organizam a sociedade,. que estabelecem os

territórios e fronteiras. Contudo, adverte para a necessidade de se considerar a existência de

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uma história a ser escrita, que aborde a noção de dominação, de poder desigual. Uma história

que, reconhecendo a autenticidade das estruturas sociais como locus de construção das

relações homem/mulher e da idéia de mulher, também considere que a subjetividade - não

vista como essencialista, ou inerente a natureza feminina, ligada ao corpo, à natureza, à

reprodução, à maternidade, mas criada para as mulheres em um contexto específico da

história, da cultura, da política - e a criação do sujeito são algo mais complexo que a

dominação.

Como reforça Scott (1990: 123-124) é imprescindível se colocar a questão em termos

históricos, ou seja,

“nos perguntar como as relações entre os sexos foram construídas em um momento histórico, por que razão, com que conceitos de relação de forças, e em que contexto político. Este é o verdadeiro problema: historicizar a idéia homem/mulher e encontrar uma forma de escrever uma verdadeira história das relações homens/mulheres, das idéias sobre a sexualidade, etc..(...) A diferença dos sexos é um jogo político que é, ao mesmo tempo, jogo cultural e social. Para mim o mais importante é insistir sobre a historicidade das relações homens/mulheres, as idéias e os conceitos da diferença sexual.”

Dessa forma, assumir gênero como uma categoria de análise histórica na perspectiva

de um termo que não tem a fixidez dos postulados que atribuem ao masculino e ao feminino

qualificações naturais, imutáveis, essencialistas, acena possibilidades outras de estudo e

análise da participação das mulheres nos movimentos sociais.

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1.2. A mulher e a Revolução Mexicana

A princípios de 1910, a mulher mexicana era caracterizada por sua reclusão no lar.

Françoise Carner destaca que lhe era imposta a condição de um menor de idade, já que era

insegura e incapaz de penetrar na esfera pública, manifestando uma forte lealdade religiosa

(Carner, 1987, p.97). A partir da Revolução Mexicana, algo diferente aconteceu, pois a

mulher começou a expressar e demonstrar seu interesse em fazer parte da esfera pública. É

por isso que a Revolução Mexicana é fundamental na história da mulher, pois é um divisor de

águas da presença da mulher no “mundo masculino”.

A mulher mexicana foi dotada de um novo papel, de uma nova forma de participação

na sociedade através da Revolução, a qual conduziu a uma mudança ideológica favorável para

a emancipação feminina. No movimento armado, aparecem las soldaderas, quando os

homens da comunidade unem-se às forças militares. Tinham acesso a qualquer espaço, já que

eram responsáveis por alimentar os homens do quartel. Vendiam toda classe de produtos,

inclusive bebidas alcoólicas e drogas, as quais eram proibidas. Ainda assim conseguiam que

passassem como contrabandos com destreza ou em troca de favores sexuais.

Estas mulheres seguiam os homens em combate aprendendo com eles técnicas

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militares, visto que já tinham relacionamentos com os homens do quartel – sentimentais ou de

amizade com outra soldadera que fosse “velha” de algum sargento- os quais lhes permitia

usar armas sem quaisquer restrições. Guerreavam ao lado dos homens nos exércitos

revolucionários. O número de mulheres que viajou com estes exércitos foi elevado e tinham

sob sua responsabilidade medicamentos, munições, roupas e alimentos, cartas, equipamento

militar e informações sobre o inimigo nas linhas de frente. Tal situação sujeitou estas

mulheres à forçadas migrações, separando-as de suas famílias, sendo muitas vezes presas sob

maus tratos:

Al llegar procurábamos prepararles la comida. Veníamos como diez o quince mujeres, adelante, luego seguía la vanguardia que es la que recibe los primeros balazos. Luego la retaguardia que es la que preparaba para atacar y se dispersaba para rodear al enemigo.(Poniatowska; 1969,66)

Elena Poniatowska em Hasta no verte Jesús mio consegue captar a essência da mulher

de classe baixa dentro da Revolução através de Jesusa Palancares. Sua história não é

propriamente uma narração da Revolução mexicana, Jesusa narra com riqueza de detalhes sua

vida de soldadera e sem rumo. A voz na primeira pessoa permite apreciar com empatia, e em

alguns casos de maneira risonha, a realidade de uma menina que pelos percalços da vida

chega à Revolução. A participação de Jesusa nas batalhas não é voluntária, mas devida a

circunstâncias externas de sobrevivência, fazem com que a jovem siga seu pai e

subseqüentemente seu marido, nas batalhas nos arredores do país. Tinha entre treze ou

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quatorze anos quando começou sua participação revolucionária . a necessidade de

sobrevivência a faz acompanhar seu pai Felipe, um soldado carrancista, no funeral de seu

irmão. Felipe leva sua filha às batalhas já que precisava de alguém para atender suas

necessidades diárias, por isso Jesusa como outras mulheres na mesma situação eram

chamadas soldaderas o adelitas.

Através da narração de Jesusa é possível constatar o tipo de vida que as soldaderas

levavam:

Mi papá andaba a pie y yo tenía que seguirlo en la infantería... Yo iba nomás con mi canasta en el brazo: plato, taza, jarro, una cazuela para hacer café o freir alguna cosa que fuera comer mi papá... Por lo general las mujeres no estábamos pendientes del combate. Íbamos pensando en qué hacerles de comer. Llegábamos a un pueblo y si de casualidad encontrábamos a algún cristiano, no nos querían ni ver la cara. (Poniatowska;65-67)

Poniatowska em seu livro Soldaderas acrescenta que “sin las soldaderas no hay

Revolución Mexicana; ellas la mantuvieron viva y fecunda... Las enviaba por delante a

recoger leña y prender la lumbre, y la alimentación a lo largo de los años de guerra. Sin

soldaderas, los hombres llevados de leva hubieran desertado”(Poniatowska;14). Eram muitas

vezes tratadas de forma desumana. No entanto, ao separar-se de seus homens, poderiam sofrer

maiores danos que se houvessem ficado com eles.

Durante oito meses, Jesusa e seu pai mantêm uma relação cordial para poder

sobreviver mutuamente dentro desta convulsão. Porém, eles têm uma forte discussão já que

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ela falava zapoteca com um grupo que os acompanhava, o qual não parecia com seu pai,pelo

qual separaram-se. Ela é recolhida pelo General Blanco para que ajude sua filha, a qual

colaborava com seu pai ao dirigir as tropas; isto cria outra oportunidade de continuar

participando. Jesusa sabe que ela é reposnsável pelo seu bem-estar: “yo no tenia madre, mi

papá sabe Dios donde estaba. Por eso me dedique a buscarme la vida como Dios me diera a

entender. Si no, ¿cómo comía yo?(Poniatowska, 51). Ao pertencer ao batalhão do General

Blanco, um soldado de nome PedroAguilar se “apaixona” por Jesusa. Este soldado está

obcecado pela jovem e chega a pedir sua mão sem seu consentimento. Finalmente Jesusa é

obrigada a casar-se com Pedro, já que seu pai não quer mais cuidar dela, e assim livrar-se de

sua “responsabilidade” paterna. Ao unir-se a Pedro, Jesusa começa um calvário de miséria,

maus tratos e vexações ao ser presa em sua casa como uma prisioneira de guerra.

Su asistente me daba de desayunar, de comer y de cenar, y hasta los quince días de casados volví a ver mi marido... Durante los quince días me mantuvo adentro del cuarto sin hacer nada, esperando a que el asistente me trajera la comida. Quién sabe dónde andaba Pedro(Poniatowska, 84)

Além do cárcere sofrido, Pedro batia em Jesusa “Él me pegaba, me descalabraba y

com las heridas y la misma sangre me enllagué y se me acabó el pelo que era largo y

rizado”(Poniatowska, 96) Linda Egan argumenta que “el hombre machista – desde el padre y

el cruel esposo de Jesusa hasta el sinnúmero de varones que se emborrachan, abusan de la

mujer-esclava, golpean a sus esposas y abandonan a sus hijos – llega a verse como emblema

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de la Revolución fracasada”. (artigo jornalístico). Pedro descarrega suas frustrações em suas

esposa sem importar-se com o dano causado, como disse Jesusa “me daba uma vida de perro”.

Uma vida cheia de humilhações onde a vida de um animal era mais importante para um

exército que seus próprios compatriotas. A mesma Jesusa explica que

Era una dura vida en aquella época. Con unas mangas de hule tapaba uno sus cosas hasta donde las alcanzara a tapar para que no se mojaran con las lluvias. De cualquier manera yo no dejaba de mojarme. Yo traía sombrero tejano y me acomodaba lo mejor que podía. Teníamos que ir sentados todos arriba en cuclillas porque de lo que se trataba era de que la caballada fuera resguardada y que tuviera comida todo el tiempo. Cuando llegábamos a alguna parte, si daban orden de desembarcar, bajaban las bestias a tomar agua; primero que nada las bestias (Poniatowska, Soldaderas, 18-19)

As bestas tinham melhor alimentação e transporte que as mulheres, mesmo que elas

tivessem maior importância para a sobrevivência do exército.

A experiência migratória fez com que as soldareras adquirissem novas e diferentes

experiências. Alem disso, estas viagens as separaram de seus laços familiares quando seus

esposos, filhos, pais e irmãos se foram e não regressaram. Desta forma a situação

revolucionária as impulsionou a novos postos, incentivando e ajudando a ampliar novas

ocupações e participações(Turner; 1967, 607). Atrás das linhas, as mulheres trabalharam

como despachantes de trens, telegrafistas, enfermeiras, farmacêuticas, repórteres, escritoras

em jornais, mulheres de negócios, professoras, etc.Uma vez que começavam a integrar-se em

novos postos da esfera pública, permaneciam neles em virtude da nova situação. A soldadera

muitas vezes combatia vestida de homem. Muitas chegaram ao grau de coronel. Também era

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vítima de estereótipos. Por exemplo, no cinema, os diretores no afã de exaltar o valor

extraordinário da mulher, os cineastas mexicanos acabaram inventando o estereótipo da

mulher masculinizada, capaz de dirigir um exército com apenas um piscar de olhos, embora

dócil ante o domínio de seu homem.

Mulheres de classe média militaram em organizações políticas, como a Brigada

Socialista Feminina. A mulher teve sua própria liberação como parte indissociável à luta do

povo. Por exemplo, a mulher teve um excepcional valor quando os huertistas obrigaram

diversas mulheres, incluindo as esposas e filhas de revolucionários a viajar na parte superior

da defesa dianteira dos trens das forças federais, com o objetivo de prevenir descarrilamentos

e ataques. Como já mencionado, também eram hábeis para transportar facilmente o

contrabando de armas através da fronteira dos Estados Unidos. “La mujer desarrolló en gran

escala sus aptitudes al lado de los hombres y ganó reconocimiento como compañera, consorte

y pareja.”(Ramírez;1967, 608)

Desta forma foi propiciada uma atitude duradoura em prol da igualdade feminina, e

reforçou que a participação feminina adquirisse mais força, a partir do momento em que os

líderes revolucionários recorreram à mulher com a promessa de igualdade de direitos e

privilégios. Os revolucionários promulgaram leis destinadas a ajudá-las como a auspiciada

por Venustiano Carranza para que a mulher obtivesse o divórcio pela prolongada ausência do

marido. Censuraram práticas tais como a prostituição, que a segregava nacionalmente. As

legislações propiciaram a igualdade legal e sua liberação da dominação masculina. Como é o

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caso do artigo 123 da Constituição de 1917, onde estipulava que as mulheres trabalhadoras do

México deveriam gozar de assistência em função da maternidade, protegendo-as do trabalho

noturno. No entanto, a Revolução foi uma guerra sangrenta que produziu pobreza e fome,

obrigando a mulher a prostituir-se, aumentando o número de prostitutas durante este

movimento revolucionário. Com isto, surgiram grupos de mulheres com interesse em

melhorar a condição da mulher em prol da justiça social.(Turner;1967, 608)

A época revolucionária é a mais conhecida pelo impulso à instauração do voto

feminino e a inclusão da mulher à vida política. E assim como as mulheres foram bem

recebidas na vida nacional, respaldadas oficialmente pelas ações da mulher mexicana do

passado.

A Constituição estabelece a igualdade legal tanto para o homem quanto para a mulher,

porém a realidade estabelece algo bem diferente, visto que a participação e incorporação da

mulher continuavam sendo escassas e desiguais ao persistir a noção errônea de que o lugar da

mulher é em casa.

Graças aos movimentos feministas, os direitos cidadãos da mulher foram reconhecidos

e com isto a mulher foi conquistando diversos espaços que antes eram exclusivamente

masculinos. Porém, existe um longo caminho a ser percorrido, sobretudo numa sociedade em

processo de democratização; onde a luta reside em vencer a exclusão social, econômica e

política através da igualdade de oportunidades sem importar o sexo.

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1.3. Jesusa : A voz da alteridade

Zapata no tiraba a ser presidente como todos los demás. El lo que quería era que fuéramos libres pero nunca seremos libres, eso lo alego yo, porque estaremos esclavizados toda la vida. ¿Más claro lo quiere ver? Todo el que viene nos muerde, nos deja mancos,chimuelos, cojos y con nuestros pedazos hace su casa. Y yo no voy de acuerdo con eso, sobre todo ahora queestamos más arruinados que antes. -Jesusa

O testemunho de Jesusa Palancares está claramente diferenciado como uma voz

dentro de um mundo que embora não seja escolhido pelo sujeito que fala, é por fim, uma

voz que responde às forças sociais mais além do próprio indivíduo. O personagem de Jesusa

é a voz testemunhal no sentido completo da palavra através de sua própria narração. Da

mesma maneira, o discurso da novela engloba uma historicidade do testemunho, como o que

pode se encontrado numa obra biográfica plenamente pesquisada.

Conseqüentemente, a natureza biográfica e testemunhal desta obra, dá voz àqueles

que não a tem. Em Testimonio y concientización(1993:207) George Yúdice estabelece que

a missão do testemunho é “desenterrar historias reprimidas pela historia dominante,

abandonar el yo burgués para permitir que los testimonialistas hablen por su cuenta, recrear

el habla oral y coloquial de los narradores informantes y colaborar en la articulación de la

memoria colectiva”(p.207).

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Jesusa Palancares apresenta a perspectiva de uma mulher de classe social baixa e sua

luta para sobreviver durante os períodos políticos e sociais mais difíceis vividos no México

durante o século XX. Jesusa conta sua história de vida como revolucionária, serviçal,

espírita e finalmente como lavadeira nos bairros de classe média na cidade do México.

Dentro da idéia de estética da conscientização e representação, George Yúdice opina que o

testemunho é o resultado da tendência de valorizar a identidade dos grupos subalternos que

lutam pelo reconhecimento e a reestruturação econômica e social. O elemento testemunhal

de Hasta no verte Jesús mio dá aos indivíduos como Jesusa uma voz pública, aspecto que dá

ênfase à conscientização. Ou seja, a novela aponta para uma aquisição de um conhecimento

de si e do mundo por parte do sujeito subalterno (Jesusa) através do discurso de sua própria

experiência. Dentro de seu caráter testemunhal e de ficção se cruzam as barreiras, não

somente do real e do fictício, da necessidade utilitária e configuração imaginativa, como

também se excedem os limites dos paradigmas estabelecidos da representação.

A narradora de Hasta no verte Jesús mio não é uma narradora autobiográfica nem

uma narradora fictícia, mas uma voz articuladora híbrida que retêm a linguagem, os pontos

de visata e a personalidade de Jesusa. Uma narradora que mantêm sua autenticidade, através

da maneira de se expressar, mediante seus valores éticos e sua maneira de ver o mundo que

a rodeia. A voz de Jesusa possui a dimensão expressiva de uma classe social e de uma

época. Existe um elemento conscientizador na voz desta novela, já que projeta a criação da

solidariedade na formação de uma identidade, e na representação desta identidade. A

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situação de Jesusa representa a situação de um povo. Um dos aspectos mais significativos

desta obra é que o personagem Jesusa, uma anciã mexicana pertencente ao estrato social

mais baixo, fala explicitamente a um interlocutor, o qual através da leitura do texto, se

transforma em leitor de si mesmo, a quem lhe é transmitido uma mensagem social, através

de uma linguagem codificada com toda série de valores sociais.

A realidade desta novela tem – como qualquer realidade- várias dimensões: sociais,

políticas e feministas, estabelecidas mediante o discurso narrativo; especificamente, através

das conotações da linguagem e de expressões usadas pela narradora. Um exemplo simples,

que representa uma condição específica da mulher mexicana do nível social de Jesusa, é o

uso e a conotação de palavras boa e má, as quais contêm um código sicial. De acordo com

os parâmetros sociais mexicano, em particular aqueles da classe social a qual Jesusa

pertence, uma buena mujer é submissa, obediente e calada, enquanto uma mala mujer é

rebelde e desafiante. Em outras palavras, a primeira é dócil à autoridade de seu pai ou

marido. Jesusa afirma que depois do incidente no qual atirou em seu marido em defesa

própria, ela passou ser uma mala mujer, e seu marido, tornou-se bueno, porque já não

poderia mais trata-la como mulher submissa; ela havia transpassado as repressões atrabuídas

ao fato ser mulher. Ela conta que seu desespero pelos mal tratos de seu marido fez com que

ela se rebelasse e disse a si mesma: “ si yo no fuera mala, me hubiera dejado de Pedro hasta

que me matara.” (p.110)

A personalidade de Jesusa é produto de uma realidade social e cultural, e suas

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relações com outros e sua visão de mundo, demonstram esta realidade no decorrer da obra.

Toda esta realidade é transmitida através de uma linguagem, de um linguajar próprio dos

camponeses e trabalhadores que migram do campo à cidade do México em busca de

trabalho, ao término da Revolução mexicana. O sentido de apropriação individual desta

linguagem é particularmente intenso nas situações nas quais Jesusa discute sobre o afeto e o

amor, sendo estes incidentalmente, os momentos de mais infelicidade na vida da narradora.

Uma pergunta emerge em relação a Jesusa como sujeito representativo neste

testemunho: o que une os valores que Jesusa possui sobre todos os aspectos da vida(sua fala

prescritiva sobre o que se deve ou não fazer) com a recopilação e a descrição do que

aconteceu ao longo de sua vida? Uma provável resposta presente na narrativa é que existe

uma dinâmica na maneira em que a história é contada, já que a narradora recorda o passado

e estabelece juízos sobre o mesmo. Nesta narrativa desenvolve-se um mundo textual por si

mesmo no qual existem respostas subjetivas a uma série de verdades históricas.

Outro aspecto interessante a ser ressaltado, é o ato de transgressão e subversão da

autoridade. Jesusa conta a história a seus modo, usando sua própria linguagem. Os lapsos da

memória vão aproximando-se gradualmente e vão tomando forma para dar unidade à

história. Ao proclamar sua voz, Jesusa expressa uma visão de mundo diferente da ideologia

dominante , está expondo a Altridade de uma maneira direta. Sua história representa o

direiro de falar e de ser ouvido como pessoa, pelo fato de representar uma realidade e uma

temporalidade específicas, e neste caso, uma parte relevante da história mexicana do século

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XX. Cornejo Polar afirma que

“el sujeto que surge de uma situación colonial está instalado em uma red de encrucijadas múltiples y acumulativamente divergentes: el presente rompe su anclaje com la memoria haciéndose más nostalgia incurable o rabia mal contenida, que aposento de experiências formadoras(...) um sujeto de este modo resulta excepcionalmente cambiado y fluido.” (Cornejo Polar; 21)

De acordo com dito autor, a evolução histórica, política e social, no pode ser

dissociada da produção cultural latino-americana. Os fatos que ocorreram durante a

colonização marcaram a história e a consciência do povo. Os valores, medos, e inclinações de

Jesusa são, de acordo com a idéia de Cornejo Polar, a universalização de uma vivência latino-

americana. Ou seja, Jesusa representa o hibridismo, a heterogeneidade de uma realidade social

formada pela maioria. Uma maioria marginalizada a qual lhe foi negado o direito de ser

escutada. A partir desta perspectiva, a experiência discursiva deste texto tem o poder de

provocar uma reflexão no leitor. Uma reflexão que possa estabelecer uma possibilidade de

rever os conceitos do mundo interno do leitor.

É importante ressaltar que a lateralização e ficcionalização nesta novela, no influem

nos parâmetros do personagem nem em suas experiências vividas. Ao contrário, parece que

estes elementos fazem com que a voz narrativa tenha maior impacto para expressar uma

reralidade, infinitamente rica e variada nesta novela.

A heterogeneidade é outro elemento relevante nesta obra. De acordo com Neil Larsen,

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as produções literárias e culturais do terceiro mundo foram contempladas quase sempre como

resultados de processos de desenvolvimento desigual. (Larsen, 146). No entanto isto não quer

necessariamente dizer que tioda literatura do terceiro mundo seja heterogênea. Friedhelm

Schmidt em Literaturas heterogêneas y alegorias nacionales concorda com cornejo Polar ao

estabelecer que “ la heterogeneidad es el resultado de un conflicto del temps dureé, el

resultado de una conquista y un proceso de colonización (Schmidt;177). Sob a noção de

sincronia Del texto o sus distintas temporalidades, Cornejo Polarem “ Escribir el aire” propõe

historiar esta sincronia textual dentro do contexto dado pelas temporalidades. Para isto

considera que é importante respeitar a heterogeneidade, ou seja, respeitar o diacrônico de

cada elemento constitutivo (Cornejo Polar; 15-16). Neste sentido, ao ler uma obra como Hasta

no verte Jesús mio no se podem omitir os diversos universos existentes nas dimensões sócio-

políticas que a voz de Jesusa está expondo. Para Cornejo Polar, a heterogeneidade está

instalada dentro do discurso do sujeito da representação, apesar da relação conflitiva que

possa existir entre a voz representada e a intelectual que cria a obra, descartando uma falsa

harmonização dentro do conceito de representatividade. Não obstante, parece que dita

conflividade é superada pela heterogeneidade textual, e é precisamente a partir desta

heterogeneidade que surge o caráter representativo da obra.

Da mesma maneira, Schmidt estabelece que para Cornejo Polar a heterogeneidade

pode ser comprovada em aspectos formais do texto como a linguagem, o uso de estruturas

sintáticas, a engrenagem de uma trama linear e uma consciência circular do tempo, e por sua

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vez o tempo da memória. (Schmidt; 176). De acordo com Cornejo Polar, a heterogeneidade

interna do texto é somente construída para os níveis do processo literário: produção, texto,

recepção e referente. Esta noção de heterogeneidade interna está aberta à análise das

literaturas pós-coloniais, aproximando-se de três núcleos problemáticos: o discurso, o sujeito

e a representação (Schmidt;178). o terceiro aspecto, a representação está ligado à

problemática do discurso e do sujeito. Cornejo Polar declara que a representação está

enraizada na construção do mundo e de si mesmo pelo sujeito e por sua vez,a construção do

sujeito na representação. A partir deste aspecto, e considerando a obra de Poniatowska como

foco, a representação é heterogênea pela mesma heterogeneidade do sujeito. Sendo assim,

pode-se dizer que esta é uma obra representativa da América hispânica, porque não propõe

somente uma dissonância que não pode ser ignorada pelo crítico, como também, estabelece

estas três problemáticas – discurso, sujeito e representação – e seu caráter heterogêneo. Existe

uma ênfase na diferença como resultado da natureza heterogênea que nasce da voz da

narradora Jesusa. A heterogeneidade desta obra reflete também a idiossincrasia de uma classe

social, de um povo, também heterogêneo.

Hasta no verte Jesús mío não é uma obra com um caráter de representatividade que

encarna a figura da alteridade distante do controle discursivo exercido pelo centro, através de

seus Estudos Culturais. Em Intersectando Latinoamerica con el latinoamericanismo:

discurso acadêmico y crítica cultural Nelly Richards afirma que a pós-modernidade

modificou o esquema binário de hierarquia e subordinação, os quais se enfrentaram entre si

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por antagonismos conceituais e pelo controle homogêneo do centro. De acordo com Richards,

é possível afirmar que a obra de Poniatowska é um exemplo de como foi rearticulado o

espaço intelectual à raiz da produção literária pós-colonial, porque esta novela estabelece um

elemento de diferença, e de alguma maneira desafia os conceitos epistemológicos que o

centro estabeleceu para criar uma literatura de terceiro mundo. Para Richards, através de

sofisficadas estratagemas “una centralidad descentrada procura relegitimarse en un contexto

globalizante a través de apelaciones a alteridades, marginalidades, subalteridades, etcétera,

desde sus propios aparatos acadêmicos de producción” (Richards,1997: 248)

Da mesma maneira Richards declara que é necessário desconstruir tais estratagemas,

questionando o metadiscurso globalizador que as produz. Para isto é relevante criar

conjunturas que façam da diferença latino-americana uma diferença

diferenciadora(Richards,1997: 249). Dentro desta perspectiva a obra de Poniatowska é uma

alternativa que advoga por esta diferença através de sua representatividade. Ou seja, existe

uma figura da alteridade real, com voz própria que está representando a heterogeneidade da

periferia, sua dimensão social e política. A denúncia testemunhal desta obra representa, a

vivência popular traduzível, a luta solidária, a um compromisso político e denúncia

testemunhal. Aqui é dada voz e vez à alteridade, que desafia toda conceitualização cultural e

conceitos espistemológicos que nascem no centro e que perdem sua aplicabilidade ao

enfrentar esta outra realidade.

Lo real Del testimonio sería la heterogeneidad y conflictividad sociales que la practica subalterna opone a la decodificación académica,

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gracias a que la heterogeneidad de sus experiencias de vida produce un valor popular que excedería siempre la competencia académica del saber culto, declarando incapaz, por sus propios exponentes, de alcanzar la intensidad política de la lucha tercermundista. (Richards,. 253)

Existe uma representação do ponto de vista dos registros lingüísticos do texto em

Hasta no verte Jesús mio . Uma representação da heterogeneidade interna do texto, de sua

forma. Simultaneamente, existe também sob sua condição testemunhal uma ênfase na

representação de sujeitos já constituídos (Jesusa, o povo, o contexto social e histórico

representado por ela) e também a prática conscientizadora. Neste sentido é representada a

idéia de Yúdice de que testemunhos como de Jesusa Palancares tem como propósito a

conscientização; o fato de transpor os parâmetros culturais já estabelecidos e advogar por

uma transformação democratizadora.(Yúdice;1993: 210). Talvez deste contexto possam surgir

conceitos epistemológicos que viagem a partir da periferia em direção ao centro, e que como

propõe Richards possam criar uma teoria local, um discurso e consciência situacionais que

rearticulem a relação centro-periferia.

Finalmente, existe em Hasta no verte Jesús mio o pacto da verdade discursiva com a

realidade referencial da qual se refere Hugo Achugar. Dentro deste pacto, a reconstrução

ficcional e estética do testemunho da narradora não corta sua voz autêntica nem seu caráter de

representatividade. De acordo com Emil Volek, o traço que caracteriza a obra de Poniatowska

dentro do gênero de Testemunho é o fato consciente de evitar a todo custo figuras alegóricas

pré-fabricadas do meta-relato revolucionário marxista, feminista e de terceiro mundo(Volek,

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1993:64).

Dentro do gênero de Testemunho, diferente de outros gêneros literários produzidos no

terceiro mundo, a obra de Elena Poniatowska não pode ser lida como uma alegoria. Ou seja, a

evolução política e social do terceiro mundo é um aspecto relevante para entender a cultura

que ali é produzida. A separação do público e o privado, existente na literatura do primeiro

mundo e da qual afirma Jameson, no puede existir en la producción tercermindista, porque la

dimensión política está infiltrada en la misma obra. La dimensión libidinal de la historia en

una obra Testimonio debe ser leída en términos políticos, porque es imposible separar la

evolución histórica de lo social; y lo político de la producción cultural. Es esta evolución de

donde nace nuestra heterogeneidad cultural y nuestra diferencia.(Jameson, 1986:165). Este

aspecto é precisamente o que dá à obra um caráter realista, e descarta qualquer possibilidade

de ser lida como alegoria nacional. As formas lingüísticas e narrativas de uma obra como esta

representam uma determinada cultura, uma temporalidade específica, uma identidade, e

portanto, uma diferença. Por outro lado, a heterogeneidade da obra representa por sua vez a

evolução social e política mexicana do século XX.

De alguma maneira, os elementos mencionados anteriormente dão autoridade a esta

obra ante as instituições culturais de legitimação e é precisamente destes de onde deveriam

nascer um processo de transculturação que faça sua viagem em direção ao centro, não de

maneira unidimensional, senão retomando novos conceitos. Isto pode ser viável se

considerarem que apesar da separação existente entre o público e o privado, a dimensão social

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e política, embora de maneira menos evidente, também está infiltrada na literatura e na

produção cultural do primeiro mundo.

A voz de Jesusa Palancares propõe o reconhecimento do hibridismo, da

heterogeneidade como resultado do passado, visando a retomada da memória coletiva para

estabelecer uma identidade clara e distinta; para conscientizar o mundo da realidade latino-

americana, e para iniciar processos democráticos que promovam a justiça social.

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2 . Memória História e Testemunho

2.1. A externalização da memória do subalterno

Uma das questões mais desafiadoras com que a crítica da cultura se defronta é a que

se refere aos laços entre as memórias geradas pelos grupos sociais subalternos e a construção

da História. Embora nos dias de hoje se possa distinguir nas reflexões acadêmicas e nas

intervenções culturais de órgãos estatais ou não uma preocupação em fomentar ações culturais

que suscitem a construção de uma memória social não-autoritária, muitas questões

permanecem em aberto, desafiando suas práticas sociais. Um primeiro problema refere-se aos

laços entre memória e história, pressupondo a solução de um enigma muito complicado: se a

memória é fruto da ação social e política de grupos e indivíduos que possuem vivências e

experiências particulares, em que bases se poderia falar de uma história nacional? Seria a

História Nacional com letra maiúscula a soma das histórias particulares e das memórias dos

muitos grupos sociais? Caso afirmativo, quem as sintetiza, hierarquiza e lhes empresta

organicidade? Seria o estado a arena de resolução e harmonização de conflitos, possibilitando,

assim, que os diferentes grupos sociais vivenciem diferentes memórias e histórias? Se assim

é, em nome de quem fala o estado? Seria o estado capaz de proporcionar uma arena neutra de

encontro entre os diferentes grupos de interesses, com suas memórias, histórias e agendas

políticas específicas? Se não, qual as conseqüências disto?

Além disso, a construção das memórias vinculadas à agência social e à resistência,

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especialmente daquela realizada pelos grupos sociais despossuídos, se dá, sobretudo, no

âmbito do cotidiano. No entanto, o que é cotidiano? Em certa acepção, cotidiano, que aparece

vinculado ao tradicional, aos processos de permanência e às identidades sociais culturalmente

estáveis ou puras, vem sendo entendido como sinônimo de estabilidade, não-mudança. Mas,

como se poderia falar de permanência em um mundo em constante mudança a não ser

engessando aquilo que é mutável e provisório aos cânones do estável, tradicional e daquilo

que, portanto, está morto? Como falar em identidades sociais puras ou não conspurcadas sem,

ao mesmo tempo, esvaziá-las de sua dinâmica histórica sempre provisória, escravizando-as às

nossas expectativas idealizadas? Quais são os mecanismos de construção de identidades

sociais, étnicas e agendas políticas dos grupos subalternos? Não seriam estas identidades

construídas a partir daquilo que estes grupos consideram interessar aos detentores do poder?

Por outro lado, os intelectuais vêm sendo desafiados a textualizar as narrativas geradas

pelas ações sociais dos grupos subalternos. Um dos maiores desafios com que se defrontam

atualmente os historiadores e outros pesquisadores da área das ciências humanas é o de achar

os caminhos corretos para escrever a história dos chamados excluídos. Trata-se de estabelecer

os parâmetros teóricos e metodológicos por meio dos quais as narrativas que dispomos acerca

destes grupos, escritas ou orais, podem se tornar meios de acesso para a textualização de

vivências, modos de vida, mentalidades, idéias políticas de grupos aparentemente desprovidos

de importância social. Um dos principais problemas a ser enfrentado nesta tarefa refere-se ao

fato de que estes grupos sociais, por serem socialmente despossuídos, ao invés de produzirem

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versões próprias, foram e continuam sendo descritos e catalogados em documentos e

narrativas produzidas por agentes socialmente comprometidos com a visão do estado,

forjando versões viciadas por preconceitos, determinismos raciais e sociais. No entanto, a

tarefa requer grande cuidado crítico para que em sua busca de estabelecer uma nova verdade

social sobre estes grupos, o próprio intelectual ou agente cultural não se coloque no espaço de

poder antes ocupado pelas forças da dominação social.

Hoje, num universo teórico em que os “povos sem-história” e as minorias foram trazidos

à cena, e os grupos afro-descendentes, indígenas, mulheres e outros grupos sociais subalternos

clamam pelo direito de fazer a própria história, os intelectuais se esforçam para achar o

caminho, senão correto, menos danoso, para textualizar estas histórias, tarefa que nos torna

vulneráveis a todos os perigos, e no qual nossas melhores intenções podem tornar-se nossas

piores inimigas. ‘ Como notou Mary Pratt, em Os olhos do Império(1999) crítica literária

combativa, seria necessário antes de tudo, estabelecer um contexto dialógico entre estas

diferentes textualidades – a nossa, letrada e a deles, oral, dominada - num território no qual os

intelectuais momentaneamente abrissem mão de seu lugar de autoridade. Ao mesmo tempo,

este intelectual teria que se manter alerta para a intrusão de dimensões idealizadas, que

colocam no discurso dos grupos socialmente iletrados ou desprovidos do controle dos

registros escritos, uma exigência de pureza e originalidade, no fim das contas mostrando sua

incapacidade de abdicar do controle sobre o outro.

No mundo globalizado das culturas de massas e no qual, ao mesmo tempo, as utopias

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universais se mostraram grandiosas ou autoritárias demais para dar conta dos desafios teóricos

e expectativas sociais provenientes da ascensão de movimentos políticos fragmentados e suas

agendas particularizadas, nos vemos obrigados a repensar na cultura a partir de enfoques

menos abrangentes, em abordagens que incluam o não-normativo, o informal e o provisório e,

sobretudo, nos conscientizarmos do caráter parcial, não-sintetizável e não-harmônico das

ações culturais. Ao enfocar alguns dos desafios que hoje se defrontam intelectuais e agentes

culturais que pretendem trabalhar com grupos populares, minha intervenção tem como

objetivo enfatizar a importância da adoção de conceitos menos globais e plataformas de ação

social menos idealizadas na construção de narrativas sociais híbridas e mais democráticas.

As produções narrativas contemporâneas indiciam, pelo seu caráter heterogêneo e

pela apropriação de diferentes linguagens e elementos culturais, nossa inserção num momento

histórico marcado pela multiplicidade, que se faz presente não apenas nas manifestações

literárias, mas em todas as instituições culturais e sociais. Tal situação tem gerado o

apagamento das fronteiras que limitavam os modelos literários canônicos, as linguagens e os

referentes, os quais não podem mais ser considerados exclusivos de determinado campo,

sendo necessário, para a abordagem dessas produções, o auxílio de categorias pertencentes a

diferentes áreas de estudo.

Algumas dessas narrativas mantêm-se fiéis aos postulados modernos, outras se incutiram

no nebuloso universo da pós-modernidade, pois já não respondem aos ideais de emancipação

do homem por meio do conhecimento e não vislumbram o progresso como meio e fim da

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ação humana. Junto a isso, tem-se observado que modelos tradicionalmente ficcionais são

contaminados por recursos documentais, provocando uma série de indagações críticas sobre

as possíveis motivações do emprego de dados históricos, políticos e sociais na construção da

narrativa.

Blanka Vavakova (1988: 107) considera que essa nova situação, provocada pelas

mudanças da suposta passagem da modernidade para a pós-modernidade, teria por

conseqüência a emergência de narrativas provenientes de grupos subalternos, por meio das

quais apresentam sua versão da história, “são as lutas de libertação nos países colonizados, os

movimentos nacionalitários, os das mulheres e das minorias culturais que testemunharam, uns

atrás dos outros, da existência das suas histórias particulares”.

Dentre essas narrativas, o gênero testimonio destaca-se, conforme Mabel Moraña (1995),

pela comunicação de conteúdos e de problemáticas coletivas, fundamentalmente das classes

subalternas, as quais sofrem constantemente com a exclusão cultural, social e histórica. Por

ser uma forma narrativa de produção contemporânea, já estabelece indefinições sobre sua

natureza, as quais são intensificadas no momento em que folheamos a primeira página do

livro, e vislumbramos que o protocolo nos informa ser uma narrativa que tem a pretensão de

apresentar fatos “reais”, partindo do olhar de um sujeito, muitas vezes, marginalizado.

A possibilidade de ocupação de um espaço no mundo privilegiado da escrita e da literatura

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por parte dos sujeitos periféricos, além de responder à situação favorável gerada pelas

mudanças culturais, é resultado de muitas lutas e de reivindicações, pois, segundo Hugo

Achugar, o espaço na escrita representa o poder de mostrar a sua versão da história e de

questionar as imposições, a situação social, política e cultural, sendo, por isso,

un espacio discursivo donde se representa la lucha por el poder de aquellos sujetos sociales que cuestionan la hegemonía discursiva no de los letrados en si, sino de los sectores sociales e ideológicos dominantes y detentadores del poder económico, político, cultural y social que han controlado históricamente la ciudad letrada, (1992:41).

É uma tentativa de recuperar, mostrar e denunciar episódios que marcaram a história e a

vida dos sujeitos envolvidos, principalmente os subalternos, estruturados a partir de sua

perspectiva, possibilitando o conhecimento da versão da história de quem não teve voz junto à

oficial.

O declarado envolvimento do sujeito com a situação social, cultural e histórica, associado

à preocupação com o aspecto documental da narrativa, resulta insuficiente para abordá-la

apenas sob o aspecto literário, gerando a necessidade de incorporar categorias da história,

sociologia, antropologia, psicanálise, convergindo, assim, diferentes áreas de estudo sobre um

mesmo objeto, a fim de auxiliar na aproximação crítica , já que o testimonio literário parece

ser produto da hibridez de elementos narrativos heterogêneos. Mabel Moraña, salienta esse

aspecto, definindo o gênero como

entrecruzamiento de narrativa e historia, la alianza de ficción y realidad, la voluntad, en fin, de canalizar una denuncia, dar a conocer

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o mantener viva la memoria de hechos significativos, protagonizados en general por actores sociales pertenecientes a sectores subalternos, (1995:488).

O referido entrecruzamento existente na narrativa testemunhal ocasiona confrontos

críticos, principalmente quando se tenta definir o gênero, pois cada intelectual parece ressaltar

um determinado aspecto como fundamental para o testimonio. Marc Zimmerman (2004),

reforça o aspecto da verdade dos eventos históricos, contudo, não espera que o testemunhante

apresente os fatos tal qual como ocorreram, mas uma das várias versões referentes àquele

evento. Conforme Zimmerman, “ellos son siempre imparciales; ellos nos dan ciertas

dimensiones de la verdad, siempre a expensas de otros. Cada suceso historico envuelve

múltiples perspectivas, múltiples posiciones supeditadas”. Muitos críticos, assim como

Zimmerman, consideram que a possível infidelidade à “verdade” não interfere na manutenção

do compromisso documental, já que o testemunho se caracteriza pela possibilidade de

conhecer uma versão, e não uma verdade definitiva.

Com o fim de poder defini-lo e compreender a origem de suas problemáticas, faz-se

necessário traçar a trajetória do gênero, o que vai se dar num contexto turbulento, marcado

pela emergência de ações revolucionárias, movimentos políticos e sociais. Parte daí o sentido

de o gênero aparentemente visar a representação de lutas protagonizadas geralmente por

sujeitos das classes médias e populares e da necessidade destes posicionarem-se contra a

situação vivida. Desenvolveu-se primeiramente em Cuba devido ao triunfo da Revolução

Cubana, quando começam a emergir narrativas relacionadas ao envolvimento de sujeitos

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subalternos nesse movimento. Sua consolidação enquanto gênero literário independente

ocorre em 1970, quando a instituição cubana Casa de las Américas inclui essa categoria no

concurso literário promovido com o fim de premiar categorias canonizadas como o romance,

conto, biografia, incentivando a produção do testimonio.

No mundo hispano-americano, portanto, o testimonio encontrou terreno fértil para seu

desenvolvimento, o que não ocorreu de igual maneira no contexto brasileiro, no qual foi

incorporado só recentemente sob o termo testemunho, sem que ainda exista uma visão muito

clara de quais obras o concretizariam e como poderia ser definido criticamente. Destacam-se

principalmente os estudos de Márcio Seligmann-Silva, cuja abordagem parte da perspectiva

do testemunho europeu, sobretudo o que está ligado aos relatos dos terrores dos campos de

concentração. A fim de justificar seu posicionamento, ele estabelece algumas diferenças entre

as particularidades do testemunho latino-americano e do europeu.

A dissonância estaria presente já no uso dos termos: o testimonio refere-se ao relato latino-

americano e zeugnis ao alemão. Segundo ele, em razão da carga semântica que possuem, o

testimonio parte de experiências históricas de ditadura, exploração, repressão, procurando

destacar o aspecto exemplar dessas vidas, a fim de mostrar a contra-história, um ponto de

vista divergente, apresentado por um sujeito que representaria um grupo social. Seligmann-

Silva (2002) salienta que o testimonio acaba tornando-se anti-estetizante por sua preocupação

excessiva com o valor documental. E, ainda, assinala como principais elementos de sua

natureza a presença, em alguns casos, de um mediador letrado, de marcas da oralidade, do

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caráter exemplar, não-fictício, elementos que reivindicam a autenticidade e veracidade

daquele discurso.

O termo zeugnis, por sua vez, é atribuído ao relato que parte das questões da memória ,

apoiando-se, para isso, em estudos de psicanálise, teoria da história e da memória . Destaca-se

a questão das marcas profundas deixadas pela catástrofe e o forte trauma sofrido por um

sujeito que testemunha situações singulares. Nesse discurso perpassa a literalização e a

fragmentação, sendo que o depoimento teria a intenção de reunir os fragmentos para dar-lhes

nexos, enfatizando a subjetividade do depoente.

Seligmann-Silva, em Zeugnis e Testimonio(2001) estabelece diferenças entre os dois tipos

de relato, entretanto, a questão parece ser, na verdade, uma diferença de perspectivas e

referenciais teóricos a partir dos quais se realizam suas respectivas abordagens. Ambos

necessitam da ativação da memória, porque remetem a um momento histórico determinado,

vivido por um sujeito empírico que reconstitui o passado a fim de apresentar sua versão,

procurando conferir um caráter documental à narrativa.

A aproximação partirá de questões relacionadas ao fato de ser um gênero narrativo que

carrega em si o caráter de um outro olhar sobre um fato histórico: o do subalterno . É, assim,

um espaço para a voz de grupos que viveram e presenciaram acontecimentos na posição de

vencidos/ vítimas e que, dessa maneira, estabelecem uma conflituosa relação com o mundo

hegemônico.

Com a pretensão identificar e compreender os problemas que a narrativa testemunhal

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apresenta, resulta imprescindível fazer um levantamento dos principais aspectos que

estimulam as discussões entre os críticos, a começar pelo processo de produção. Neste caso,

deve-se considerar o lugar subalterno que, em muitos casos, o depoente ocupa na sociedade,

portanto, distante da cultura hegemônica, alicerçada principalmente no domínio da escrita.

Então, como esse sujeito apodera-se dessa ferramenta que não faz parte da cultura de seu

grupo? Para se chegar a alguma resposta é necessário considerar cada produção testemunhal a

partir de suas particularidades. Algumas apresentam a figura de um mediador letrado, o qual

orienta a elaboração do relato e, por pertencer a outra esfera cultural, serve como instrumento

de validação da obra. Mas também há testemunhos sem o mediador, nos quais esse sujeito tem

um certo domínio da escrita e, portanto, tem autonomia para circular, mesmo que

timidamente, pelos espaços hegemônicos, passou a ter condições de responder pela sua

escrita.

A mediação de um letrado, quando presente, parece servir como processo que possibilita a

regularização do testemunho literário para sua circulação como narrativa subalterna

normatizada pelo registro escrito, já que este supostamente domina o código hegemônico da

escrita, fazendo com que, dessa maneira, a obra assuma outra posição diante do cenário

intelectual, pois conforme Roxanne Rimstead (2000), a escrita faz parte de um universo

privilegiado, o hegemônico. Mesmo em testemunhos sem mediador, é comum alguma nota ou

introdução realizada por uma autoridade letrada, o que reforça a validade daquele discurso

frente ao leitor habituado com a produção literária considerada hegemônica.

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Por suas condições, o processo de mediação coloca várias indagações, dentre elas a que diz

respeito ao tipo de relação estabelecida entre o letrado, pertencente ao campo hegemônico, e o

testemunhante, ou subalterno. De que forma isso se apresenta no testemunho e qual seria o

interesse em narrativas provenientes da periferia? O que representa a mediação de um relato

de origem subalterna realizada por um sujeito pertencente à esfera letrada? Um possível viés

de resposta nos coloca diante da relação entre as categorias de hegemonia e subalternidade

formuladas por Gramsci. Rimstead refere-se ao ato de um letrado transcrever uma história

oral para o domínio da escrita como indício de uma relação que pode estar permeada por um

acordo político e social.

Nessa relação, cabe ao mediador formalizar a obra, procurando preservar o discurso para

que não perca as marcas lingüísticas que identificam o enunciador, podendo, ainda, intervir

em vários momentos do testemunho, como na transcrição, seleção, ordem e no

direcionamento dos depoimentos. Há, ainda, a exigência de o subalterno obedecer à lógica

imposta pela cultura hegemônica, que de certa forma interfere na estratégia discursiva, já que

para esse discurso circular e ser aceito no espaço hegemônico é necessário que se adapte as

suas normas e convenções.

Por outro lado, a transformação do discurso oral em escrito evidencia a tentativa de

adequação ao discurso hegemônico. Por meio da escrita o subalterno procura integrar-se ao

espaço que historicamente não lhe pertence, utilizando, para isso, os recursos do meio no qual

procura inserir-se. Posiciona-se, a partir de então, reforçando sua relutância à condição de

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excluído, ignorado, demarcando sua identidade frente à cultura dominante. Entretanto, mesmo

com a aceitação do depoimento, este não têm poder para mudar sua condição histórico-

político-social de subalterno, nem é capaz de apagar as injustiças e violências sociais que

sofre/ sofreu. Frente à história, sua posição permanece a mesma.

Além disso, a mediação, quando presente, pode produzir um efeito de ambigüidade

autoral, pois se trata de um elemento diferencial, porque nesta modalidade narrativa parece

não haver um autor propriamente dito, como ocorre nas obras canônicas. Isso gera

ambigüidade, tendo por resultado uma certa dúvida sobre qual seria a entidade de maior

autoridade no livro. A partir do momento em que o letrado interfere no discurso do

subalterno, o discurso permanece sendo considerado de autoria deste, ou passa a ser do outro?

Trata-se de um dos problemas mais discutidos pela crítica.

Ao subalterno é atribuído o papel de fonte da matéria narrada, que o mediador organiza de

acordo com as exigências da escrita, apoderando-se do discurso alheio para fazê-lo circular

como literatura de sua autoria, o que fica evidente quando se verificam os dados

bibliográficos de certos testemunhos, nos quais o nome do mediador consta como se este fosse

o autor. Já no caso de o mediador não estar presente, a autoria fica a cargo do testemunhante:

autor e narrador do relato. Essa condição parece dar maior liberdade na seleção e elaboração

da narrativa, o que também pode gerar, por sua vez, uma maior distorção dos fatos, pois não

há quem oriente no processo de formulação do relato.

As questões referidas até o presente momento assinalam a complexa relação existente entre

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hegemonia e subalternidade, fundamental para a compreensão do processo de produção e

circulação do testemunho. Ao centrarmos nossa aproximação na elaboração do relato,

confrontamo-nos com outro problema referente à memória que, associada à subjetividade, é

assinalada como um dos principais fatores responsáveis pela ficcionalização dos

acontecimentos por parte do narrador.

A ficcionalização responderia aparentemente a duas motivações: por um lado, à tentativa

de o depoente interceder pelo grupo do qual fez/faz parte, o que teria como conseqüência a

construção de uma imagem por vezes idealizada ou distorcida do que se relata, e por outro, à

carga subjetiva com que esse gênero trabalha, pois o depoente, quase sempre, além de ter

vivido aqueles episódios, sofreu diretamente suas conseqüências. Logo, em ambas situações

há um intenso envolvimento emocional que torna o relato mais pessoal, e dramático, em

oposição às intenções da história, que tenta distanciar-se para ter uma versão próxima à

imparcialidade ou uma que esteja de acordo com as ideologias e interesses dos grupos

hegemônicos.

Parece inviável ao testemunhante expressar e organizar fielmente numa narrativa os

eventos que viveu, levando-se em conta que a emoção e o abalo são fatores de interferência e

que talvez bloqueiem ou alterem a rememoração. Além disso, a memória é o dispositivo

responsável pela preservação das experiências que serão transferidas para a narrativa.

A natureza singular e subjetiva da memória é admitida pelos críticos como um fator

inseparável do testemunho. Elizabeth Burgos (2002), ao defender-se das acusações feitas por

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David Stoll quanto à suposta infidelidade que marcaria a história do testemunho mediado por

ela, Me llamo Rigoberta Menchú..., salienta a natureza ambígua da verdade da narrativa,

gerada pela memória, “Si lo que le confiere el carácter de veracidad a un relato es su arraigo

en lo vivido y si, al mismo tiempo, la experiencia vivida oscila entre la verdad y lo

imaginario, entonces la verdad no puede ser sino ambivalente”. Para complementar seu

argumento, Burgos cita Primo Levi, “la memoria humana es un instrumento maravilloso pero

engañoso”. Justificando, com isso, a impossibilidade de total fidelidade aos acontecimentos

históricos.

Chama a atenção que justamente, dentre os critérios que Casa de las Américas destacou

para o concurso do gênero testemunho, estejam a vinculação com o caráter de verdade e

utilidade. Tais valores, ao que tudo indica, foram alterados com o tempo. Conforme Nicasio

Urbina (2001), o valor desse tipo de narrativa estaria na verdade dos acontecimentos narrados,

mas em sua representatividade e importância para o entendimento da época, do lugar e das

circunstâncias que envolvem o relato. Ao encontro disso, María del Carmen Pérez Cuadra

(2001) considera que o que importa são as repercussões que essa narrativa teria nos níveis de

sociabilidade de uma comunidade determinada.

A narrativa testemunhal interessa, pois, enquanto representação realizada por um

subalterno, na medida em que parece colocar em evidência sua condição frente a determinado

momento histórico. Para certos grupos, esse parece ser o elemento de valor do gênero, pois

tenta resgatar, por meio de seu olhar e sua experiência vivida, um dos diferentes focos sobre a

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história. Contudo, para que essa narrativa adquira tal sentido, é necessário conhecer o

contexto histórico-político-social do grupo representado pelo testemunhante, pois aquele

contexto interfere diretamente no sentido de suas vivências e, sobre as quais a narrativa passa

a ter relevância, mesmo que ela possa apresentar uma certa dimensão fictícia.

Pode-se afirmar, então, que conhecimento das condições socio-históricas, integrado à

utilização de recursos que revelem ou criem efeitos de uma suposta realidade, na qual o

sujeito deve estar inserido ou a ela ligado, interferem diretamente na aceitação do discurso

como relato autêntico. Um dos recursos empregados para esse fim é o registro das marcas da

oralidade, isso porque as particularidades de um discurso revelam muito sobre a identidade do

sujeito, ainda mais quando se trata da palavra falada.

Conforme Hugo Achugar(1992), o testemunho, quando mediado, pressupõe a formulação

de dois textos, que são definidos como primário ou proto-testemunho (oral) e o definitivo ou

testemunho escrito. A exigência de transformação do enunciado oral em registro escrito

implica algumas alterações no sentido do discurso final, já que oralidade e escrita apresentam

estruturas lingüísticas, textuais e pragmáticas diferentes. Dentre elas, como afirma Walter

Ong, ao tratar das questões relacionadas à transformação da cultura oral em escrita, cabe

destacar a lentidão do discurso escrito, o que possibilita a análise e a reflexão sobre o mesmo,

podendo ter, por conseqüência ou efeito, o distanciamento, a artificialidade e a

descontextualizarão. O discurso oral opõe-se ao escrito por ser efêmero, rápido, por não

obedecer a normas específicas, por exigir que seja contextualizado e pressupor a presença de

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um ouvinte.

A escrita pode ser considerada fruto de um processo planejado, passível de revisão,

supostamente produz um discurso construído sob a égide de normas e expectativas a serem

cumpridas. A fala, por sua vez, guia-se pela emoção, pelo estado psicológico do sujeito, além

de revelar, pela tonalidade da voz, sentimentos e digressões, e traduzir o caráter imprevisível

do discurso oral. Considerando tais distinções, como agir diante da declaração de que um

gênero literário canonizado, portanto escrita, seria capaz de transmitir de maneira fiel e

autêntica as emoções formuladas por uma narrativa de natureza oral? A impossibilidade de

transpor integralmente a fala para a escrita coloca em questão o caráter autêntico do relato,

fruto da impossibilidade de o discurso inicial (oral) guiar-se pela estrutura da escrita, porque

ela não pode transmitir elementos característicos da voz, como os gestos, as expressões

faciais, a entonação da voz, que se perdem no uso da palavra escrita e do papel impresso.

Finalmente, pode-se dizer que o testemunho, pela sua preocupação com a preservação da

linguagem, pelo seu caráter de denúncia e pela condição social e humana do depoente,

permite sua associação à Literatura Marginal, pois este movimento se concentra na

representação da realidade dos grupos sociais que estão à margem da sociedade, destacando-

se nela a temática da violência. Essa literatura é uma forma de chamar a atenção sobre o que

acontece no mundo periférico, de expressar a revolta, o descaso, a falta de perspectivas sociais

e humanas e a luta pela sobrevivência. Conforme Fernando Villarraga (2005), a

autodenominada Literatura Marginal apresenta um caráter problemático por misturar a

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vontade documental, a força do testemunho e a ficcionalização das experiências vividas pelos

próprios autores marginais. Esses, ao apresentarem tal posicionamento, estariam assumindo

publicamente uma identidade artística, cultural e social diferenciada e estabelecendo um

compromisso com determinada realidade.

A preservação das marcas de oralidade, pelo suposto tom de veracidade que imprime ao

discurso, é um recurso imprescindível também na Literatura Marginal, pois é por meio da

linguagem que se identifica a origem social do autor, do depoente ou, ainda, do grupo

representado, gerando o efeito de veracidade, o que não exige necessariamente o

compromisso de apresentar os fatos tal como ou com quem ocorreram. Segundo Achugar:

La permanencia o huella de la oralidad permite generar en el lector la confianza de que se trata de un testimonio auténtico, reafirmando de este modo la ilusión o la convención del propio género, o sea que está frente a un texto donde la ficción no existe o existe en un grado casi cero que no afecta la verdad de lo narrado, (1992:29).

Mas o que caracterizaria um discurso genuinamente autêntico? Creio que frente ao

testemunho existe a pretensão de produzir tal efeito, pois o subalterno, no momento em que

passa a responder à lógica da escrita, portanto, à lógica da hegemonia, ajusta seu discurso, de

forma que pareça não responder mais a sua condição cultural de origem, o que aparentemente

reduz o grau de autenticidade. Por isso, a transposição do discurso para a escrita preocupa-se

em preservar as marcas que manteriam aquele discurso escrito relacionado ao testemunhante.

Tal situação leva a crer que a autenticidade estaria, de certa forma, nos fatos narrados, pois,

estes sim, seria resultado das experiências empíricas, do posicionamento social e do olhar que

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o sujeito lança sobre o espaço e ao grupo do qual faz parte.

Essa forma narrativa seria uma tentativa de expor e preservar um passado vivido por um

subalterno? Ou responderia à curiosidade de conhecer histórias chocantes, oriundas do lado

obscuro da sociedade, marcado principalmente pela violência? Tem objetivo comercial?

Social? Político? Crítico? Nenhuma das considerações parece ser passível de exclusão ao

tentar compreender a natureza dessa narrativa, pois, pela diversidade de mediações que

participam de sua construção discursiva, este gênero não depende apenas das intenções do

testemunhante.

O testemunho soma interesses do subalterno (testemunhante), do mediador, quando

presente, da indústria editorial, pois o livro precisa passar por seu crivo, que é muito

significativo, para ser posto em circulação. Parece ser, portanto, uma forma narrativa que

nasce da junção, conseqüentemente dos confrontos, de interesses, de autores, de problemas e

de linguagens: por isso, as perspectivas de estudo, de abordagens, de debates são múltiplas,

evidenciando um espaço de convergências e conflitos. Em razão de tais considerações, o

testemunho literário permanece situado num terreno movediço, repleto de interrogantes, com

problemáticas que são inerentes a essa forma narrativa e que acabam tornando-se tão próprias

do gênero, que passam a ser o que, justamente, o caracteriza o testemunho enquanto forma

narrativa independente.

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2.2 O conceito de mexicanidade presente na obra

Líderes zapatistas mascarados clamando por Tierra y libertad! mulheres indígenas com

tranças carregando pesados fardos de flores ou milho às costas; os sofridos acordes de um

bolero traduzindo a dor de amores perdidos e interrompidos; altares e demonstrações

exaltadas de fé à Virgem de Guadalupe, paisagens desérticas, constituídas por magueys,

homens com sarapes e sombreros. Todos esses elementos, e muitos mais, são responsáveis até

hoje pela formação de um imaginário popular do tipo caracteristicamente mexicano.

Nessa representação está a construção de uma identidade nacional, em grande parte

forjada entre as décadas de 1920 e 1940, quando o México foi assolado por discussões

públicas relativas a um novo projeto de nação. Cabia aos governos pós-revolucionários

redefinir tais conceitos, como “povo”, “cultura popular”, “identidade nacional”,a partir dos

“autênticos” signos de uma suposta “mexicanidade”.

A Revolução de 1910 trouxe algumas redefinições das imagens realizadas no México.

A ebulição pela qual passava a sociedade foi registrada em documentários que pouco a pouco

distanciaram-se do mero aspecto da curiosidade espetacular, para atingir uma simbiose do

realizador com os movimentos sociais. Essas imagens adquiriram, com o tempo, um caráter

emblemático de um México revolucionário.

Era um período de grande efervescência política, e aos governos revolucionários

interessava o registro de imagens que propagassem a revolução e se opusessem às tradicionais

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imagens ligadas ao regime porfirista. Pouco a pouco, o poder revolucionário, já se

institucionalizando, domesticou tais imagens, convertendo-as quase em uma propaganda

política de seus governos paternalistas.

A Revolução de 1910 tinha como desafio incorporar o povo, ou o conceito que dele se

tinha então, num processo de reconstrução nacional. Era necessário romper com a política

porfirista que construiu um país que não previa a inclusão da grande maioria indígena e

mestiça no seu projeto nacional. Dessa forma, o México presenciou, entre os anos 20 e 40, um

grande debate interno que mobilizou seus intelectuais, artistas e políticos em todas as esferas

de produção de cultura. Por toda a parte e por todos os meios de comunicação – fosse rádio,

revistas, jornais, música, teatro, dança, artes plásticas ou cinema – a tônica do momento era

dar conta da discussão do que seria o “tipicamente mexicano”, “o povo mexicano”, a

“identidade nacional” construída nos valores de uma “autêntica” mexicanidade.

Desse amplo fórum de debate nacional participavam não somente a intelectualidade

mexicana como também muitos ilustres estrangeiros que, atraídos pelos novos ventos

revolucionário-populares soprados pela Revolução Mexicana, deram sua contribuição nessa

reconfiguração de identidade. Por lá passaram André Breton, os fotógrafos Tina Modotti,

Henri Cartier-Bresson e Edward Weston, os cineastas Eisenstein e Luis Buñuel, a dançarina

Isadora Duncan e o revolucionário russo Leon Trotsky (que, nos anos 30, conseguiu asilo

político no governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940) quando perseguido pela política de

Stálin).

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Muito do imaginário popular em torno do que se considera a figura típica mexicana,

ainda

hoje, foi construída entre as décadas de 1920 e 1940, período em que tais discussões estavam

presentes em todos os âmbitos da sociedade, não só nos meios acadêmicos, como também no

universo da cultura popular, nos discursos e projetos políticos e nos meios de comunicação de

massa. O mexicano ia sendo construído nas artes plásticas, na fotografia, no cinema, assim

como na literatura, na música,no teatro popular.

O discurso nacionalista dos governos posteriores à Revolução de 1910 tinha como

objetivo o povo mexicano, e agora tentava abarcar, diferentemente da época porfirista, o

conceito de categorias marginalizadas: os pobres, as maiorias. Mas, como se sabe, as maiorias

são diversas, heterogêneas, complexas em suas alteridades e o projeto de construção de uma

identidade nacional pode ser simplificador, reducionista, homogenizador. Ao mesmo tempo, a

construção de estereótipos é um processo domesticador de conceitos de diversidade e

diferenças, ou seja, ao se elegerem os signos “oficiais” da mexicanidade no pós-revolução,

trabalhava-se ao mesmo tempo no âmbito do “governável”, do controle, da domesticação.

Instituía-se “o mexicano” ao mesmo tempo em que se institucionalizava o processo

revolucionário, num projeto em que os conceitos de nação, governo revolucionário e povo

estavam intimamente imbricados. Muitos artistas colaboraram com os governos

revolucionários: Diego Rivera, com seus inúmeros murais pintados em prédios públicos, e

também Manuel M. Ponce, músico de formação erudita que se dedicou a buscar nas raízes

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mais profundas das tradições folclóricas de seu povo – muitas vezes identificado com o

indígena – a reconfiguração de uma identidade nacional, tendo seu trabalho sido adotado em

1916 pelo programa nacionalista oficial.

A formação de tais estereótipos ocorreu junto ao crescimento e consolidação dos

meios de comunicação de massa, como o teatro de revista nas duas primeiras décadas do

século XX, e o rádio e o cinema nos anos 30 e 40. Também importante nesse processo foi a

visão do mexicano fornecida pelo olhar estrangeiro construído por aqueles que estiveram no

México identificados com os objetivos da Revolução. Henri Cartier-Bresson exerceu

influência sobre a obra de Manuel

Álvarez Bravo, assim como Tina Modotti. Eisenstein colaborou de maneira decisiva na

configuração dos elementos de mexicanidade por meio de seus trabalhos e diálogos com

Diego

Rivera, Gabriel Figueroa e outros intelectuais mexicanos. Tudo formou um canal de mão

dupla no qual as contribuições foram de lado a lado, definindo caracteres e ressignificando

elementos e valores.

Nesse amplo painel de debate, discursos colocaram-se de acordo com os interesses dos

grupos sociais existentes naquele momento. Antagônicos e conflituosos foram os discursos

agrupados em torno de um projeto indigenista, de um lado, e hispanista, de outro. Houve

também um início de viés latinoamericanista, que, logo, afinou-se com a proposta norte-

americana de panamericanismo.

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Para os indigenistas, o sentido da mexicanidade estava no reconhecimento de suas

tradições ancestrais. Por isso, reivindicavam um passado indígena, brutalmente negado pela

chegada dos espanhóis. O indígena foi tomado como elemento que carregava em si o que de

mais autêntico havia na cultura mexicana. Os meios de comunicação não cansavam de

divulgar a imagem de um indígena heróico, valente, virtuoso, romantizado e completamente

distante da realidade vivida pelos povos indígenas daquelas décadas. Mas, ainda assim, como

integrá-lo no projeto de construção da identidade nacional?

O certo é que, para tais defensores, o sentido da mexicanidade passava obrigatória e

essencialmente pelo resgate da figura do indígena, fosse lá de que indígena estivessem

falando. A literatura, a música popular, o teatro e o cinema expuseram à exaustão suas

imagens do indígena, o“elemento tipicamente mexicano”.

Como exemplo desta busca pela mexicanidade, o cinema mergulhou nesse projeto a

fim de discutir o mexicano por meio do resgate da figura do indígena. Grande parte das

companhias de cinema fundadas nessa época tiraram seus nomes da cultura pré-hispânica:

Aztlán Films, Popocatépetl Films, QuetzálFilms. Nas telas, o indígena pertencia a um passado

mítico, heróico, romântico e distante, no qual não havia elementos da contemporaneidade ou

da marginalização social em que viviam.

Paralelamente à imagem do indígena romantizado pela literatura e pelo cinema, no

imaginário popular a idéia do indígena contemporâneo ainda era o de selvagem, sujo e

desarrumado. No teatro de comédias era muito comum esse estereótipo, e também dessa

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maneira ele se foi incorporando, pouco a pouco, no projeto de reconstrução de identidade

nacional. Assim que chegavam à cidade,

os indígenas logo percebiam que uma desvalorização das sandálias e das tortillas de milho,

símbolos de inferioridade social por associarem-se à cultura indígena. Tratavam logo,

portanto, de trocar as sandálias por sapatos e as tortillas de milho por tortillas feitas de trigo.

Os grandes legados da civilização mexicana, para os hispanistas, teriam sido a própria

língua castelhana e a religião católica, expressa no fervoroso culto à Virgem de Guadalupe.

Politicamente, os hispanistas estiveram mais ligados aos estratos mais conservadores da

sociedade, muitas vezes identificados com as forças políticas que sustentaram o porfirismo e

ao discurso da Igreja Católica. Para muitos, ser mexicano era ser católico, ou seja, a religião

herdada dos espanhóis trazia em si mesma o sentido primeiro do “ser mexicano”, o que

reforçava o argumento conservador ligado ao discurso hispanista.

As populações e suas capacidades criativas seguiram produzindo e reproduzindo

novos signos e sinais da mexicanidade. A construção da identidade nacional mexicana forjada

nessas décadas já fazia parte do imaginário popular, não só do povo mexicano, mas

internacionalmente, através dos referidos estereótipos disseminados pelos meios de

comunicação de massa. Porém, muito do que se inscreve na produção cultural desse país tem

ainda matriz nesses anos pós-revolucionários em que a(s) identidade(s) era(m) forjada(s) a

partir de um modelo de nação muito bem projetado e definido.

O mexicano traz incrustada em sua alma a contradição. Ele não quer ser nem índio,

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nem espanhol. Por isso o mexicano e a mexicanidade se definem como ruptura e negação.

. A Revolução Mexicana e o Movimento Zapatista também se constituíram em

tentativas de reconquistar o passado, assimilá-lo e torná-lo vivo no presente. E esta vontade de

regresso, fruto da solidão e do desespero, é uma das fases da dialética da solidão e da

comunhão, da separação e da reunião, do ‘fechado’ e do ‘aberto’, que parece permear toda a

história do México. Otávio Paz, em sua obra O Labirinto, afirma:

Nós, mexicanos, não criamos nenhuma forma que nos expresse. Portanto, a mexicanidade não pode se identificar com nenhuma forma ou tendência histórica concreta: é uma oscilação entre vários projetos universais, sucessivamente transplantados ou impostos e, todos, hoje, inúteis. A mexicanidade, assim, é uma maneira de não sermos nós mesmos, uma reiterada maneira de ser e viver outra coisa. Em suma, às vezes uma máscara e outras vezes uma súbita determinação de procurar a nós mesmos, um repentino abrir o peito para encontrar nossa voz mais secreta.(Paz, 150)

Com esta afirmação é possível concluir que a identidade mexicana é a própria história

desse povo. O que os define, latino-americanos em geral, é o fato de não serem eles mesmos

e de estarem sempre num exílio interno. O caráter do mexicano, como o de qualquer povo, é

uma ilusão, uma máscara; e, ao mesmo tempo, é um rosto real. Nunca é o mesmo e é sempre

o mesmo. É uma contradição perpétua: cada vez que o mexicano afirma uma parte de si, nega

a outra. a ‘alma’ latino-americana também é carnavalesca, polifônica e utiliza a paródia como

técnica de (re)criação. São acima de tudo, povos rituais.

Enfim, a realidade latino-americana é mitológica. Ela é regida por uma lógica da

contradição. Pares opostos se congregam e comungam no ritual extremo da existência vital.

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Ser e não-ser, origem e máscara, criação e destruição são elementos que garantem a

perenidade de sua diferença.

Em relação a mexicanidade, em Hasta no verte Jesús mio, Jesusa Palancares descreve

um acontecimento impressionante, no qual a festa se une à religião. É a descrição do enterro

de um menino. O enterro como cerimônia é, no catolicismo, a simbologia de devolver a Deus

o que é seu, já que o ser humano não é dono de sua alma, nem de seu destino. Ao contrário da

cultura ocidental, no México a presença da morte não assusta, porque não é considerada como

o fim da vida, mas como um passo além, o degrau seguinte na escala da existência. A morte

abre caminho à outra direção da existência humana. Por isso, o enterro parece ser um pretexto

para diversão e celebração à breve vida por meio de uma grande festa. Assim foi a cerimônia

fúnebre daquele menino, alegre e festiva, pois não se pode chorar para não tirar a glória do

defunto. O dia termina com bebedeira e tiros ao ar. Obviamente, tal modo de pensar e tratar a

morte na cultura mexicana está profundamente relacionada à cosmovisão precortesiana,

porque para os antigos mexicanos a oposição entre vida e morte não era evidente. Este

tratamento da morte faz parte da essência da mexicanidade: a coexistência do cristianismo e

do pensamento asteca na mentalidade do povo. Poniatowska apresenta a mexicanidade em sua

obra através de homens muito machos, festas, religiosidade e falta de pavor ante a morte.

A representação de Deus na obra de Poniatowska manifesta-se através da aparição do

Menino de Atocha. O Jesús de Atocha, chamado o Menino, tem a aparência de um

jovenzinho, caracterizado com uma cestinha na mão. Pode aparecer como um menino de seis

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anos ou como um jovem de uns vinte. Onde chega, faz maravilhas. Jesusa conta a história de

uma mulher sentenciada à morte, liberada de seu destino pelo Menino de Atocha. Otávio Paz

destaca que os mexicanos adotaram a imagem de Deus com o aspecto de uma pessoa jovem.

Talvez o Menino de Atocha seja um eco distante da deidade asteca Xipe Tótec, já que a

imagem deste deus é semelhante ao modo mexicano de conceber o Deus cristão. Entre as

tribos nahuatl, Xipe era uma deidade representada por um menino, o deus da fertilidade e da

flora, seu símbolo era o milho. Sendo assim, o cestinho na mão do Menino pode ser uma

alusão à Xipe.

A voz de Jesusa fala de modo inquietante, com uma mistura de cultura popular e

delírios religiosos.”Esta es la tercera vez que regreso a la tierra, pero nunca había sufrido tanto

como em esta reencarnación ya que em la anterior fui reina”. Ela se apresenta na primeira

linha desta obra como uma pessoa transtornada, mas não continua assim, porque suas

fantasias dão lugar ao resgate da memória e com ela toda mexicanidade possível.

2.3 O resgate da memória através do testemunho

Para entender os questionamentos que envolvem a literatura testemunhal, faz-se

necessário detectar a possibilidade de recuperação da memória como artifício para a criação

estética e, especificamente para a narrativa literária contemporânea, permitindo a criação de

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um sentido para a “realidade” e de um novo “modo de narrar”, que permite que a memória

seja ficcionalizável como resposta aos discursos oficiais.

Ainda assim, podemos identificar temas comuns entre as diversas narrativas tais

como: violência, morte, solidão, referências à própria literatura e o processo criador, a voz do

excluído (marginal), entre outros. uma constatação que resume na afirmação de Paloma

Vidal que pensa o contexto latino-americano da literatura pós-ditatorial:

A questão central da nova geração não é mais como representar o trauma irrepresentável, mas como abordar uma realidade homogeneizada pelo consenso mercadológico, por um lado, e complexificada pela informação, por outro. Ainda assim, vemos emergir nela, de diferentes formas, vestígios do trauma das gerações anteriores, heranças de políticas de violência e exclusão que estabelecem continuidades perturbadoras com as décadas passadas, com o agravante de reinar um consenso sobre a impossibilidade de mudança. (VIDAL, 2005: 171).

Quando se trata da memória, constata-se que trabalhar com este conceito envolve um

campo transdisciplinar e vasto que se expande para os conceitos de identidade, lembrança,

esquecimento e testemunho.

Observa-se que não há uma bibliografia específica da área da literatura e que é um

termo amplamente estudado no campo da história a ponto de confundi-la com o conceito de

memória, o que torna o processo de pesquisa árduo e exige cautela.

Encontramos um conceito de memória em Michael Pollack (POLLACK, 1989: 3-15)

que se relaciona com a noção de construção de identidade individual ou coletiva, e,

simultaneamente, permite um processo contínuo de reconstrução dessas mesmas identidades.

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Dialogando com Halbwachs, Pollack diz que a memória passa por um processo de

“negociação” que irá conciliar “ a memória coletiva” e a memória do indivíduo. Sendo assim,

“para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus

testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e

que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança possa ser

reconstruída sobre uma base comum” (HALBWACHS, 1968:12). Identidade e memória são

fatos sociais, pois através do “trabalho de reconstrução de si mesmo o indivíduo tende a

definir seu lugar social e suas relações com os outros”. (POLLACK, 1989: 13).

Na abordagem durkheimiana, a ênfase é dada à força quase institucional. dessa

memória coletiva, à duração, à continuidade e à estabilidade. Assim também Halbwachs,

longe de ver nessa memória coletiva uma imposição, uma forma específica de dominação ou

violência simbólica, acentua as funções positivas desempenhadas pela memória comum, a

saber, de reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde

o termo que utiliza, de "comunidade afetiva". Na tradição européia do século XIX, em

Halbwachs, inclusive, a nação é a forma mais acabada de um grupo, e a memória nacional, a

forma mais completa de uma memória coletiva.

Numa perspectiva construtivista, não se trata mais de lidar com os fatos sociais

como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles

são solidificados e dotados de duração e estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa

abordagem irá se interessar portanto pelos processos e atores que intervêm no trabalho de

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constituição e de formalização das memórias. Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos

marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias

subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à

"Memória oficial", no caso a memória nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz

da empatia com os grupos dominados estudados uma regra metodológica5 e reabilita a

periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter

destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro lado, essas

memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira

quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A

memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe

conflito e competição entre memórias concorrentes.

Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias

marginalizadas é reconhecer a que ponto o presente colore o passado. Conforme as

circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro

aspecto. Sobretudo a lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre

ao presente, deformando e reinterpretando o passado. Assim também, há uma permanente

interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido. E essas constatações se

aplicam a toda forma de memória, individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos

grupos.

O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e

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inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião

para invadir o espaço público e passar do "não-dito" à contestação e à reivindicação; o

problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua

organização. Para que emergisse nos discursos políticos um fundo comum de referências que

possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável

para superar a simples "montagem" ideológica, por definição precária e frágil.

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do

passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos

conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre

coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs,

famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das

instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua

complementariedade, mas também as oposições irredutíveis.

Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em

comum, em que se inclui o território (no caso de Estados), eis as duas funções essenciais da

memória comum. Isso significa fornecer um quadro de referências e de pontos de referência.

É portanto absolutamente adequado falar, de acordo com Henry Rousso, em memória

enquadrada, um termo mais específico do que memória coletiva. Quem diz "enquadrada" diz

"trabalho de enquadramento". Todo trabalho de enquadramento de uma memória de grupo

tem limites, pois ela não pode ser construída arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer a

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certas exigências de justificação. Recusar levar a sério o imperativo de justificação sobre o

qual repousa a possibilidade de coordenação das condutas humanas significa admitir o reino

da injustiça e da violência.

À luz de tudo o que foi dito acima sobre as memórias subterrâneas, pode-se colocar

a questão das condições de possibilidade e de duração de uma memória imposta sem a

preocupação com esse imperativo de justificação. Nesse caso, esse imperativo pode se impor

após adiamentos mais ou menos longos. Ainda que quase sempre acreditem que "o tempo

trabalha a seu favor" e que "o esquecimento e o perdão se instalam com o tempo", os

dominantes freqüentemente são levados a reconhecer, demasiado tarde e com pesar, que o

intervalo pode contribuir para reforçar a amargura, o ressentimento e o ódio dos dominados,

que se exprimem então com os gritos da contra-violência.

O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido

pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número

de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais,

mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função

dos combates do presente e do futuro. Mas, assim como a exigência de justificação discutida

acima limita a falsificação pura e simples do passado na sua reconstrução política, o trabalho

permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência de credibilidade que

depende da coerência dos discursos sucessivos. Toda organização política, por exemplo -

sindicato, partido etc. -, veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma.

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Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente a não ser sob risco de tensões

difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem

mais se reconhecer na nova imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e no

de sua organização. O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade

individual e do grupo.

O filme-testemunho e documentário tornou-se um instrumento poderoso para

os rearranjos sucessivos da memória coletiva e, através da televisão, da memória nacional.

Vê-se que as memórias coletivas impostas e defendidas por um trabalho

especializado de enquadramento, sem serem o único fator aglutinador, são certamente um

ingrediente importante para a perenidade do tecido social e das estruturas institucionais de

uma sociedade. Assim, o denominador comum de todas essas memórias, mas também as

tensões entre elas, intervêm na definição do consenso social e dos conflitos num determinado

momento conjuntural. Mas nenhum grupo social, nenhuma instituição, por mais estáveis e

sólidos que possam parecer, têm sua perenidade assegurada. Sua memória, contudo, pode

sobreviver a seu desaparecimento, assumindo em geral a forma de um mito que, por não

poder se ancorar na realidade política do momento, alimenta-se de referências culturais,

literárias ou religiosas. O passado longínquo pode então se tornar promessa de futuro e, às

vezes, desafio lançado à ordem estabelecida.

Observou-se a existência numa sociedade de memórias coletivas tão numerosas quanto

as unidades que compõem a sociedade. Quando elas se integram bem na memória nacional

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dominante, sua coexistência não coloca problemas, ao contrário das memórias subalternas.

Fora dos momentos de crise, estas últimas são difíceis de localizar e exigem que se recorra ao

instrumento da história oral. Indivíduos e certos grupos podem teimar em venerar justamente

aquilo que os enquadradores de uma memória coletiva em um nível mais global se esforçam

por minimizar ou eliminar. Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus

traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas

são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com os

instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse

trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo

que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e

suas lembranças pessoais.

Assim como uma "memória enquadrada", uma história de vida colhida por meio a

entrevista oral, esse resumo condensado de uma história social individual, é também

suscetível de ser apresentada de inúmeras maneiras em função do contexto no qual é relatada.

Mas assim como no caso de uma memória coletiva, essas variações de uma história de vida

são limitadas. Tanto no nível individual como no nível do grupo, tudo se passa como se

coerência e continuidade fossem comumente admitidas como os sinais distintivos de uma

memória crível e de um sentido de identidade assegurados.

Em todas as entrevistas sucessivas - no caso de histórias de vida de longa duração - em

que a mesma pessoa volta várias vezes a um número restrito de acontecimentos (seja por sua

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própria iniciativa, seja provocada pelo entrevistador), esse fenômeno pode ser constatado até

na entonação. A despeito de variações importantes, encontra-se um núcleo resistente, um fio

condutor, uma espécie de leit-motif em cada história de vida. Essas características de todas as

histórias de vida sugerem que estas últimas devem ser consideradas como instrumentos de

reconstrução da identidade, e não apenas como relatos factuais. Por definição reconstrução a

posteriori, a historia de vida ordena acontecimentos que balizaram uma existência. Além

disso, ao contarmos nossa vida, em geral tentamos estabelecer certa coerência por meio de

laços lógicos entre acontecimentos chaves (que aparecem então de uma forma cada vez mais

solidificada e estereotipada), e de uma continuidade, resultante da ordenação cronológica.

Através desse trabalho de reconstrução de si mesmo o indivíduo tende a definir seu

lugar social e suas relações com os outros.Pode-se imaginar, para aqueles e aquelas cuja vida

foi marcada por múltiplas rupturas e traumatismos, a dificuldade colocada por esse trabalho

de construção de uma coerência e de uma continuidade de sua própria história. Assim como

as memórias coletivas e a ordem social que elas contribuem para constituir, a memória

individual resulta da gestão de um equilíbrio precáriode um sem-número de contradições e de

tensões.

Em Hasta no verte Jesús mio, Poniatowska faz com que o leitor veja por meio dos

olhos e palavras de uma velha lavadeira, a trajetória da Revolução Mexicana. O testemunho

franco e vivo de Jesusa declara os estragos da Revolução; a esta pobre mulher do povo não

lhe deu mais que “patadas” e uma vida de pícara. Jesusa representa milhões de mulheres que

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foram arrastadas pela Revolução, dominadas por homens, maltratadas pela classe dominante e

abandonadas como animais perdidos e deformados. A protagonista-narradora faz com que

seus leitores acompanhem sua peregrinação pelo México que começou durante os dias de

Madero.

Mas a apropriação da memória pela história também pode domar a força involuntária

da rememoração, é o apresenta Jacy Alves Seixas (2004). Nesse ensaio, destaca-se um

debate acerca da oposição entre memória e história. Dialogando com Halbwachs, Pierre

Nora e Bergson, Seixas observa que a memória foi “apropriada” pela história, e aponta para

a necessidade de que se estabeleça uma diferenciação entre elas justamente em decorrência

do “boom da memória” provocado pela emergência dos “movimentos identitários” que

tornaram visíveis outras subjetividades. Seixas observa, porém que diante dessa separação

entre memória e história, a memória se apresenta sob uma “vulnerabilidade teórica”, pois

não se discutem os “mecanismos de produção e reprodução da memória”, acarretando a

equivalência entre sua “teoria” e a “teoria da história”. A memória pode ser “imaginada”

sem que seja mera “captura do passado”, podendo funcionar como “reconstrução,

apropriação e/ou manipulação do passado”, para recriar o real.

A mesma preocupação parece ocupar Jeanne Marie Gagnebin, em seu ensaio

“Memória, história, testemunho”. A autora apresenta a preocupação em não deixar que o

“discurso da memória” seja confundido como parte do estatuto teórico da história. O resgate

da memória volta sua atenção para o presente, tornando talvez possível continuar a contar

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histórias. Surge assim, a figura da testemunha, que “consegue ouvir a narração insuportável

do outro e que aceita que suas palavras revezem a história do outro”. (GAGNEBIN, 2004:

93)

A memória captada pela história possibilita uma restauração moral da experiência

passada e a questão que se impõe é: como é possível continuar contando nossas experiências

na pós-modernidade uma vez que a força do relato é posta em xeque, fragilizada pela

exigência de provas pelas quais se podem comprovar a veracidade do que é contado?

Beatriz Sarlo(2007) coloca em xeque a discussão a respeito da memória e testemunho

no contexto latino-americano. O testemunho (relato) assume sua voz “para conservar a

lembrança ou para reparar uma identidade ferida”, como meio para obtenção da verdade e do

resgate do passado. Narrar a experiência remete à noção de “corpo”, “ à presença real do

sujeito na cena do passado” e permite a existência do testemunho. Essa experiência só é

inserida num tempo que não é o seu, através da lembrança que é transmitida pela narração. O

presente tem supremacia em relação ao passado através da experiência e o testemunho se dá

através da “memória” e da “subjetividade”, sendo inevitável ao sujeito no presente

“rememorar o passado”.

Sarlo levanta a hipótese de que o retorno do testemunho e da voz em primeira pessoa

se configure, no presente, como uma forma de garantir veracidade (já que não haveria

testemunho sem experiência), mas, ao mesmo tempo, alerta-nos sobre o fato de que qualquer

experiência só se deixa conhecer por uma narração que funda uma temporalidade. A

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observação de Sarlo é imprescindível apara a compreensão deste assunto: reconhecendo o

valor do testemunho como impedimento ao esquecimento, como vontade de lembrar, no

entanto, ressalta que o testemunho realça a fragilidade da memória, sua incompletude e

fragmentação, sua possibilidade de contar ‘outra’ história. Nesse sentido, a exigência de

veracidade é absurda. Se pensarmos na lembrança, percebemos que ela nunca é completa e

se funda sempre anacronicamente a partir do presente pretendendo reconstituir a vida e

verdade abrigando-as, congelando-as, na rememoração da experiência.

Não é possível negar o fato de que a história e a memória têm forte relação. Mas

acreditamos que o que está em jogo é pensar a memória no contemporâneo como estratégia

ficcional, tornando possível continuar a contar histórias.

Walter Benjamin (BENJAMIN, 1989) no ensaio sobre a obra de Leskov revela que

talvez as experiências estivessem deixando de ser transmissíveis. Seria este um contraponto

possível de ser estabelecido a partir do papel atribuído à memória, enquanto artifício das

narrativas contemporâneas? Ainda que o sujeito contemporâneo, após o choque e o trauma

vivenciados pelos períodos de guerra e ditaduras, tenha se mantido em silêncio – pois essas

experiências impossibilitam que o indivíduo narre a experiência insuportável que viveu – o

que perceptível é que ele tem encontrado formas para continuar a contar suas histórias e dar

voz às experiências vivenciadas por si e pelo outro.

Pensar a memória como “resgate do passado” não é o suficiente. As experiências

podem estar sendo comunicáveis de outros modos até porque os testemunhos dão “sentido

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à experiência” e a memória social ou pessoal tem devolvido aos indivíduos o poder de

“contar”.

Como resposta à instabilidade entre as fronteiras do real e do ficcional que marcam

o presente, a memória surge como artifício não para estabelecer um limite seguro para

ambos, mas para permitir que as experiências continuem a ser narradas. Nesse caso, “se já

não é possível sustentar uma Verdade, florescem em contrapartida verdades subjetivas (...)

não há verdade, mas os sujeitos, paradoxalmente, tornaram-se cognoscíveis”. (SARLO,

2007: 39)

A memória não é apenas uma reminiscência encarregada de construir a verdade,

restaurar o passado, até porque no processo de reconstituição dos fatos surgem estilhaços que

não se permitem restaurar.

A reconstituição da história da Revolução Mexicana sob o testemunho de Jesusa

Palancares leva à reconstituição do passado de outros personagens e à reconstrução do

presente da narrativa. A memória “implica que o sujeito que narra (porque narra) se

aproxime de uma verdade que, até o momento da narração, ele não conhecia totalmente ou

só conhecia em fragmentos escamoteados” (SARLO, 2007: 56). Através do testemunho, a

memória opera uma “retomada reflexiva do passado” e permite “ousar esboçar uma outra

história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2004: 93).

Sendo assim, narrativa cumpre um papel: provar que a subjetividade não está

“morta” e que as experiências ainda são passíveis de serem transmitidas, dando um lugar

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aos personagens através da oralidade transformada em texto.

3. Divergências culturais? Hibridismo e subalternidade

3.1. Hibridismo e processo intercultural

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Um outro momento é colocado pelos desafios da contemporaneidade e suas

expressões pós-modernas, em que a globalização e a desterritorialização anunciam a criação

de um não-lugar como articulador de uma (não)identidade. Neste segundo aspecto, a

discussão do local/universal é re-significada e projetada para uma dimensão que ameaça

desconstruir a própria noção de identidade, chegando a desautorizar a necessidade de se

trabalhar com tal conceito. Neste jogo de desconstrução/reconstrução do discurso latino-

americano, aparece contemporaneamente o conceito de “culturas híbridas”, de Nestor García

Canclini, que propõe pensar América Latina a partir de novas chaves de análise sem

desprezar, todavia, a nossa condição de cultura de margem e incorporando a experiência da

cultura chicana que traz novas contribuições para as discussões em torno da idéia de latino-

americanidade.

A articulação entre o regional e o universal vai chegar aos anos sessenta absolutamente

imbuída de todas as experiências estéticas e revolucionárias que aquela década projetou.

Desta forma, a inteireza de um conceito de identidade latino-americana nunca esteve, talvez,

tão presente como naquele momento. Em todos os âmbitos da expressão cultural , da nossa

criação artística e da nossa produção intelectual estava fortemente presente uma idéia de

América Latina, que então já se articulava com certa desenvoltura com linguagens e

experiências estéticas e discursivas internacionais, não só européias mas também originárias

de outros “terceiros mundos”.

A experiência latino-americana alimentada em suas diversidades, alteridades,

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diferenças e particularidades encontrava a unidade na articulação da idéia de

subdesenvolvimento. Este continente imprimiu um projeto organicamente estruturado quando

incorporou sua condição de periferia às demandas estéticas que então se colocavam. Por um

momento, o intelectual latino-americano e a expressão artística destas terras pareciam ocupar

o núcleo principal da cultura ocidental.

A noção de “país novo”, que norteava um determinado projeto cultural, é substituída

pela noção de “país subdesenvolvido” , que vai propulsar o nosso pensamento intelectual. A

“grandeza” e a “pujança” saem de cena, dando lugar a uma realidade atrofiada e carente.

Passa-se da fase da “consciência amena do atraso” para a fase da “consciência catastrófica de

atraso”. (CÂNDIDO, 2000). Isso altera radicalmente a visão sobre si mesmo. A América

Latina dava lições de caminhos possíveis. A experiência da Revolução Cubana, em 1959,

torna-se paradigmática em todo o continente e o projeto de uma utopia revolucionária

contamina a nossa produção cultural. O empenho dos intelectuais latino-americanos era o de

reconstruir este continente sobre novos alicerces.

Com base nestes aspectos, acreditava-se que a identidade latino-americana estava

justamente em buscar nas dicotomias arcaico/moderno, regional/universal, paradoxos que

traduzissem o teor de nossa reflexão histórica, o crítico literário uruguaio Ángel Rama ,

destaca o conceito de “transculturação”.

A necessidade surgida nos anos sessenta de apontar as diferenças latino-americanas

também deu origem à necessidade de nomeá-las. Rama admite que os conceitos são limitados,

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o que importa é a reflexão histórica que neles está presente.

Tal conceito havia sido apropriado de Fernando Ortiz, sociólogo cubano que, em 1940

publica seu estudo Contrapunteo Cubano del tabaco y el azúcar, no qual, propondo-se a

refletir sobre a cultura e história cubanas, sugere substituir o termo “aculturação” por

“transculturação” . Para Ortiz, o fenômeno cultural cubano, e por extensão, o latino-

americano, apresenta uma complexidade histórica, por conta da ingerência e atravessamentos

culturais promovidos pelo processo de colonização, que não cabem no conceito americano de

acculturation. O processo aculturador prevê uma perda e um apagamento de uma cultura

precedente, onde haveria uma “desculturação” desta e sua conseqüente “neoculturação” ,

quando novos fenômenos culturais são criados. O que teria ocorrido em Cuba, e transportado

para a análise literária latino-americana feita por Rama, seria um processo no qual a cultura

forjada a partir do processo de colonização sintetizaria a participação e a contribuição de

diversas culturas em âmbitos e esferas distintas.

Desta maneira, a América Latina era vista sob uma ótica transcultural, na qual a

memória dos povos pré-ibéricos da América e dos povos africanos que para cá vieram não era

silenciada, mas sintetizada a partir do encontro de culturas empreendido pelo processo de

colonização, “todos en trance doloroso de transculturación a un nuevo ambiente

cultural.”(ORTIZ, 1983: 90).

Este aporte teórico desenvolvido por Rama propunha uma chave de análise tendo a

literatura como objeto de estudo, mas podendo ser estendido para outras produções culturais .

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A transculturação dava conta, então, do dilema regional/universal que se colocava na

literatura, garantindo ao mesmo tempo pensar as literaturas nacionais a partir das discussões

estéticas colocadas num horizonte universal.

Ao pontuar tais questões referentes ao nacional-popular na literatura latino-americana,

não se pode deixar de enfatizar que há uma grande disparidade quando pensamos um sistema

literário latino-americano , feito em espanhol ou português. Ao se pensar este sistema, deixa-

se de lado todas as experiências de literatura feita em língua não européia e, mais importante,

a tradição de oralidade, que se vê excluída do ideal de “unidade” latino-americana, artificial e

excludente.

Se há uma certa representatividade da literatura culta latino-americana, por outro lado

ela não dá conta de uma totalidade histórica formada por uma desintegração social. Não há

como ignorar os índices de analfabetismo no continente, assim como o já citado papel da

oralidade e das experiências dos povos locais.

Desta forma, pensar em identidade latino-americana a partir da experiência de uma

literatura feita no continente, não só podemos deixar de abarcar as noções de literaturas

regionais e nacionais, mas também é absolutamente necessário que pensemos a respeito do

que Cornejo Polar nomeia de “totalidades contraditórias”, que tais sistemas carregam.

A categoria de “unidade” já se sabe excludente, por priorizar a experiência de uma

cultura forjada na metrópole “transplantada” para a América, ignorando suas dissidências. A

categoria de “pluralidade”, tão festejada em nossa cultura, pode tornar-se imprecisa, se

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tratarmos as experiências nativas de uma maneira isolada e independente, como se houvesse

apenas uma justaposição do sistema cultural europeu ao nativo, ainda que a idéia de

“pluralidade” reivindique a importância histórica, social e cultural das línguas nativas.

As últimas décadas do século XX experimentaram a reorganização de seus espaços a

partir de um novo conceito de soberania colocado sob a perspectiva de uma

desterritorialização e a projeção de suas inter-relações. Esta nova modalidade de soberania,

imperial, prevê uma expansão de todos os espaços - sejam eles físico-geográficos, políticos,

econômicos, conceituais, filosóficos, culturais – trabalhando com a idéia de que o espaço é

sempre aberto, como o concebem Hardt e Negri (HARDT e NEGRI, 2001). Junto a isso, a

segunda metade do século foi testemunha de um grande deslocamento populacional

incentivado pelas dinâmicas estabelecidas a partir dos novos reagrupamentos e configurações

de forças.

Novos êxodos e diásporas se desenharam, forçando limites e reconfigurando espaços.

Muitos latino-americanos chegaram à fronteira norte do México, conseguindo ultrapassar para

o lado do território dos EUA. E por todos os lados do planeta as multidões se deslocavam, e

com elas, suas culturas, o que provocou uma experiência de disseminação cultural em muitas

partes do globo. Este processo acarretou mudanças no interior do repertório cultural dos

povos, e conseqüentemente, na idéia tão fortemente demarcada de “fronteiras culturais”.

Todas estas questões a respeito dos limites fronteiriços estão intimamente imbricadas

com as novas reconfigurações projetadas por experiências nas quais o hibridismo amalgama o

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processo de reconfiguração de identidades.

O fenômeno da desterritorialização provocou uma quebra no conceito de comunidade

nacional, tornando-se difícil localizar antropologicamente a linearidade de costumes e

culturas. O repertório de costumes, mitos, práticas, que formavam um universo simbólico que

podia ser classificado pela Antropologia Clássica como formador de uma identidade, não dá

mais conta de classificações neste momento.

Tais repertórios tornaram-se transculturais, implodindo o conceito de fronteiras

delimitadas, que não têm correspondência exclusiva com os territórios em que se encontram e

tampouco apresentam com estes uma relação de oposição. Isso deu origem a uma idéia que

Mc Kensey chama de “região transfronteiriça”, na qual em um mesmo grupo coexistem vários

códigos simbólicos, garantindo uma identidade multiétnica, transitória, mutante e migrante,

formada por elementos cruzados de várias culturas. A definição deixa de ser unicamente

socioespacial para assumir-se sociocomunicacional, atuando em redes comunicacionais

deslocalizadas.

As rearticulações que se colocam na produção cultural na América Latina já não estão

mais circunscritas a marcos nacionais ou regionais, destituídos os conceitos de nação e

território, recolocados a partir do poder tecnológico. E cabe, inclusive, pensar se a idéia de

uma identidade latino-americana ainda é colocada como assunto de pauta na discussão entre

nossos artistas e intelectuais.

A noção do híbrido emerge na crítica teórica a partir da problematização da questão da

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representação, que ganha os seus contornos decisivos com Michel Foucault,Jacques Derrida,

Gilles Deleuze e Edward Said. Nasce, portanto, da crise da representação no pensamento

ocidental, a qual é contemporânea do capitalismo multinacional e dos seus fluxos globais de

desterritorialização.

Profundamente influenciado por Michel Foucault, Edward Said preocupa-secom as

íntimas articulações entre poder e saber, analisando criticamente o dispositivo orientalista de

representação da alteridade cujo emprego, em termos genéricos, data do período colonial,

tendo início, mais precisamente, no final do século XVIII. Segundo esse intelectual palestino,

o caráter totalizante e generalista da estratégia de representação orientalista legitima uma

autoridade discursiva eminentemente apropriativa, que tende a suprimir uma alteridade

humana complexa, subsumindo-a numa visão ou textualização do exótico e obliterando,

conseqüentemente, o encontro, a reciprocidade e o conflito entre culturas.

Considerado um pioneiro em estudos sobre o hibridismo das culturas latino-

americanas,há décadas Canclini vem desenvolvendo pesquisas voltadas para a compreensão

da cultura urbana. Dentro dessa perspectiva, são alvo de sua atenção as lógicas das culturas

populares, a recepção e o consumo de bens simbólicos e a hibridação cultural gerados pela

heterogeneidade multitemporal, bem como por impactos da globalização.

Canclini, desse modo, propõe instigantes reflexões em torno do eixo

tradição/modernidade/pós-modernidade, em que ressalta, como aspecto preponderante, a falta

de uma política cultural moderna na América Latina (1995). Para o pesquisador,o processo de

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hibridação cultural da América Latina decorre da inexistência de uma política reguladora

ancorada nos princípios da modernidade e se caracteriza como o processo sócio-cultural em

que estruturas ou práticas, que existiam em formas separadas, combinam-se para gerar novas

estruturas, objetos e práticas.

Esse hibridismo, desencadeador de combinatórias e sínteses imprevistas, marcou o

século XX nas mais diferentes áreas, possibilitando desdobramentos, produtividade e poder

criativo distintos das mesclas interculturais já existentes na América latina.

Ao propor um debate sobre as teorias da modernidade e da pós-modernidade para a

América Latina, Canclini se ocupa tanto dos usos populares quanto do culto, tanto dos meios

massivos de comunicação quanto dos processos de recepção e apropriação dos bens

simbólicos. O entrelaçamento desses elementos veio a engendrar o que ele designou como

“culturas híbridas”. Para abordá-las, Néstor García Canclini defende a necessidade da adoção

de um enfoque que também poderia ser chamado dehíbrido, pois resulta da combinação da

antropologia com a sociologia, da arte com osestudos das comunicações.

Um dos seus principais objetos de pesquisa são as contradições da cultura urbana, ou

seja, aquelas que presidem a realização do projeto emancipador, expansivo, renovador e

democratizador da América Latina, cujos países são, hoje, um produto da sedimentação das

tradições culturais e lingüísticas de grupos autóctones, bem como da sua justaposição e

entrecruzamento com as tradições dos setores políticos, educacionais e religiosos de origem

ibérica.

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Apesar das tentativas da elite de conferir à sua cultura um perfil moderno, restringindo

a difusão da cultura indígena e colonial entre os setores populares, a mestiçagem interclassista

decorrente desses inter-relacionamento teria, segundo Canclini, gerado formações híbridas em

todos os estratos sociais latino-americanos (1995, p.70-1).

Esse convívio intercultural agenciador do confronto entre temporalidades distintas,

justificaria, em grande medida, a ambigüidade do processo de modernização da América

Latina. Canclini identifica, nos países latino-americanos, o entrecruzamentode diferentes

tempos históricos que coexistem num mesmo presente de forma desarticulada, fenômeno que

designou como “heterogeneidade multitemporal” (1995,p.72).

Como já se assinalou, a inexistência de projetos nacionais de integração naAmérica

Latina foi, em grande parte, responsável pela perda de referenciais tradicionais e pelo

afloramento de processos de estranhamento, em vista, sobretudo, do convívio entre

sociedades díspares, que, embora ocupando espaços comuns, não chegaram a se integrar.

Canclini salienta que operar com a modernidade latino-americana exige antes a

distinção entre a “modernidade”, enquanto etapa histórica, e a “modernização”, enquanto

processo social que interfere na construção da modernidade dos modernismos,ou seja, dos

projetos culturais que se relacionam com diversos momentos do capitalismo. Essas distinções

dão origem a uma indagação: “Por que nossos países realizam mal e mais tarde o modelo

metropolitano de modernização?” (1990, p. 209).

A resposta a tal pergunta está na defasagem entre uma modernidade deficiente e um

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modernismo exuberante, defasagem esta decorrente do hibridismo sócio-cultural que marcou

a formação da América Latina. Embora a modernidade latino-americana seja tardia, revelando

um quadro de defasagem histórico-cultural, a radiografia realizada por Canclini indica um

resultado positivo: “Ao chegar à década de 90, é inegável que a América Latina se

modernizou.Como sociedade e como cultura: o modernismo simbólico e a modernização

sócio-econômica não estão mais tão divorciados” (1990, p. 233).

Néstor García Canclini, ao analisar as formas de hibridismo na América Latina no

final do século XX, que foram geradas por contradições decorrentes do convívio social

urbano e do contexto internacional, conclui que todas as culturas são de fronteira e que as

artes, em virtude do fenômeno da desterritorialização, articulam-se em relação umas com as

outras, sendo-lhes possível, com isso, ampliar seu potencial de comunicação e conhecimento.

Ainda que indiretamente, as práticas culturais passam a ocupar um lugar proeminente no

processo de desenvolvimento político, uma vez que, quando se fecham ou se enrijecem as

vias político-sociais, essas práticas se constituem em vias de expressão simbólica, com ação e

atuação efetivas. A eficácia dos processos de hibridismo reside, principalmente, na sua

capacidade de representar o que as interações sociais têm de oblíquo e dissimulado, e de

propiciar uma reflexão acerca dos vínculos entre cultura e poder, os quais não são verticais.

Trata-se, portanto, de verificar “quais são as conseqüências políticas que decorrem da

passagem de uma concepção vertical e bipolar das relações sociopolíticas para outra

descentralizada e multideterminada” (1990, p. 345).

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De forma original, Canclini analisa a cultura na América Latina levando em conta a

complexidade de relações que a configuram na atualidade – as tradições culturais coexistem

com a modernidade que ainda não se consolidou nessa parte do planeta. Canclini examina as

estratégias de ingresso na modernidade e de superação desse estágio, partindo do princípio de

que, na América Latina, não há uma ampla convicção de que o projeto moderno constitua a

principal meta a ser atingida, “como apregoam, políticos, economistas e a publicidade de

novas tecnologias” (2006,p.17).

Assim, Néstor García Canclini, ao retomar suas averiguações relativas a fronteiras,

globalização e interculturidade, salienta a necessidade de encontrar modelos propícios à

abordagem das “ásperas contradições que afloram nas assimetrias globais” (2000, p.34).

Mantendo esse enfoque e considerando o fato de que a porosidade das fronteiras e dos fluxos

multiderecionais prometem (ou parecem prometer) integrações supranacionais para um futuro

próximo, Canclini atribui grande relevância ao papel passível de ser exercido pela América

Latina nesse universo, onde ainda prevalecem intercâmbios culturais e econômicos desiguais

e onde “certas tendências globalizadoras da economia reforçam algumas fronteiras ou levam a

inventar outras novas” (2000,p.34).

3.2.Margem e/ou periferia (Reordenação do discurso a partir da periferia)

Os numerosos estudos sobre a nova novela hispano-americana publicados

principalmente nos anos noventa concentraram-se nas manifestações de uma mudança de

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gênero, ou seja, numa renovação radical do mesmo, na novela histórica do fim do século XX

em contraposição à novela histórica tradicional, especialmente quanto ao seu questionamento

explícito da escritura da História e de suas observáveis e inovadoras estratégias narrativas.

Para destacar a dimensão desta mudança Seymor Menton e outros autores propuseram

a denominação “nova novela histórica” (Menton,1993: 29), admitindo que ao mesmo tempo

segue-se escrevendo novelas históricas de índole tradicional, enquanto outros perferiram as

denominações “a nova novela histórica de fins do século XX”, “a novela histórica recente” ou

“a novela histórica contemporânea para definir “que as mudanças de gênero não acontecem de

maneira simultânea nem homogênea” (Pons,1996:255).

A novela histórica hispano-americana do século XIX e da primeira metade do século

XX contribuiu segundo Menton, para a criação de uma consciência nacional familiarizando

seus leitores com os personagens e aos acontecimentos do passado(ibid.:36), reconstruindo ou

revisando a história dos grandes acontecimentos e empregando um discurso narrativo

caracterizado de pela linealidadade narrativa e o final fechado e unívoco.Destaca também

aspectos tais como: a objetividade e não neutralidade da escritura da História, relativização da

historiografia, rejeição da suposição de uma verdade histórica, mudança nos modos de

representação, questionamento do processo histórico, a escritura da história a partir das

margens, os limites, abandono da dimensão mítica, totalizadora ou arquetípica na

representação da história.Finalmente, observa-se uma espécie de desconstrução da história

européia, história que sempre dominou a formação do intelectual latino-americano.

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De fato, grande parte das novelas com temáticas históricas publicadas a partir dos anos

oitenta parecem responder diretamente a este discurso. Isto aponta uma mudança de

paradigma na narrativa hispano-americana, em que no decorrer dos anos setenta e oitenta

prevalecia a literatura testemunhal. Enquanto a novela-testemunho tratou de reconstruir a

verdade histórica narrando a história a partir da perspectiva autobiográfica/individual na

representação de um sujeito coletivo/nacional (os subalternos, marginalizados) e enquanto em

outras novelas recorreu-se à reconstrução de um mito para a construção de uma identidade

coletiva/nacional, e em outras estas tradições são rompidas, recorrendo a outros elementos

que também questionam os modos hegemônicos de representação da realidade histórica e da

alteridade.

Entre os diferentes intentos de explicar as causas do auge da novela histórica na

América Latina predominou a posição de que o novo interesse pela novela histórica tema ver

com a busca da identidade continental, que representa um novo grau de emancipação da

intelectualidade latino-americana, porque nela se expressa a nova relação do latino-americano

com o europeu, manifestando assim uma nova segurança, um novo sentido de valor dos

latino-americanos precisamente no tratamento literário da própria história

A partir desta consciência, cria-se, para usar a expressão de Edward Said, “uma

literatura de resistência” que propõe rever as certezas universalizantes do colonizador. O que

move este romance histórico é a vontade de reinterpretar o passado com os olhos livres das

amarras conceituais criadas pela modernidade européia no século XIX, é a consciência do

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poder da representação, da criação de imagens e, conseqüentemente, do poder de narrar e de

sua importância na constituição das identidades das nações modernas. Daí a necessidade de

releitura da história como parte do esforço de descolonização, que se realiza contra toda uma

mentalidade perpetuada pelas elites locais, pelos discursos da história oficial.

A narrativa histórica hispano-americana de Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos,

Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e outros procura trabalhar com a multitemporalidade

que caracteriza a América Latina. Dilui os contornos entre história e lenda, problematizando o

discurso racionalista e suas categorias puras, para contemplar a realidade multifacetada.

Escreve-se uma anti-história que denuncia as falácias da história eufórica dos vencedores.

Problematiza-se a enunciação com o intuito de relativizar verdades tidas como universais e

absolutas.

Essas características aproximam do que Linda Huncheon chama de “metaficção

historiográfica” e levam a autora a incluir algumas das obras na sua lista de exemplos da

ficção pós-moderna. Confunde-se aí, a crítica à modernidade, pelos seus aspectos excludentes

e eurocêntriccos, feita por autores oriundos de um subcontinente onde a modernidade assumiu

um caráter inconcluso, de projeto a realizar, sempre adiado, com as objeções feitas ao

pensamento moderno a partir de uma sensação de esgotamento dos discursos sobre a

liberdade, razão e verdade, gestada nos países desenvolvidos às volta com as contradições

decorrentes do capitalismo tardio, marcado pela revolução tecnológica.

A consciência manifesta nesta literatura é de que somos o Outro de uma modernidade

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que teve a Europa como centro e, por isso, fomos negados e obrigados a seguir um processo

de modernização compulsória que nem sempre respeitou as necessidades internas de cada

país. É dessa atmosfera que os autores latino-americanos se aproveitam para afirmar as

diferenças sem complexo de inferioridade, para privilegiar a margem como ponto de vista.

O que vários autores pretendem negar através de suas obras é que os países latino-

americanos são a periferia dos países europeus e sua cultura subalterna. A subalternidade

consiste na condição do subalterno, ou seja, de uma forma de opressão que exclui os sujeitos

de um modo cultural determinado. O subalterno é somente outra palavra clássica para

denominar ao oprimido, ao Outro, a alguém que ficou fora do “todo” cuja voz poderia não ser

ouvida e que estruturalmente está fora da narrativa burguesa segundo Gramsci. Em termos

pós-coloniais, todo aquele que tem acesso limitado à cultura imperialista e ao espaço da

diferença. É também aquele que não pode expressar-se através de suas formas de

representação. Tal é o clássico exemplo do texto mais conhecido de Gayatri Spivak, Can the

subaltern speak? Para Spivak a partir da subalternidade não existem posssibilidades de

diálogo, pois para que exista a comunicação é necessário que haja uma disposição do ouvinte

a escutar. A subalternidade é a negação da voz e de toda forma de auto-representação. Por

outro lado, quem aposta na subalternidade como forma identitária, projeta a possibilidade de

expressão do subalterno através de outros.

No que tange a história do eixo centro-periferia, tradicionalmente nos currículos

escolares se apresenta a dicotomia civilização-barbárie como um momento de discussão na

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América Latina congelado no século XIX a partir do projeto de Domingo Faustino Sarmiento

e outros pensadores, os quais formulavam a coesão da nação baseada na exclusão do lado

selvagem e o encarrilhamento dentro dos caminhos do progresso civilizatório encabeçado

pelos paises europeus, ou seja, a luta entre civilização européia e a barbárie indígena, entre a

inteligência e a matéria.

A barbárie estava representada não somente pelos indígenas, como também pelos

ditadores e todas as suas práticas antidemocráticas. Facundo é um tipo da barbárie primitiva:

não conheceu sujeição, sua cólera era como de feras e também pelos lugares marginais das

cidades, os mendigos, os camponeses e os ignorantes. Por outro lado, o paradigma da

civilização era a França, também outros países europeus como a Itália e a Inglaterra no ápice

de seu poderio colonial e, sobretudo, Paris, onde o refinamento cultural das práticas artísticas

determinava o cume da civilização Ocidental e suas práticas políticas. Neste sentido a história

era entendida como um processo linear desde a barbárie até a civilização e os países latino-

americanos, na medida em que se encontravam à beira do Ocidente, tinham a possibilidade de

chegar a serem paises civilizados, si é que estivessem no rumo da linha do progresso.

Neste vazio social e político, as culturas e sua diversidade não podem ser reconstruídas

senão pelo empenho dos grupos para voltar a encontrar sua própria autonomia, sua capacidade

de associar valores e práticas, inclusive a participação no mundo das técnicas e os mercados

com a conservação de sua própria identidade e memória cultural.

A literatura “oficial”, de maneira alguma pretende dar conta destas culturas paralelas

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através dos diferentes movimentos literários como o naturalismo, por exemplo. É através de

escritores não marginais onde encontramos mais informações sobre os diversos setores que

compõem nossa sociedade. Na literatura marginal, de alguma maneira se extingue o encobrir

ideológico de uma realidade existente, que é rechaçada por outros segmentos sociais ditos

“oficiais” e homogêneos.

A crítica compreende como literatura testemunho aquela em que o discurso de uma pessoa

pertencente a um determinado grupo social – geralmente marginalizado, e por isso

determinado subalterno – que normalmente não dispõe de meios de expressão próprios, ganha

expressão escrita através da participação de outra pessoa; esta é capacitada para expressar o

que o primeiro não seria capaz A este chamamos mediador, geralmente solidariza-se com a

realidade do subalterno e compartilha de seus ideais.

O Subalterno é considerado – o emissor primitivo da mensagem – como incapacitado a se

fazer ouvir – no meio literário – pelos demais grupos, uma vez que entre ambos existem

distâncias intransponíveis de nível, seja este social e/ou racial e/ou cultural, etc. Este recurso

de ser ouvido pertence ao mediador, cuja voz pode ser escutada e que se dispõe a transcrever

em código formal a mensagem que o primeiro não poderia emitir, sendo este o modelo mais

usual de literatura testemunho.

A narrativa hispano-americana trabalha com a diluição das fronteiras entre ficção e

história para confrontar as representações feitas pelo poder com a representação daqueles

postos à margem. Neste estilo de criação autores como Carlos Fuentes, Rosario Castellanos e

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Elena Poniatowaka reivindicam a valorização dos sujeitos na cotidianeidade.

Elena Poniatowska com sua novela introduz a voz dos oprimidos ao cânone literário

latino-americano. A ficção das mulheres evoluiu a ponto de que a protagonista desta obra, é

uma mulher marginalizada que alcança a posição de sujeito falante numa narrativa que

desmistifica os ideais da Revolução Mexicana e inscreve a ideologia do subalterno no texto

oficial. A escritura de Poniatowska consegue incorporar as vozes do Outro mexicano, através

do diálogo com os que sofrem de opressão, fome ou pobreza. Neste aspecto, a autora segue as

pautas iniciadas por Rosario Castellanos em seu rol de agente intercultural e sua novela marca

um avanço na representação do marginalizado no discurso literário latino-americano.

Devido a sua condição subordinada na sociedade patriarcal, as mulheres

demonstraram uma abertura em direção aos marginalizados por motivos de etnia, classe ou

gênero. Rosario Castellanos a partir dos anos cinqüenta e Elena Poniatowska após a década de

setenta, atuaram como agentes interculturais que transgrediram as barreiras de sua classe

social e conseguiram estabelecer uma interação dialógica com o outro, com aqueles excluídos

por sua idiossincrasia ou por sua condição social subalterna.

A linguagem das mulheres na América Latina tem sido formulada por vozes de

resistência e pelo questionamento dos sistemas que regulam as situações de injustiça e

repressão. Em sua preocupação com a condição do Outro mexicano, Elena Poniatowska

aprendeu a escutar o clamor dos marginalizados. Jesusa Palancares, a narradora-protagonista

desta novela, representa as vozes silenciadas do México anônimo e sua coragem para

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enfrentar adversidades. Jesusa, como mulher oprimida estáconstantemente exposta à violência

e à escassez. Sua existência marginalizada está marcada pela ignorância, o vício, o abuso e a

pobreza. A protagonista é uma mulher das periferias da cidade do México que desde sua

infância luta heroicamente para sobreviver. Na idade de cinco anos perde sua mãe e a partir de

então inicia-se na escola de experiências negativas que a levam desde sua terra Oaxaca na

época de Madero, através dos episódios da Revolução Mexicana, até a capital federal onde

enfrenta um destino de vida instável. Sua trajetória caracteriza-se por uma resistência

permanente à opressão e pela luta incansável contra qualquer fonte de poder que ameace sua

liberdade individual e sua integridade.

Numa conferência sobre a América Latina em 1982 em Berlim, Elena Poniatowska

declarou sua adesão aos marginalizados quando disse: “A literatura das mulheres na América

Latina é parte da voz dos oprimidos. Acredito tão profundamente que estou disposta a

convertê-lo em leit-motif, em ideologia”.

A associação das mulheres com a periferia é essencial na narrativa de Poniatowska

edificada com a voz dos oprimidos e com as daqueles excluídos dos centros do poder.

Segundo a autora, Jesusa é e não é uma mulher reprimida. É porque vem do nível mais baixo

da sociedade, mas não está oprimida porque se salva sozinha. Poniatowska escreve que a

mulher mexicana é duplamente oprimida já que seu estado de submissão foi introduzido pela

Conquista e o cristianismo, e porque é mulher reprimida. As mulheres que quiseram liberar-se

desta condição de submissão, como Sor Juana, foram silenciadas. Neste contexto, Jesusa

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Palancares é uma desmistificadora enquanto retrata o avesso de uma realidade e questiona o

heroísmo da Revolução Mexicana quando diz:

“yo creo que fue uma guerra mal entendida porque eso de que se mataran unos contra otros,

padres contra hijos, hermanos contra hermanos; carrancistas, villistas, zapatistas, pues eran

puras tarugadas porque éramos los mismos pelados y muertos de hambre. Pero ésas cosas que,

como dicen, por sabidas se callan.”(p.94)

Ao introduzir a voz dos marginalizados em sua obra, Poniatowska está transpondo as

barreiras da narrativa oficial cultural e histórica. Seu intertexto do discurso dominante se

mescla com as vozes dos oprimidos num contra discurso da retórica da Revolução mexicana.

Poniatowska seleciona uma linguagem que reafirma sua posição ideológica de adesão aos

oprimidos e emite assim um postulado cultural. Neste aspecto, a ficção de Poniatowska

inaugura um marco significativo no resgate do marginalizado para a literatura, algo proposto

por Canclini que ao analisar as culturas híbridas apresenta as transformações da cultura

popular através do contato com a cultura urbana, em seus diversos aspectos, entre eles a

migração, o subemprego, o desemprego.

As experiências e visão de mundo da protagonista Jesusa podem ser lidas como uma

crítica social que reflete a ideologia da pobreza, da cultura mexicana subalterna. A voz da

protagonista se funde com o autor que atua como amanuense para reproduzir seu relato oral e

registra uma voz antes silenciada. A autora coleta o testemunho da vida de Jesusa em visitas

semanais a sua interlocutora durante um ano e o texto surge destes encontros e da tensão nesta

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relação afetiva, mas também conflitiva entre as duas, numa interação dialógica entre a

consciência e perspectiva de Jesusa e da escritora que as transcreve num marco ficcional.

Com a intervenção da autora, a mulher marginalizada consegue um espaço para falar.

O texto reproduz sua imaginação, sua filosofia de vida, seu discurso sobre a

Revolução mexicana, sua crítica da escassez da vida, sua luta para sobreviver. Numa situação

social de desigualdade e injustiça, a narração de Jesusa projeta um caráter rebelde e

independente que resiste à exploração. O texto de Poniatowska reproduz uma pluralidade de

vozes que incluem as vozes da periferia em tensão com aquelas do discurso oficial e político

numa linguagem de múltiplas faces. Nesta interseção cultural é importante perguntar-se em

que medida pode o oprimido acessar a linguagem para expressar sua realidade e com a voz de

quê consciência pode falar o subalterno? No caso de Hasta no verte Jesús mio o subalterno,

representado por Jesusa, graças à intervenção artística de Elena Poniatowska pode falar de

fato.

A autora não transcreve, como historiadora numa linguagem objetiva, mas em

interação dialógica com o sujeito subalterno. Atua com empatia, solidariedade e em tensão

com sua informante num processo dinâmico de intercâmbio que libera Jesusa de seu silêncio e

a reproduz como personagem autônomo e sujeito falante. É através da linguagem de

Poniatowska que Jesusa Palancares articula sua condição de oprimida e sua marginalidade.

Se a ideologia é considerada resultado de uma experiência e não um código de ideais

abstratos, pode-se postular que a ideologia de Jesusa é sua resposta à sua situação social e as

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forças dominantes na sociedade. Seu relato oral projeta uma ideologia do subalterno

mexicano, sua saudade da vida do campo (uma visão idílica), sua autodefesa contra a

violência, seu pessimismo sobre o destino dos pobres.

Hasta no verte Jesús mio incorpora o discurso dos oprimidos à história da literatura.

Sua escritura reproduz as vozes anônimas, até então excluídas, dos mexicanos da periferia

num contra-discurso à narrativa oficial do século XX. O relato oral de Jesusa Palancares

reproduz sua visão de mundo, sua resistência inquebrantável e seu esforço para superar sua

condição subalterna. Nesta narrativa de dupla autoria de mulheres mexicanas, o discurso oral

do Outro rompe seu legendário silêncio para surgir com um texto que representa a outra face

da realidade mexicana, o olhar dos oprimidos. O testemunho da mulher marginalizada Jesusa

Palancares atingiu uma posição de sujeito falante numa obra de ficção que reproduz sua

ideologia subalterna e em que a autoridade narrativa foi conferida por sua credibilidade, seu

valor estético e ideológico. Em Hasta no verte Jesús mio Elena Poniatowska conseguiu

transgredir barreiras interculturais para restabelecer o prestígio e autoridade da representação

oral transformada em texto.

Através destas considerações, podemos concluir que esta é uma obra que, pela

temática que desenvolve, mostra não somente os efeitos do processo de modernização –

conservadora e periférica – vivenciados pelo país onde esta narrativa se originou; estão

presentes também os efeitos excludentes das transformações sociais deflagradas pela

modernização.

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A literatura testemunho apresenta visões alternativas à historiografia “oficial”,

enriquecendo e multiplicando os ângulos a partir dos quais podemos olhar. Através desta

podemos vislumbrar como os efeitos de um processo de modernização conservadora

produziram narrativas que formularam novas possibilidades de visão histórica, reflexão social

e produção artística na América Latina e, por sua vez, incluindo a voz dos excluídos sociais

como um coro-se não harmônico, sempre único – da sociedade como um todo.

3.3. A transgressão do cânone através da margem

A predominância de visões interdisciplinares na literatura e seu estudo, o

debilitamento da estrutura dos gêneros tradicionais, a natureza assistemática de muitos textos

hispano-americanos atuais (Ortega,2000), junto a fatores contextuais históricos, étnicos e

culturais, tem provocado o surgimento de setores heterogêneos, difusos, móveis, flutuantes,

da textualidade contemporânea, genros mistos, interdisciplinares e interculturais que

configuram textos plurais, híbridos, com sistemas enunciativos polifônicos, semântica e

referencialmente polissêmicos e polivalentes.

Estas zonas de indeterminação ou indefinição textual e de gênero colocam em crise a

estabilidade do cânone literário e tornam-se muito significativas no âmbito da narrativa

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hispano-americana que, segundo Carrasco (1993), é caracterizada por dois aspectos

fundamentais: a mutação interdisciplinar e o hibridismo cultural, que provocaram

transformações que fazem parte de uma mudança maior das teorias do conhecimento e do

discurso contemporâneo, e, portanto, uma transição rumo a um novo paradigma global.

Em relação à narrativa hispano-americana, os processos de mobilidade e

indeterminação do sistema literário são decorrentes da ênfase dada aos aspectos de

interdisciplinaridade e interculturalidade de origem no literário, que conduzem à abertura e

fragmentação dos modos canônicos. De acordo com Carrasco, este processo deriva de uma

nova noção de cultura e sociedade de índole pluralista e relativista, que coincide com alguns

postulados pós-modernistas ao situar suas preocupações em âmbitos considerados

tradicionalmente como locais ou periféricos e com o fenômeno global de crise dos grandes

relatos.

Os diferentes processos históricos, sociais, artísticos, cognitivos, que abalaram,

alteraram ou “corroeram” as estruturas tradicionais nas últimas décadas do século XX,

provocaram uma sensação de desequilíbrio, variabilidade e mudanças na maneira de

conceituar e descrever as várias experiências do Real. Muitas disciplinas tradicionais do

conhecimento entraram em crise e variados discursos que até o século XX organizavam a

compreensão, classificação e definição dos sentidos e do mundo foram desacreditados ou

perderam sua especificidade e autonomia(Berman, 1987). Algumas destas modificações

aconteceram dentro dos limites de disciplinas específicas, enquanto outras afetaram vários

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campos do conhecimento, produzindo fatos e problemas de caráter transdisciplinar,

interdisciplinar e intercultural, fruto do processo de globalização.

Uma visão tipológica da literatura contemporânea permite observar que os gêneros

convencionais tem perdido estabilidade e se confundido com outros de natureza análoga e

diferente, surgindo assim, gêneros e textos considerados não-literários.

A crise e ruptura dos modelos canônicos da literatura e do discurso mediante as

estratégias da paródia, a distorção, a mistura, a fusão ou hibridismo dos textos e gêneros

dominantes e estáveis da tradição, romperam ou debilitaram a natureza e os tipos de textos

conhecidos, diluíram limites e abriram as fronteiras entre eles, ao mesmo tempo colocaram

em dúvida a influência, o sentido e a validez de conceitos como verossímil, realismo,

veracidade e sua conexão necessária com determinadas classes de oralidade e escrita.

De acordo com Wahnón (1995), cada dia aparecem novos textos que pretendem

ampliar, alterar ou transgredir as normas de construção verossímil da literatura, deixando em

dúvida se pretendem transforma-la em história, autobiografia, jornalismo, ciência, teologia,

filosofia, ou misturar-se a elas para criar gêneros discursivos novos, embora as teorias que

postulam a existência da literatura como discurso opaco que não remitiria a nenhuma

realidade e satisfaria a si mesmo.

O texto literário não está distanciado dos demais fatos textuais e não textuais, porém

interage com eles, articulando disciplinas, contextualizando dados, relacionando e dando

sentido a elementos, situações e momentos históricos distintos, meios verbais e não verbais,

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literários e outras formas de discursividade, tentando conciliar de maneira dinâmica as

contradições de um objeto limitado entre a verdade e suas versões, reabilitando uma forma

plural de aproximar-se da encruzilhada de diferenças em meio as que se encontra o

observador de hoje, menos atento que perplexo, pressionado pela avalanche de

acontecimentos díspares numa mesma ocasião, como propôs Lisa Block; desta maneira, as

reflexões da crítica intertextual ou transtextual propiciam atitudes interdisciplinares:

O estudioso está situado entre diversas disciplinas, entre línguas diferentes,

entre tendências contraditórias, apropriando-se de culturas(...) . A crítica transita entre textos

heterogêneos vislumbrando as aberturas de uma situação moderna que se radica nesse espaço

reservado, nas circunstâncias atuais, por todos os meios(Block, 1990:11)

Este fenômeno não é exclusivo da contemporaneidade, mas ao que parece, no fim do

século XX, foi mais complexo e multifacetado na América Latina, cujos antecedentes estão na

literatura colonial através de todas as manifestações literárias (cartas, relatos, teatro,

testemunhos, etc)

Tudo isto é uma expressão atual da condição histórica da literatura, que segundo

Carrasco, é um campo instável gerado por uma noção difusa, plural e heterogênea, tanto entre

os próprios escritores quanto entre os teóricos, críticos e historiadores. A literatura é um fato

de textualidade escritural variável, complexo e interdisciplinar. Que em diferentes momentos,

culturas e sociedades tem sido definido e legitimado a partir de disciplinas e tendências

filosóficas e científicas variadas (estética, história, psicologia, retórica, lingüística, semiótica,

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estruturalismo, marxismo,hermenêutica, etc.)

De acordo com Carrasco, as diversas concepções de literatura e de literário

consideram diferentes elementos e fatores para a determinação da “literaturidade” do texto

particular ( o estilo, os gêneros, a retórica, a função poética, o autor, o mistério, o reflexo

social, certos temas ou aspectos do mundo, etc), mas não conseguiram consenso nem em

torno de um conceito comum, universal e estável, nem ao menos um objeto homogêneo,visto

que as noções de literatura incluem uma variedade de textos, gêneros ou tipos discursivos.

A instabilidade, a modificação, a ruptura, a transgressão, a variedade dentro de uma

unidade parecem ser próprias dos discursos que foram escritos e lidos como literários através

dos tempos, das línguas e das culturas. Talvez por isso a crítica, a teoria literária, a história da

arte não conseguiram estabelecer categorias unanimemente aceitáveis e validadas que

resolvam o problema da variação permanente, da multiplicidade e a heterogeneidade das

formas literárias e sua díspar conceitualização. E como um critério de seleção e de

conformação de um corpus prestigiado por sua qualidade, seguro dos valores e influência na

vida social, que pudesse controlar a vastidão, heterogeneidade desta textualidade chamada

literatura, transferiu-se a idéia de “cânone” a partir da instituição religiosa e política e a

instituição literária, para regular e controlar o poder da palavra, da beleza e da retórica.

Uma postura mais contemporânea consiste em considerar o cânone não como uma

unidade ou estrutura imutável, mas como sendo histórica, plural, segundo fatores individuais,

culturais, políticos ou ideológicos, conformada por heterogeneidades, complexidades,

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contradições, e por isso, algo inseparável do trabalho de criação, crítica e investigação

literária.

O cânone da literatura hispano-americana se desenvolveu desde a sua origem como

imitação do cânone europeu, de acordo com os critérios de homogeneidade, singularidade,

linguagem especial, ficcionalidade e mimese. Neste marco, os escritores puderam criar formas

literárias imitativas e outras próprias, como por exemplo, o realismo mágico, o criacionismo.

O estudo das transformações do cânone da literatura hispano-americana foi realizado

fundamentalmente em relação ao discurso narrativo, considerando que por volta dos ano

setenta inicia-se um abandono parcial de algumas “chaves escriturais”, segundo

Carrasco(19991) do chamado “boom” latino-americano. A introdução de novas formas de

realismo frente as complexidades meta-literárias ou fantásticas (Rama, 1982), o auge do

testemunho, a nova novela histórica, a literatura feminista, a aceitação a-crítica de modelos

provenientes da globalização e do neoliberalismo, entre outros aspectos, foram vistos como

parte deste processo de transformação. Mas foi a inserção de formas testemunhais “não

literárias” ou ensaísticas (Miguel Barnet, Rigoberta Menchú, Elena Poniatowska e outros)

que permitiu falar de descolonização e redefinição do cânone literário, no sentido de que a ele

foi incorporada a voz do outro (Beverly e Achugar, 1992) através do testemunho, das histórias

de vida, as biografias e as auto-biografias. Pode-se assim falar de um ecleticismo radical que

torna difusa ou não significativa a procedência dos discursos para serem considerados como

literários .

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Outra estratégia usada é o hibridismo cultural, que é a utilização de elementos

provenientes dos setores étnicos e culturais dissimiles e de linguagem de codificação plural.

Portanto, estes textos são caracterizados pelo surgimento de campos interculturais

considerados habitualmente como subalternos ou marginais, com o uso de conteúdos,

retóricas e estilos provenientes de diversas etnias e culturas.

A emergência também da produção de novos atores literários como as mulheres,

negros, exilados/imigrantes e subalternos em geral, que passam a tomar a palavra e a ocupar

um novo espaço no campo intelectual, e no projeto criador, não só determinou essa enorme

relativização das fronteiras do literário, como permitiu o estabelecimento de formas

literárias alternativas como o testemunho, por exemplo, que ao ser legitimado como forma

literária ideologicamente conformada e comprometida com grupos sociais até então

condenados ao silêncio, e também como forma literária especialmente capaz de dizer a sua

época, e promover uma intervenção transgressora, patrocinou uma série de questionamentos

éticos e estéticos, fundamentais para a compreensão do processo literário latino-americano

contemporâneo.

No caso de Hasta no verte Jesús mio, de Elena Poniatowska, o intertexto do discurso

dominante, como apresenta a narradora, se entretece com as vozes dos oprimidos em um

contra-discurso da retórica da Revolução Mexicana.

No texto de Poniatowska processa-se o encontro de dois fragmentos da cultura

mexicana: a cultura letrada e a cultura “subalterna”. Há uma autoria dupla em que a voz é

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genuinamente de Jesusa, mas onde a autora edita seu relato oral.

O texto reproduz sua imaginação, filosofia de vida, seu discurso sobre a Revolução

mexicana que representa uma situação social de desigualdade e injustiça. A narração

autobiográfica de Jesusa Palancares projeta um caráter rebelde e independente que resiste à

exploração. O texto reproduz uma pluralidade de vozes que incluem as vozes da periferia em

tensão com as do discurso oficial.

Na narrativa hispano-americana surgiram diversos textos e manifestações textuais que

transpassam, superam, transgridem ou se apartam do cânone, ou seja, que pretendem

dismistificá-lo e abri-lo para permitir a incorporação de outras formas textuais. Estes são os

espaços de instabilidade, crise e mudança, determinados pelos intentos de validação dos

textos e tipos textuais referenciais e testemunhais como literários, a mutação de disciplinas e

gêneros, o deslocamento semântico e a incorporação da interdisciplinaridade e inter-

etnicidade, como mecanismos de coerência dos diversos tipos de texto.

Conclusão

A oralidade foi uma forma desprestigiada de representação a partir do momento em

que a escritura e mais tarde a imprensa se constituíram nas modalidades estabelecidas de

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conceber e transmitir saber e conhecimento.

A oralidade está associada às culturas pré-letradas em que os “os moldes de pensar e

de expressão” como os denomina Walter J. Ong em seu estudo Orality and literacy(1982)

diferem basicamente dos da palavra escrita, enquanto não se submetem aos modelos de

raciocínio e análise das culturas letradas Lanser considera a autoridade discursiva como “a

credibilidade intelectual, a validade ideológica e o valor estético que se confere à obra, autor,

personagem, narrador ou prática textual.”

Dentro desta perspectiva pode-se observar nos últimos anos um interesse crescente por

gêneros ou textos previamente excluídos, como a expressão oral, a narrativa feminina e a da

periferia.

O intertexto do discurso dominante, como apresenta a narradora, se entretece com as

vozes dos oprimidos em um contra-discurso da retórica da Revolução Mexicana.

No texto de Poniatowska processa-se o encontro de dois fragmentos da cultura

mexicana: a cultura letrada e a cultura “subalterna”. Há uma autoria dupla em que a voz é

genuinamente de Jesusa, mas onde a autora edita seu relato oral.

O texto reproduz sua imaginação, filosofia de vida, seu discurso sobre a Revolução

mexicana que representa uma situação social de desigualdade e injustiça. A narração

autobiográfica de Jesusa Palancares projeta um caráter rebelde e independente que resiste à

exploração. O texto reproduz uma pluralidade de vozes que incluem as vozes da periferia em

tensão com as do discurso oficial.

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Nesta narrativa de dupla autoria de mulheres mexicanas, o discurso oral do “outro”

rompe o silêncio lendário para surgir com um texto que representa a outra cara da realidade

mexicana, o olhar dos oprimidos.

Hasta no verte Jesús mio incorpora o discurso dos oprimidos à história da literatura.

Sua escritura reproduz as vozes anônimas, até então excluídas, dos mexicanos da periferia

num contra-discurso à narrativa oficial do século XX. O relato oral de Jesusa Palancares

reproduz sua visão de mundo, sua resistência inquebrantável e seu esforço para superar sua

condição subalterna. Nesta narrativa de dupla autoria de mulheres mexicanas, o discurso oral

do Outro rompe seu legendário silêncio para surgir com um texto que representa a outra face

da realidade mexicana, o olhar dos oprimidos. O testemunho da mulher marginalizada Jesusa

Palancares atingiu uma posição de sujeito falante numa obra de ficção que reproduz sua

ideologia subalterna e em que a autoridade narrativa foi conferida por sua credibilidade, seu

valor estético e ideológico. Em Hasta no verte Jesús mio Elena Poniatowska conseguiu

transgredir barreiras interculturais para restabelecer o prestígio e autoridade da representação

oral transformada em texto.

Através destas considerações, podemos concluir que esta é uma obra que, pela

temática que desenvolve, mostra não somente os efeitos do processo de modernização –

conservadora e periférica – vivenciados pelo país onde esta narrativa se originou; estão

presentes também os efeitos excludentes das transformações sociais deflagradas pela

modernização.

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A literatura testemunho apresenta visões alternativas à historiografia “oficial”,

enriquecendo e multiplicando os ângulos a partir dos quais podemos olhar. Através desta

podemos vislumbrar como os efeitos de um processo de modernização conservadora

produziram narrativas que formularam novas possibilidades de visão histórica, reflexão social

e produção artística na América Latina e, por sua vez, incluindo a voz dos excluídos sociais

como um coro-se não harmônico, sempre único – da sociedade como um todo.

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Resumo

O presente trabalho propõe a análise da obra de Elena Poniatowska, Hasta no verte Jesús

mio, a problemática da construção do discurso numa narração que tradicionalmente tem sido

desvalorizada, como é a oralidade do subalterno. Analisar as estratégias narrativas com as

quais a autora através do testemunho elabora um texto que representa validamente a realidade

de uma mulher marginalizada, que reproduz uma ideologia subalterna, e consegue constituir-

se num exemplo de autoridade narrativa. Reavaliação da autoridade textual na qual é

concedida a voz ao marginalizado em tensão da dupla autoria: a letrada e o informante

feminino cuja voz está moldada nas estruturas da oralidade e a transgressão de barreiras

interculturais para restabelecer o prestígio e autoridade da representação oral transformada em

texto.

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Abstract

The following paper work proposes the analysis of the masterpiece by Elena

Poniatwska, Hasta no verte Jesús mio – the problematic of the construction of the discourse

in a narration that has been traditionally unappreciated, as it is the subaltern’s orality.

Analising the narrative strategies with which the author elaborates through the testimony a

text which tuly represents the reality of a marginalized woman, that reproduces a subaltern

ideology – and manages to turn out to be an example of the narrative authority. Re evaluation

of the textual authority i whichis given a voice to the marginalized in tension of the double

authorship: the lettered and the feminine informant whose voice is framed in the structures of

orality and the transgression of intercultural barriers in order to re estabilish the prestige and

authority of oral representation turned into a text.

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Anexo 1 – A mexicanidade revelada na mulher

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Anexo 2 –A situação da mulher no período da Revolução mexicana

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Anexo 3 – A condenação à miséria e ao atraso social

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Anexo 4 - Mulheres enterram suas famílias e ideais durante a Revolução mexicana

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Anexo 5 - El Santo Niño de Atocha – Capa de Hasta no verte Jesús mio

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Anexo 7 - Las Soldaderas

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Anexo 7 – Foto de Elena Poniatowska

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