O representação do meridiano

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Tordesilhas e o Novo Mundo

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Tordesilhas e o Novo Mundo

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Copvright @ dos autores

Reitor

Hésio Cordeiro

Vice-reitor José Alexandre Assed

Sub-reitoria de Graduação Sandra Maria Corrêa de Sá

Carneiro

Sub-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa Roberto José Ávila Cavalcanti Bezerra

Sub-reitoria de Extensão e Cultura Ricardo Vieiralves

de Castro

Centro de Ciências Sociais José Flávio Pessoa de Barros

Programa de Estudos de América Latina e Caribe

Maria Teresa Toribio Brittes Lemos

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Ficha Catalográfica elaborada pela Divisão de Processamento Técnico - SISBI/UERJ

.

Além do Mar Tenebroso: Tordesilhas e o Novo Mundo / Organização: Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos; [colaboradores] Creusa Capalbo... [et al.]. - Rio de Janeiro: UERJ / PROEALC, 1995. 100 p. Inclui Bibliografia ISBN 85-7107-014-8 1. Tratado de Tordesilhas (1494) I. Lemos, Maria Teresa Toríbio Brittes. II. Capalbo,

Creusa.

Publicado no Rio de Janeiro em 1995 pelo Programa de Estudos de América latina e Caribe (PROEAlC) do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Programação Visual de Rosania Rolins, Capa de Heloisa Fortes, Revisão de Marco Aurélio Mello Reis e Impressão da GrMica da Uerj.

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A Representação do Meridiano do

Tratado de Tordesilhas no Planisférico de Cantino

Renato Pereira Brandão*

A Descoberta do Mapa de Cantino e sua Representação do Litoral Brasileiro.

Para o historiador português Alfredo Marques (1991:23), o

mapa denominado "de Cantino" é seguramente o mais

importante da história da Cartografia. Encontramos nesse

planisfério a primeira representação gráfica até hoje conhecida

do território brasileiro. É um belo mapa quinhentista, medindo

1,05m x 2,20m, encontrando-se atualmente na Biblioteca

Estesense em Módena, na Itália, havendo uma reprodução em

fac-símile na Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores,

no Rio de Janeiro.

Encontrava-se este mapa, cuja história mais parece a obra da

imaginação fértil de um romancista, na biblioteca dos Estes em

Módena, para lá transferido após a perda do ducado de Ferrara

pela Casa dos Estes. A sua origem era desconhecida, já que não

traz nenhuma indicação do cartógrafo que o elaborou e do ano de

sua execução. Em 1859, essa biblioteca foi saqueada, por conta

de um levante popular, desaparecendo então o mapa.

Posteriormente, o diretor da Bibli-

* Professor Titular da Universidade Estácio de Sá, Mestre em História da Arte I EBA-UFRJ e Doutorando em História I UFF

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oteca Estesense, Sr. Giuseppe Boni, foi reencontrá-lo decorando

a parede de uma salsicha ria, recuperando-o e levando-o de volta

à biblioteca. Pouco depois, o historiador americano H. Harrisse,

através do estudo das cartas de Hércules d'Este, duque de Ferrara

no início do século XVI, descobriu a história desse mapa. Foi

feito em princípio de 1502, secreta mente, por um cartógrafo

português, que manteve-se no anonimato, por encomenda do re-

presentante comercial do duque em Lisboa, provavelmente seu

espião, Alberto Cantino, a pedido do duque, que queria o mais

completo mapa que fosse possível obter das recentes descobertas

de portugueses e espanhóis, tanto no Novo Mundo como no

Velho Mundo. Em 19 de novembro do mesmo ano, o mapa

chegou às mãos do duque Ferrara, que pagou a soma de doze

ducados de ouro(1).

Mostra a África com grande precisão, a Índia, apesar de

estreitada na ponta, já na sua verdadeira forma de península, e

uma configuração da costa Índia-China, bastante aproximada da

verdadeira. O primeiro a representar o Novo Mundo, mostra um

perfil das ilhas das Índias ocidentais, a costa das Guianas, da

Venezuela e do Brasil e ainda parte da costa oriental da América

do Norte, inclusive a Flórida, 11 anos antes de Ponce de Léon

anunciar a sua descoberta. É o primeiro planisfério conhecido

feito na projeção cilíndrica(2) e que apresenta, além do Equador,

os Trópicos do Câncer e do Capricórnio, o que permite estimar

as latitudes(3). Apresenta ainda o meridiano de Tordesilhas

plotado com grande precisão em relação à costa africana.

Trás as indicações das seguintes toponímias na costa

brasileira:

- Cabo de São Jorge - São Miguel - Rio de São Francisco - A baía de Todos os Santos 86

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- Porto Seguro - Rio de Brasil - Cabo de São Marco Junto também do litoral brasileiro, encontra-se o seguinte

texto: A vera cruz + chamada de per nome a qual achou pedralvares cabral fidalgo da cassa dei Rey de Portugal a elle descobrio indo por capitamoor de quatorze naos que o dito Rey mandava a caligut y en el caminho indo topou com esta terra a qual terra si cree ser terra firme em a qual a myta gente de descricam andam nuos omes e molheres como suas mais os parilo sam mais brancos que bacos e teem os cabellos myntos corredios foi descoberta esta dita terra em a era de quinhentos. Pereira chama a atenção da precisão, em termos de latitude,

com que os pontos identificados no litoral brasileiro foram

plotados no mapa:

No planisférico da Casa d'Este os topônimos primitivos do litoral de Vera Cruz estão colocados em suas latitudes quase corretas: o Cabo de São Jorge em 6g. e 30m. (correspondente ao Cabo Branco a 7g. e 8m.), a insula Quaresma em 9g. (Ilha de Santo Aleixo a 8g. e 37m.), Porto Seguro em 16g. (contra 16g. e 20m. verdadeiros). (1984:36/7). Conforme dissemos, através das cartas remetidas por

Cantino ao duque de Ferrara, ficou-se sabendo que a sua feitura

deu-se ao longo do ano 1502, o que ensejou uma dúvida aos

historiadores. Mesmo que tivesse sido a nau que retornou a

Portugal com a notícia da descoberta a responsável pelo

levantamento cartográfico do litoral, como explicar a

identificação

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de alguns pontos assinalados ao sul do Porto Seguro, parte da

costa desconhecida ainda pela frota de Cabra!.

Surpreendentemente, para o historiador inglês John R. Hale

(1970:65), fora Colombo que levara à Espanha descrições

impressionantemente exatas e detalhadas das novas terras,

inclusive do Brasil, que permitiram ao desconhecido cartógrafo

fazer tal mapa.

Contudo, para a maioria dos estudiosos que debruçaram-se

sobre esse problema, a descoberta da história do mapa de

Cantina trouxe a resposta para a dúvida da existência da

expedição exploradora do litoral brasileiro de 1501. Temos a

informação desta expedição através do relato de Américo

Vespúcio, porém, não existe nenhuma referência de sua realiza-

ção nos arquivos de Portugal, já minucioso para todas as frotas

que de lá partiam, além de também não haver nenhuma

referência de que Vespúcio teria sido contratado como

navegador pela Coroa portuguesa. Apoiado assim nos diversos

estudos feitos, Pereira (1984:35) afirma que "O planisfério da

Casa d'Este, de autor anônimo, constitui assim uma prova

incontestável da vinda à Vera Cruz da Expedição de 1501."

II O Mapa, a Expedição e a Descoberta. Discordando da assertiva acima, julgamos que a existência

desse planisférico não dá subsídio inconteste para afirmar a

veracidade da expedição de 1501, por razões que passamos a

apresentar.

Inicialmente, devemos considerar a natureza do documento

em que se tomou conhecimento da existência dessa expedição.

Foi através da publicação em Florença, em 1505/6, da carta

remetida por Américo Vespúcio a Pedro Soderini, em 1504,

onde narra essa viagem que teria tido início em Lisboa em março

de 1501 e finalizando em setembro de 1502. Vespúcio conta que

veio fazer parte dessa expedição a convite de D. Manuel, por ser

emérito cosmógrafo, palavra

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que tinha um significado equivalente ao de cartógrafo. Esse

documento já foi alvo de análise por parte de diversos

estudiosos, que tendem a considerá-lo como de relato verídico.

Não pretendendo entrar no mérito desta discussão, lembramos,

porém, que Portugal contava na época com os melhores

navegadores e cartógrafos (o próprio mapa em questão assim o

comprova), não havendo nenhum sentido em o rei D. Manuel

necessitar recorrer aos préstimos de um estrangeiro, cuja única

referência que se tinha a seu respeito, era de agente comercial da

casa dos Médicis.

É preciso também considerar o silêncio sobre essa que teria

sido a primeira expedição a ser enviada à nova terra descoberta,

não só nos arquivos portugueses, como em todos os cronistas

que narraram a chegada às Índias(4). Observamos que nada

explicaria a necessidade de sigilo, que teria feito desaparecer

todos os documentos referentes, e calar todos os cronistas, em

relação não só ao episódio como também a Vespúcio, pois nesse

mesmo ano de 1501, D. Manuel tornou pública a descoberta do

Brasil, através de uma carta enviada aos Reis Católicos.

Todavia, mesmo indo contra esses fatos, e considerando

verídica a participação de Vespúcio como cosmógrafo nessa

expedição, observamos contradições nas informações narradas

por Vespúcio e as contidas no nosso referido mapa. A mais

evidente é que teria ele retomado a Portugal trazendo as

informações necessárias para a elaboração do mapa, em

setembro de 1502, ou seja, quando o mapa já estaria quase, se

não totalmente pronto. Precisamos também considerar, além do

tempo necessário para o cálculo e desenho das novas

informações, o tempo que o cartógrafo anônimo levou para ser

corrompido e ter acesso, certamente por meios ilícitos, às

informações do cartógrafo da expedição, Vespúcio, que, segundo

suas palavras, era depositário das maiores confianças do rei.

lembramos ainda que a pena para o crime de traição era de

morte. Ou seja, mesmo que a moral e a ousadia do cartógrafo

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anônimo e de Vespúcio fossem de causar inveja a determinados

homens públicos atuais, é absolutamente impossível que toda

essa conjuntura tenha se concretizado em tão curto espaço de

tempo.

Continuando apontando as contradições, Vespúcio faz

referência à descoberta de uma baía, em 25 de dezembro, que,

por isso, recebeu o nome de Salvador. Porém, esta mesma baía

está indicada no mapa de Cantino como de Todos os Santos.

Partindo da baía de Salvador, Vespúcio só irá fazer posteriores

referências a Ilha Grande e Angra dos Reis(5), contudo o mapa

assinala com precisão Porto Seguro, indica o Rio de Brasil,

provavelmente a baía da Guanabara, e não faz nenhuma

referência a Ilha Grande ou Angra dos Reis.

Referindo-se a essa primeira expedição na carta dirigida a

Lorenzo dei Medeci, Vespúcio faz as seguintes considerações,

extremamente significativas, dentro desse quadro de

contradições:

Em parte por ignorância do capitão e dos lugares, e em parte pelas tempestades e ventos que nos impediam seguir caminhos rectos, obrigavam a muitas singraduras; de modo que, a não ser os que entendíamos de cosmographia, não seria o nosso chefe que durante quinhentas léguas soubesse onde estávamos... Andaríamos vagos e errantes, a não nos valermos dos nossos instrumentos de tomar altura – o quadrante e os astrolábio – bem conhecidos. E assim, desde então, todos nos fizeram muita honra, e lhs provei que sem conhecimento da carta de navegar, não há disciplina que valha para a navegação a não ser pelos mares já pelos mesmos indivíduos muitos navegados (Apud De Los Rios, 1915:1012)

Vespúcio observa a dificuldade de localização em função

das constantes alterações dos rumos seguidos devido a

tempestades e ventos. Como então consegui-

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ram fazer um levantamento razoavelmente preciso de parte do

litoral, se encontraram dificuldade na própria localização?

Porém, o mais relevante, é que Vespúcio chama a atenção da

importância de saber utilizar a carta de navegar em mares

desconhecidos. Como então pôde Vespúcio demonstrar essa

sapiência, se essa viagem era a primeira exploração desses mares

e que teria sido graças a ela que o primeiro mapa pôde ser feito?

Sendo verídico ou não o seu relato dessa viagem, Vespúcio

demonstra ter conhecimento da existência de cartas de

navegação para a região que estaria sendo explorada. Ao mesmo

tempo, observamos que o planisférico de Cantino foi o primeiro

feito na projeção cilíndrica, até então de utilização exclusiva nas

cartas de navegação portuguesas. Assim, o que nos parece mais

provável, é que o cartógrafo anônimo tenha feito esse

planisférico a partir, principalmente, das cartas de navegação já

existentes. Caso contrário, seria menos trabalhoso e demorado

atualizar um planisférico já existente feito, necessariamente, na

projeção cônica.

Um outro aspecto que tem sido negligenciado pelos

estudiosos é que esse mapa demonstra que o seu cartógrafo tinha

conhecimento preciso não só das latitudes como também das

longitudes de pontos do nosso litoral. A relação numérica no

mapa de Cantino entre as distâncias do meridiano de Tordesilhas

ao extremo leste do litoral (Cabo de São Jorge) e do mesmo

meridiano à costa da África, é extremamente próxima à mesma

relação em um planisférico atual, também na projeção

cilíndrica(6).

Luís de Albuquerque, referindo-se a Alonso de Santa Cruz e

ao seu Libro de Ias Longitudes, faz as seguintes referências

sobre o cálculo das diferenças de longitude na época:

No segundo capítulo, Alonso de Santa Cruz trata o problema de achar a diferença de longitude entre dois lugares por "ângulos de po- 91

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sição"; o método consistia em partir de um dos lugares por determinado rumo e saber, através do Regimento da Léguas, quanto havia de se navegar para o navio se afastar determi-nada distância do meridiano de partida. É claro que o Regimento das Léguas, possivelmente obtido por processos gráficos, não podia ser aplicado para grande derrotas, (o grifo é nosso) já que a distância entre dois meridianos se ia encurtando à medida que se avança em latitude. (...) A esta dificuldade de fundo juntava-se a impossibilidade de se manter o navio em rumo constante. (...) No terceiro capítulo ocupa-se do modo de resolver o problema que o preocupa por eclipse do sol e da lua (...) Contudo, do que diz também se infere que, afinal, não aprova o processo, pois ele exigia que a bordo de cada navio seguissem astrônomos doutos, que as horas dos eclipses fossem previstas com grande precisão (o que estava longe de se verificar) e que os relógios em uso tivessem marcha regular (o que também não era o caso). (1987:26).

Apesar de Alonso de Santa Cruz considerar impróprio para

a navegação o método de se obter a diferença de longitude pela

c6njunção de eclipses, era o único que na época permitia a

obtenção dessa coordenada com certa precisão. Exigia ele,

conforme visto, que as observações fossem feitas em terra, em

épocas determinadas e por "astrônomos doutos".

III Considerações Finais Apesar de muito ter sido escrito sobre os descobrimentos

portugueses, faltam ainda explicações consistentes das razões

que levaram a minúscula nação portuguesa, que a duras penas

preservava a sua inde-

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pendência frente às ameaças castelhanas e mouras, ter tomado a

vanguarda desse processo. Segundo o medievalista português

José Mattoso (1987), os fatores até então apontados (cruzadas,

viagens de missioneiros e aventureiros ao Oriente, inventos

técnicos, existência de uma burguesia mercantilista e

desenvolvimento do comércio português no Atlântico Norte etc.)

são importantes, porém insuficientes para explicar suas razões,

pois, como se compreende esta tendência para a expansão

ultramarina se o Ocidente passava, desde meados do século XIV,

por um período de crise demográfica e de recessão econômica?

Onde estão os excedentes populacionais que alimentam a

constante sangria de gente? De onde vem agora a curiosidade por

costumes diferentes, o ímpeto para comunicar com povos de

língua desconhecida, a coragem de navegar através do oceano

cheio de perigo? Estas perguntas permanecem sem respostas. Do

mesmo modo, muito se tem discutido a respeito da natureza da

descoberta do Brasil. Se foi fruto da intencional idade ou do

acaso. Todavia, essa discussão tem se mostrado pouco produtiva

e, até mesmo, estéril.

Acreditamos que esta dificuldade deve-se, primordialmente,

à política do sigilo praticada pela Coroa portuguesa nas questões

relacionadas aos descobrimentos, até a consolidação da rota

atlântica para as Índias, sendo esta a razão da inexistência nos

arquivos portugueses de documentos relativos a este tema,

anteriores ao século XVI. Segundo Cortesão (1947:541/2), no

minucioso testamento de D. Henrique, personagem chave dos

descobrimentos, considerado o introdutor de grandes avanços

nas ciências náuticas(7) não se encontrou um único roteiro ou

carta náutica. As informações que temos sobre os

descobrimentos até o século XVI advêm, principalmente, dos

relatos parciais e duvidosos dos cronistas. A partir de então,

existe uma farta documentação sobre as frotas que se dirigiam à

América, África e Ásia, assim como dos acordos comerciais e da

política externa da Coroa portuguesa.

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Ao nosso ver, a manutenção do sigilo em relação ao prévio

conhecimento do continente americano fazia-se necessário,

inicialmente pelo fato de que o domínio da rota atlântica pelos

portugueses tinha como objetivo, não o contorno de um pretenso

bloqueio muçulmano, conforme apregoado pela maioria dos

historiadores, mas, na realidade, a execução desse bloqueio, ao

impedir o acesso ao Mar Vermelho e Golfo Pérsico das

especiarias vindas do Oriente, que seriam recebidas nos portos

do Egito e da Síria por mercadores italianos, principalmente

venezianos. Atentando para esta perspectiva, entendemos porque

eram os espiões das repúblicas italianas, principalmente

venezianos, os maiores interessados na obtenção desses

segredos.

Posteriormente, a Coroa portuguesa visou também limitar a

ação dos Reis Católicos, apoiados pelo Papa espanhol Alexandre

VI. Através da "descoberta" do Brasil, que teve como

conseqüência a constatação de que Colombo não havia chegado

às Índias, procurou acobertar o engodo em que teriam sido

envolvidos os reis de Espanha, no Tratado de Tordesilhas.

Lembramos que o meridiano de Tordesilhas foi posicionado de

maneira exata de modo que o litoral brasileiro ficasse dentro dos

domínios da Coroa portuguesa, ao mesmo tempo que o

contrameridiano preservava os principais centros de produção e

distribuição de especiarias no Oriente.

As rotas dos veleiros eram definidas não somente pelos

regimes de ventos, como também pelas correntes marinhas. A

corrente das Canárias e Guiné percorrem o litoral ocidental

africano no sentido norte-sul até a região equatorial. A partir de

então a corrente dominante é a de Banguela, que corre no sentido

inverso. Assim, para que as embarcações portuguesas que di-

rigiam-se ao Oriente ultrapassassem o cabo da Boa Esperança,

era necessário que seguissem a corrente do Brasil, a partir do R.

G. do Norte, até o encontro da corrente das Falklands, que, vinda

da Antártica, muda

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de direção no sul do Brasil, dirigindo-se ao Cabo da Boa

Esperança. Assim, a importância do litoral brasileiro devia-se,

além de fornecer portos para abastecimentos, aguadas e reparos,

por ser passagem obrigatória para as naus que seguiam em

direção ao Oriente. Desta maneira, o seu domínio significava o

controle da rota atlântica para as Índias.

O posicionamento do meridiano de Tordesilhas no mapa de

Cantino nos permite afirmar que a dimensão continental do

Novo Mundo era há muito conhecido por um restrito número de

pessoas envolvidas

.com a expansão ultramarina portuguesa. Necessariamente, foi

através de observações feitas ao longo de anos por "astrônomos

doutos" que o desconhecido cartógrafo pôde dispor de

informações tão precisas do nosso litoral.

Contudo, preferiu-se produzir uma versão absolutamente

fantástica para a origem desse planisférico que, ao nosso ver,

demonstra claramente que a "descoberta" do Brasil teve como

objetivo legitimar o poder da Coroa portuguesa sobre um

território que, sigilosamente, há muito era conhecido.

Paradoxalmente, continua-se ainda a discutir se essa

"descoberta" foi fruto do acaso ou da intencionalidade.

Olhando assim, através da ótica do sigilo, passamos a

perceber o processo histórico de um modo bem mais coerente, e,

acreditamos, próximo da realidade.

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Notas 1 - Orville A. Derby. Estudos Cartographicos da primeira phase dos descobrimentos na América. 1914:335. Moacyr Soares Pereira. A navegação de 7507 ao Brasil e Américo Vespúcio. 1984:33/4. 2 - A Cartografia tem como objetivo representar graficamente parte da superfície terrestre. Essa representação, porém, tem características próprias que devem ser obedecidas. A mais evidente é que a área representada seja vista de cima, como de um balão estacionado. Essas representações devem ser elaboradas em uma escala pre-determinada, ou seja, guardando uma relação constante entre a dimensão da representação gráfica com a verdadeira dimensão do representado. Além disso, é preciso que cada forma ou acidente do terreno esteja colocado exatamente na direção correspondente em relação a outros pontos. Contudo, a superfície representada no plano, como são as cartas e mapas, não são, na verdade, planas, mas parte de uma superfície esférica. Como não é possível aplainar de forma contínua a esfera no plano, ou seja, a esfera não é desenvolvível no plano, deparamo-nos com a questão central da Cartografia. Resolve-se este problema lançando-se mão do artifício da projeção, ou seja, projeta-se, através de cálculo analítico ou geometricamente, a rede de meridianos e paralelos correspondentes à superfície a ser representada diretamente sobre o próprio plano, cilindro, ou cone. Contudo, essa passagem do esférico para o plano traz, necessariamente, deformações. A Cartografia procura, então, em suas representações, manter a equivalência para um dos três elementos básicos (direções, distâncias e áreas) escolhendo um deles, em função da finalidade da carta, deformando os dois outros. A parti r de suas deformações, as representações cartográficas podem ser classificadas em eqüidistantes (mantêm as distâncias e deformam as direções e áreas), equivalentes (mantêm as áreas e deformam as distâncias e direções) ou conforme (mantêm as direções e deformam as áreas e distâncias). Assim, em função da finalidade que terá a carta, é selecionado o elemento que preservará a sua equivalência e a figura geométrica sobre a qual será projetada a esfera. Como em navegação o erro de direção, por ser cumulativo, é muito mais grave que de distância, e como as projeções cilíndricas apresentam os

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meridianos e paralelos como linhas retas e paralelas, o que facilita a determinação das coordenadas geográficas e dos rumos a serem seguidos, o tipo de projeção utilizada na confecção das cartas náuticas e a cilíndrica conforme.

3 - Atualmente, as coordenadas geográficas são obtidas através

de sinais emitidos por satélites e interpretados por aparelhos denominados GPS. Contudo, antes dos satélites artificiais, as coordenadas geográficas eram obtidas por observações astronômicas. Assim, a representação da esfera no plano esteve sempre associada ao posicionamento dos astros em um determinado momento na abóbada celeste. O cálculo da latitude não constituía. grandes dificuldades aos antigos navegadores, principalmente no hemisfério norte, pois a observação da altura da estrela polar sobre o horizonte permitia determinar a latitude local, que seria tanto maior quanto mais alta ela estivesse. Na falta da estrela polar, o que ocorre no hemisfério sul, é possível calcular a latitude a partir da altura que o sol cruza a meridiana local. Contudo, como o movimento do sol não é regular, a sua altura só está diretamente relacionada à latitude quando do equinócio, ou seja, em 23 de setembro ou 21 de março. Fora destas datas é necessário entrar com correções, estabelecidas em tabelas astronômicas, para que se obtenha a latitude com precisão. Quanto à longitude, mais recentemente, quando se pode contar com relógios mecânicos e portáteis (meados do século XVII!), o cálculo da diferença de longitude em relação a um meridiano de referência, ficou reduzido ao cálculo da diferença horária transformada em graus.

..

4 - Pereira, id.: 14/5/6/7: "Surpreendentemente jamais se encontrou nos arquivos oficiais e particulares portugueses qualquer documento relacionado a esta navegação exploratória das costas brasileiras. É conhecida a carta do Visconde de Santarém a Fernandez de Navarrete, que a publicou a seu pedido, sobre as viagens de Américo Vespúcio por ordem da Corte de Lisboa, na qual ele refere a busca que efetuou nas chancelarias originais do Rei D. Manuel I, de 1495 a 1503 inclusive, em dezenas de milhares de documentos do corpo cronológico, do das gavetas, e nos "paquetes" das cartas missivas dos Reis e outros personagens, sem aparecer em nenhum desses documentos o nome de Vespúcio. Sua pesquisa, acrescenta, estende-se à coleção de manuscritos da Biblioteca Real de Paris, na parte relativa aos descobrimentos e viagens lusas, com

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resultados também negativos. (...) os cronistas portugueses de Quinhentos, em sua quase totalidade, não escreveram uma só palavra sobre a primeira navegação manuelina ao Brasil. Fernão lopes de Castanheda e João de Barros nada dizem a respeito do acontecimento; o mesmo ocorrendo com Damião de Góis, Jerônimo Osório e Pedro de Mariz, que apenas se referem à expedição de Gonçalo Coelho à Terra de Santa Cruz, composta de seis velas, das quais perdera quatro no curso da viagem - evidentemente a de 1503."

Há uma evidente distorção quando Pereira refere-se à quase totalidade dos cronistas, pois não consegue citar um único que confirme a expedição narrada por Vespúcio.

5 - De los Rios, 1915:1015: "A partir do momento em que a flotilha de 1501, se faz de vela, partindo da Bahia do Salvador, as chrônicas, que eu saiba, nada revelam, até hoje, a respeito dos descobrimentos que ella continuou fazer pela costa, até que no dia 6 de Janeiro de 1502, essas chrônicas tornam a nos dizer que a flotilha lusitana surge defronte de uma ilha e de uma enseada, às quaes deu os nomes de Ilha Grande e Angra dos Reis."

6 -Segundo nossos cálculos, esta diferença, em termos percentuais, é de aproximadamente, 8%.

7 - Segundo Manuel de Pimentel (1969) [1712]:136), Cosmógrafo Mor do Reino, autor da "Arte de Navegar e Roteiro das Viagens e Costas Marítimas", coube ao Infante D. Henrique o invento das cartas de marear de graus iguais e meridianos paralelos. A. Cortesão (ln Pimentel, p. 138 nota 48) afirma que essas cartas portuguesas chamadas planas ou de graus iguais, "nas quais os meridianos e paralelos se representam em linhas eqüidistantes que fa-zem quadrados iguais", correspondem à projeção cilíndrica eqüidistante em que o equador é o paralelo principal. Assim, considerando-se correta a informação de Pimentel, D. Henrique foi o responsável pela introdução da Cartografia na navegação do ocidente, já que não podemos considerar as cartas portulana.s como representações cartográficas devido à ausência de um sistema de projeção. Apesar das críticas de Ptolomeu referentes às grandes deformações provocadas pela projeção cilíndrica nas médias e altas latitudes, a sua utilização na Cartografia náutica representou um grande avanço, pois o sistema de quadrículas retangulares em muito facilitava o posiciona" mento da embarcação na carta, através das coordenadas 98

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geográficas. Em certo sentido, podemos dizer que a utilização da projeção cilíndrica nas cartas náuticas expressa uma visão “transatlântica”, já que esse tipo de projeção é mais adequada para as regiões equatoriais, conforme argumenta Pimentel. O toque final na Cartografia náutica foi dado pelo cartógrafo holandês Gehard Kauffman (1512-1594), conhecido pelo nome latinizado de Mercator, que em 1569 publicou um mapa-múndi, na projeção cilíndrica conforme. Mercator obteve essa conformidade por proces-so gráfico. A aplicação da projeção cilíndrica conforme foi fundamental para a Cartografia náutica, pois permite que se obtenha facilmente na carta não só as coordenadas geográficas como o rumo verdadeiro que une dois pontos. Posteriormente, descobriu-se a fórmula analítica da projeção cilíndrica conforme, sendo este o tipo de projeção adotada para as cartas náuticas até a atualidade. 99

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