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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 O recrutamento por cooptação no Judiciário latino-americano: os casos chileno e colombiano Julia Veiga Vieira Mancio Bandeira 1 Resumo O artigo tem por objeto os modelos de recrutamento judicial por cooptação empregados na Colômbia e no Chile e seus desdobramentos na hierarquização e independência dos poderes judiciais em questão. Busca-se compreender como a cooptação forjou judiciários pouco influenciados pelo poder político, mas com uma elite judicial com traços aristocráticos e que dificulta a renovação da interpretação judicial. Portanto, parte-se da hipótese que o recrutamento por cooptação, ainda que garanta a independência do Judiciário, incentiva a formação de uma uma elite judicial fechada e auto-centrada. A hipótese do presente artigo será avaliada através da apresentação de um breve panorama histórico- estrutural da institucionalização dos judiciários em questão, observando o efeito dos modelos de recrutamento adotados e das disputas para defini-los em sua hierarquização e independência. Assim, pensar-se-á a relação do recrutamento com a posição do judiciário no sistema político, problematizando os prejuízos da conservação de instituições auto- centradas em Estados democráticos. Palavras-chave: Recrutamento; Cooptação; Poder Judicial; Chile; Colômbia. Introdução O presente artigo analisa o recrutamento por cooptação instituído no Chile em 1925 e na Colômbia em 1958, e que permaneceram até as restrições decorrentes das reformas da década de noventa, buscando compreender seu efeito na hierarquização e na independência do Judiciário, bem como no seu papel no sistema político do país. A cooptação caracteriza o sistema em que o próprio poder judicial designa o corpo de magistrados que irá compô-lo, mediante procedimentos internos, ou seja, sem a ingerência de outros poderes 2 . Os dois casos, portanto, apresentam judiciários pouco influenciados pelo poder político, caracterizados por uma elite judicial com traços aristocráticos, a qual dificulta a renovação da interpretação judicial ao impedir a nomeação de juízes que discordam da postura dominante nas cortes. Nesse sentido, parte-se da hipótese que o recrutamento por cooptação, ainda que garanta a independência do Judiciário, incentiva a formação de uma elite judicial fechada e auto-centrada. É necessário ressaltar que os formatos institucionais não estão apartados das estratégias de obtenção do poder pelas elites, ou seja, o modelo de recrutamento não é entendido apenas como o 1 Bacharel em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda em Ciência Política pelo PPGPol-UFRGS. Email: [email protected]. Bolsista CAPES. 2 No Chile, contudo, tem-se a versão indireta do modelo, pois as nomeações da segunda (Corte de Apelações) e da terceira instância (Suprema Corte) contam com a participação do Executivo, que indica os juízes a partir de listas elaboradas pelas altas cortes.

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I Seminário Internacional de Ciência Política

Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

O recrutamento por cooptação no Judiciário latino-americano: os casos chileno

e colombiano Julia Veiga Vieira Mancio Bandeira1

Resumo O artigo tem por objeto os modelos de recrutamento judicial por cooptação empregados na Colômbia e no Chile e seus desdobramentos na hierarquização e independência dos poderes judiciais em questão. Busca-se compreender como a cooptação forjou judiciários pouco influenciados pelo poder político, mas com uma elite judicial com traços aristocráticos e que dificulta a renovação da interpretação judicial. Portanto, parte-se da hipótese que o recrutamento por cooptação, ainda que garanta a independência do Judiciário, incentiva a formação de uma uma elite judicial fechada e auto-centrada. A hipótese do presente artigo será avaliada através da apresentação de um breve panorama histórico-estrutural da institucionalização dos judiciários em questão, observando o efeito dos modelos de recrutamento adotados e das disputas para defini-los em sua hierarquização e independência. Assim, pensar-se-á a relação do recrutamento com a posição do judiciário no sistema político, problematizando os prejuízos da conservação de instituições auto-centradas em Estados democráticos. Palavras-chave: Recrutamento; Cooptação; Poder Judicial; Chile; Colômbia. Introdução

O presente artigo analisa o recrutamento por cooptação instituído no Chile em 1925 e na

Colômbia em 1958, e que permaneceram até as restrições decorrentes das reformas da década de

noventa, buscando compreender seu efeito na hierarquização e na independência do Judiciário, bem

como no seu papel no sistema político do país. A cooptação caracteriza o sistema em que o próprio

poder judicial designa o corpo de magistrados que irá compô-lo, mediante procedimentos internos,

ou seja, sem a ingerência de outros poderes2. Os dois casos, portanto, apresentam judiciários pouco

influenciados pelo poder político, caracterizados por uma elite judicial com traços aristocráticos, a

qual dificulta a renovação da interpretação judicial ao impedir a nomeação de juízes que discordam

da postura dominante nas cortes. Nesse sentido, parte-se da hipótese que o recrutamento por

cooptação, ainda que garanta a independência do Judiciário, incentiva a formação de uma elite

judicial fechada e auto-centrada.

É necessário ressaltar que os formatos institucionais não estão apartados das estratégias de

obtenção do poder pelas elites, ou seja, o modelo de recrutamento não é entendido apenas como o

1 Bacharel em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda em Ciência Política pelo PPGPol-UFRGS. Email: [email protected]. Bolsista CAPES. 2 No Chile, contudo, tem-se a versão indireta do modelo, pois as nomeações da segunda (Corte de Apelações) e da terceira instância (Suprema Corte) contam com a participação do Executivo, que indica os juízes a partir de listas elaboradas pelas altas cortes.

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resultado de um conjunto de regras formais, mas também como reflexo do jogo de legitimação das

elites judiciais, o qual tem seu sentido definido ao longo das disputas no espaço judicial e político.

Dessa maneira, a hipótese do presente artigo será avaliada através da apresentação de um breve

panorama histórico-estrutural da institucionalização dos judiciários em questão, observando o efeito

dos modelos de recrutamento adotados e das disputas para defini-los em sua hierarquização e

independência. Assim, pensar-se-á a relação do recrutamento com a posição do judiciário no

sistema político, problematizando os prejuízos da conservação de instituições auto-centradas em

Estados democráticos. Além disso, a análise possibilita entender porque o poder judicial

colombiano caracteriza-se por ter desenvolvido um sistema clientelista, enquanto no Chile forjou-se

uma estrutura vertical e aparentemente meritocrática. Nesse sentido, o mesmo modelo de

recrutamento levou a desdobramentos semelhantes na posição do Judiciário frente ao sistema

político, mas a resultados opostos quanto às estruturas internas do poder judicial.

O artigo possui, além dessa introdução e da conclusão, três seções. Na primeira será

abordada a construção dos Judiciários, a fim de entender as ideias que permearam suas

institucionalizações. A segunda seção discorrerá sobre as posições ocupadas por eles em seus

respectivos Estados quando a cooptação já havia sido estabelecida. Já na terceira seção, analisar-se-

á as tentativas de reforma do Judiciário desenvolvidas durante a década de 1990.

A institucionalização do poder judicial

Apesar de enfrentarem períodos históricos semelhantes na sua construção estatal, como a

reconquista espanhola e a alternância entre governos liberais e conservadores, Chile e Colômbia

responderam de modos distintos a tais momentos. Por exemplo, mesmo com a abdicação do rei

espanhol em 1808, forçada por Napoleão, a elite chilena manteve-se leal ao rei deposto. Assim,

apesar de ter formado um governo nacional, este era exercido em nome do monarca da metrópole.

Em 1814, com a derrota napoleônica, o domínio espanhol foi restabelecido, porém a elite não mais

o desejava, o que levou as batalhas pela independência. Quatro anos depois, em 1818, o Chile

declara sua independência e logo alcança a estabilidade política. A despeito dos anos iniciais de

instabilidade, devido a discordâncias sobre a configuração estatal, poucas guerras civis eclodiram e

sempre foram rapidamente suprimidas pelo Estado.

Na Colômbia, por sua vez, este processo não foi tão pacífico. A invasão napoleônica foi

respondida pela elite colombiana com a declaração de independência em 1810, porém o

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fortalecimento de um governo nacional não foi possível, devido à luta constante entre federalistas e

centralistas. Com a reconquista espanhola, entre 1815 a 1819, os criolos uniram-se contra o inimigo

externo, contudo, assim que o expulsaram, voltaram ao embate. Em meados do século XIX, a

rivalidade política e as guerras civis organizaram-se das disputas entre os partidos Liberal e

Conservador, mantendo-se assim durante os próximos cem anos. Portanto, desde sua

independência, a Colômbia foi assolada por guerras civis que debilitaram o Estado.

Se o desenvolvimento contrastante influenciou o Judiciário de formas diversas, a herança

colonial da Espanha assegurou pontos semelhantes. A influência espanhola foi mais sentida no

Chile, onde a ruptura com a metrópole foi mais gradual. Assim, a estrutura organizacional do

Judiciário chileno conserva as características essenciais do sistema judicial monárquico estabelecido

no período colonial, de modo que em mais de 200 anos de República sua evolução institucional foi

praticamente nula3 (LIZANA, 2001). As características do sistema monárquico podem ser

sintetizadas pelos seguintes fatores: a) organização piramidal, com o rei no vértice e, abaixo,

sucessivos escalões de funcionários que exerciam controle sobre o escalão imediatamente inferior e

recibiam o poder de jurisdição por delegação do monarca, exercendo-o em seu nome (HORVITZ,

2007); b) o governo judicial exercido pelo rei, nomeando os juízes e efetuando o controle

disciplinar sobre eles, ao mesmo tempo em que exercia funções jurisdicionais, já que a última

palavra era reservada a ele, seja em sua qualidade de última instância jurisdicional, seja pela revisão

judicial (LIZANA, 2001), e c) a não-interpretação da lei pelo juiz, que deveria aplica-lá segundo

um rigoroso formalismo (GONZÁLEZ, 2010), mantendo-se distante da comunidade na qual exercia

suas funções.

Quando a Suprema Corte de Justiça é instituída, com a Constituição de 1823, o modelo

piramidal foi mantido, na medida em que lhe foi outorgada a superintendência diretiva, correcional,

econômica e moral sobre todos os tribunais e juizados da nação. Nesse sentido, a Suprema Corte

apenas substituiu as organizações reais no vértice da pirâmide, acumulando funções jurisdicionais,

administrativas e disciplinares (MONARDES, 2005), e, consequentemente, um grande poder dentro

da própria estrutura do Judiciário. Não obstante, o poder judicial manteve um papel subordinado no

Estado.

3 Como Hilbink (2007) aponta, apesar desse ser um fato singular em um continente marcado pela instabilidade como a América Latina, isso mostra que o Judiciário do país não se caracteriza apenas como estável, mas, principalmente, como uma instituição indiferente às mudanças socio-políticas que ocorrem em sua volta e, consequentemente, rígida e pouco adaptável.

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Dez anos depois, a Constituição de 1833 desequilibrou ainda mais a balança entre os

poderes estatais, pois foi marcada pelo objetivo de trazer ordem ao país após os anos de violência

das lutas pela independência, promovendo a centralização do poder no Executivo. Nesse momento

foi crucial a liderança dos juristas Mariano Egaña e Andrés Bello, os quais acreditavam que se a

previsibilidade da interpretação das leis fosse assugurada, a estabilidade política e o progresso

econômico seriam possíveis (FRUHLING, 1984). Para isso, promoveu-se a codificação do direito, a

centralização do poder e a criação de uma burocracia judicial fiel.

Portanto, o Presidente teve seus poderes aumentados e passou a ter um controle maior sobre

o judiciário. Apesar de não poder nomear os juízes à sua vontade4, ele tinha o poder de

supervisionar a administração da justiça e o comportamento dos juízes (HILBINK, 2007).

Conforme Hilbink (2003), a Constituição de 1833 também retirou o poder de revisão judicial do

Judiciário, outorgando-o ao Legislativo. Tanto as funções dos tribunais quanto a independência

judicial foram, assim, restringidas em comparação com a Constituição anterior.

Para Hilbink (2003; 2007), a grande preocupação de Andrés Bello era que os juízes

utilizassem seu poder discricionário individual para favorecer partes particulares, dividindo e

corroendo a autoridade do Estado, de modo que o exercício de sua profissão precisava ser

extramamente restrito e controlado. Como parte desse ideal, o Código Civil de 18555 proibiu os

juízes de interpretar a lei, o que minimizou sua discricionariedade. Tais medidas não geraram

maiores tensões entre o poder judicial e o Executivo, pois os juízes eram oriundos das mesmas

famílias de elite e dos círculos político-legal que o presidente (DEZALAY; GARTH, 2002),

apresentando, pois, interesses comuns. Por último, a combinação dos princípios positivistas de

Bello com a centralização do período, por vezes autoritária, fez com que o Direito estivesse menos

relacionado à garantia da liberdade e da igualdade, do que com a obtenção da ordem e da

estabilidade (HILBINK, 2007).

Apesar de marcado pela subordinação do poder judicial ao Executivo, o período de 1825 a

1891 representou grande estabilidade às cortes do país, à medida que os novos formatos

institicionais, e, assim, o desenho de uma nova dinâmica na relação dos dois poderes, não levaram o

4 Pois que a prerrogativa do recrutamento era dividida entre a Suprema Corte, que elaborava uma extensa lista de candidatos, o Conselho de Estado, que diminuía essa lista, e o Presidente da República, que nomeava os juízes a partir das opções enviadas pelo Conselho. 5 O Código Civil de 1855, apesar de reformado, continua em vigência. Seu artigo 3º estabelece: “Sólo toca al legislador explicar o interpretar la ley de un modo generalmente obligatorio. Las sentencias judiciales no tienen fuerza obligatoria sino respecto de las causas en que actualmente se pronunciaren”.

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presidente a se impôr ao Judiciário – a ausência de destituições de juízes no período (LIRA, 2003)

reflete tal realidade. Nas últimas décadas do século XIX, a dominação do Executivo foi

gradualmente substituída pela supremacia do Legislativo. O Judiciário, por sua vez, recuperou

poder, reavendo a revisão judicial, o poder sobre os mandados de habeas corpus e os pedidos de

extradição. A carreira judicial foi instituída pela Ley de Organización y Atribuciones de los

Tribunales de 1875, de modo que os juízes começariam como distritais e, através da avaliação de

seus superiores, avançariam na cadeia hierárquica. Essas reformas, combinadas com a expansão dos

funcionários judiciais, marcou o início da profissionalização do Poder (BILOT, 2013). Portanto,

como aponta Fruhling (1984), é nesse período que o princípio da separação dos poderes tornou-se

institucionalizado e que o Judiciário começou a adquirir legitimidade, mesmo que seu protagonismo

no sistema político tenha permanecido praticamente inexistente.

No entanto, apesar de seu papel apático, sua independência ainda não estava totalmente

assegurada. Com a instituição do parlamentarismo, em 1891, Hilbink (2007) nota que os partidos

oligárquicos vitoriosos realizaram um grande expurgo no Judiciário, substituindo cerca de 80% dos

magistrados por juízes leais aos partidos. Dessa forma, o sistema judicial deixou de estar a serviço

do Presidente para servir às oligarquias partidárias (LIRA, 2003). Esse episódio não foi alvo de

grande oposição, tanto pela ideologia positivista que atribuia um papel passivo e subordinado aos

juízes quanto pelos laços sociais6 e ideológicos compartilhados pelas elites judicial e política

(CUMPLIDO; FRUHLING, 1980).

Com a tomada do poder pelos militares em 1924, um ímpeto reformista tomou a política

chilena - a fim de acomodar as demandas da crescente massa urbana e restaurar a legitimidade e

eficiência do serviço público - inclusive do Judiciário. Nesse contexto, a elite tradicional promoveu

os ideais de judicial review e independência do Judiciário, porque os partidos políticos de esquerda,

formados, majoritariamente, pelas classes médias e baixas, começavam a ocupar espaços de poder,

de forma que era estratégico insular o poder judicial de intervenções políticas futuras (FRUHLING,

1984; HILBINK, 2007). Para tanto, em 1925, foi estabelecido o recrutamento por cooptação

indireta, em que a Suprema Corte determinava uma lista de cinco pessoas para vagas em seus

próprios quadros, e uma lista tripla para vagas nas Cortes de Apelação (segunda instância). Para

entrar na carreira judicial, por exemplo, no nível de juiz distrital, a Corte de Apelação da jurisdição

6 Dezalay e Garth (2002) afirmam que, inicialmente, as cortes eram formadas pelas tradicionais elites oligárquicas, mas que, devido ao papel secundário do Judiciário, a partir do século XX esse laço começa a ser cortado, de modo que no final da década de 1960 poucos membros das famílias oligárquicas encontravam-se no poder judicial.

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em questão formulava uma lista com três pessoas. Todas as listas eram apresentadas para o

Presidente, que nomeava os magistrados escolhidos.

A independência judicial foi fortalecida também pela limitação do poder de destituição dos

juízes pelo Presidente, o qual só poderia afastar um juiz através de um processo formal de

impeachment. Já a Suprema Corte poderia destituir um magistrado por mau comportamento com o

voto de dois terços de seu pleno. Além disso, foi instituído um sistema interno trianual interna

dentro do qual a Corte avaliava e classificava todos os empregados judiciais através de índices de

eficiência, zelo e moralidade do seu trabalho. Portanto, a Corte recuperava o poder que lhe foi dado

nos primeiros anos de República, assemelhando-se, novamente, ao governo judicial monárquico,

por gerir-se de forma autônoma e que exercer grande poder sobre as carreiras de seus subordinados.

Mesmo com as mudanças implementadas em 1927, no que seria a última exoneração em

massa no Judiciário, frente à relativa falta de legitimidade devido a casos de corrupção, o Executivo

propôs-se demitir todos os juízes acusados de desvirtuamento de suas funções. Entretanto, devido a

brutal confrontação entre Executivo e Suprema Corte, o expurgo não foi realizado. É a partir desse

período que - separado estrutural e ideologicamente da política dos ramos eleitos e em uma

dinâmica baseada na auto-geração - o poder judicial passa a se utilizar do discurso da importância

da independência judicial e da compreensão de sua expertise como apolítica (por se fundamentar no

formalismo legal) para se insular cada vez mais frente aos outros poderes de Estado7 e se legitimar

perante eles. Confome Fruhling (1980), o contexto em que esse isolamento foi processado –

marcado pelo desmembramento do Estado oligárquico e pela construção de novas e conflitivas

formas de relações políticas - deixou o Judiciário ainda mais anacrônico, devido à falta de

renovação ideológica, que o afastava da realidade socio-política do país, destacando ainda mais suas

feições conservadoras.

Na Colômbia, por sua vez, a estrutura social, política e econômica herdada da Espanha

também foi mantida após a independência, porém em meados do século XIX esta herança passou a

perder força frente à importação de instituições francesas, inglesas e estadunidenses (CARVAJAL,

2002) – ou seja, a estrutura colombiana foi mais aberta a influências externas do que a chilena. Do

7 Essa busca pelo isolamento pode ser percebida na recusa dos juízes em utilizar os poderes de revisão judicial, pois acreditavam que esta era uma prerrogativa do Legislativo e que a eles cabia apenas a aplicação do que o Legislativo propunha, e de proteção de direitos, sendo considerados os casos de abuso de poder do Estado como de absoluta autoridade do Executivo. Em suma, as cortes acreditavam que não tinham responsabilidade tanto em casos de revisão constitucional quanto de proteção de direitos, pois ambos eram questões “políticas”. Sobre o assunto, ver Hilbink (2003; 2007; 2008), Fruhling (1980; 1984), Faundez (2010) e Peréz (1998).

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sistema herdado da metrópole, a Colômbia, tal qual o Chile, substituiu as organizações reais no

vértice da pirâmide do sistema judicial pela Suprema Corte, que passou a concentrar funções

jurisdicionais, administrativas e disciplinares. No entanto, o poder outorgado à Corte foi bastante

limitado em comparação ao sistema chileno, já que compartilhava com o Executivo e com o

Legislativo algumas competências administrativas e disciplinares. Mesmo assim, até 1843, a Corte

teve um importante papel no recrutamento dos juízes de todas as instâncias através do modelo de

cooptação indireta. Todavia, entre 1843 e 1910, o sistema de recrutamento foi repetitivamente

alterado, oscilando entre a eleição pelo Congresso, a eleição popular e a indicação pelo Executivo

dos magistrados da Suprema Corte, enquanto o resto da hierarquia era selecionada ora por

cooptação ora por indicação do Executivo. Tal instabilidade institucional reflete a disputa política

entre liberais e conservadores pelo poder estatal.

Nessa época foi importante o período da Regeneração (1886-1904), marcado pela

Constituição de 1886, que vigorou até 1991. O movimento regenerador almejava a volta do modelo

unitário e a supressão dos princípios liberais da Constituição de 1863 para garantir a ordem após

anos de conflitos entre centralistas e federalistas. Para isso, a Constituição de 1886 voltou-se à

centralização política e administrativa e ao fortalecimento do Executivo e da Igreja Católica.

Conforme Sarria (2008), a Suprema Corte assumiu um papel importante nesse projeto ao assegurar

a interpretação uniforme e em todo o território do direito nacional. Tal importância fez com que o

Executivo voltasse sua atenção ao poder judicial, a fim de assegurar sua fidelidade aos ideais da

regeneração. Assim, o recrutamento por eleição no Congresso e os mandatos de cinco anos foram

substituídos pela indicação presidencial e pela vitalicidade.

O controle de constitucionalidade também foi suprimido, o que não trouxe grandes

mudanças na ação da Corte, pois, assim como se deu no Chile, a interpretação da separação de

poderes estabelecia a supremacia da lei como proclamada pelo Legislativo, sendo o trabalho dos

juízes apenas aplica-lá. Nesse sentido, o Judiciário sempre teve um papel subordinado aos outros

dois poderes de Estado. De acordo com Nagle (1995), essa tradição foi mantida durante a maior

parte do século XX – mesmo após 1910, quando a judicial review foi restabelecida, fazendo do

Judiciário um poder extremamente passivo e formalístico, e que, frente a uma questão de natureza

política, desqualificava sua ação através do discurso de separação dos poderes pela Suprema Corte.

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Com a reforma constitucional de 1910, resultado da Guerra dos Mil Dias (1899-1902)8 e da

separação do Panamá (1903)9, resultado do enfraquecimento do Estado frente aos sucessivos

conflitos partidários, procurou-se forjar um novo papel à Suprema Corte. Devido à violência

política, foi outorgado à Corte o poder de judicial review, de arbitragem judicial e de defesa dos

direitos dos cidadãos perante abusos do poder público, para que ela atuasse nos conflitos entre o

Legislativo e o Executivo e entre os partidos, garantindo a estabilidade do país (SARRIA, 2013). A

ideia era retirar a face belicista do confronto político através do direito. No entanto, como já

pontuado, este não foi um papel muito empregado pela Corte, visto o entendimento estrito que tem

sobre suas competências (SARRIA, 2008). A reforma também mudou o recrutamento judicial -

substituindo a indicação pelo Executivo pela eleição dos magistrados da Corte pelo Legislativo,

representado pelo Senado, que os elegia a partir de lista tripla submetida pelo Presidente para

mandatos de cinco anos. O restante da hierarquia voltou a ser indicada pela própria Corte.

Depois da instabilidade institucional do século XIX, a partir de 1910, o Judiciário passou a

desfrutar de maior tranquilidade, apesar da manutenção da violência partidária e social no país10.

Essa estabilidade também se refletiu na ausência de exonerações tanto de ministros da Suprema

Corte quanto de juízes de instâncias inferiores. Mesmo na transição da hegemonia conservadora

(1910-1930) à liberal (1930-1946) e na ditadura do General Gustavo Rojas Pinilla (1953-1957), os

mandatos dos magistrados foram respeitados. No entanto, isso não significa que a independência

dos juízes foi observada, dado que o recrutamento por eleição no Congresso era organizado de

forma a espelhar na Suprema Corte a proporção da representação adquirida pelos partidos

Conservador e Liberal no Legislativo.

8 Foi uma guerra civil disputada entre um exército de guerrilhas que representava o Partido Liberal e o exército nacional, nas mãos do Partido Conservador. Foi o maior conflito civil do país e acabou por se internacionalizar, na medida em que Equador, Venezuela (ambos apoiando os liberais) e Estados Unidos (apoiando o governo conservador) participaram (BUSHNELL, 1993). 9 Desde a independência da Colômbia o departamento do Panamá buscava maior autonomia e era contrário aos governos centralistas, o que fez com que os líderes políticos da região se posicionassem contra o governo da Regeneração e, quando a Guerra dos Mil Dias eclodiu, fortalecessem a causa separatista. Foi graças ao apoio estadunidense, devido seu interesse na construção do Canal do Panamá, que o acordo de paz da Guerra foi assinado na região e consedia a independência ao departamento (BUSHNELL, 1993). 10 Carvajal (2002) pontua que o início do século XX na Colômbia foi palco de violentas manifestações de trabalhadores, tanto rurais quanto urbanos, contidas com repressão pelo governo. Para solucionar o problema, as décadas de 1930 e 1940 estabeleceram as bases para a criação de um Estado de bem-estar social na Colômbia com as reformas empreendidas pelos governos liberais depois de anos de hegemonia conservadora (1910-1930). No entanto, quando os conservadores retomaram ao poder, implementaram uma contra-reforma, suprimindo os direitos adquiridos e acentuando ainda mais a violência. O período também foi marcado pelo conflito político-partidário, refletido, principalmente, pela La Violência.

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O período de maior tensão entre o Judiciário e os outros poderes de Estado deu-se durante a

ditadura de Rojas Pinilla11. Ante à ineficiência dos governos civis em cessar com a violência que

abatia o país, gerou-se um consenso que somente um líder militar conseguiria trazer ordem. Assim,

por meio de um golpe, Rojas chegou ao poder em 1953. Bushnell (1993) pontua que, apesar de um

militar passar a ocupar a presidência, a administração estatal ainda era essencialmente civil, de

modo que os militares não chegaram a ocupar o poder de fato. Porém, quando se mostrou a

inabilidade de Rojas em controlar a violência no país, o apoio que havia recebido lhe foi tomado,

sendo, assim, retirado do poder pelos mesmos líderes civis que o apoiaram no golpe e pelas próprias

Forças Armadas.

A boa relação entre o General e a Suprema Corte também durou pouco. Conforme Sarria

(2014), embora a Corte tenha saudado a chegada ao poder de Rojas, em pouco menos de um ano de

governo, instaurou-se uma crise entre os poderes quando um juiz penal absolveu um cidadão frente

à acusação de terrorismo por parte do Exército. Com isso, o General acusou o Judiciário de estar

politizado, ter motivações partidárias e não estar à altura das mudanças que o país precisava. Em

face do que chamaram de “acusações indiscriminadas do governo”, todos os juízes da Suprema

Corte renunciaram. No entanto, o que foi pensado para ser um ato de defesa ao poder judicial, deu a

oportunidade a Rojas de nomear deliberadamente uma corte inteira, ao contrário da norma

constitucional que atribuia tal responsabilidade ao Congresso.

De acordo com Sarria (2014), Rojas acreditava que ter incumbido o Congresso de eleger os

magistrados da Corte tornou-a politizada, atenta aos interesses partidários. Portanto, propôs que

houvesse uma reforma constitucional que instituísse a indicação presidencial baseada em uma lista

tripla formada pela própria Corte para o recrutamento dos ministros. Apesar do discurso de afastar a

politização da Corte, Rojas formou a nova Corte, paritariamente, por magistrados conservadores e

liberais. A nova composição manteve a tradicional posição de não julgar as decisões políticas do

Executivo, recorrendo a reiterada estratégia de retardar processos de constitucionalidade, a tal ponto

que, quando se pronunciava sobre o caso, os atos já haviam perdido a vigência. Tal prática

favoreceu o governo militar, assim como já havia favorecido governos civis. Essa proximidade com

o presidente não o poupou, entretanto, de entrar em conflito com a Corte. Em 1956, Rojas instituiu,

11 A única ditadura militar da Colômbia no século XX originou-se em resposta à La Violência (1948-1958), período desencadeado pelo assassinato do candidato liberal à presidência Jorge Gaitan, e que foi caracterizado por uma onda de violência que tomou conta do país durante uma década, tendo sido, em muitos aspectos, uma guerra civil, pois toda a população acabou se envolvendo no conflito entre os dois partidos (PÉCAUT, 2010), apesar de não ter havido uma centralização dos confrontos, devido à fraqueza do Estado.

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por decreto, a Sala de Negócios Constitucionais, cuja composição foi determinada por ele, tirando

do pleno da Corte a competência de julgar questões de constitucionalidade (SARRIA, 2014). O ato

foi visto como um ataque à independência do poder, tendo recebido fortes crítica da comunidade

jurídica e desencadeado uma série de embates entre o presidente e o tribunal. Em resposta à

situação, vários ministros renunciaram.

Na mesma época, crescia o descontentamento dos partidos com Rojas devido a sua

inabilidade em acabar com a violência, motivo pelo qual os líderes civis aceitaram sua ascensão ao

poder, e à desconfiança deles com o progressivo autoritarismo promovido pelo General. Dessa

forma, os líderes partidários uniram forças para superar a violência partidária e retirar Rojas do

poder. Assim, em 1957, o General renunciou e, em seu lugar, uma Junta Militar assumiu o poder

durante um ano para conduzir a transição para um novo governo constitucional. Ainda em 1957, foi

aprovado, por meio de referendo constitucional, o pacto da Frente Nacional, que havia sido firmado

antes mesmo da queda do General pelos líderes partidários. Tal acordo instaurou a rotatividade na

presidência entre os dois partidos (por quatro mandatos presidenciais) e estabeleceu a divisão

igualitária do poder político e burocrático entre eles, conciliando a exclusão de qualquer outro

movimento da arena política (PÉCAUT, 2010), com o ar de legitimidade necessário, por meio de

eleições regulares.

Para o poder judicial, a instituição do pacto partidário significou a independência orgânica,

pois, com a justificativa de distanciar a politização das altas cortes, a Junta Militar incluiu no

referendo o mecanismo de cooptação para a escolha de seus magistrados (SAMPER, 2002),

entendido por ela como meio fundamental para garantir a independência do Judiciário, preservando-

o da classe política e dos interesses partidaristas. A Junta também se viu motivada a defender o

princípio da independência judicial pela cooptação, pois uma Corte nomeada pelo Congresso e

influenciada pelos partidos políticos poderia julgar os militares que estiveram comprometidos com a

ditadura – tal probabilidade diminuiria caso a Junta nomeasse a primeira Corte pós-ditadura e

estabelecesse a cooptação (SARRIA, 2008). Portanto, a autonomia orgânica não foi uma conquista

do ativismo judicial, de movimentos sociais ou de políticos. Além da cooptação, o mandato de

cinco anos para os juízes foi substituído pela vitaliciedade. Todavia, tais mecanismos não pouparam

essas cortes de serem dividas entre os partidos, sendo a paridade política estabelecida para a

burocracia estatal aplicável a elas. Assim, nos termos de Galvis (2009), as quotas dos partidos

foram mantidas informalmente durante a Frente Nacional, apesar de não obedecerem a critérios

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abertamente partidários, mas sim a afinidades ideológicas e partirem da própria Corte. A

independência forjada pela cooptação, entretanto, foi paradoxal, pois apesar da independência

orgânica, o poder judical carecia de autonomia orçamentária e administrativa frente ao Executivo –

mesmo com essa restrição, o Judiciário colombiano ostenta uma das maiores independências da

América Latina (GUEVARA, 2011).

Nesse sentido, entre a conquista da independência nacional e o estabelecimento da

cooptação no recrutamento judicial dos países analisados é possível perceber os seguintes fatores

comuns: a) o Judiciário foi criado sob a estrutura institucional monárquica, reproduzindo-a no

marco republicano, apesar das supremas cortes de cada país acumularem quantidades diferentes de

poder; b) tanto a herança monárquica quanto a centralização promovida pelas constituições de 1833

no Chile e de 1886 na Colômbia reforçaram o papel subordinado do juiz frente à lei interpretada

pelo Legislativo e a ideia de que o poder judicial deveria manter a ordem ao invés de se imiscuir em

questões “políticas”, fazendo com que os judiciários ostentassem uma marcada postura formalista e

distante dos conflitos do Executivo e do Legislativo; e c) a cooptação foi instituída não por fins

democráticos (a fim de que uma maior independência refletisse-se em um funcionamento mais justo

da justiça), mas sim, na tentativa da elite que a estabeleceu em assegurar o distanciamento do poder

judicial frente aos outros poderes de Estado em um momento em que ela perdia poder (não podendo

mais influenciar o Judiciário).

Quanto aos pontos de diferença entre os judiciários, nota-se que: a) no Chile, apesar das

mudanças nas leis e da alternância de fortalecimento (com a Constituição de 1823 com as reforma

da década de 1920) e submissão (durante o período centralizador iniciado em 1833), a Suprema

Corte sempre manteve um grau significativo de poder sobre a hierarquia judicial, visto que nunca

perdeu totalmente seu espaço no recrutamento dos juízes, e acumula mais competências que sua

versão colombiana; b) a cooptação na Colômbia foi estabelecida depois das reformas

democratizantes dos governos liberais entre 1930 e 1946, ao contrário do Chile, onde a cooptação

se deu ainda nos marcos do Estado oligárquico, e c) na Colômbia, o período estudado foi marcado

pela violência e instabilidade, enquanto o Chile gozou de relativa tranquilidade.

O Judiciário com cooptação

Depois da institucionalização da cooptação, os judiciários observados continuaram a

enfrentar questões específicas de cada país, no entanto, em questões comuns responderam de modo

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semelhante. No Chile, o período que será analisado a seguir procura entender o papel ativo do

Judiciário durante o governo de Salvador Allende e passivo durante a ditadura militar. No caso

colombiano, procura-se compreender a posição do poder judicial na Frente Nacional. Em ambos os

países, nota-se que o Judiciário adotou um distanciamento dos conflitos políticos, mas agiu de

forma ativa e protagônica quando se sentiu ameaçado pelos outros poderes.

No Chile, o período observado pode ser dividido entre 1964 e 1973, caracterizado pelas

presidências do democrata-cristão Eduardo Frei Montalva (1964-1970) e do socialista Salvador

Allende (1970-1973), e entre 1973 e 1990, marcado pela ditadura militar. Quanto ao primeiro

período, os governos de Frei e Allende foram caracterizados pela intervenção do Estado na

economia como meio de alcançar o desenvolvimento social, político e econômico. Porém, enquanto

o governo de Frei limitou-se à execução de um plano de reforma agrária, ao aumento das moradias

populares e ao encorajamento à sindicalização rural e urbana, já Allende procurou construir o

socialismo no Chile pela via legal. Todavia, ao contrário do primeiro, Allende não tinha a maioria

no Congresso, o que, combinado com o teor de seu programa político, levou à crescente polarização

da sociedade chilena, desembocando no golpe militar de 1973. Mesmo apresentando políticas

bastante progressistas para a época, Hilbink (2007) aponta que ambos presidentes acreditavam que

as cortes atuariam em seu favor, visto o habitual discurso que os juízes não tinham autoridade em

intervir na “política” – o que sempre se mostrou uma prática favorável aos chefes do Executivo.

Contudo, não foi o que ocorreu. Ao contrário, o período analisado é o período de maior

protagonismo do Judiciário, principalmente durante o governo Allende.

Há duas interpretações para explicar o ativismo inédito do poder judicial chileno. A primeira

sustenta que a participação da Corte nos conflitos oriundos da implementação da agenda de Allende

é devida ao caráter de classe da justiça12, visto que, ao contrário do discurso de isolacionismo que

pregava, na medida em que os direitos constitucionais eram “desrespeitados”, esta não apenas

condenava o Executivo, como se utilizava das sentenças para criticar o governo. Apesar do discurso

de proteger os direitos humanos, apenas os direitos individuais, e principalmente os de propriedade,

despertavam o interesse do Judiciário, o que, conforme seus críticos, deixava ainda mais claro seu

caráter de classe.

12 Allende e o presidente do Conselho de Defesa do Estado, Eduardo Novoa Monreal, criticaram publicamente o Judiciário por sustentar uma “justiça de classes”, representando os setores mais conservadores da sociedade chilena. O fato acirrou ainda mais o conflito entre os poderes. Na época Novoa afirmou: “Dicho poder, particularmente la Corte Suprema, es un incondicional defensor del status social, económico y político vigente, y reprueba a quienes luchan por los cambios sociales” (ECHEVERRÍA, 2011).

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A segunda interpretação é trazida por Fruhling (1980) e Echeverría (2011), que pontuam que

o programa de Allende implicava em certo perigo para a autonomia corporativa13, assim como

pressupunha uma visão diferente à tradicional quanto ao papel do juiz, que passaria a ser agente da

transformação social. Como eram duas ideias que se contrapunham radicalmente ao ideal

institucional desejado pelo Judiciário, este se viu empelido a combater o projeto socialista. Portanto,

“no debe pensarse que el Poder Judicial inició una activa cruzada de protección y preservación del

Estado de Derecho. Fiel a su tradición, se trató más bien de una reacción al sentirse atacados por el

Poder Ejecutivo, y ver su independencia amenazada” (ECHEVERRÍA, 2011). Como o combate ao

projeto socialista passava pela defesa do status quo, o protagonismo judicial foi facilmente

interpretado como alinhamento de classe ou aos partidos de oposição de direita, porém, o discurso

da defesa da independência e autonomia do Judiciário está sempre presente14, mais do que o de

defesa de direitos. O poder judicial entra na arena política, então, para proteger seus interesses, e

não representar os de uma determinada classe15 – refletindo, assim, as consequências do isolamento

que se auto-impôs a partir da Constituição de 1925.

O uso do poder disciplinar da Suprema Corte também é uma questão importante do período.

Pela primeira vez em sua história a Corte utilizou sistematicamente este poder e a faculdade de

destituir juízes por “mau comportamento”. Assim, todos os juízes que mostravam apoio às ideias de

Allende eram expulsos da estrutura judicial (HILBINK, 2007). Outro expediente utilizado foi o

congelamento da ascensão na carreira, visto que esta era controlada pelos superiores hierárquicos.

Por conseguinte, foram poucos os magistrados que se manifestaram contra os princípios defendidos

pela Corte – indicando o poder da ordem hierárquica na homogeneização dos juízes e refletindo o

“temor reverencial” que eles sentem pela cúpula judicial (HILBINK, 2008).

Com o golpe militar de 1973, o Legislativo foi fechado e o Executivo passou a ser

comandado pelo General Augusto Pinochet. Como mostra Hilbink (2003; 2007; 2008) o Judiciário,

já no primeiro Decreto-Lei expedido pela junta militar que assumiu o poder, teve seu

funcionamento normal assegurado. A junta chilena, então, diferenciou-se de suas análogas nos

outros países latino-americanos, visto que, estas, logo quando assumiram o poder, fizeram

alterações sistemáticas na composição do Judiciário. O generais chilenos deixaram as cortes e o

13 O programa de Allende previa a continuidade do governo judicial nas mãos da Suprema Corte, no entanto, o recrutamento dos juízes deixaria de ser por cooptação para ser prerrogativa do Legislativo, reunido na Assembleia do Povo, um Congresso unicameral. 14 Para os discursos dos integrantes da cúpula judicial, ver Fruhling (1980), Echeverría (2011) e Hilbink (2007). 15 O que não significa, entretanto, dizer que as cortes mantiveram um papel neutro ou apolítico.

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poder da Suprema Corte intactos a fim de mostrar seu comprometimento com a independência

judicial.

Assim, frente ao projeto autoritário de Pinochet, os tribunais reagiram de forma muito

diversa do que haviam agido no governo Allende. Ao invés de defender o Estado de Direito e entrar

em conflito com o governo pelos seus abusos de poder, os juízes fizeram vista grossa às violações

maciças aos direitos humanos perpetradas pelo novo regime16. Portanto, voltaram a apresentar um

comportamento apático a questões relativas ao Executivo, tal como fizeram no período entre 1924 a

1964. A diferença, entretanto, é que junto com esse distanciamento dos assuntos “políticos”, houve,

também, a defesa do regime militar.

O engajamento com a ditadura de Pinochet deu-se de duas formas: pela posição das cortes

frente aos casos de abuso de poder do Executivo e pela perseguição dos juízes contrários ao regime

militar. Quanto aos primeiros, a posição das cortes sempre foi favorável ao Executivo, tanto no

período do Estado de Exceção (1973-1978) – quando justificou que sob esta circunstância o

Executivo tem seus poderes expandidos – quanto no período regido pela Constituição de 1980. Em

ambos os casos, as cortes auto-limitavam sua jurisdição, passando diversos casos para os tribunais

militares, ou apenas indeferiam os pedidos de ação contra o governo. No entanto, alguns autores

não entendem isso como um engajamento com o regime. Conforme Fruhling (1980), isso seria

resultado, em parte, da impermeabilidade do Judiciário durante as transformações democráticas do

período 1925-1973, o que o marginalizou e fez com que ele apresentasse escasso compromisso com

o marco democrático, tornando-o passivo frente às violações de direitos humanos.

Já Pérez (1998) entende que na história da Suprema Corte, e, consequentemente, dos

tribunais subordinados a ela, nada indica que ela tenha sido um tribunal de proteção dos direitos

humanos, mesmo que desde sua instituição ela tenha essa responsabilidade e que desde 1925 ela

tenha o poder de declarar a inconstitucionalidade de atos do poder público17. Ao contrário,

16 Um exemplo dessa postura é apresentada por Constable e Valenzuela (1991), conforme os autores, as cortes chilenas aceitaram apenas 10 dos 5.400 recursos de habeas corpus apresentados por advogados de direitos humanos entre 1973 e 1983. 17 O autor acredita que a falta de interesse no controle de constitucionalidade se dá, pois ele pressupõe uma interpretação teleológica da norma, o que é incompatível com a tradição formalista do Judiciário chileno. Assim, a Suprema Corte “siempre se ha sentido incómoda con el otorgamiento de tales facultades, que le obligan a salirse de su estricta concepción sobre la separación de poderes y, sobre todo, de su autoasignado rol de mero aplicador de las leyes” (PERÉZ, 1998). É frente a este descaso com o controle da constitucionalidade que, em 1970, o presidente Eduardo Frei, estabelece a criação do Tribunal Constitucional, composto por cinco juízes, sendo três indicados pelo presidente com aval do senado e dois pela Suprema Corte, e independente de todos os poderes de Estado, ou seja, não fazia parte do Judiciário. É interessante notar que este órgão, dissolvido e, em 1980, reestabelecido pela ditadura militar, lhe fez mais oposição do que a Suprema Corte. Por exemplo, o Tribunal emitiu a primeira de uma série de decisões cruciais que

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conforme Peréz, a competência mais desenvolvida e utilizada pela Corte é a disciplinar, refletindo

seu caráter auto-centrado. Portanto, é necessário refletir o quanto o desinteresse nas violações de

direitos humanos é consequência do alinhamento das cortes ao regime militar e o quanto é em

função do histórico distanciamento do Judiciário em questões que abrangem os outros Poderes.

Quanto à perseguição aos juízes contrários ao regime, assim como no período de Allende, a

Suprema Corte utilizou-se de suas prerrogativas disciplinares para afastar ou censurar aqueles juízes

que emitiam opinião pública em defesa de princípios liberais ou que davam continuidade a

julgamentos contrários ao Executivo. Já os que seguiam a orientação geral da Corte, eram

promovidos. Como relatado por Hilbink (2008), no início do período, em 1974, a Suprema Corte

demitiu ou forçou a aposentadoria de 15% do quadro de magistrados. Portanto, assim como nas

outras ditaduras do continente, arbitrariedades a fim de estabelecer um corpo de magistrados

favoráveis ao regime foram promovidas, contudo, a maioria delas foi empreendida pelo próprio

Judiciário. Frente a isso, o regime aumentou os poderes da Corte para facilitar a remoção de juízes,

de modo que, durante o período, as avaliações de desempenho passaram a ser realizadas

anualmente, ao invés de a cada três anos, e o afastamento dos juízes passou a requerer apenas uma

maioria simples do pleno da Corte. O período da ditadura militar, portanto, caracteriza-se pela

supremacia dos interesses da cúpula judicial, que facilmente impõe suas preferências aos juízes das

diferentes instâncias através de seu controle da hierarquia. Assim, o Judiciário sustentou o edifício

institucional criado pelo regime, ancorando-se no discurso da independência judicial – atrelando,

então, seu apoio ao fato de que o sistema judicial manteve sua autonomia no período.

No caso colombiano, o ambiente político mostrou-se mais estável que o chileno, devido ao

pacto da Frente Nacional. Porém, a violência social e a fragilidade do Estado foram se tornando

cada vez mais presentes18. Isso ocorreu porque a saída consensual, oportunizada pela Frente

Nacional, fez com que a direção política terminasse meio século de embates pelo poder à custa das

novas demandas sociais advindas com a modernização (BUITRAGO, 1996). Assim, o período foi

caracterizado pelo imobilismo político e pela manutenção do status quo, aprofundando diversos

definiram, em 1985, os padrões básicos para a realização de eleições livres e justas no plebiscito de 1988 (HILBINK, 2008). 18 A segunda metade do século XX foi um período crítico para o Estado colombiano, pois este experimentou: i) a expansão dos grupos guerrilheiros formados por militantes rurais, que ganharam espaço desde a década de 1960 frente à exclusão política estabelecida pela Frente Nacional; ii) o aumento dos grupos paramilitares, que a partir da década de 1960 foram estimulados pelo Estado através do armamento de civis em patrulhas de autodefesa para a luta contra as guerrilhas, mas que aos poucos foram escapando do controle estatal, e iii) o avanço crescente do narcotráfico, a partir da década de 1980, ou seja, já no desmantelamento do aparato frente-nacionalista (AVILÉS, 2006; DARIO, 2010).

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problemas sociais que já se conformavam no país e que se tornariam centrais nas últimas décadas

do século XX (como a desigualdade socioeconômica, a ausência de reforma agrária e as guerrilhas

rurais). A Frente Nacional foi, então, caracterizada pelo desinteresse pelas demandas coletivas,

sendo as normas legais um instrumento para fortalecer relações de exclusão, exploração e

discriminação (CARVAJAL, 2002).

Nesse cenário, o poder judicial, apesar da independência que havia adquirido, tinha um

papel marginal, pois o Estado de Sítio e o empoderamento dos tribunais militares haviam se tornado

práricas comuns (VILLELAS, 2009). Isso gerou uma ineficácia do aparato judicial ao impedir que a

justiça cumprisse seu papel regulador da convivência ordinária, acentuando a violência social

(UPRIMNY; RODRIGUEZ; VILLEGAS, 2003). O Judiciário, no entanto, não agiu contra a

usurpação de suas prerrogativas, dando legitimidade às declarações de Estado de Sítio e à extensão

da jurisdição militar. As poucas vezes em que a Suprema Corte impôs-se no cenário político deram-

se nas tentativas de reformar o Judiciário empreendidas na década de 1970. As reformas

constitucionais apresentadas pelo Executivo objetivavam extinguir a cooptação e os mandatos

vitalícios dos magistrados, assim como criar uma Corte Constitucional e implementar o sistema

acusatório no país, contudo, todas os projetos foram considerados inconstitucionais pela Corte, pois

ameaçavam seu poder dentro do sistema judicial (SAMPER, 2012; SARRIA, 2008; MORENO,

2004).

Porém é durante a década de 1980 que o Judiciário torna-se mais ativo, virando alvo de

críticas da elite política. A raíz dessa mudança de posição é a penetração na juridicatura da

violência que abatia o país, como mostra a estimativa de que, entre 1979 e 1991, 290 funcionários

judiciais foram assassinados, tanto por guerrilheiros quanto por traficantes e paramilitares

(UPRIMNY; RODRIGUEZ; VILLEGAS, 2003). O golpe mais profundo à justiça, contudo, foi a

invasão do Palácio da Justiça19, em 1985, sendo a partir daí que a Suprema Corte passa a atuar

contra o Executivo, declarando, em 1987, a inconstitucionalidade do julgamento de civis por

tribunais militares e revogando diversas declarações de Estado de Sítio (COMISION ANDINA DE 19 A invasão ao Palácio foi comandada pelo Movimento 19 de Abril, movimento guerrilheiro criado a partir da fraude eleitoral de 1970. A invasão foi motivada pelo acordo de extradição feito com os Estados Unidos, de modo que a guerrilha pedia o fim do acordo e o julgamento do então presidente Belisario Betancur. Mesmo com os apelos dos juízes feitos reféns, o governo decidiu não negociar e invadiu o Palácio numa operação que deixou quase cem mortos, incluindo metade dos magistrados da Suprema Corte. Apesar dos meios oficiais se referirem a este episódio como a “toma del Palácio de Justicia”, os juristas o nomearam como a “doble toma del Palácio de Justicia” como forma de criticar a ação do governo e do exército. Poucos meses depois, a Suprema Corte tornou inexequível o tratado de extradição com os Estados Unidos, delegando ao governo e à classe política a responsabilidade pelo assunto (COMISION ANDINA DE JURISTAS, 1992).

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JURISTAS, 1992). Conforme Nemoga (1995), a Corte passou a representar um obstáculo ao

exercício do poder, fazendo com que representantes governamentais alegassem que a Colômbia

estava vivendo um “governo dos juízes”. Apesar das vitórias que a Corte conseguiu ostentar durante

os anos 1980, com a Constituição de 1991 o Executivo conseguirá impor diversas reivindicações ao

Poder.

Conforme Nemoga (1995), o Judiciário durante a Frente Nacional, portanto, mostrou-se um

sistema impermeável à dinâmica social, que sustentava um funcionamento anacrônico frente aos

novos desafios que se punham ao Estado colombiano, visto que sustentava uma interpretação

bastante estrita de suas funções (SARRIA, 2013). Apesar de não fazer uso de sua competência

disciplinar para centralizar os juízes em torno de si, a Suprema Corte soube se utilizar do

clientelismo inerente à cooptação para controlar as diversas instâncias judiciais (SOUSA, 2006).

Por último, apesar da debilidade do sistema judicial em cumprir seu papel regulador, quando se

compara com os de outros países latino-americanos no período, este mostrou grande autonomia em

relação ao sistema político e uma notória estabilidade institucional (VILLEGAS, 2002).

As democratizações

Apesar da Colômbia não ter vivido uma ditadura militar no período em que elas se

espalharam pelo continente, o regime pactuado em torno da Frente Nacional estava longe de se

configurar como abertamente democrático. Portanto, o país acompanhou seus vizinhos em suas

transições democráticas. Um fator em comum nestes processos foi a reforma do Judiciário, já que

era necessário abrir sua estrutura ao novo marco institucional. No Chile, a reforma judicial foi uma

peça central do programa de Patrício Aylwin como parte de um processo mais amplo de fortalecer a

capacidade das instituições estatais e consolidar a democracia no país (PALACIOS, 2011). O

Judiciário, contudo, opôs-se às tentativas de reformas, barrando diversos projetos de lei que

almejavam transformar as instituições estatais (SKAAR, 2003). Ao continuar sustentando o edifício

legal construído pelo regime autoritário, sem contestar os princípios e valores incorporados nele

(HILBINK, 2007), o poder judicial mostrou-se um obstáculo à democratização do país.

O pacote de reformas de Alwin abrangia a) a criação de um Conselho Nacional de Justiça,

que, formado por representantes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, passaria a ser

responsável pelo governo judicial – substitituindo o modelo vigente de auto-governo para o de

governo autônomo (MONARDES, 2005) – e pela formação das listas de candidatos para as

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vacâncias na Suprema Corte, o que acabaria com a cooptação; b) aumento do número de

magistrados da Corte, de 17 para 21 membros, e sua divisão em salas especializadas; c) mudança no

processo de avaliação dos juízes, de forma a torná-lo mais objetivo e transparente; d) criação da

Academia Judicial, para promover a educação continuada e aumentar o prestígio da profissão; e)

instituição da Defensoria Pública; f) expansão do Serviço de Assistência Judicial, de modo a

facilitar o acesso à justiça, e g) reforma do código penal e instituição do modelo acusatório. Hilbink

(2007) aponta que, apesar dessas inicitivas parecerem moderadas ao governo, sob a perspectiva da

oposição e da Suprema Corte elas pareciam uma agenda revolucionária. Portanto, apenas a

especialização da Suprema Corte, a mudança no processo de avaliação e a criação da Academia

Judicial foram aprovadas.

Em 1993, foi executado o primeiro e único impeachment a um magistrado da Suprema Corte

no novo período democrático. Inicialmente, três magistrados foram julgados por transfirir um caso

de desaparecimento da ditadura, cujas investigações estavam avançando, para um tribunal militar,

onde o caso foi prontamente fechado (HILBINK, 2008). Apesar de que apenas um magistrado tenha

sofrido o impeachment, muito mais pelas acusações adicionais a ele de descumprimentos de prazos

do que por sua atuação nesse caso, a partir desse momento um número considerável de juízes de

primeira instância passou a investigar casos de violação de direitos humanos. Ou seja, frente a um

sinal do Executivo que a Corte não poderia fazer o que desejasse, os juízes sentiram mais liberdade

de contrariá-la.

A reforma judicial também foi um ponto importante do segundo presidente eleito, Eduardo

Frei Ruiz-Tagle. Entretanto, ao contrário de seu predecessor que propôs amplos pacotes de

reformas, Frei Ruiz-Tagle introduziu pequenas reformas ao longo de seu mandato, tentando criar

um consenso em torno delas (SKAAR, 2003). Essa estratégia gradual provou ser eficaz, tendo o

Presidente conseguido aprovar a maioria de suas iniciativas – relacionadas, majoritariamente, à

reforma do processo penal. Em 1997, foi aprovada a maior alteração na Suprema Corte desde 1925.

Aproveitando-se de um escândalo de corrupção que abateu-se sobre a Corte, o Presidente aprovou a

incorporação permanente de cinco advogados não pertencentes ao Judiciário e selecionados a partir

de concurso público de antecedentes, ao quadro de membros da Corte, que teve, assim, sua

composição ampliada de 17 para 21 magistrados. Além disso, todas as nomeações passaram a

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necessitar da aprovação de dois terços do Senado. A partir disso, a Suprema Corte passou a

apresentar uma postura mais liberal em casos de direitos humanos (HILBINK, 2008)20.

Mesmo que as reformas tenham sido aquém do esperado, a criação da Academia Judicial, e

com isso a instituição de critérios objetivos para a seleção dos juízes de primeira instância21, a

delimitação das faculdades disciplinares da Suprema Corte e sua nova composição, já estão

trazendo tímidas mudanças para o Judiciário, tornando-o menos apático frente ao contexto socio-

político que está inserido. No entanto, como Binder e Obando (2004) apontam, reformas na

organização de instituições judiciais que concentram o poder no vértice da hierarquia são

sensivelmente lentas e sofrem oposição, principalmente, da própria instituição, por atacarem seus

interesses corporativos. Desse modo, podemos esperar mudanças mais significativas apenas nas

próximas décadas, quando uma nova geração assumir a cúpula judicial.

Na Colômbia, a alternação partidária no Executivo acabou em 1974, enquanto em 1986 a

divisão entre os dois partidos do Congresso e da Burocracia foi anulada, quando o então presidente

Virgílio Barco ofereceu uma quantidade de cargos ao Partido Conservador que não foi considerada

satisfatória, o que levou à formação de uma administração de partido único (BUSHNELL, 1993).

Porém, a real abertura do sistema político só foi possível a partir da Constituição de 1991. Ao poder

judicial, a nova constituição significou a instituição da carreira judicial22, acabando com a

cooptação para o ingresso na carreira, já que os tribunais de primeira instância passaram a ter seu

recrutamento por concurso público23. No entanto, para a ascensão à segunda e terceira instâncias a

cooptação foi mantida, e as cortes passaram a escolher os magistrados que a comporiam através de

listas elaboradas pelo Conselho Superior da Judicatura. A vitalicidade dos ministros foi extinguida,

sendo estabelecido um mandato de oito anos. Outra mudança foi a transferência da competência de

revisão constitucional da Suprema Corte para a recém criada Corte Constitucional, que tem seus

20 Faivovich (2003) pontua que esse processo se relaciona, também, com a detenção de Pinochet, em 1998, em Londres, acusado por um juiz espanhol por crimes de abuso aos direitos humanos. A partir daí, conforme o autor, a cultura jurídica externa passou a impulsionar mudanças na cultura jurídica do Chile, movendo-a lenta e seguramente à sua reconstrução como parte integrante de uma democracia. 21 Os juízes passaram a ser selecionados a partir da realização do Programa de Formação para postulantes ao escalão primário do Poder Judiciário, um programa de oito meses em que os candidatos são avaliados pelos seus antecedentes, por prova de conhecimentos e capacidades e exames psicológicos. Os melhores qualificados no curso terão maiores chances de serem chamados para os tribunais quando abrir alguma vacância, visto que é a partir da classificação no Programa que a Corte de Apelações da jurisdição em que há vagas em aberto formula e envia uma proposta tripla para o Presidente, que decidirá quais juízes irá nomear. 22 Em 1970 se expediu o primeiro estatuto da carreira jurídica, no entanto nunca foi aplicado (GUEVARA, 2011). 23 Na prática, a seleção ainda se dá por critérios de ampla discricionaridade, sendo as diposições da carreira judicial ignoradas (GUEVARA, 2011).

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ministros nomeados pelo Senado através de listas organizadas pelo Presidente. A Corte

Constitucional foi alvo de diversas críticas por introduzir o Legislativo e o Executivo no processo

de recrutamento dos juízes, todavia, essa politização foi defendida para se evitar o controle de um

corpo elitista desconectado da realidade social e política do país, como acontecia nas cortes

tradicionais. Mesmo com o temor inicial, a Corte Constitucional tem mostrado independência

política e interpretações progressistas da Constituição (GUEVARA, 2011). Apesar da Suprema

Corte ter feito diversas declarações contrárias às mudanças estabelecidas, o consenso criado durante

a constituinte fez com a Corte não atuasse contra ela.

Considerações finais

Os Judiciários chileno e colombiano ocuparam durante a maior parte de sua história, uma

posição secundária no Estado, visto o enraizamento da figura do juiz como “boca da lei” e o papel

subordinado a eles reservado. Além disso, as altas cortes foram estabelecidas como mantenedoras

da ordem, sendo a garantia dos direitos uma competência secundária. Com a implementação da

cooptação, através da estratégia da elite política tradicional para afastar o poder judicial de futuras

intervenções das classes médias em ascensão, no caso chileno, e da elite militar para conservá-lo

dos partidos políticos, no caso da Colômbia, o sistema judicial (centralizado na figura da Suprema

Corte) adquiriu autonomia suficiente a ponto de se marginalizar da vida social do país. A posição

secundária, a independência orgânica e a interpretação de suas funções como manter a ordem e não

defender os direitos, fez com que as cortes de ambos os países participassem apenas dos debates

políticos quando se sentiam atacadas pelos outros poderes ou, no caso colombiano, quando a

conjuntura negativa do país passou a atingí-la. Apesar dessa aproximação entre os dois casos

observados, o poder judicial de cada Estado apresenta peculiaridades.

No caso chileno, a cooptação ter sido estabelecida na década de 1920 fez com que o

processo de democratização e mobilização social não penetrasse os tribunais, que passaram a se

focar em suas próprias reivindicações corporativas. Essas características fizeram com que os líderes

judiciais não relacionassem a legitimação do poder judicial ao sistema democrático (CUMPLIDO;

FRUHLING, 1980), acreditando que a ordem democrática não era necessária para o

desenvolvimento pleno das funções judiciais – o que os permitiu justificar o apoio à ditadura pela

manutenção de sua independência (HILBINK, 2007). Nesse sentido, o apoio à ditadura militar

apesar de ser conflitante com a concepção de Poder Judiciário como sustentáculo do Estado de

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Direito e protetor dos direitos humanos, não foi incongruente com a ideia de Judiciário sustentada

no Chile. A mão de ferro da Suprema Corte, por sua vez, viabilizou o engajamento dos juízes às

posições tomadas por ela e, portanto, da resposta homogênea do Judiciário aos desafios que se

impuseram.

Já no caso colombiano, a violência tanto partidária, do século XIX, quanto política e social

do século XX influenciou o desenvolvimento do poder judicial, debilitando-o e tornando-o

ineficiente. Apesar da cooptação ter possibilitado o distanciamento do Judiciário dos conflitos do

país, a violência que assolava o Estado não ignorou ele, infiltrando-se em sua estrutura. Deste

modo, o poder não pode mais ignorar o contexto em que atuava, passando a atuar mais ativamente

na solução do conflito colombiano, limitando as respostas bélicas do governo e encorajando-o,

assim, a encontrar soluções pacíficas. Em que pese que as decisões judiciais tomadas tenham atuado

de forma a fortalecer a defesa dos direitos humanos no país, o objetivo do Judiciário era fazer com

que o caminho errático que o governo estava seguindo não o atingisse (COMISION ANDINA DE

JURISTAS, 1992). Outro elemento que destoa do caso chileno é o clientelismo exercido pela

cúpula judicial em contraste do controle disciplinar e no respeito pela carreira judicial exercidos no

Chile. Assim, a cooptação fez com que o judiciario não fosse capturado pelos partidos políticos,

mas sim pela Suprema Corte, que negocia todos os cargos da hierarquia. Portanto, os cargos de

juízes viraram moedas de troca, o escalonamento da carreira não é respeitado e a rápida ascensão é

normal - aspectos que foram mantidos mesmo após as reformas da década de 1990 (CARVAJAL,

2002; GUEVARA, 2011).

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