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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES ANTONIO MARQUES SILVA LIMA O Recife que ninguém vê: uma análise do morar no bairro do Pilar no Recife Rio Grande do Norte, 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

ANTONIO MARQUES SILVA LIMA

O Recife que ninguém vê: uma análise do morar no bairro do Pilar no

Recife

Rio Grande do Norte, 2017

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Lima, Antonio Marques Silva.

O Recife que ninguém vê: uma análise do morar no bairro do Pilar no Recife / Antonio Marques Silva Lima. - 2017.

77f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de

Pós-graduação em Ciências Sociais, Natal, RN, 2017.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Norma Misae Takeuti.

1. Bairros - Recife (Pernambuco). 2. Comunidade Nossa Senhora

do Pilar - Recife (Pernambuco). 3. Dinâmica urbana - Recife

(Pernambuco). I. Takeuti, Norma Misae. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 911.375.64(813.4)

O Recife que ninguém vê: uma análise do morar no bairro do Pilar no

Recife

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-

graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, sob a orientação da Profa. Dra. Norma Missae

Takeuti, para a obtenção do título de mestre em Ciências

Sociais.

Rio Grande do Norte, 2017

O Recife que ninguém vê: uma análise do morar no bairro do Pilar no

Recife

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, sob a orientação da Profa. Dra. Norma Missae

Takeuti, para a obtenção do título de mestre em Ciências

Sociais.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Norma Missae Takeuti

(Orientadora/UFRN)

________________________________________

Prof. Dr. Francisco Sá Barreto dos Santos

(Examinador titular externo/ UFPE)

________________________________________________

Profa. Dra. Josimey Costa

(Examinadora titular interna/UFRN)

______________________________________________________

Agradecimentos

Gostaria primeiramente de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior/ CAPES e ao MEC, por ter me proporcionado o auxílio da

bolsa de mestrado ao longo dos dois anos, apoio fundamental na elaboração desse

trabalho e na conclusão deste curso. Ao Programa de pós-graduação em Ciências

Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pelas oportunidades e

ensinamentos e por acolher tão bem a mim. À secretaria de pós-graduação na pessoa de

Jeferson e Otânio, por sempre estarem além dos seus trabalhos, dispostos a esclarecer e

ajudar com toda eficiência.

À Norma Takeuti por aceitar o desafio de orientar este trabalho e pela imensa

contribuição para a sua feitura. A Chico Sá Barreto e Fernando Cruz por compor a

banca de qualificação e pelas belas contribuições que alavancaram e nortearam este

trabalho.

Agradeço a Natalia e a Jorge, moradores do Pilar, pela paciência e compreensão

durante minhas idas a campo, sem eles, este trabalho ficaria incompleto. Agradeço a

vocês enquanto representantes do Pilar, pela acolhida amorosa. Deixo também a todos

os moradores que tem pressa de vencer esta luta, meu muito obrigado.

A meus pais que, apesar de ainda não entenderem este trabalho, contribuíam ao

seu modo para me ajudar.

A Nathielly, pois sem ela não seria possível este trabalho. Obrigado por acreditar

em mim mais do que eu mesmo. Minha revisora e musa.

Agradeço a meu Jorge por compreender as noites que não podia brincar e a ele

dedico este trabalho. Dedico também a Gilberto que ainda não chegou neste mundo,

mas que vem para renovar nossas esperanças.

A um Recife mais bonito para vocês brincarem.

"Ainda vão me matar numa rua.

Quando descobrirem, principalmente,

que faço parte dessa gente

que pensa que a rua

é a parte principal da cidade".

Paulo Leminski

Resumo

O trabalho que se apresenta tem como objetivo discutir como a mercantilização dos

espaços vem adequando seus arredores não incluídos nos fins de uma lógica mais

econômica, parente a uma modernidade adequada aos parâmetros mercantis. Trataremos

aqui das estratégias tomadas pelos moradores do bairro do Pilar no Recife, diante do

processo de gentrificação dos arredores do lugar, que, atendendo aos anseios

consumistas, sofreu todo um processo de modificação de sua lógica estrutural em prol

de uma adequação ao turismo e ao consumidor. O trabalho busca compreender a

situação de quem reside junto ao polo turístico mais importante da cidade, convivendo

com a extrema carência de políticas públicas diversas, separados de todo o luxo pró-

consumidor, por tapumes. Buscaremos observar possíveis táticas e estratégias adotadas

pelos moradores do bairro do Pilar, vizinho ao Recife Antigo, para sobreviver em meio

ao capitalismo e especulação imobiliária. Partiremos de uma análise microssociológica,

para entender a partir do indivíduo e das suas relações cotidianas, como se dá essa

significação do morar em um espaço permeado por desigualdades, buscando verificar se

existem estratégias de ressignificação do espaço habitado e se estas estão de certo modo

vinculadas ao processo de gentrificação do Recife Antigo. O trabalho encontra em meio

a um espaço múltiplo, as relações estabelecidas entre a dinâmica do Pilar e do Recife

Antigo. Aqui, verificou-se como os moradores adotam mecanismos a fim de adaptar-se

à lógica do lugar, que inclui as constantes transformações do Recife Antigo, a visão que

se tem do Pilar, partindo-se do lado de fora da comunidade e o abandono do poder

público. Percebeu-se que essas relações são estreitas e frágeis: ao mesmo tempo em que

a distância física é mínima, é perceptível que a coexistência dos espaços não existe.

Morar no bairro do Pilar é conviver com a constante indiferença “do lado de lá”. É

construir sua pertença no espaço através do trabalho informal e conviver com as poucas

iniciativas do poder público, no lugar.

Palavras-chave: Pilar, representação, dinâmicas, práticas, comunidade.

Abstract

In the midst of a market context, and the consequent rates of consumption this causes in

cities, the work presented here aims to discuss how the commercialization of spaces

comes to adapt itself to surroundings not necessarily included in the objectives of the

economic rationalist, but which nevertheless take on a modernity which is suited to

capitalistic parameters. Here we will deal with strategies undertaken by those who live

in the neighborhood of Pilar, Recife, where the gentrification of surroundings has taken

place. To attend to consumer anxiety the area has suffered an entire process of

modification, changing its own structural logic, to favor tourism and the consumer. This

work seeks to understand the situation of those who live next to the city’s main tourist

stretch, as they suffer from an extreme lack of public policies; and they live separated,

by walls, from pro-consumer advantages. Here we will examine the possible tactics and

strategies adopted by residents in Pilar, a neighborhood adjacent to Recife Antigo, in

order to survive - their being in the middle of capitalism and real estate speculation. We

set out by micro-sociological analysis to gain an understanding from individuals and

from their daily relationships of how, in a space permeated by inequalities, the situation

can have a meaning. We look to see if strategies of re-signifying the inhabited space

exist and in what ways they are linked to the process of gentrification of Recife Antigo.

The work finds in the middle of a multiple space, the relations established between the

dynamics of Pilar and Recife Antigo. Here, it was verified how the inhabitants adopt

mechanisms in order to adapt to the logic of the place, that includes the constant

transformations of Recife Antigo, the vision that has of the Pilar, starting from the

outside of the community and the abandonment of public power. It has been noticed that

these relations are narrow and fragile: at the same time that the physical distance is

minimum, it is noticeable that the coexistence of the spaces does not exist. To live in the

neighborhood of Pilar is to live with the constant indifference "on the other side". It is

building your belonging in space through informal work and living with the few

initiatives of the public power, in place

Key-words: Pilar, representation, dynamics, practices, community

Sumário

Introdução ................................................................................................................................... 12

Preliminares – O lócus do estudo e aspectos teórico-metodológicos .......................................... 18

CAPÍTULO 1 - Recife: A maior metrópole em linha reta da América Latina? .......................... 26

1.1 Urubu, Gabiru, Cachorro e Gente: Da favela do rato à comunidade Nossa Senhora do

Pilar ......................................................................................................................................... 34

1.2 “Eu vi o mundo... ele começava no Recife” ...................................................................... 38

CAPÍTULO 2- Dos entraves e descobertas: os desafios do trabalho de campo

......................................................................................................................................................39

CAPÍTULO 3- O Pilar de hoje e de ontem: notas etnográficas ................................................. 65

3.1 Dinâmicas e distinções do morar: uma análise do Pilar enquanto campo constituidor de

relações e práticas ................................................................................................................... 54

3.2. O movimento enquanto instrumento de denúncia ............................................................ 59

3.3. Zé, Kelly e o Pilar que ninguém vê. ................................................................................ 62

Capítulo 4 – Estigma, tática e direito: a dinâmica Pilar X Recife Antigo ................................... 43

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 73

REFERÊNCIAS: ......................................................................................................................... 76

ANEXO I .................................................................................................................................... 78

ANEXO II....................................................................................................................................

12

Introdução

O presente trabalho pretendeu desenvolver uma pesquisa crítica a respeito das

formas de ressignificação do morar do bairro do Recife, mais especificamente no setor

do Pilar. A relevância do estudo está justamente na situação em que o lugar se encontra:

o Pilar fica localizado ao lado de um dos maiores e mais importantes polos turísticos da

cidade do Recife, vizinho à Prefeitura e dividindo espaço com uma fábrica. Localizado

no centro, o lugar parece não atrair os olhares dos transeuntes e a atenção do poder

público, mesmo fazendo fronteira com espaços cotados por turistas. Se de um lado,

predominam prédios históricos e espaços de visitação e lazer, do outro, barracos

amontoam-se e dividem espaço com dois prédios habitacionais inacabados, enquanto o

esgoto corre a céu aberto. Nesse sentido, nossa intenção foi a de verificar quais as

estratégias adotadas pelos moradores do Pilar, para sobreviver no lugar, e de que

maneira esses moradores organizam-se para ressignificar o espaço onde vivem.

Pretendendo observar ainda, como se dá a relação do morar no Pilar com o processo de

gentrificação do Recife Antigo. Mais adiante, definiremos esse termo que norteia nossa

discussão. Em todo caso, o trabalho apresenta o Pilar de maneira a situar quem não

conhece o lugar e de certa forma, aguçar a memória de quem já o conhece. O Bairro do

Recife dá lugar à noção ampliada do Recife Antigo. Em todo caso, os jogos de palavras

alertam mesmo com graça a condição da cidade, as expressões e as piadas típicas. Vale

salientar que o trabalho não tem como objetivo central ser um guia prático do Recife ou

um atlas metropolitano, mas como o próprio texto sugere, pretende aguçar os sentidos

para que se possa enxergar o Recife além de um bairrismo característico, e entender

essa pernambucanidade que permeia quem vive no lugar.

O espaço do Recife Antigo, contexto aqui tomado por nós como acessório que

apoiará a discussão centrada mais propriamente nos moradores do Pilar, foi alvo de

mudanças recentes que tinham como prioridade, adequar o espaço para que esse

pudesse ser mercantilizado, atendendo uma demanda crescente de consumo. Milton

Santos, nos fala que esse progresso acabou por ser legitimado “pela aceitação de uma

linha de pensamento racional econômica, além de se apoiar em certa influência do

Estado, que se utiliza da força e do poder para criar condições favoráveis ao

crescimento e à lógica mercantil” (SANTOS, 2014, p.15).

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O termo gentrificação, designa justamente ações que visam à revitalização e

enobrecimento de áreas urbanas degradadas1 e empobrecidas: a palavra se origina do

inglês gentrification, que quer dizer enobrecimento ligado a uma clara demanda de

agregar valor a áreas pobres, ou melhor, áreas ocupadas por moradores pobres. Esses

empreendimentos em sua maioria consistem em modificar a paisagem, no entanto essas

modificações deixam em evidencia no plano físico, as assimetrias simbólicas de poder

que estão postas num plano político-ideológico e que culminam numa desapropriação

do espaço enquanto área habitada e do lugar enquanto espaço apropriado e dotado de

significados:

A noção de paisagem articula-se, assim, a uma dimensão simbólica do poder:

práticas de gentrification não se referem apenas a empreendimentos

econômicos que visam otimizar o potencial de investimentos em áreas

centrais; referem-se sobretudo à afirmação simbólica do poder, mediante

inscrições arquitetônicas e urbanísticas que representam visualmente valores

e visões de mundo de uma nova camada social2 que busca apropriar-se de

certos espaços da cidade (LEITE, 2007 p.63).

Dentro do contexto por nós estudado, permeiam as noções de direitos políticos e

individuais. Diante disso, é também um dos objetivos deste trabalho, observar além das

táticas utilizadas nesse empreendimento de resistência, a noção e o conhecimento de

direitos políticos desses moradores, que os leva a reivindicar do órgão responsável,

ações e medidas para a localidade.

(...)a noção de direitos políticos e de direitos individuais teve que ser

desrespeitada, pisoteada e anulada. Sem esses pré-requisitos, seria impossível

manter como pobres, milhões de brasileiros, cuja pobreza viria de fato a ser

criada pelo modelo econômico anunciado como redentor(...) O modelo

político e o modelo cívico foram instrumentais ao modelo econômico

(SANTOS,2014, p.15).

1 Por degradadas, entendemos áreas que por um período de tempo, não receberam incentivos relacionados

à reforma e revitalização.

2 Essa nova camada tem por característica ser um segmento já possuidor de capital econômico e social

que, em relação ao Pilar, se mostra muito maior.

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Nesse sentido, trataremos aqui inicialmente da trajetória da Favela do Pilar, ou

Favela do Rato, e de como se situa historicamente a questão da resistência dos

moradores no local. Todo o processo nos permite ver o desenvolvimento desse sentido

de resistência num patamar pós-moderno, de fragmentação de estruturas, de constantes

modificações de consumo de tempo e de espaço, de maneira voraz. Toda essa análise

será feita levando em conta o processo de gentrificação, pelo qual o Recife Antigo

passou e vem passando; por considerarmos ser relevante pensar a situação em que se

encontram os moradores do Pilar. Em seguida, traremos a discussão de Harvey (2004) a

respeito da modernidade e pós-modernidade, onde discutiremos as possibilidades e

entraves de se pensar a partir dessas linhas de pensamento.

Importante será, também, nos utilizarmos de Certeau (1994), quando nos

propusermos a pensar a respeito das estratégias. A lógica capitalista dita o ritmo das

mudanças urbanas e consequentemente os sentidos das transformações são gestados

pelo que Certeau assim denominou como:

O cálculo (ou manipulação) das relações de forças que se torna possível a

partir do momento em que um sujeito do querer e poder, (uma empresa, um

exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado(...) A

estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio.

(CERTEAU, 2014, p.93).

O que queremos pensar, com isso, é que a construção do espaço não se

apresentaria como uma simples causalidade, tanto a ingerência quanto a presença de

órgãos responsáveis, conferem ao local um sentido à sua formação. Sendo assim, o Pilar

é um local que está dentro de uma estratégia maior de consumo dos espaços, nesse caso

mais especificamente, o circuito turístico do Recife Antigo.

Certeau nos será conveniente, ainda, em relação às questões que tratam dos modos de

proceder da criatividade cotidiana. “Essas ‘maneiras de fazer’ constituem as mil práticas

pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção

sócio cultural” (CERTEAU, 2014, p.41). Com isso, pretendemos observar como os

moradores se utilizam dessa criatividade, mais tática, a que Certeau chama de

bricoladora. Esses modos de fazer são partes constituintes de uma rede de

antidisciplina, pois, vão de encontro ao que é ditado, ao que é imposto (CERTEAU,

2014). O que é popular se origina de combinações, de artimanhas, do pensar

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pausadamente antes de fazer, diz o autor; e é justamente isso que buscamos ver junto

aos moradores.

É importante destacar que a perspectiva tomada aqui é a do indivíduo, ou seja,

priorizaremos as relações entre os moradores, as redes de solidariedade construídas por

eles, a dinâmica do lugar e, consequentemente, as noções de luta, pertencimento e

resistência dos moradores do bairro. Pretendemos observar essa dinâmica na ótica dessa

marginalidade silenciosa, como Certeau denomina. Uma “marginalidade de massa,

atividade cultural dos não produtores de cultura, uma atividade não assinada, não

legível, mas simbolizada” (CERTEAU, 2014, p.43). Consideramos importante adotar

essa posição, por acreditarmos que é justamente essa marginalidade que produz esse

sentimento de pertencimento nos moradores do Pilar e consequentemente, dita seus

princípios de luta.

Temos, assim, a pretensão de verificar a existência de possíveis táticas de

enfrentamento ao processo de invisibilização da comunidade, desenvolvidas pelos

moradores do Pilar no Recife; compreender a dinâmica do Pilar com relação ao pólo

turístico do Recife Antigo e o bairro do Recife; identificar práticas de resistência dentro

do contexto da comunidade, além de observar as táticas e estratégias desenvolvidas

pelos moradores para se organizarem enquanto comunidade. A estrutura do trabalho,

buscou contemplar de certo modo, alguns pontos que guiam a leitura de modo a se fazer

conhecer o Pilar e consequentemente o Recife Antigo. Inicialmente, buscamos traçar

alguns aspectos mais direcionados a um contexto metodológico, em que se

desenvolvem alguns pontos do lócus em que se desenvolve a pesquisa. O Pilar e o

Recife Antigo são apresentados previamente, de modo a situar a quem lê, do lugar de

onde se fala e do que se pretende falar.

Uma visão mais atenta, em certos aspectos é feita posteriormente. Nesse capítulo

Urubu, Gabiru, Cachorro e Gente: Da Favela do Rato à comunidade Nossa Senhora do

Pilar, priorizo a trajetória do Pilar, desde a sua constituição enquanto favela, até o que

se denomina enquanto comunidade. Nessa parte, pretendemos desenvolver uma visão

do Pilar, que ainda não reside muito a que corresponde a dos moradores. Priorizamos

ainda, nosso ponto de vista enquanto morador da cidade e das trajetórias que pudemos

compartilhar enquanto jovem recifense e apreciador da cultura local. Nesse ponto,

trazemos a contextualização do mangue beat, enquanto movimento que de certa forma

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contava a história da cidade, priorizando o ponto de vista dos homens caranguejo, sendo

objeto de denúncia e, portanto, muito apreciado pela população que vive Recife.

O trabalho de campo aparece mais fortemente no ponto que se segue. O Pilar é

apresentado mais diretamente, baseando-se nas incursões realizadas à campo, em que as

experiências narradas pelas vozes de quem reside no lugar, vão incorporando ao restante

do trabalho mais substância e dando sentido ao que é dito anteriormente. Nesse capítulo,

além de priorizar as narrativas, pudemos trazer novamente um pouco mais das nossas

impressões no que se refere à postura em campo. Nomeando atores, buscando aspectos

relacionados ao que me detive a discutir, fui delineando a partir das falas questões como

a visão que se tem do Pilar, a sua relação com o poder público e como o viver na

comunidade acontece e se desenvolve em meio a uma gama de diferenças e igualdades.

É nessa miríade de trajetórias de vida e na riqueza de informações disponibilizadas, que

esse capítulo se constrói.

Em seguida, busquei relacionar alguns aspectos a que me pretendi discutir ao

longo do trabalho, clareando o campo, à luz de alguns autores utilizados. Nessa parte, as

noções de tática e estratégia de Certeau, de estigma de Goffman, e algumas outras

contribuições aparecem, pois são percebidas dentro do contexto, claramente. Por fim,

situo algumas dificuldades em campo e desafios que pude vivenciar enquanto

pesquisador, dentro de um espaço tão dividido, porém diverso e importante. Espero

desse modo, poder trazer à tona algumas contribuições e incitar discussões a respeito da

comunidade do Pilar, que existe, reexiste e resiste em meio a uma lógica esmagadora e

perversa.

Finalmente, devo deixar registrado aqui o fato de eu ter recebido o desafio de

rever o meu relatório de dissertação, após as importantes críticas da banca examinadora,

precedidas pelas da orientadora antes de eu me apresentar à defesa; críticas que diziam

respeito à exiguidade dos dados empíricos e à “falta de fôlego” em relação a uma

problematização teórico-conceitual, mais consistente do objeto de pesquisa.

Após a defesa, empenhei-me em trazer mais densidade na descrição de tudo o

que eu havia colhido em campo, assim como busquei compatibilizar as intenções

teóricas propostas com o que os dados de campo informavam. Ao cabo do prazo de

reescrita, não posso garantir ter atingido plenamente os objetivos indicados pela banca

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examinadora; porém, creio ter, minimamente, buscado a coerência entre a proposta

inicial e a problematização resultante, neste final de escrita. A “escassez” (teórico-

empírico), retratada neste relatório, não condiz com o que vivenciei e trabalhei em

campo, tampouco condiz com os esforços analíticos que empreendi.

Nesta etapa final, creio ter agregado, finalmente, mais questões/questionamentos

quanto ao objeto de estudo e quanto à condição de realização de uma pesquisa científica

e creio, ainda, que se eu não consegui atingir plenamente os objetivos apontados pela

banca examinadora, esta sinaliza que continua apostando – ao autorizar o depósito final

deste presente relatório – na potencialidade desta pesquisa que seguirá, em outras

circunstâncias, acadêmicas ou não, avançando a partir desses traçados iniciais, ora

apresentados. Isso dito, a confiança depositada em mim, pela banca examinadora, não a

torna responsável pelas minhas omissões e falhas contidas no relatório; antes de tudo,

essa confiança encoraja-me seguir adiante, com mais afinco.

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Preliminares – O lócus do estudo e aspectos teórico-metodológicos

O Pilar é um setor dentro do bairro do Recife. Em seu passado de invasões

holandesas, recebeu o nome de Fora-de-portas. Sob as ruínas do Forte de São Jorge,

ergueu-se a igreja de Nossa Senhora do Pilar, que acabou por dar nome à futura

comunidade. O Pilar encontra-se incrustado no meio do bairro do Recife, abrigando

cerca de 400 famílias que dividem o espaço com prédios históricos em ruínas, barracos

de madeira e plástico, uma igreja e uma fábrica de massas e biscoitos, a Pilar. O que se

pretende problematizar neste trabalho é como se dá a dinâmica desses moradores no

espaço em que vivem; e como esse morar é amplamente modificado em função das

condições em que se encontram, sendo que, essas famílias precisam dividir esse espaço

com o turismo intenso e, ao mesmo tempo, defender seus interesses básicos.

O cenário em que se insere a situação do Pilar nos remete a uma conjuntura de

paisagens urbanas pós-modernas. Isso nos faz lembrar de Zukin, quando este dissertou a

respeito das questões de cultura e poder, imbricadas nas paisagens urbanas. Segundo

ele, esse gama de mudanças espaciais e socioculturais reduz-se ao termo “paisagem

urbana pós-moderna” (ZUKIN, 2000). O autor deixa claro que ainda não há um critério

que separe os dois modelos de cidade, porém reconhece que há uma mudança na

maneira como a cidade é vista agora: há um maior consumo do espaço e do tempo, um

consumo modificado, que visa cada vez mais uma aceleração, uma desconstrução das

identidades mais tradicionais e uma reconstrução destas sobre novos alicerces, como já

observou Hall (2009), em sua obra Identidade cultural na pós-modernidade. O que

levaremos em conta, na discussão de Zukin, é a necessidade dessa desconstrução do que

já estava estabelecido e os impactos do processo social de construção dessa nova

paisagem, que “depende da fragmentação econômica das antigas solidariedades urbanas

e de uma reintegração que é fortemente matizada pelas novas formas de apropriação

cultural” (ZUKIN, 2000, p.81).

É certo que, quando se refere a essa pós-modernização da cidade, Zukin trata de

restauração e da renovação de locais antigos, fundidos agora na lógica do capitalismo

industrial. É certo que esse cenário não precisa agregar prédios enormes, feitos de aço e

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concreto. Esses lugares, assim como o Recife Antigo foi, podem ser alvo de

modificações, visando à produção de espaços de consumo, por trás do que já estava

estabelecido; e tudo deve ser reconstruído dentro de outra lógica, como se as identidades

originais fossem agora esmiuçadas em favor de uma nova ordem. O processo de

gentrificação se baseia nessa ideia de revitalizar espaços, modificando os perfis e

determinados padrões desses lugares. Há, por conseguinte, uma troca dos grupos sociais

que frequentam o lugar, um refinamento proposital do espaço. Os impactos da

gentrificação, no entanto, não se definem: por um lado, o processo agiria com vistas a

reerguer e revitalizar o espaço e, por outro, agiria de modo excludente, tornado o espaço

frequentável apenas para os gentry, as “classes mais abastadas” (ZUKIN, 2000).

Quando esse processo se iniciou no Recife Antigo, não foi diferente. Prédios

históricos foram revitalizados, ganharam novas cores, foram ressignificados. Deixaram

de abrigar apenas escombros para dar lugar a bares, casas de festas, museus. Alguns

galpões do Cais, mais próximos ao Marco Zero do Recife foram reformados, funcionam

ali agora franquias de restaurantes caríssimos e um museu com peças de artistas locais.

Tudo organizado para oferecer mais conforto a quem chega. Uma placa de vidro deixa a

vista do mar mais ampla. Esse vidro agora não mais é impessoal, ele permite que haja

uma conexão dos espaços. Tudo parece se conectar, num cenário de fragmentação dos

significados. O espaço do Recife Antigo foi gentrificado para “os de fora”. Quem está

habituado ao lugar, limita-se a apreciar uma mudança ou outra, pois o espetáculo para

nós, os de dentro, apenas se repete.

Harvey (2004) pontuou que há um aumento do interesse pela cultura da cidade,

escrevendo em um contexto inglês no final da década de 1970, em um momento de crise

da social democracia. O autor deixa claro que as cidades sempre tiveram culturas, que

produziram seus conjuntos de símbolos e agregaram valor a eles. O que o autor indaga é

a origem desse interesse relativamente novo pela cultura da cidade e acentua a

importância da mudança de foco do estilo de vida tendo como base as relações de classe

(HARVEY, 2004).

Dessa maneira, somos levados a pensar o Pilar, dentro desse contexto de

gentrificação. O espaço, agora revitalizado, está separado apenas por tapumes do Pilar.

Como Zukin (2000, p.82) pontuou: “o espaço incita e imita a ambiguidade”. Dessa

maneira, o mesmo espaço que é vendido a altos preços, por ser imbuído de significados,

20

predisposto à capitalização, incorpora de maneira grosseira o Pilar, à sua lógica. Em

outras palavras, a dinâmica que se instaurou no Recife Antigo após a gentrificação do

espaço, parece não ter incluído o setor e a sua lógica. A ideia de luta que pretendemos

utilizar para visualizar a problemática proposta por nós, não está ligada a um sentido

figurado de conflito político, a disputa por formas de cidadania e urbanidade; a luta que

se trava nesse contexto, passa a ser bilateral: o que acontece agora é a luta da ordem

contra a desordem.

Parece óbvio que a ordem está do lado modificado e reconstruído para ser

vendido e a desordem se instala em meio aos barracos. A competição, se é que assim

podemos falar, é desleal. Com a “aparente” fragilização do poder do Estado, a

responsabilidade passa a ser do mercado, o ator hegemônico é de fato, agora o mercado.

Há uma supremacia de um modelo de cidade pensado como negócio. Dessa maneira, a

desordem é ofuscada para que se venda a ordem. Isso nos remete às ideias de Lefebvre

(2008), sobre a produção do espaço, levando-nos a ver a cidade como possuindo valor

de troca. O morar no Pilar, está em constante conflito com essa mercantilização; é um

manifesto, antes de mais nada, de resistência e de luta por direitos. É importante tratar

nesse ponto, esse conflito entre o morador e a lógica excludente que se estabelece. Jessé

de Souza aborda essa questão da desigualdade social, que produz “subcidadãos”, através

de uma “naturalização das desigualdades”, que segundo ele, é

(...) um fenômeno de massa em países periféricos de modernização recente

como o Brasil, pode ser mais adequadamente percebida como consequência,

não de uma suposta herança pré-moderna e personalista, mais precisamente

do fato contrário, ou seja, como resultante de um efetivo processo de

modernização de grandes proporções que se implanta paulatinamente no país

a partir de inícios do século XIX (SOUZA, 2004, p.80).

O morador do Pilar, atendo-nos mais propriamente ao nosso caso, os moradores

do Pilar, são subcidadãos produtos da lógica que aos poucos foi se instaurando nos

arredores do setor. Outro ponto interessante, é a naturalidade com que isso se instaura

dentro do contexto, como veremos mais adiante.

David Harvey (2009), ao dissertar a respeito do pós-modernismo nas cidades,

serve de apoio teórico para o desenvolvimento da nossa análise, no sentido que vai

pontuar as diferenças existentes nos conceitos de modernidade e pós-modernidade na

cidade. Segundo o autor, a ideia de pós-modernismo pressupõe um cenário

21

fragmentado, não acompanhado de uma preocupação política. Não existe “uma ruptura

com a ideia modernista de que o planejamento e o desenvolvimento devem concentrar-

se em planos urbanos de larga escala, de alcance metropolitano” (HARVEY, 2009,

p.69), que o modernismo abarque. Em vez disso, visualiza-se a malha urbana

fragmentada, onde não é mais possível controlar o urbano de outra maneira que não seja

em pedaços. A tese de Harvey sustenta que o espaço deve ser construído com o

propósito de ser dominado e moldável.

Faz-se necessário, aqui, justificar nossa insistência quanto ao uso dos conceitos

de moderno e pós-moderno. Primeiramente, o fazemos por conseguir visualizar essa

transição do moderno ao pós-moderno, no espaço do Recife Antigo, baseando-nos

principalmente nas ideias de Harvey (2009). Apesar das intensas discussões a respeito

de vivermos ou não em uma pós-modernidade, sem nem saber se vivemos a

modernidade em si, as mudanças são claras e perceptíveis nesse espaço. Optamos por

designar o movimento dentro do Pilar de uma resistência em um patamar pós-moderno,

pois, mesmo em função da falta de visibilidade tanto dos arredores, quanto do poder

público, o Pilar continua a existir. Mesmo em um cenário em que os objetivos não estão

direcionados ao social, esses moradores, continuam a ocupar o espaço e “subvertendo” a

ordem.

Enquanto os modernistas veem o espaço como algo a ser moldado para

propósitos sociais, e portanto, sempre subserviente à construção de um

projeto social, os pós-modernistas o veem como coisa independente e

autônoma a ser moldada segundo objetivos e princípios estéticos, que não

tem nenhuma relação com algum objetivo social abrangente, salvo, talvez a

consecução da intemporalidade e da beleza “desinteressada”, como fins em si

mesmas (HARVEY,2009, p.69).

Sendo assim, percebemos as modificações ocorridas no espaço trabalhado como

sendo parte de uma estrutura pós-moderna, em que o social não é o foco e não é levado

em conta. Como pontuamos aqui, há uma preocupação estética em modificar os

espaços, muito maior, do que a preocupação com os moradores de uma localidade

vizinha, que são apenas camuflados. Essa tendência implica uma forte diferenciação do

espaço e Harvey pontua que na linha pós-moderna se coloca mais disposição para

atender diferentes necessidades e gostos, são levados a obedecer a uma cultura de gosto

(HARVEY, 2009).

22

É importante salientar que o modernismo, além de priorizar planos urbanos de larga

escala e preocupar-se com o social, é populista. Harvey (2009) mostra que há uma

contradição nisso, pois os mesmos modernos que propõem uma democracia e uma

liberdade, não estão dispostos a discutir isso em direção à lei. No entanto, como diz o

autor, essa colisão é necessária. Render-se à categoria “povo”, implica estar disposto a

participar desse embate e entender que essa categoria é na verdade uma multiplicidade.

Os problemas das minorias e dos desprivilegiados ou dos diversos elementos

contraculturais que tanto intrigam Jane Jacobs foram jogados para debaixo do

tapete, até que se pudesse conceber algum sistema bem democrático e

igualitário de planejamento baseado na comunidade que atenda as

necessidades dos ricos e dos pobres (HARVEY,2009, p78).

Entender a categoria povo, enquanto múltipla, pressupõe que necessidades

diversas devem ser atendidas. Porém, há uma extrema dificuldade em livrar-se da lógica

de um mercado direcionador de grande parte dos gostos e olhares de diferentes estratos

sociais. O que acontece, como diz Harvey (2009), é que a classe média foi colocada

pelo populismo em espaços fechados, tais como os shoppings e, segundo uma discussão

mais atual, em enclaves fortificados. “São propriedade privada, para uso coletivo, e

enfatizam o valor do que é privado e restrito, ao mesmo tempo em que desvalorizam o

que é aberto e público na cidade” (CALDEIRA, 2000, p.258).

Como pontuamos aqui, inicialmente, o objetivo maior do nosso trabalho, é

perceber formas de estratégias e astúcias relacionadas ao morar, empreendidas pelos

moradores do Pilar, no Recife. O desafio a que nos pretendemos se insere justamente na

configuração do setor em si, visto que se situa em meio a um centro turístico, ocupando

uma pequena parte do bairro do Recife Antigo, em meio a escombros. A área total, que

o Pilar ocupa, tem no total três pequenos quarteirões e uma rua mais central – a rua São

Jorge. A nossa escolha, em estudar determinadas configurações do Pilar, se justifica por

essa minúcia: o espaço é muito restrito, carente de iniciativas públicas, um permanente

canteiro de obras e de escavações arqueológicas. O que chamou mais a nossa atenção, é

que mesmo em face de todos os empecilhos encontrados para que a população que

reside no local possa sobreviver. Ela encontra, o tempo todo, maneiras de sobreviver

que se reproduzem e criam, assim, noções de resistência e de ressignificação dos

espaços.

23

É importante ressaltar que entendemos o Pilar num contexto estrutural que

sofreu intervenções em prol de um projeto de produções de espaço, o que fez com que o

lugar não ficasse isento de transformações, de maneira que não seria possível

remetermos a mudanças que ocorrem pela presença do modo de produção capitalista,

sem atentar para maneira como o espaço é modificado, apropriado e ressignificado

(FERREIRA, 2011, p.45). O Pilar parece um recorte colado dentro do bairro do Recife

Antigo, que parece excluí-lo de sua lógica turística e tirá-lo da vista dos transeuntes.

Intrigante é perceber que mesmo que pareça deslocado dentro do polo turístico, as

fronteiras, para nós, parecem ser quebradiças e frágeis: menos de 300 metros separam

os dois espaços, de modo que assim conseguimos adentrar sem grandes problemas no

lugar. Apenas alguns passos separam quem vem do Recife Antigo da localidade.

Como indicamos, acima, temos como objetivo, observar como se dá a dinâmica

do morar, entre os moradores, dentro do contexto do Pilar, no Recife. Para isso,

priorizaremos o indivíduo, na nossa análise, buscando através das suas narrativas,

construir o cotidiano local, e identificar suas noções de morar, suas interpretações do

coletivo e alinhar suas histórias de vida com a da comunidade, para assim verificar a

existência de pautas de luta e de resistência, dentro desse setor, tendo em vista a

carência de ofertas de serviços públicos, como citamos anteriormente. Para tal, faremos

uso da sociologia à escala individual, de Bernard Lahire (2002), além de utilizarmos a

entrevista narrativa, como método de coleta de dados.

Esse autor problematizou acerca de como e onde apreendemos o social, questão

essa que, segundo ele, trouxe uma diversidade grande de respostas, em várias das

tradições sociológicas. Um desafio, ainda maior, segundo o autor, é o de apreender esse

social individualizado, pois há dois riscos permanentes, o de se estudar o novo

reciclando o antigo, e o de se pensar ter atingindo os fins científicos (LAHIRE, 2005).

Empreitar o desafio de abandonar o viés de uma análise macrossociológica, em que se

analisam as instituições, os grupos, priorizando o todo, para empreender o estudo das

partes que formam o coletivo, não é um desafio fácil; porém, Lahire pontua que essa

transição não foi algo que produziu traumas e interrogações significativas entre os

pesquisadores, “foi sem se dar conta, e sem medir as consequências, que a sociologia se

interessou tanto pelos indivíduos socializados”. (LAHIRE, 2005, p.12). O que nos

chama mais atenção e que de certa forma justifica o uso da sociologia à escala

24

individual, neste trabalho, é observar cada morador do Pilar como sendo um mundo

individualizado, “pequenas máquinas produtoras” de práticas, matrizes plurais de

realidade, esquemas de pensamento individualizados.

Fazendo uso de um roteiro3, que será usado para guiar a incursão em campo, na

entrevista narrativa, faz-se o uso de uma questão gerativa, que dá o impulso primeiro

para que a história comece a ser contada, tomando-se os devidos cuidados, para que

cada questão que indique a existência de outras, seja retomada, e esgotada. Este,

segundo Flick, seria o segundo estágio do processo de aplicação desse método, sendo

seguida do que ele chama de fase de equilíbrio, onde o entrevistador, após entender que

todos os pontos da narrativa foram contemplados, pode fazer perguntas. Um dos pontos

mais interessantes desse método de pesquisa, e que foi um dos pressupostos para a sua

utilização nesse trabalho, é o fato do pesquisado conhecer melhor de si mesmo e da

situação do que qualquer outro, mesmo que outra narrativa seja realizada no mesmo

lugar.

Como já foi dito anteriormente, pretendemos aqui verificar a noção do morar

para os moradores do Pilar, suas técnicas de sobrevivência e como se dá esse processo

de luta dentro de um contexto problemático. Há uma severa disputa pelo espaço entre

quem mora no local e quem o visualiza como fonte empreendedora. Sendo assim,

exploramos pontos sobre a chegada do morador no lugar, as redes de sociabilidade

construídas e principalmente, sua relação com o Pilar. Buscando abordar também, que

significado isso tem para suas vidas. Um roteiro simples para guiar a narrativa, apenas

como artifício de condução da mesma, encontra-se ao final deste relatório. É importante

destacar que buscamos realizar as narrativas com pessoas que consideramos lideranças

locais, moradores mais antigos, donos de estabelecimentos comerciais dentro do local,

pessoas que trabalhassem fora do contexto e que, de certa forma, podiam reconhecer as

diferenças instauradas pelo processo de gentrificação. Não fizemos, portanto, uma

delimitação no número de pessoas com quem esse instrumento deveria ser aplicado,

pois essa “seleção” ocorreu durante as estratégias criadas em campo, quando se

determinava quantas e que pessoas deveriam ser escutadas. Por fim, após a realização

dessas entrevistas narrativas, partimos para a análise dos dados, tendo em vista as

3 O roteiro está em anexo.

25

hipóteses aqui colocadas, a explanação dos pontos explorados pelo roteiro elaborado

previamente e os que surgiram ao longo das narrativas.

Durante o processo de coleta dessas narrativas, foram escutadas quatro pessoas,

com as quais, utilizei o roteiro mais diretamente. Duas dessas pessoas integravam

movimentos sociais que realizavam atividades dentro do Pilar. Outras duas moravam na

comunidade e durante as incursões feitas, aceitaram conversar a respeito da sua

realidade a partir do roteiro. É importante ressaltar que por mais que o universo de

pesquisa pareça se delimitar entre esses quatro atores, durante as minhas incursões em

campo, outras vozes e realidades puderam compor o corpus do trabalho de campo.

Essas pessoas serão devidamente apresentadas nos capítulos que se seguem.

26

CAPÍTULO 1 - Recife: A maior metrópole em linha reta da América

Latina?

Este capítulo tem a intenção de introduzir sumariamente o Recife enquanto

espaço geográfico e social (e por que não espaço afetivo?). O tema desse capítulo,

traduz um pouco a recifense da “mania de grandeza”, que venera sua cidade, que vive

Recife intensamente. Serão explorados os aspectos que caracterizam essa cidade

enquanto uma metrópole regional, incompleta e periférica. Essa explanação será

dividida em três partes: na primeira, faremos uma apresentação geral do Recife

enquanto cidade; em outra, faremos um recorte do bairro do Recife, em especial, o setor

do Pilar; e, por último, enfatizaremos a ligação que o Recife Antigo tem com a cidade

no geral e com as pessoas. A noção de Recife que será aqui introduzida não é uma

noção rígida, mas uma noção permeada de sentimentos e de memória próprios. De certa

forma, queremos apresentar, antes de tudo, a maneira como vemos e sentimos essa

província, de modo que esta dissertação se coloque, aqui, como uma apresentação de

um Recife que ninguém vê, sobretudo, para quem é de fora.

É importante salientar que a construção desse trabalho visa à exploração da

cidade do Recife, a partir da visão de quem pertence ao lugar. No presente capítulo,

tentarei fazer uma explanação mais histórica da cidade, para situar o leitor acerca

daquilo que se está falando. O diferencial significativo, deste trabalho, será o de permitir

a qualquer pessoa enxergar o Recife através dos pontos de vista dos problemas

existentes e, consequentemente, fazê-la perceber o que está por trás de todo esse

saudosismo. A crítica vai ao encontro de temas em debates, na atualidade, como: o

direito à cidade, as desigualdades existentes nas entranhas do que denominaremos aqui

de Bairro do Recife. Muito mais, detalhadamente, como dissemos mais acima, no que

diz respeito à comunidade do Pilar.

A comunidade do Pilar está incrustrada no meio do Bairro do Recife. Pouco

mais de 400 famílias dividem o espaço que faz fronteira com o Recife Antigo e grande

parte do polo turístico da cidade. Essas pessoas têm que lidar diariamente com uma

série de problemas básicos como saneamento e moradia, por exemplo. A pertinência

desta análise reside exatamente no fato de tentar compreender as dinâmicas e práticas

desenvolvidas no local para que a comunidade, vizinha a empreendimentos de luxo, e

27

que se encontra por trás da prefeitura do Recife, continue a se estabelecer no local. Será

tratada, aqui também, a invisibilidade da mesma, por parte da população que ocupa

seletivamente alguns espaços e negligencia outros.

A cidade4 surge primeiramente como uma vila de pescadores à sombra das

ladeiras de Olinda, cidade esta, que servia de capital para a capitania de Pernambuco.

Em todo caso, a vila à beira-mar servia de entreposto comercial por conter arrecifes que

formavam um porto quase que natural para as embarcações, sendo alçado à condição de

posto imediato para escoar a produção açucareira e receber produtos. Mais tarde após a

expulsão dos holandeses, Recife tomou ares citadinos contrastantes com a posição

subalterna anterior a ocupação neerlandesa. Nesse meio tempo, uma guerra entre os

moradores de Recife acontece. A cidade, nesse momento, notadamente povoada por

comerciantes burgueses, entra em conflito com a elite oligárquica açucareira que residia

em Olinda. Foi a partir dessa revolta que os “mascates”5 recifenses acabaram por ganhar

direitos políticos perante a coroa portuguesa. Recife estava agora equiparada à Olinda, o

que constituía um marco para a economia de Pernambuco, pois se tratava da vitória do

capital mercantil sobre a economia açucareira em crise.

Neste ponto, vemos que desde as primeiras fases da vida do Recife, as

desigualdades aportam junto com o ar de grandeza que a burguesia lusitana impôs. O

nascimento do Recife marca o predomínio burguês sobre o antigo regime: novas formas

de empreender e de organizar as mesmas disparidades que, assim como toda cidade

colonial brasileira, nasce com a instalação do seu pelourinho. Já passando pelo século

XIX, Recife manteve sua influência regional e contando já com um porto principal,

caracterizando-se de uma centralidade para o escoamento da produção da região

Nordeste. O porto proporcionou a integração a várias cidades do Nordeste e,

consequentemente, trazendo avanços para o cenário local.

Na década de 1970, mais precisamente em 1973, o Recife é institucionalizado

como região metropolitana. Neste caso, é importante salientar a instalação da

Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) no Recife que, durante

o regime militar, combinava e financiava iniciativas econômicas para desenvolver

4 Disponível em: http://www.pe.gov.br/conheca/historia/. Acesso em 22 mar de 2017.

5 Mascates eram os comerciantes recifenses de origem portuguesa que participaram do conflito e deram

nome ao mesmo.

28

industrialmente a região; vemos, mais uma vez, a centralização do Recife na região

Nordeste, como principal condutor de políticas públicas, nesse período de tempo. Aqui,

utilizamos, mais exatamente, a noção de Milton Santos (1982) de metrópole incompleta,

para classificar o Recife que, apesar de ter tido uma forte expansão, não acompanhou a

dinâmica da oferta de serviços que uma metrópole regional abarcaria, mas que se valeu

da sua hierarquia construída desde os primeiros anos de exploração colonial:

As metrópoles incompletas resultam de uma transformação quantitativa e

qualitativa das grandes cidades já existentes sob o impacto das

modernizações, que são direta ou indiretamente responsáveis pelas

transformações da demografia, do consumo e da produção, na cidade e na

região. Em que pese à sua incapacidade de proceder à macro-organização do

território, as metrópoles incompletas não dispõem da totalidade dos meios

necessários a essa dominação, sendo então obrigadas a completar-se alhures.

(SANTOS, 1982, apud BITOUN, 2015, p. 21)

Temos, nesse caso, uma metrópole desigual que depende de outras regiões para

concretizar a dominação regional e, também, um território onde a opulência se

contrapõe com o arcaico, ao mesmo tempo em que a esse se alia. Vemos um tipo

diferente de incompletude, em especial aquela que é originada por políticas de

perpetuação das desigualdades. No Recife, a desigualdade na organização territorial é

nítida: domicílios autoconstruídos ao lado de luxuosos empreendimentos, em simbiose

com a imensa desigualdade social, à brasileira. No caso específico da relação Pilar

versus Recife Antigo, a questão da gentrificação se torna mais forte e central por se

tratar de uma Recife enquanto cidade contemporânea e estar relacionada ao

deslocamento das camadas mais pobres.

Após um forte crescimento, na década de 1980, aliado a investimentos no setor

açucareiro, o final do regime militar trouxe à tona a incapacidade de promover uma

diversificação na economia da região, que apostava na modernização das mesmas usinas

de açúcar que herdaram o poderio dos engenhos. Em todo caso, Recife continuou com

sua hierarquia sobre outras cidades, mesmo diante da crise econômica e administrativa

que se iniciou no fim da ditadura militar, o que acertou em cheio a capital

pernambucana:

29

Nos anos de 1990, foi latente a precarização das condições socioeconômicas

em todo o país, em função da abrupta abertura comercial e financeira da

economia brasileira. No caso das regiões metropolitanas, entre as quais a do

Recife, sempre houve duvidoso destaque; pode-se fazer menção ao aumento

do desemprego, do subemprego e da informalidade, decorrências imediatas

da opção de política macroeconômica do governo de ocasião. A falta de

correspondência entre a dinâmica demográfica e a colocação no mercado de

trabalho foi determinante: a demanda deste último, rarefeita em função do

recrudescimento da concorrência intercapitalista e, principalmente, da

reestruturação produtiva pela qual passaram as principais unidades produtivas

em todo o país, não comportava a crescente oferta de mão de obra presente

nas principais cidades (ROSA, 2015, p.111).

Recife que absolvia um contingente enorme de mão de obra, vinda de cidades

dentro do centro, tanto do interior de Pernambuco como de outros estados próximos,

não conseguia mais absolver o adensamento populacional, o que concorreu, em parte,

nessa época, para a ocupação periférica da cidade e, também, na integração da região

metropolitana, concretizando um movimento que transformou algumas das cidades

próximas em cidades dormitórios e contribuiu para o movimento pendular. Recife agora

necessitava de integrar seus meios de transportes.

Apesar desse crescimento, no entorno da Região Metropolitana do Recife

(RMR), a cidade não conseguiu atender a demanda de investimentos em infraestrutura

que necessitava. Sendo assim, algumas ocupações começaram a ocorrer mais ao centro

da cidade, debaixo das pontes, na beira dos rios e mangues e em sobrados abandonados.

Apesar de não ser uma estratégia nova, caracterizou-se por justificar a proximidade de

grandes centros de empreendimentos imobiliários de alto padrão, que necessitavam de

mão de obra barata para serviços variados. Em função das marcantes desigualdades que

se desenvolviam com passar dos anos, as moradias tidas como irregulares foram

marcando a cidade: empreendimentos luxuosos faziam fronteiras com favelas. A

situação dos domicílios, entre os anos de 1991 até 2010, que pode ser vista na tabela

abaixo, demonstra o salto na quantidade de domicílios não contemplados pelos serviços

de esgotamento sanitário e abastecimento de água, itens básicos na manutenção da

infraestrutura de qualquer cidade.

30

Tabela 1

Fonte: Atlas do Brasil (2010) editado pelo autor.

O fato é que, durante a reabertura política e econômica que ocorreu nos anos

1990, houve uma retração dos grandes investimentos, que só viriam na década seguinte;

assim, a década de 1990 foi marcada pela forte precarização do trabalho e da condição

das habitações, como um todo no Brasil. Recife segue esse fluxo peculiarmente,

fazendo brotar uma série de domicílios subnormais ao estilo recifense, as palafitas6.

Outro fator, que explica a migração populacional para o centro de Recife, foi o declínio

da indústria açucareira, o que fez com que um grande contigente populacional migrasse

das cidades do interior para a Região metropolitana. Essas famílias foram buscar nos

bairros mais populares, moradia e oportunidades e foram se instalando. A grande massa

populacional aumentou, consequentemente, o número de domicílios; e a fraca política

de habitação não conseguia dar conta da oferta de políticas públicas habitacionais

suficientes.

Tanto é que, sem um olhar detalhado do Recife, os números passam

despercebidos, pois nas mesmas regiões convivem extremos sociais que em números

6 Palafita é um tipo de construção muito comum em Recife construída com madeira que se erguem em

regiões alagadiças, geralmente na beira de rios ou mangues

31

oficiais são suavizados, portanto, em uma média geral Recife não destoa sua extrema

desigualdade, isso porque, os assentamentos mais precários geralmente servem de apoio

para as residências mais bem equipadas da cidade; sendo assim, existe tanto periferias

no centro quanto no extremos da cidade; sendo o Recife uma peneira com picos e

decréscimos extremos de níveis sociais, a poucos metros um dos outros. De fato, os

anos 2000 trouxeram uma piora para alguns números no Recife, principalmente, quando

se trata de pobreza absoluta; em resumo, o número de pessoas abaixo da linha da

pobreza tinha números alarmantes.

Tabela 2

Fonte

: Atlas do Brasil (2010) editado pelo autor.

Como vemos na tabela acima, a porcentagem de pessoas na extrema pobreza,

durante a década de 1990, atingiu uma porcentagem um pouco menor que a média

nacional. Mas, mesmo assim, tem a quarta maior porcentagem entre as capitais da

região Nordeste. Nos anos 2000, diminui e decresce para a quinta posição na região e,

finalmente, em 2010, apesar da redução permanece em segundo.

A renda per capita média de Recife cresceu 92,44% nas últimas duas

décadas, passando de R$ 594,62, em 1991, para R$ 778,39, em 2000, e para

R$ 1.144,26, em 2010. Isso equivale a uma taxa média anual de crescimento

nesse período de 3,51%. A taxa média anual de crescimento foi de 3,04%,

entre 1991 e 2000, e 3,93%, entre 2000 e 2010. A proporção de pessoas

pobres, ou seja, com renda domiciliar per capita inferior a R$ 140,00 (a

preços de agosto de 2010), passou de 35,70%, em 1991, para 25,67%, em

2000, e para 13,20%, em 2010 (Atlas do brasil 2010)

32

Apesar de o Recife ter a maior renda per capita da região, as desigualdades que

influenciam na composição da cidade, leva-o também a ter o maior índice de Gini7 da

região Nordeste; o que significa que é comprovadamente a capital mais desigual do NE.

Ao passo que houve uma reviravolta em termos de renda média, o crescimento não

significou, nesse caso, o aumento da distribuição de renda. O que houve foi que quem

ganhava mais continuou ganhando ainda mais, ao mesmo tempo em que quem ganhava

menos percentualmente teve um menor acréscimo. Mais uma vez, o crescimento

econômico beneficiou mais quem já tinha algum capital, em detrimento da parcela que

não teve alterada suas configurações de renda.

É importante destacar que optamos por desenhar esse patamar do Recife, com o

intuito de situar o leitor a respeito da cidade que estamos falando. Todos esses índices

apresentados são ferramentas necessárias para que possamos entender a cidade, numa

configuração atual. Como foi dito, mais acima, a cidade Maurícia apresenta um dos

maiores índices de desigualdade do Nordeste. Coexistem, em um mesmo espaço,

shoppings centers e palafitas, bem como, grandes centros empresariais que fazem

fronteira com favelas. Amontoados de casas disputam espaço no alto das barreiras; o

risco e a necessidade correm lado a lado em uma metrópole famosa e turisticamente

conhecida. As barreiras são as mais porosas possíveis; mas, ao mesmo tempo em que

parecem fronteiras abertas, são na verdade mecanismos de exclusão e segregação.

Muito embora essa característica deva se apresentar em várias outras cidades do

Nordeste, é importante ressaltar que em Recife isso é, minimamente, “mais comum”.

Antes de adentrar mais propriamente no exemplo, no qual todo esse trabalho está

baseado, é importante que possamos visualizar outras situações em que isso ocorre. Um

grande exemplo que podemos tomar é o do Shopping Tacaruna. Ao lado do

empreendimento, encontra-se a favela de Santo Amaro, no centro do Recife. A solução

do shopping para, de certa maneira, higienizar a vista de quem frequentasse o local, foi

a colocação de um muro ao redor de toda a comunidade. As lideranças comunitárias

intervieram, argumentando que o vento deixaria de circular nas casas com a presença do

muro. A solução dos empresários foi a de fornecer ventiladores para os moradores.

7 É um instrumento usado para medir o grau de concentração de renda. Ele aponta a diferença entre os

rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de 0 a 1, sendo que 0 representa a

situação de total igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda, e o valor 1 significa completa desigualdade

de renda, ou seja, se uma só pessoa detém toda a renda do lugar. (Atlas do Brasil, 2010).

33

Estava resolvido o problema. Esses e outros exemplos servem para que possamos situar

nosso objeto de estudo, mais apropriadamente. Como foi dito, mais acima, pretendemos

observar o conjunto de dinâmicas e práticas, dentro de um setor no bairro do Recife, o

Pilar.

É necessário dizer que tomamos como base o Pilar, justamente por se encontrar

dentro de um contexto mercadológico no que diz respeito à cidade. O Pilar, situado

vizinho ao Recife Antigo, grande centro empreendedor no ramo turístico, que concentra

grande parte da história da cidade, parece invisível. A invisibilidade, como veremos

adiante, é seletiva: apesar do Pilar, em termos de tamanho e densidade demográfica, ser

uma localidade pequena, há dentro do espaço da comunidade uma igreja histórica, bem

como dois prédios residenciais; há famílias que tiram seu sustento do comércio informal

no Recife Antigo. Tudo isso paralelamente ao glamour que toda cidade empreendedora

turisticamente possui. A pertinência deste estudo está justamente em perceber esse

conjunto de dinâmicas e práticas dentro de um contexto de desigualdade social e de não

direito à cidade por parte dos moradores do lugar.

Diante da situação que temos, é importante ressaltar a condição de quem mora

no Pilar, isto é, de que pessoas estamos falando? “É extensa a tipologia das formas de

vida não cidadãs, desde a retirada, direta ou indireta, dos direitos civis à maioria da

população (...) ao abandono de cada um à sua própria sorte” (SANTOS, 2014, p.31).

Entendemos aqui o morador do Pilar como sendo o cidadão mutilado, assim

denominado por Milton Santos. Essa mutilação vem, em todos os sentidos,

desestabilizar a trajetória de quem é levado a viver à margem. Essa massa mantenedora

das margens, no entanto, não é um agrupado homogêneo. Há um gama de identidades,

de particularidades e de diferentes formas de conceber seus conceitos de cidadãos. Tudo

é muito mais complexo em um espaço dinâmico, em especial ao que se encontra em

situações que demanda mais atenção, ou seja, em que a mutilação limita os seus

movimentos. Esse é exatamente o patamar em que o Pilar se encontra: disposto a um

conjunto de regras e olhares que desejam mantê-lo em seu lugar de mutilado.

34

1.1 Urubu, Gabiru, Cachorro e Gente: Da favela do rato à comunidade

Nossa Senhora do Pilar

O Pilar é um setor dentro do bairro do Recife. Em seu passado de invasões

holandesas, recebeu o nome de Fora-de-Portas. Sob as ruínas do Forte de São Jorge,

ergueu-se a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, que acabou por dar nome à futura

comunidade. O Pilar encontra-se incrustado no meio do bairro do Recife, abrigando

cerca de 400 famílias que dividem o espaço com prédios históricos em ruínas, barracos

de madeira e plástico, uma igreja e uma fábrica de massas e biscoitos. O que se pretende

problematizar, no presente trabalho, é como se dá a dinâmica desses moradores no

espaço em que vivem e como esse morar é amplamente modificado em função das

condições em que se encontram; sendo que essas famílias precisam dividir esse espaço

com o turismo intenso e, ao mesmo tempo, defender seus interesses básicos.

Após a saída dos holandeses, o Forte ficou em desuso e o terreno foi concedido

ao capitão-mor João do Rego Barros, em 1679. Em 1680, foi inaugurada, tornando-se

uma das mais veneradas igrejas, daquele tempo. Em 1899, passou por uma grande

reforma, conduzida pelos próprios moradores da região, um aglomerado denominado

Fora-de-Portas. Esse nome é devido ao território em questão estar fora das portas das

duas cidades irmãs, Recife e Olinda; e também, por haver uma ponte com portas que se

fechavam à noite, “trancando” os moradores próximos do porto, deixando-os fora do

centro da cidade. Basicamente, era formado por judeus comerciantes que vieram com

flamencos e que eram relegados pelos luso-católicos e trabalhadores do porto:

estivadores, carregadores e despachantes. O fato é que esse povoado, que data desde a

invasão holandesa, abrigava todos os tipos sociais, “mal falados” da época: desde os

boêmios malandros das zonas portuárias que aplicavam pequenos golpes, às prostitutas

amantes de marinheiros e aos hereges enganadores e mercadores judeus. Esses se

fixaram, após idas e vindas, até a década de 1970, quando uma suposta reforma do porto

tomaria o lugar. A reforma da PORTOBRÁS nunca aconteceu e novamente os

remanescentes dessa “gente” deflagraram um processo de favelização que resiste até

hoje. No final da década de 1980, o Pilar ganha a alcunha de Favela do Rato, por

35

costumeiramente dividir o local com ratos vindos do Porto do Recife e dos resíduos da

Fábrica Pilar de massas e biscoitos.

Nos anos 1990, segundo dados do IBGE, a população da cidade tinha R$ 805,86

como renda per capita, enquanto os moradores do Pilar ficavam com a média de

R$301,42 (metade da média de bairros populares). Além de extremamente pobre, o

Pilar era mal assistido quando se falava em saneamento e coleta de lixo, tinha a pior

situação sanitária do Recife: 68,18% dos moradores não tinham nenhuma instalação

sanitária e 70,59% não tinham qualquer tipo de coleta de lixo, bem como, quase 70%

não tinha acesso à água encanada. Por volta de 1986, a partir da criação do Escritório

Técnico de Revitalização do bairro do Recife (LEITE, 2007) começava-se a

descentralização do setor administrativo do bairro, que vinha seguido de um plano de

reabilitação do lugar:

O Plano de Reabilitação do Bairro do Recife, elaborado por uma equipe de

urbanistas e arquitetos [...] continha duas características básicas: reconhecia a

deterioração do lugar, as péssimas condições sociais em que estavam

submetidos os moradores, e defendia que a reabilitação fosse um instrumento

de ação política para recuperação das suas funções habitacionais.

(LEITE,2005, p. 162.)

Nesse caso, o projeto também visava que outros modelos de moradia fora do Pilar

fossem apoiados, trazendo outros tipos de moradores para agregar ao bairro, modelo

esse que fosse um espaço de lazer e residencial, voltado para a classe média, que

trouxesse o consumo sem que ele perdesse a identidade visual e arquitetônica dessa

parte da cidade. Já nos anos 2000, após mais uma fase de revitalização do Recife

Antigo, a mudança de nome foi encarada como uma guinada de um novo começo. Junto

com a promessa do plano de revitalização da área, agora batizada de Pilar, assim como a

igreja que resiste no local. A restauração começou em 2009, e terminou quatro anos

depois; no ano seguinte em que começaria a construção dos habitacionais, obra que vem

se arrastando até o momento, sendo que foram parcialmente entregues alguns prédios,

entretanto a obra se encontra nos dias de hoje totalmente parada8.

Dois habitacionais foram construídos para realocar os moradores dos barracos. O

plano de habitação da Prefeitura do Recife para o Pilar, previa a construção de vários

8 Disponível em: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2015/06/16/comunidade-do-

pilar-a-espera-das-moradias-prometidas-186016.php. Acesso em 23 março 2017.

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prédios que abrigassem todas as 400 famílias. No entanto, com as obras paralisadas,

apenas dois estão ocupados; o restante do pessoal, ainda vive em barracos. Interessante

notar é que não há barracos do lado da rua em que se encontram os habitacionais. O

Pilar parece estar dividido entre quem possui moradia fixa e quem ainda usa o muro da

fábrica como parede na construção dos casebres de madeira.. Numa primeira

intervenção de campo, pudemos observar que não existe uma liderança mais

estabelecida e formalizada na comunidade. Alguns moradores indicam uma possível

síndica dos prédios e dois vigilantes de uma obra próxima, que residem nos barracos.

Do lado novo, assim como optamos por designar o lado onde se encontram os

habitacionais, há um casarão de estilo neocolonial em ruínas. Do lado oposto, a recém

reformada igreja de Nossa Senhora do Pilar tem suas portas para o muro da fábrica. A

igreja é o grande destaque dentro da favela, as suas torres contrastam com os barracos.

Atualmente, mesmo depois da reforma, permanece fechada. Percebemos que com a

retirada gradual dos barracos, há a introdução de um elemento novo de distinção na

localidade: o valor agregado das moradias de um lado é diferente do outro. Com apenas

uma pequena parte dos conjuntos entregues, há um sentimento de desconfiança no plano

de revitalização para o Pilar, que entregou poucos apartamentos (cerca de 40) e deixou

outros tantos com obras paradas e sem perspectivas. Ao observar as táticas que os

moradores lançam mão, para adaptar e ressignificar seu morar, pudemos verificar que

há uma divisão entre os moradores que possuem apartamentos nos habitacionais e quem

ainda reside nos barracos.

O Pilar, até há poucos anos atrás, era quase invisível, se alimentando do circuito

turístico do seu vizinho Marco Zero para sobreviver. Mais uma vez, por trás da fábrica

onde dividiam o espaço com os ratos, hoje dividem o espaço em meio aos turistas da

Praça do Arsenal e arredores do polo turístico. Durante as primeiras incursões em

campo, pudemos perceber as diferentes nuances pelas quais nosso objeto de estudo

estava sendo colocado: de um lado, o gosto refinado da intelectualidade recifense que

tenta unir o tradicional e o moderno, em um só lugar; de outro, a quase autogestão que

uma ocupação relegada traz, há quase 60 anos de invisibilidade.

O Recife Antigo é o lugar que hoje abriga as principais atividades de lazer e

atividades culturais da cidade, sendo também um dos principais pontos turísticos do

Recife; a concentração de bares e de casas noturnas atrai, para ali, um grande público.

37

Localizada na parte de trás de alguns dos armazéns do Porto, uma das entradas do Pilar,

parece abrir as portas do lugar no meio do nada; de repente, a rua deixa de ser asfaltada

e os barracos começam a aparecer; o Pilar parece um recorte colado dentro do bairro do

Recife Antigo, que parece excluí-lo de sua lógica turística e tirá-lo da vista dos

transeuntes. Intrigante é perceber que mesmo que pareça deslocado dentro do polo

turístico, as fronteiras parecem ser quebradiças e frágeis: menos de 300 metros separam

os dois espaços e, assim, se consegue adentrar sem grandes problemas, apenas

atravessando a rua e já se está dentro do Pilar, tal como se visualiza na figura abaixo

pela cor laranja.

Figura 1:

Fonte: Google Maps

Uma das entradas do Pilar é rodeada de carros por todos os lados; aliás, os

escritórios que rodeiam a favela no bairro do Recife Antigo tornaram-se uma

oportunidade para os moradores desempregados (cuidarem dos carros e assim

levantarem algum dinheiro). No espaço de tempo de três anos, o Pilar teve seus

quarteirões alargados com a retirada de alguns barracos de modo a permitir que carros

transitem. O que se observa, no entanto, é que esse fluxo não existe; por ali, passam

apenas pessoas. O sol agora ilumina a rua que antes era sombreada pelas telhas dos

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barracos. Agora, o esgoto corre mais livre e se empoça na rua. O som das falas, os gritos

e risadas rompem o silêncio tedioso de um dia de semana no Recife Antigo; algo entre

as dez e onze horas da manhã, em um dia de extremo calor, muitas pessoas conversam

na frente de casa; um grupo de jovens se reúne na frente de três barracos em linha reta,

tão iguais que poderíamos dizer que foram planejados; escutam som alto, parecem não

se incomodar com a minha chegada; talvez me vejam como um deles, embora existam

enormes diferenças, somos tão parecidos, idades e rostos; talvez se confundam, mas

com certeza sabem que não sou dali. O Pilar se abre e fecha metaforicamente ao

primeiro passo em direção à fábrica.

1.2 “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”

A frase acima que intitula esta pequena parte do trabalho, intitula, também, um

grande painel de 15 metros do pintor pernambucano Cícero Dias, que em 1999 projetou

uma mudança na praça e confeccionou com cerâmica, a famosa e colorida rosa dos

ventos, no centro do Marco Zero do Recife. Inspirado exatamente nessa gigantesca tela

sobre o Recife, bem no Marco Zero onde está escrito: Partem as distâncias para todas

as terras de Pernambuco. Nesta parte da escrita, ateremos a falar sobre o Recife Antigo

como espaço de afetividade e de memória; nesse caso, o ponto de partida terá como

fundamento as memórias próprias, que construímos, em um olhar que se divide entre o

cidadão e o pesquisador.

O plano de revitalização do Recife é concebido, após idas e vindas de consultas

técnicas, em 1992, durante a gestão de Jarbas Vasconcelos na Prefeitura da cidade. As

obras começam, em 1993, ainda em caráter de requalificação dos casarões da Rua do

Bom Jesus. No mesmo ano, no outro lado da ilha, a agitação cultural toma conta do Cais

da Alfandega com o projeto Rec-beat, que colocava em cena as novas bandas que se

projetavam no mangue beat, movimento musical que tomava a cidade e expunha todas

as mazelas, bem ao modo recifense; aqui tentamos traçar uma linha que insinua que este

trabalho, bem como toda uma geração, é fruto de uma época, um sentimento que

estrutura nossas ações e, em certa medida, guia uma percepção sobre a nossa própria

39

cidade. Nessa época, temos em confluência uma série de pensamentos, sons, estilos e

formas de fazer que marcaram o tempo e que reverberam, até aos dias de hoje.

Tudo começa com esse sentimento de “pernambucanidade” do passado de glória

pernambucano onde éramos a principal capitania do Brasil e rivalizávamos com a

capital Salvador. Aprendemos na escola que somos a principal cidade do Nordeste e que

recebemos os holandeses que conceberiam mais tarde Manhattan. Segundo nos contam,

éramos uma das principais cidades coloniais, este orgulho que é passado, assim como

num mito da formação nacional, embala este sentimento de grandeza pernambucana e

mais especifico de Recife. Na TV aberta costumava passar um programa chamado

Pernambucanidade que trazia matérias sobre a cena cultural de Pernambuco.

Achávamos engraçado o toque do maracatu na vinheta e as cores alusivas à bandeira de

Pernambuco na sombrinha de frevo. O programa era apresentado por Marcilio Lisboa,

um cantor e compositor que, desde 1991, tinha esse projeto chamado

“pernambucanidade”. Isso tudo dizia muito do Recife que estava sendo construído na

época, uma cidade que buscava fazer com que seus nativos e transeuntes se

apaixonassem por ela. Recife tinha e, ainda, tem um pouco do lirismo e da boemia dos

bares, do frequentador assíduo, grande conhecedor da cidade, do cidadão que sabe de

cor os nomes das ruas e pontes que cortam o Capibaribe.

A cena cultural da década de 1990 se projetava fortemente e se impunha como

uma nova onda pernambucana, depois do forró/baião de Luiz Gonzaga dos anos 1950

e de Alceu Valença e Geraldo Azevedo, na década de 1970. Tínhamos uma miríade de

bandas que tentavam fluir a sonoridade do rock pós-punk, e junto com a Nação Zumbi

vinha à tona diversas matizes musicais nas músicas engajadas com protestos sociais.

Um dos palcos mais saudados era justamente o Rec-beat que levava todas essas bandas

para o Recife Antigo, às margens do rio Capibaribe. A cena alternativa do Recife se

amontoava no antigo pátio do Cais da Alfandega do Porto do Recife para ver os

mangueboys que saiam de todas as partes da grande cidade. A figura da próxima página

retrata um pouco esse movimento que ganhou repercussão não só aqui em Pernambuco,

mas em todo o Brasil.

40

Figura 2: Chico Science e Nação Zumbi no Recife

O fato é que o uso do espaço era uma ideia não dita, mas praticada no (e) pelo

movimento. Ocupar o centro “morto” e dar vida ao que parecia inanimado. Assim como

na alusão ao cheiro putrefato do mangue que pulsaria a vida. O Recife Antigo é um

espaço de uso intenso para atividades culturais alternativas, em contraposição à Orla da

Boa Viagem, por exemplo, onde os usos evocam o consumo de alto padrão. Esse uso é,

em certa medida, uma resposta aos sucessivos anos de abandonos da zona portuária e o

esvaziamento da função de entretenimento. Vale ressaltar que a área era conhecida por

possuir cabarés e abrigar prostíbulos, o que afastava em parte a população e seu uso

como área de lazer.

Diferente de antes, o Recife Antigo, hoje, é um espaço espetacularizado. O

palco principal para a realização de shows na festa mais esperada do ano, que é o

carnaval, fica situado lá. Há um quê de cidade espetáculo em cada canto do centro

turístico. A minha crítica reside justamente nessa espetacularização e no lirismo,

seletivos, por parte de quem ocupa o Bairro do Recife, em dias mais festivos: enquanto

os shows acontecem, os verdadeiros “urubus” e “mangueboys” catam as latas e

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recolhem o lixo que servirá como meio de sobrevivência para suas famílias, no setor

vizinho, o Pilar.

O Recife Antigo é como um ponto de inflexão na cidade; e o movimento

Mangue Beat contribuiu para impulsionar essa crítica à cidade e na ocupação dos

espaços. Vale ressaltar que este trabalho além de acadêmico é uma obra que fala

diretamente para uma geração do pós Mangue Beat, se assim podemos denominar.

Muitas vezes, quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, são

as conexões, as correspondências, e até mesmo as semelhanças de época, que

mais saltam à vista. O que era então uma estrutura vivida é agora uma

estrutura registrada, que pode ser examinada, identificada e até generalizada.

[...] O que isso significa na prática é a criação de novas convenções e de

novas formas (WILLIAMS 1979, p. 18).

Além desse processo anterior de uma determinada “pernambucanidade”, a

geração, após década de 1990, é baseada em um sentimento de um misto de

desesperança e crítica, que veio logo após o falecimento de Chico Science, além de um

natural luto que tomou toda a cena artística. Nesse sentido, o Recife Antigo figura como

um lugar de vínculo com esse passado, de modo que a utilização desse espaço se torna

quase um ato cívico de marcar presença nos espaços da cidade, mesmo que sem o

mesmo esmero de antes.

Figura 4: Chico Science durante apresentação

42

O pós-mangue beat traz à cena o consumo do espaço e do entretenimento como

estilo de vida, sendo o Marco Zero, hoje, o espaço privilegiado de entretenimento e

consumo na cidade. Recentemente, a Prefeitura da cidade vem investindo no projeto

Recife Antigo de Coração.

Nessa articulação, a cada último domingo do mês, são ofertadas atividades

gratuitas para a população: shows diurnos, atividades infantis e etc. É interessante notar

e não pude deixar de perceber que até no nome, esse amor e essa devoção pelo centro da

cidade são inculcados no cidadão recifense. Desde cedo, se aprende, por exemplo, que

os museus do centro, como a Caixa Cultural, a Torre Malakoff, o Centro Cultural dos

Correios e a Rua do Bom Jesus devem ser conhecidos por qualquer recifense nato,

quando não, parada obrigatória para turistas.

A crítica deste estudo versa, por vezes, com o objetivo a que ele se pretende.

Como citamos anteriormente, buscamos ver o setor do Pilar como espaço de dinâmicas

e práticas, dentro de um contexto cultural-turístico-mercadológico. Já situamos, aqui, o

patamar atual em que se encontra o Pilar, fazendo uso de dados mais demográficos, para

que ficasse claro de que lugar está se falando e de como ocorre esse conflito que, ao

senso comum, é mais visual.

Estamos tratando, portanto, de um espaço “invisibilizado” que pertence ao bairro

do Recife, onde, ao mesmo tempo em que se cultua uma devoção pela cidade, esquece-

se a situação da comunidade vizinha. Para que melhor possamos enxergar a situação do

Pilar hoje, buscamos nas linhas que se seguem, descrever os caminhos que nos levam

até o Pilar. Partimos do ponto de vista de que a ocupação dos espaços pelo cidadão não

pode ser seletiva e que deve contemplar todos os extratos, todos os dias. Não apenas aos

domingos, nem nos carnavais.

43

Capítulo 2 – Dos entraves e das descobertas: os desafios do trabalho de

campo

É importante reiterar que, embora tenhamos traçado uma linha histórica do

bairro do Recife e tenhamos colocado a questão urbana em um viés mais teórico, nossa

pretensão foi a de priorizar a voz dos sujeitos em suas relações cotidianas, no espaço

analisado. Para isso, fizemos uso não só do método etnográfico, mas também da

observação participante, que inclui idas ao campo, conversas com os moradores, e até

mesmo, visitas informais aos arredores2do Pilar, com o intuito de observar como se dão

essas dinâmicas, sua ligação com as fronteiras construídas e com a discussão da relação

favela-bairro. Essa relação vê-se, aqui, de forma mais aparente, na medida em que o

Pilar está espacialmente localizado ao lado do Recife Antigo e malgrado a proximidade

física existente, na qual haveria uma fronteira real entre esses dois espaços.

Ao longo deste capítulo, há uma reflexão sobre essas incursões no Pilar. O olhar

debruçado não sobre, mas bem diante do lugar que será aqui pensado, como forma de

situar no tempo e espaço o campo de análise. A etnografia, portanto, veio a compor para

o entendimento dessa dinâmica urbana tão peculiar que é o Pilar.

O propósito é explorar as possibilidades que esta última, como método de

trabalho característico da antropologia, abre para a compreensão do fenômeno

urbano, mais especificamente para a pesquisa da dinâmica cultural e das

formas de sociabilidade nas grandes cidades contemporâneas. (MAGNANI,

2002, p.11).

Assim, estarão em pauta da reflexão os desafios da prática etnográfica e algumas

das discussões que cercam a temática. Para isso, traremos alguns autores que dissertam

a respeito da mesma, colocando os percalços e ressaltando as características de um

método originalmente antropológico, mas do qual me apropriei (dos seus princípios

básicos) de modo a poder atingir o objetivo de maior aproximação possível com as

pessoas e o lugar de interesse da pesquisa.

Isso leva a tomar certo distanciamento em relação à ideia da prática do

afastamento, como coloca Velho (1980), também serve como parte para explicar o

porquê dessa exigência epistemológica nas ciências sociais para que se atinja uma maior

44

objetividade. Ao pesquisador é, por vezes, exigido que o seu olhar sobre o objeto seja

desprovido de qualquer sentimento seu. Nesse trabalho, nos propusemos a realizar uma

etnografia de um setor dentro do bairro do Recife, e aqui enfatizamos o pesquisador

que, reside no Recife e está em constante contato diário. Realizar essa pesquisa no Pilar,

coloca em debate essa posição de extrema proximidade por afinidade, porém, mais

ainda, por esta familiaridade com o lugar. Procuramos então, discorrer também sobre

quando se pesquisa o que está próximo e o que de certa maneira não nos é estranho.

A utilização de um método de pesquisa como tal não nos isentou, ao longo do

trabalho, de ter que lançar mão a dados documentais e quantitativos, tais como os dados

da Prefeitura do Recife e do Censo, além de matérias jornalísticas. Essas, muito embora

não tenham sido abundantes, serviram, no estudo, para a apreensão da visão que a

sociedade local geralmente tem do Pilar e, também, do discurso midiático o qual repassa

a visão social do espaço estigmatizado para os próprios moradores.

O Pilar apareceu durante o ano de 2011 quando por meio de um grupo de

pesquisa e extensão.fomos incumbidos de mapear pontos de cultura nas comunidades

do centro do Recife. Quando foi posto na mesa o nome do Pilar, ninguém do grupo de

12 pessoas queria ir espontaneamente para o Pilar, temendo a fama do local. Sendo

assim, ficamos com o Pilar e arredores, por ter mais contato com a periferia e por ter

mais “coragem” de adentrar esses locais.

Durante o ano, fizemos parceria com a Prefeitura, no Instituto de Assistência

Social e Cidadania (IASC) oferecendo oficinas de arte e rodas de diálogos para as

crianças residentes do Pilar, em um prédio próximo do Arsenal da Marinha, a uns 300

metros do Pilar. Acompanhávamos esporadicamente as assistentes sociais nas

entrevistas que elas faziam. No segundo semestre de 2012, terminamos essa parceria

com o IASC e voltei minhas atenções para a questão da habitação popular.

Após um breve estágio na Prefeitura, fomos a muitas residências da cidade do

Recife e o que sempre emergia, nos corredores, era o tema relativo ao plano de

revitalização do Pilar e como ele era, ao menos no papel, inovador no sentido de

integrar. Da convivência com os arquitetos da Secretaria de Habitação veio a

inquietação se o Pilar seria mesmo diferente de tudo que se tinha, antes, visto. Os outros

habitacionais não correspondiam ao esperado pelos planejadores; então, por que o Pilar,

45

considerado um caso diferente, não teria o mesmo destino? No trabalho de conclusão de

curso na graduação, decidimos que o Pilar seria complicado demais para se estudar em

pouco tempo, devido à complexidade e falta de tempo. Optamos por conhecer o

conjunto Habitacional Via Mangue e como sua construção reforçava a política de

higienização da cidade; também, optamos em analisar como a construção da Via

Mangue, as desapropriações no Pina e o Cais José Estelita estavam interligadas e

funcionavam como um diagnóstico da construção da paisagem e da dinâmica do capital

turístico da cidade do Recife.

É assim que o Pilar foi postergado e retorna na dissertação, agora. No início

desta empreitada no Mestrado, tivemos o esforço de fazer uma pesquisa densa, de modo

a extrair a vida cotidiana dos moradores em suas minudências; entretanto, de imediato,

tivemos que lidar com a baixa receptividade dos moradores com relação à pesquisa.

Como era possível rastrear e seguir os diversos moradores de modo a estudar cada ato

de seu cotidiano?

Nisso, um trabalho, realizado pelo diretor Eduardo Coutinho (2002) serviu de

inspiração, junto aos moradores do Edifício Máster, onde, de maneira maestral, ao

longo do documentário ele ia destrinchando a vida dos personagens junto com a vida do

edifício. Tal inspiração não encontrou recursos para seguir adiante: esbarramos nas

limitações materiais do campo. Além do pouco tempo para isso, ainda havia que

repensar em um estudo mais circunscrito que evidenciasse a qualidade dos dados,

pensada em termos da narrativa dos próprios moradores.

Como dizemos: “o campo não foi muito receptivo”. Adentrar no Pilar sem

conhecer ninguém foi o ponto mais desafiador. Embora tenhamos tentado fazer algumas

incursões, passar pela comunidade e conversar com alguém no meio da rua, o trabalho

de campo foi árduo e trabalhoso. Imaginamos que o trabalho em comunidade seria mais

facilitado frente às experiências que possuíamos; mas um Pilar marcado por uma série

de privações, da falta da atenção dispensada pelo poder público e carente de iniciativas

que o contemplassem, tornou o campo de pesquisa mais difícil.

Após algumas tentativas frustradas, começamos uma busca pelas redes sociais

digitais e encontramos o Grupo Guerreiros do Pilar. O grupo de capoeira, que

desenvolve atividades há mais de 15 anos na comunidade: ele foi a porta de entrada para

46

as atividades de campo. Embora tomamos como referência os participantes do

Guerreiros do Pilar, retratamos as idas à campo, como forma de ilustrar a comunidade

para o leitor e como parte integrante do método escolhido para aportar a pesquisa: a

etnografia.

O exercício etnográfico contempla esse trabalho, contraditoriamente pelas

dificuldades achadas em campo. Adentrar em uma comunidade da qual tínhamos a

convicção de conhecer para em seguida não ter a recepção esperada, fez-nos ver muito

mais o quanto a etnografia seria basilar na construção do que pretendíamos. Antes de

debruçar mais diretamente na questão etnográfica urbana, passamos a refletir acerca dos

exercícios aos quais Roberto Cardoso de Oliveira (1996) se refere em sua obra O

trabalho do Antropólogo: o ouvir, o olhar e o escrever.

O autor contempla esses três exercícios, por acreditar que eles estão na base da

produção do conhecimento e devem ser discutidos para que, em sendo feitos da maneira

correta, possam sempre agregar qualidade ao exercício etnográfico. O olhar foi a

ferramenta mais utilizada; pois, em determinados momentos, ele era tudo o que

tínhamos para a construção do que viria a ser a escrita da dissertação. Mesmo em função

das dificuldades, fomos contemplados pelo “poder olhar”.

O olhar é o primeiro exercício que Oliveira (1996) se propõe a discutir,

considerando-o como o que inicia o trabalho etnográfico; chama a atenção para a

questão da “domesticação do olhar”. Dentre essas três faculdades do exercício

epistemológico, o olhar seria, segundo o autor, o que mais sofre daquilo que ele

denomina de domesticação teórica. Significa que, independente do objeto que estamos

estudando, tendemos sempre a olhá-lo de modo a colocar o exercício teórico em prática.

Essa disciplina já estaria presente na concepção teórica que temos do campo e do

objeto. Existe uma refração do olhar.

Oliveira (1996) atenta para esse fenômeno e justifica que o mesmo é inevitável:

esse acondicionamento do olhar, demonstra o quanto devemos ser cuidadosos nessa

prática. O ouvir caminha junto com o olhar e partilha das mesmas características dele.

Os dois contribuirão conjuntamente para o desenvolvimento do escrever. Sendo aporte,

para o desenvolvimento desse processo: os dois atuam no sentido de fazer com que o

escrever reflita o campo da melhor maneira possível. Foi tomando como base as

47

assertivas de Oliveira (1996) que buscamos empreender a caminhada no contexto do

Pilar. Magnani (2002) entende que o etnografar, em um contexto urbano, não exige

tantas artimanhas e artifícios. Segundo ele, artimanhas e artifícios vêm sendo

desenvolvidos, cada vez mais, para contemplar trabalhos que os coloquem enquanto

método de pesquisa. Em De perto e de dentro, o autor contempla algumas questões

bastante pertinentes para este estudo em questão. A primeira delas é uma crítica ao fato

de que muitas etnografias urbanas ou trabalhos que, assim se intitulem, pecam por não

sinalizar devidamente os atores sociais.

A bem da verdade, não é propriamente a ausência de atores sociais que

chama a atenção, mas a ausência de certo tipo de autor social, e o papel

determinante de outros. Em algumas análises, a dinâmica da cidade é

creditada de forma direta e imediata ao sistema capitalista; mudanças na

paisagem urbana, propostas na intervenção(...) (MAGNANI, 2002, p.14).

Atentando para o que Magnani observa, busquei destacar os atores que estão

invisibilizidos na lógica vigente do turismo metropolitano e do capital. Os que

representam o mercado, que estão por trás das transformações mais intensas e que

atingem, quase sempre negativamente, os atores não privilegiados, estão contemplados

nos papeis que lhes cabem: a partir da ótica de quem sofre com as consequências.

A importância de se fazer uma etnografia urbana, privilegiando os moradores do

Pilar, reside justamente no fato de que incorporar esses atores e suas práticas, privilegia

outros pontos de vista, nos fazem descobrir novas dinâmicas, novos pontos de vista e

olhares sobre a cidade. Essa vizinhança, a qual Jane Jacobs apontou como sendo um

“conceito sentimental”, ataque aos grandes planejamentos urbanos, reside no ponto de

vista que não é dado pelos trabalhos que não são atentos aos verdadeiros atores, das

reais dinâmicas sociais, que realmente importam.

Como citamos inicialmente, nosso contato mais direto com a comunidade, foi

junto ao grupo de capoeira Guerreiros do Pilar. O grupo tem suas atividades realizadas

nas quintas e sábados dentro da comunidade. Há pelo menos 15 anos oferece essas

atividades de maneira gratuita e acolhe grande parte das crianças em atividades que vão

além da capoeira, como a percussão, oficinas circenses, além de buscar outras

iniciativas para o lugar. Quem nos guiou em campo foram seus dois coordenadores, que

assumiram um papel importante nessa jornada, verdadeiros “abre-portas”. Um dos

48

coordenadores reside no Pilar e havia sido contemplado recentemente com a entrega de

um apartamento, em um dos habitacionais construídos como parte do plano de

revitalização do espaço. Ter alguém que guiasse o reconhecimento de campo, foi o

grande diferencial. Reiteramos, aqui, o quanto as dificuldades encontradas em campo

nos fizeram avançar nos meus passos de pesquisador que aprende a partir mesmo do

desconhecimento (ignorância); isso porque o Recife se mostra como ninguém vê.

Os desafios que encontramos em campo, se situam em algumas resistências que

encontramos durante a pesquisa. Muito embora, o grupo que nos guiou durante as

incursões tenha se mostrado muito solícito e tenha sido fundamental nesse trabalho, o

contato inicial foi marcado por certo tipo de desconfiança sobre questões diversas (a

respeito do que se tratava o trabalho, os objetivos da pesquisa, etc.). Outra questão

desafiadora, foi tratar a questão a respeito das narrativas das histórias de vida.

Chamamos as de narrativas, pois não houve uma exploração a fundo da vida de cada

pessoa com quem tivemos a oportunidade de conversar. No entanto, foi bastante

interessante tratar essas falas em um contexto corrido, em que meu tempo se limitava ao

tempo de quem me conduzia. Essas questões nos fizeram crescer em campo e perceber

as limitações enquanto provações, para que esse trabalho possa determinar outras

discussões a respeito do tema.

49

Capítulo 3 – O Pilar de hoje e de ontem: notas etnográficas

Nossa primeira ida ao Pilar não foi nada animadora. Buscamos o contato com

algumas lideranças antigas, do tempo em que desenvolvíamos atividades enquanto

estudantes de graduação, mas não obtivemos sucesso. As gestões mudaram ao longo do

tempo e as pessoas que nos conheciam não estavam mais lá. O trabalho de campo nos

impõe alguns desafios e novamente estávamos diante da missão de reconstruir os laços

com o lugar, que até então, apresentava-se com outras nuances e particularidades.

Voltar ao lugar, depois de tanto tempo, provoca certo receio daquilo que podemos

encontrar por lá. À primeira vista, tudo estava igual: a disposição das ruas sem asfalto,

alguns animais pastando, o esgoto a céu aberto correndo intensamente e muitos olhares

curiosos, diante da expectativa que se cria quando chega pessoas novas no lugar.

Optamos pelas estratégias do “bom dia” e recebemos algumas fracas e desanimadas

respostas. Pouca disposição dos “atores”, diante das expectativas em campo.

Para que se possa visualizar melhor o Pilar, diríamos que vista de cima, suas

ruas formam um “H”, com três ruas principais: a São Jorge, a Bernardo Vieira e a Rua

Oriente. De frente para a entrada, o lado esquerdo abriga os habitacionais e uma série de

prédios antigos abandonados: muitos moradores se utilizam das paredes de tijolo cru,

para montar seus barracos, enquanto esperam ser contemplados pelos habitacionais. O

lado direito possui mais barracos, que dividem lugar com cavalos e jumentos, cheio de

árvores, que parece um mini sítio dentro do Pilar.

Era uma manhã de sol, uma quarta-feira. Os carros estacionados por toda a rua

circundavam as entradas do Pilar. Havia quatro anos, desde a última vez, que tínhamos

ido ao local. Naquela época, apesar da construção dos residenciais estar parada, já se via

os andares dos prédios destoando dos barracos. Entramos na Rua São Jorge e lá estava o

Bar de Maria, onde naquela época tomávamos café. “- O mais barato daqui! ”, dizia ela.

Pergunto se ela se encontra e um homem que agora toma conta do estabelecimento, diz

que ela se mudou, provavelmente para o bairro dos Coelhos (uma comunidade também

na área do centro do Recife) e que ele estava gerindo o bar. O Pilar parecia agitado,

enquanto entrávamos na mercearia para comprar um suco, escuto uma conversa que

esclarece a situação:

“- Tão atrás do menino que assaltou a gringa ali no porto...

50

- E foi?! Foi quem hein?

- Sei não, conheço esse não”.

Alguns dias antes, uma dupla havia tentado assaltar uma turista sérvia que estava

em um navio que atracou no porto. Ela reagiu ao assalto e foi ferida por uma facada na

cabeça e a polícia identificou um dos assaltantes como morador do Pilar. Diante disso,

tentamos não dar uma de “policial” apesar dos estereótipos e ser confundido com

alguém que dedura as atividades criminosas da favela. Seguimos pela Rua São Jorge

procurando nosso primeiro interlocutor, Jorge, que mantinha um grupo de capoeira no

Pilar e era uma das “crias” da comunidade.

O Pilar parecia acordar aos poucos; algumas pessoas tomavam café na frente de

casa e aos poucos as águas do banho e afazeres domésticos tomavam a rua e deixavam

seu cheio de sabonete pelas canaletas improvisadas. Ao passo que ia avançando, os

olhares iam me seguindo; como sempre um elemento estranho em uma área fechada que

não costuma receber visitantes, afora os servidores municipais e os trabalhadores do

porto. Nós, visualmente, não parecíamos com nenhum dos dois. De imediato, quando se

fala do Pilar vem à mente certo desconhecimento, seguido de uma repulsa pelo local

onde ele é situado: no final da zona portuária e vizinho de antigos bordéis. O Pilar é um

espaço onde o Recife se contradiz, onde convergem o desconhecimento e o medo.

Quando no início deste trabalho, pretendemos estudar a dinâmica do Pilar em

relação ao Recife Antigo, a partir da ótica dos moradores, já imaginávamos que

encontraria certos entraves. Na pesquisa de campo, no entanto, as dificuldades nos

levaram a apreender informações sobre o lugar que talvez não tivéssemos acesso se a

postura de quem nos recebesse fosse somente a de facilitar. O Pilar de hoje é o mesmo

de 10 anos atrás. A aparência física e estrutural foi modificada apenas pela presença de

seis conjuntos habitacionais. Do plano de revitalização do lugar, proposto pela

Prefeitura do Recife, a única coisa nova são dois painéis grafitados nos muros de dois

dos habitacionais. Tudo permanece do mesmo jeito. Nosso olhar se intrigava sempre

diante da mesma questão, em todas as vezes que fomos a campo: como é que um lugar,

vizinho a um polo turístico, localizado de frente para a Prefeitura da cidade, rodeado por

diversas obras de revitalização do Porto, com vistas a receber turistas, pode ser tão mal

administrado e esquecido pelo poder público? Os moradores não tinham resposta.

51

Um pouco frustrados por constatar na primeira impressão de que não haviam

tido mudanças esses anos todos, decidimos observar as particularidades da comunidade,

os seus significados construídos e perpetuados e como esses elementos construíam uma

rotina no lugar. Nesse sentido, interessava observar os verdadeiros atores, tal qual

Magnani (2002) propõe: a presença de um conjunto de símbolos partilhado por quem

morava ali e um conjunto de identidades que funcionasse como representativo. Dessa

maneira, descrevemos através das idas e vindas ao campo, o retrato do que seja o Pilar

hoje; com o intuito de fazer com que ele seja percebido através de outro foco de lentes,

que não o de um amontoado de barracas, apenas estigmatizado; mas, de um lugar no

qual os moradores têm direito à voz, destacam-se e, por mais que não pareça, existem.

É importante reiterar que o campo da pesquisa foi composto por incursões

despretensiosas e com narrativas construídas pelos moradores e lideranças. As incursões

tiveram como objetivo descrever o espaço do Pilar, através de uma perspectiva própria,

como parte de um complemento à fala dos sujeitos, por mim estudados. Denomino essas

incursões como sendo despretensiosas, mas de maneira intencional. Elas se inserem

justamente no olhar, com parte constituinte do método etnográfico. Isso justifica que,

por vezes, ao longo do trabalho, apareçam descrições mais particulares, que vão

desenhando o espaço.

O primeiro contato que fizemos para adentrar no campo foi fundamental para

que tivéssemos acesso mais direto ao lugar. Como citado, mais acima, foi através do

grupo Guerreiros do Pilar que conhecemos Jorge, um músico que desenvolve trabalhos

com as crianças da comunidade. Jorge também residia no Pilar e estava por dentro da

situação na qual se encontravam as pessoas, bem como da dinâmica do espaço. Muito

conhecido pelos moradores, Jorge se intitulava uma liderança, dentre as poucas

existentes. Síndico de um dos habitacionais, ele era muito respeitado. O nosso primeiro

encontro com ele foi em uma praça, que fica em frente à Prefeitura. Nosso entrevistado-

morador se mostrou animado com a possibilidade de mais um estudo que contemplasse

o Pilar, mas fez ressalvas quanto a outros que já havia guiado.

Toda vez vem pesquisador pra cá e tira o que quer. Eu ajudo, levo nos cantos

corro atrás dos documentos e no final ele publica o trabalho todo errado. Já

fui muito atrás de pesquisador e peguei eles pela gola. Se não vai contribuir

nem pra levar a comunidade pra uma palestra na faculdade, melhor nem vir

(Jorge)

52

Era fatídico o cansaço dele. Muito atarefado com as atividades que desenvolvia,

tinha ainda que se preocupar com as atividades de motorista Uber e buscar insumos para

que o projeto que desenvolvia continuasse a funcionar: “É tudo feito de coração pela

comunidade. Às vezes, até dinheiro do meu bolso eu coloco”. A possibilidade de

visibilidade da comunidade, que esta pesquisa oferecia, animava Jorge e os integrantes

do grupo do qual ele participava. Procuramos deixá-lo bem ciente de que muito

possivelmente nosso trabalho levaria o Pilar para dentro de uma discussão acadêmica,

que poderia instigar outros trabalhos e pesquisas nos colocamos à sua disposição no que

pudesse contribuir com o seu trabalho.

A favela, bairro ou comunidade do Pilar, abriga hoje mais de 400 famílias.

Optamos por designar o espaço sem defini-lo, nessa parte, pois não há um consenso

entre os moradores de como chamar o lugar. É o Pilar e pronto! Essas 400 famílias

dividem-se entre as que moram nos habitacionais e as que ainda aguardam na fila para

serem contempladas. Enquanto conversava com Jorge, entramos pela rua principal e ele

foi cumprimentado por todos que estavam na rua. Os olhares atentos sobre a minha

pessoa eram disfarçados pela presença dele. Duas casas depois da entrada da rua

principal, fica a sede do espaço onde os instrumentos das oficinas são guardados. Uma

parte da casa é a parede de um casarão em ruínas que parece estar na iminência de cair.

Jorge garante que não e continuamos a caminhada.

Mais à frente, avistamos um grupo de crianças que brincavam sentadas no chão,

algumas mulheres estendendo roupas em varais compartilhados e funcionários de uma

companhia de energia instalando contadores de energia. Jorge vai contando que a

situação do lugar não muda há bastante tempo. Sempre em época de eleições, os

candidatos aparecem, fazem promessas e somem. Relata a chegada de um candidato a

prefeito que, certa vez, visitou a comunidade: “Ele veio, fez o palanque, prometeu tudo

que tinha direito. O povo ficou animado, mas ninguém se ilude mais não. Foi a comitiva

dele sair e a polícia entrar atrás dando cacete em todo mundo”. O esquecimento reside

em várias instâncias. As mais imediatas dizem respeito, por exemplo, à falta de um

posto de saúde, o grande alvo das reclamações dos moradores. O terreno, que deveria

ser ocupado pelo posto e pela escola, foi cercado por muros, pela Prefeitura; pois, se

fossem tapumes, estes serviriam para que os moradores pudessem usar como material

53

para fazer novos barracos, assim como fala um morador: “eles botam aí, cercam tudo,

tiram o povo e não fazem nada, aí a gente vai pega mesmo e faz o barraco, vai fazer o

que? Ficar esperando a gente pega tudo e faz de novo enquanto fica na demora. ” (Zé).

Jorge apareceu, para nós, como primeiro contato de campo, após algumas

incursões iniciais, como as que chamamos de despretensiosas. O movimento que ele

coordena dentro do Pilar lhe coloca em uma posição de liderança e reconhecimento

dentro do lugar. Jorge reside no Pilar, desde muito antes do plano de revitalização do

Recife Antigo, de maneira que acompanhou todo o processo de reinvindicações e de

luta dos moradores. Objetivamos por tomar certo cuidado com a escolha dos que viriam

a compor o corpus da pesquisa, para que não houvesse um viés que priorizasse

determinados sujeitos. No entanto, por mais que tentássemos, a escolha pela narrativa

livre, fez com que as pessoas entrevistadas, aparecessem voluntariamente e obviamente

optamos por não dispensar nenhuma delas.

Desde o primeiro contato por telefone, Jorge sempre se mostrou muito disposto

a conversar sobre o local que, para ele, se constituía em uma moradia e um espaço de

trabalho. Ao nosso primeiro encontro, ele chegou no horário marcado. Muito simpático,

ofereceu praticamente sua manhã toda para que pudéssemos conversar sobre o que

quiséssemos. Como mostra o roteiro, tentamos seguir algumas questões, mas a

conversa, por vezes, toma outro rumo, o que em certa medida, contemplou a construção

do enredo. Nossa presença dentro de campo não era algo novo para quem estava ali, no

sentido de que outros pesquisadores já haviam passado por ali, para concluírem suas

pesquisas. Havia certo receio de que estivéssemos ali apenas para coletar dados e depois

ir embora. Jorge deixou isso muito claro na nossa conversa inicial. Sem que

mencionasse diretamente o nosso caso, sinalizou um conjunto de pesquisadores que

“chegam aqui, se fazem de amigos, levo eles no pessoal e depois somem”.

Quebrar essa barreira, já de antemão existente, não foi tão difícil. Na conversa,

pudemos mencionar onde morava e o fato de residir também em uma comunidade,

ajudou-nos no sentido de fazer parecer como se fôssemos “de casa”. A partir dali os

diálogos já fluíam mais tranquilamente, não havia mais um aparente receio de que nosso

interesse era meramente acadêmico. Procuramos deixar claro que estávamos ali para

fins de pesquisa e que estávamos disponíveis, caso pudéssemos ajudar em algo para a

comunidade. Jorge também não deu grande importância a isso. Parecia animado com a

54

nossa presença ali, estava preocupado em nos apresentar o local. Diante disso, o roteiro

elaborado, aparecia e desaparecia entre as conversas, de modo que buscamos explorar

ao máximo cada minuto das incursões de campo que tivemos.

Fazer pesquisa de campo, dentro de uma comunidade periférica, nunca nos

trouxe grandes receios. A partir de certa experiência adquirida anteriormente, em outras

ocasiões, os manejos de campo foram sendo construídos e aprimorados. O receio que

sentíamos, ao empreender essa nova pesquisa, residia muito mais na reação de quem

encontraríamos como “sujeitos de pesquisa”. No mais, como já sinalizamos

anteriormente, as observações feitas são fruto das narrativas, do olhar que repousa sobre

o Pilar e de como o lugar se revela a cada rua, a cada beco de onde surgem diversos

barracos e da realidade presente.

3.1 Dinâmicas e distinções do morar: uma análise do Pilar enquanto

campo constituidor de relações e práticas

“Jorge: a mente fechada e o corpo aberto”

Tendo iniciado o trabalho de campo, foi recorrente pensar o que Jane Jacobs

(2014) denominou da Maldição das zonas de fronteira desertas. Na ocasião, a autora,

atendo-se claramente a uma realidade norte-americana, diz que ao passo que grandes

partes de determinadas cidades são utilizadas de maneira única, há uma tendência que se

criem fronteiras, que culminam em bairros decadentes (JACOBS, 2014). O exemplo

utilizado, por ela, é o das linhas férreas, constantemente abandonadas e que acabam por

criar espaços de segregação dentro de cidades aparentemente únicas. Embora a

realidade analisada, por ela, não fosse semelhante ao que tratamos nesta pesquisa, não

pudemos deixar de fazer a reflexão a partir da noção de maldição de determinadas zonas

de fronteiras desertas para equipará-la ao Pilar. “Certas fronteiras tem a interação de

usos em ambos os lados, mas boa parte dela se restringe ao período do dia e diminui

drasticamente em certas épocas do ano” (JACOBS, 2014, p.290).

A existência de uma possível fronteira entre o Pilar e o Recife Antigo, a ideia de

uma zona de fronteira deserta nos parece mais clara. Ao atravessar esse espaço

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constantemente sempre vinha à mente, também, a solução proposta pela autora de

aproveitamento desses perímetros, para reformá-los e dar nova vida, para que ambos os

lados fossem beneficiados. Muito embora a reflexão seja válida, o caráter

aparentemente emergencial das condições em que o Pilar se encontra, fazem o problema

da fronteira parecer menor.

Em uma das idas ao Pilar, a primeira pessoa com quem tivemos contato,

começou a colocar em perspectiva a sua trajetória de vida com o lugar de sua narrativa,

antes mesmo que pudéssemos lançar mão do roteiro que havia preparado. Sua relação

com a comunidade era muito íntima e cerceada de respeito e cumplicidade entre os

moradores.

Eu moro aqui faz tempo. Comecei vindo quando passei a desenvolver um

projeto com as crianças da comunidade. Aí a coisa foi crescendo e me instalei

de vez (risos). Peguei um barraco pra mim e fui ficando. Me inscrevi na lista

pra ganhar o apartamento dos habitacionais que a Prefeitura estava

construindo e ganhei faz pouco tempo. (Jorge)

Assim, Jorge era figura central dentro da comunidade. Sua relação íntima com o

lugar, que versava entre liderança próxima aos moradores e aos aparelhos públicos,

dava ao seu discurso um tom de indignação. Entre as conversas que tivemos, Jorge

apertava as mãos enquanto falava. Fez menção de enxugar o rosto e começou a contar

episódios que marcaram a sua vida dentro desse espaço social. Desde que chegou à

comunidade sua posição foi de liderança. Muito conhecido, considera que o Pilar

avançou muito e pouco, ao mesmo tempo. Em seu relato, ele conta que antes (em um

marco de 20 anos atrás) era muito pior. Se hoje existe pouca ou nenhuma ação da

Prefeitura, por exemplo, antes era muito pior. “Era tudo barraco, muito lixo, muito rato.

Era abandonado demais. Tá vendo essa praça onde a gente tá hoje? Era muito pior.

Revitalizaram agora, mas era pior mesmo. Quando eu cheguei, isso de Pilar nem existia.

” Referindo-se ao nome que a comunidade carrega hoje.

O corte feito por ele de “antes e depois” coloca o Pilar na situação de “Favela do

Rato”, há alguns anos atrás. Jorge, por vezes, deixava muita certeza quanto às datas em

sua fala, mas às vezes se perdia. O fato era que o Pilar não era o mesmo, na visão dele.

Desprovido de iniciativas do poder público, o lugar antes era apenas um dos lados da

fronteira, do lado de cá. Não havia os habitacionais recentemente construídos; apenas

56

existiam os barracos feitos de zinco e de madeira, a Igreja do Pilar em ruínas, antes da

reforma, e um casarão no interior do espaço da comunidade. Apenas isso. A parede

desse casarão serve, até hoje, de encosto para uma das casas. “Asfalto aqui nem pensar.

O esgoto corre a céu aberto até hoje, tu não viu? Às vezes, alguém joga os restos de

construção nos buracos e ameniza. Hoje é ruim, mas já foi muito pior”.

Apesar do grupo, por ele coordenado, executar trabalhos de grande importância

para a população local, Jorge relata entre sorrisos que a presença de igrejas protestantes

dentro da comunidade vem crescendo e querendo, de certo modo, “competir” com seu

trabalho. Durante nossas conversas, ele relatou que já é conhecido por grande parte dos

líderes que executam algumas ações ligadas à Igreja Universal, por exemplo:

Eles chegam, montam um palanque e falam um monte de besteira aí. Já

tentaram me prejudicar dizendo que eu ensino coisa do diabo pras crianças

por causa da capoeira. Tudo invenção. Já não bastam as dificuldades que a

gente tem aqui, ainda me vem uma dessas. (Jorge)

Nesse momento, há uma ressalva quanto ao anonimato dele na entrevista. Ele

questiona e, em seguida, diz que não há problema em ser identificado. Enquanto

conversamos, passam por nós um grupo de crianças que o cumprimentam. Nesse

momento, ele retoma o assunto e começa a falar da relação da comunidade com a

fábrica do Pilar. As paredes da fábrica dão as costas para os barracos. Figurativamente

ou não, essa é a relação que segundo nosso entrevistado existe. Não há uma relação de

cooperação da empresa com o lugar. Perguntamos sobre como se dá a relação e ele cai

na gargalhada. A fábrica é uma das paredes que constituem a fronteira que separa o

Pilar do resto do contexto local. Essa relação não existe, nunca existiu.

“Houve um tempo que a gente tentou uma parceria com eles da Pilar (a

fábrica). Era coisa pouca, sabe? A gente tentou conseguir uma caixa de

biscoito pra dar lanche aos meninos da oficina que a gente dá. Eles não

deram, é uma burocracia enorme e apesar da gente tentar de todo modo, isso

não rolou. Não veio nem uma bolacha”. (Jorge)

Em resposta a isso, ele nos conta que alguns grupos da comunidade passaram a

saquear a fábrica. Pulavam o muro e roubavam mercadorias e distribuíam entre os

moradores. Antes que ele pudesse fazer alguma coisa, a polícia já estava lá, revistando

moradores, em busca de informações sobre os roubos que estavam sendo constantes:

57

“Foi interessante que ninguém dava atenção à comunidade, mas depois que os meninos

pularam o muro pra pegar uns biscoitos, eles começaram a vir direto”. A solução

encontrada, por ele, foi conversar com essas pessoas, e fazer um trato para que isso não

acontecesse mais: “Eles aceitaram de boa e as pessoas da comunidade mesmo apoiaram

a decisão. A gente tava sofrendo muito com a intervenção da polícia, era baculejo todo

dia”. Encerradas as ações na fábrica, a rotina voltou ao normal.

Nosso entrevistado estava empolgado com a conversa. Levantava-se e

gesticulava bastante: “Ah, mas deixa eu te falar do ano passado”. Após a reforma da

igreja, que demandou um orçamento significativo, um padre retomou as missas

semanais. Segundo nosso entrevistado, a igreja é pouco frequentada pela comunidade,

com cerimônias que chegam a agregar cerca de 5 a 6 membros. No natal do ano

anterior, o padre a que ele se referia resolveu fazer a ceia em uma igreja mais longe, o

que impossibilitava a ida dos membros até lá. “Não tem um trabalho de integrar os

membros da comunidade, é cada vez mais pra sair daqui. A exclusão já começa por aí”.

Nessa mesma ocasião, Jorge nos convidou para ir até a frente da igreja que estava

fechada e que apesar de reformada, já apresentava sinais de desgaste.

Hoje é Pilar, por que tem a fábrica do Pilar ali. Agora ela tem uma função,

mas a igreja tá muito distante da comunidade, No final do Ano as pessoas da

comunidade lavaram a igreja e o padre levou a cerimônia pra longe. Mas o

que eu percebo, essa movimentação, em vez deles agregarem valor(..) isso já

é um reflexo desse contexto de exclusão. (Jorge)

A relação do Pilar com o Recife Antigo foi também motivo de gargalhadas do

nosso entrevistado: “Nenhuma. Arrumaram o Antigo todinho, mas aqui a gente não viu

nada não”. A relação que ele pontuou é a de quem trabalha com o comércio informal,

vendendo água mineral e pipoca no Recife Antigo. Não existe nada mais direto que

ligue os dois estratos, segundo ele. O morador do Pilar é estigmatizado ainda, e a

relação mais direta que ele possui está pautada nas relações informais de trabalho. O

enredo não se aprofunda nesse tópico, pois parece ser algo que o incomoda

profundamente. Ele responde abruptamente com um “não”, quando perguntado a

respeito da dependência do Pilar com relação ao polo turístico. “Não. Não tem relação

não. Se você pensar que o poder público nem chega aqui, com a Prefeitura sendo do

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lado, você já tira. Essa conversa não existe. Eu, na minha opinião, não vejo relação

nenhuma não”.

O sol começava a esquentar, quando Jorge nos convidou a sair caminhando

pelos arredores. Sentimos que houve um profundo incômodo dele com a pergunta que

mencionava a relação do Pilar com o Recife Antigo. Decidimos por começar a pontuar

as questões mais gerais, e parti para saber como ele via o Pilar hoje. Contou sobre a sua

namorada, que também é acadêmica, e deixa claro que conhece os trâmites dentro dos

processos de pesquisa. Entendemos isso como mais uma maneira de alertar a respeito de

saber realmente tudo que está por trás do que parece ser uma simples conversa. Jorge

começa a relatar que, em 2002, quando começou os trabalhos dentro da comunidade,

ouviu de um amigo que, à época, trabalhava com o prefeito de que era louco.

Você é louco, vai trabalhar com uma comunidade de risco? A gente sempre

tentou entrar lá e nunca conseguiu, você tenha cuidado! Foi quando eu

respondi que eu venho de favela, eu tenho esse sentimento de favela, eu nasci

no Morro da Conceição9. E é aquela frase de Pedro Luís e a parede: coração

aberto, corpo fechado. E assim fiz e assim, e assim já se vão 15 anos (Jorge).

Jorge foi considerado um louco, quando decidiu começar as atividades dentro do

Pilar, pelo estigma que o lugar carrega. Constantemente esquecido, o lugar passou a ser

visto como um espaço para fora dos padrões que estavam sendo construídos no Recife

Antigo. Segundo ele, o Pilar tem essa configuração de favela, que consiste nesse não

planejamento, no amontoado de barracos, na fuga de criminosos para lá após o

cometimento de crimes e ironicamente, por não ser atendido por nenhuma instância

pública.

Inicialmente, Jorge construiu seu barraco na Rua São Jorge, a principal da

comunidade. Segundo ele, essa foi uma das primeiras ruas a serem desapropriadas para

a construção dos habitacionais. Esperou, pelo menos, sete anos para ser contemplado

pelo programa habitacional; e, continua acompanhando a luta daqueles moradores que

ainda não foram contemplados, isto é, isso nunca deixou de ser o seu foco. “Sempre

acompanhei a comitiva do prefeito aqui dentro, mas era tudo mentira. A gente abria as

portas da comunidade e dava o espaço pra ele. Quando ele saía, a polícia tomava conta,

entrava e fazia baculejo”.

9 O Morro da Conceição é localizado na Zona Norte do Recife.

59

Outro ponto por ele abordado foi a questão da liderança. Ele relatou que apesar

de existirem muitas lideranças mais informais dentro do espaço, não há uma que seja

formalizada. Uma delas é ele. Nosso entrevistado culpa a desorganização das lideranças

pela falta de atenção que o Pilar recebe. A reclamação maior de Jorge é com relação à

carência de aparelhos públicos que atendam a comunidade. Enquanto caminhávamos,

ele nos mostrava um muro erguido recentemente: trata-se da escola que funcionava

dentro da comunidade, mas que precisou ser fechada, por falta de recursos. Menciona

um posto de saúde, que estava na promessa e do qual há apenas o começo das

fundações. De longe, avisto um terreno com bastante mato e algumas colunas erguidas.

Na ocasião, ele me conta que as construções foram encerradas, pois uma equipe

descobriu que no lugar existiria um cemitério arqueológico.

Pararam a obra pra olhar esse cemitério aí. Acabou tudo e eles não vieram

nem interditar o lugar e nem continuar a obra. Agora a comunidade tá sem

escola e sem postinho, por causa de burocracia. Qualquer coisa aqui você tem

que correr pro hospital ou pra um posto provisório ali do lado da Prefeitura

(Jorge).

Quando questionado a respeito do que seria o Recife Antigo, ele diz vê-lo como um

espaço de segregação e de diferenciação. “Tudo muito bonito, mas nada atrativo para

mim”. O processo de gentrificação do espaço, segundo ele, não contemplou em nada o

Pilar e só serviu para aumentar a distância entre os espaços. Não há uma conexão entre

os lugares.

3.2. O movimento enquanto instrumento de denúncia

Das idas e vindas que fazíamos no Pilar, encontramos com Júnior, outro

integrante do grupo que oferecia atividades na comunidade. Nosso segundo entrevistado

tinha ares de pessoa mais enérgica e que via, na pesquisa, uma oportunidade de

denúncia do que estava acontecendo. Como já fomos enfáticos em dizer que mesmo que

optasse por seguir o roteiro, muitas vezes, ele ficava em segundo plano; e isso se

acentuou muito mais nessa narrativa. Essa pessoa exercia junto ao Jorge um papel de

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liderança e o auxiliava nas atividades oferecidas pelo grupo. O tempo todo interrompia

sua fala para pedir desculpas pela maneira como se posicionava.

Nosso encontro aconteceu no mesmo lugar onde conversamos com Jorge, nos

entornos do Pilar. Júnior, diferente dele, não morava ali. Era proveniente de uma

comunidade próxima e agora morava em Olinda. Nesse dia, deslocou-se até lá para que

pudéssemos ter essa conversa. Sem colocar muita ordem nos assuntos que abordava,

optou por começar a contar a respeito da sua trajetória de vida. “Eu sempre morei em

comunidade, já morei em palafita e tudo. Agora eu posso dizer que eu sou rico, moro

numa casa, vivo bem”. Diante disso, nosso entrevistado começa a falar da questão dos

conjuntos habitacionais construídos dentro do Pilar.

Tu imagina o que é a pessoa morar num lugar que nem tem banheiro e de

repente ela ganha um apartamento, com dois quartos, cozinha e tudo mais?

Ela não sabe lidar com isso se não tiver orientação. Aqui acontece mais ou

menos isso. Tem um problema sério de som alto por exemplo. De vez em

quando tem briga aí por causa disso. As pessoas não sabem o que é isso,

entendesse? É muito complicado. (Júnior)

Para ele, o problema da moradia era o mais preocupante dentro do Pilar. Era

claro que, por exemplo, não existia distinção entre quem residia nos habitacionais e

quem ainda aguardava a sua vez. O que havia, apesar dos vários entraves, era um

sentimento de cooperação. As pessoas procuravam apoiar umas às outras dentro de um

difícil contexto de vida.

É muito difícil. Imagina tu conviver com rato no meio das tuas crianças?

Roubando a tua comida de cima da mesa? Agora imagina viver num

primeiro andar que não chega nem barata? Difícil demais, né? Agora eles

tentam se apoiar, não tem diferença não, tá todo mundo dentro do mesmo

barco aqui. (Júnior)

Quando indagamos a respeito de como era o Pilar, assim que ele passou a

frequentar o espaço, ele diz que “não mudou muita coisa”. Muito embora sua

participação rendesse em torno de seis anos, dentro da comunidade, ele diz que não

percebe muita coisa nova, em todo esse período de tempo. Não havia mudança, nem

iniciativa do poder público. A comunidade estava em uma situação real de abandono; e

o que mais lhe revoltava era a questão da proximidade (física) com o polo turístico e

com a Prefeitura, pois, havia negligência do mesmo modo que em relação aos bairros

longínquos desse centro.

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Júnior, no entanto, não deixa de pontuar algumas iniciativas de empresas

privadas. Ele relata que, certa vez, um empresário levou as crianças da comunidade e os

responsáveis pelo grupo Guerreiros do Pilar para almoçar em seu restaurante, em um

bairro nobre de Recife. “Ele não quis saber se era tudo pobre não, entendesse? Mandou

foi um ônibus nesse dia, lotou de menino e a gente foi. Comi tanto camarão no dia que

enjoei”. Porém, na sua visão, iniciativas como essa são muito pequenas em vista do que

a comunidade precisa. Colocou, assim como Jorge, a questão do posto de saúde e da

escola como sendo problemáticos e mais urgentes.

Júnior se exaltava bastante na sua fala; e, de modo recorrente, a questão da

relação do Pilar com o Recife Antigo foi motivo de gargalhadas. Fica claro, mais uma

vez, que há uma relação muito distante que ele não consegue mensurar. Não consegue,

por exemplo, apontar ninguém que trabalhe no Marco Zero, em algumas das lojas; o

que demonstra que as atividades desenvolvidas pelos moradores sempre estão na ordem

do trabalho informal. O tráfico de drogas é apontado, por ele, como algo corriqueiro e

comum dentro do lugar, também; um meio de subsistência para algumas pessoas e algo

atrativo para os jovens que lá residem. Jorge comenta que esse tema é trazido pelo

grupo (no qual atua) como algo preocupante e do qual se tenta ir de encontro.

É difícil, sabe? Mas a gente tenta. Um que a gente conseguir tirar já é lucro.

Todos os dias tem muita luta da gente contra isso, mas na verdade, a luta é

contra a fome, contra o descaso do que a gente vê aqui dentro. A luta é todo

dia. Se a gente consegue mudar um, pra gente já é lucro. (Júnior)

A conversa, que tivemos com ele, foi breve. Como tinha se deslocado de Olinda

para o Pilar, tinha que voltar logo para pegar os filhos na escola. No entanto, a sua

narrativa foi muito significativa na medida em que ele apresentava uma realidade “nua e

crua” do Pilar, muito embora não tivesse obtido maior elaboração, em sua fala, sobre

uma possível ligação do Pilar com o Recife Antigo. Ficava, cada mais evidente, que não

havia uma ligação importante entre esses dois espaços contíguos; nada que os

impactasse de maneira positiva. O Recife Antigo era apenas o lado de lá da fronteira.

Tão frágil e tão denso, ao mesmo tempo.

62

3.3. Zé, Kelly10 e o Pilar que ninguém vê.

Conhecemos Zé em uma das nossas passadas pela comunidade. Sentado no

chão, sem camisa, em frente a um bar improvisado, Zé alisava os cabelos brancos

presos por uma presilha minúscula. Fomos a ele apresentado por Jorge e o mesmo

acenou com a mão. Enquanto Jorge conversava com as pessoas que o paravam, o tempo

todo, para pedir alguma ajuda ou falar de algum acontecimento. Zé era homem de pouca

conversa. Morava ali, há muito tempo, mas uma pergunta fez com que ele enrugasse a

testa. Tentou mensurar que desde criança, mas não sabia exatamente quanto tempo. Sua

casa situava-se muito perto do cemitério arqueológico recém descoberto.

O sol castigava já perto do meio-dia. Zé nos convida para adentrar o alambrado,

construído por ele com o material proveniente das construções iniciadas pela Prefeitura.

“Não tem isso não. Eu pego mesmo. Fica aí só juntando rato e a gente aproveita. Já fiz

minha coberta aqui, outro fez o portão, a gente tem que se virar mesmo”. De pronto,

podemos pensar nas táticas e estratégias de Certeau. A pouca paciência de Zé diante

das questões, refletia muito bem o quanto o morador do Pilar estava exausto da

precariedade da realidade. Para Zé, não havia relação com o Recife Antigo, não havia

nenhuma iniciativa do poder público, não havia atenção, nada.

Aqui não tem nada, meu filho, nada, entendeu? Não chega nada, a escola tá

fechada, não tem posto, água só a misericórdia, a segurança quem faz é a

gente mesmo. E você já viu segurança em favela? Não tem. Eu tô cansado,

mas não tem o que fazer não. É ir vivendo. Tá vendo lá (apontando para os

habitacionais) tudo conversa. Cadê os outros? Não têm. Já me acostumei.

As pessoas que estavam próximas balançavam a cabeça em sinal assertivo, como

se concordassem com o que Zé falava. A indignação era comum, os problemas eram

sempre os mesmos; eles estavam nas falas, nos olhares, nos gestos e nos silêncios das

pessoas dali. Ainda que estivéssemos priorizando a narrativa do entrevistado, decidimos

por não aguçar o momento, pois muitas pessoas começaram a se juntar para ver o que

estava acontecendo e escutar ou, então, falar.

10 Nomes fictícios dados aos entrevistados para preservar suas identidades.

63

Vista da casa de Zé/ Foto do autor/Recife (2016)

É nesse momento de efervescência da discussão que Kelly abre o portão do seu

barraco para ver o que está acontecendo e acena para Jorge que está mais à frente.

Despedimo-nos do grupo que se formou ao nosso entorno e Jorge me levou até ela.

Kelly, que deveria ter seus 20 anos, participa do Guerreiros do Pilar e é musicista. Toca

violino e já viajou pela Europa com o grupo. Desde pequena, reside no mesmo barraco

junto com a mãe e alguns gatos. Jorge menciona um problema no portão do barraco que

abriga o grupo e ela diz que vai resolver sozinha. “Essa aqui é barra pesada, visse? Abre

pra ninguém não”. Ela ri e diz que não é bem assim.

Kelly começa a contar que está à espera dos habitacionais, desde há muito

tempo. Diz que sua mãe se cansou de esperar e, por enquanto, elas resistem ali no

barraco, esperando.

Desde pequena que eu ouço que vai sair o apartamento, e cadê? Tem esse aí,

mas a gente não ganhou. Aí vamos ficando aqui por que a gente não tem pra

onde ir não. É isso ou a rua. Minha mãe morre de desgosto disso (aponta o

esgoto escorrendo na porta de casa) mas não tem o que fazer não (Kelly).

A gente aqui acorda dentro do esgoto. É muriçoca, rato, barata, escorpião.

Vamos arrumando o barraco como dá. Banheiro a gente não sabe o que é. Tá

vendo isso aqui? (enquanto puxa um pedaço da parede do barraco) é madeira.

Eu peguei da construção do posto que nunca acabou (Kelly)

64

Viver no Pilar, segundo ela, é construir cada dia sem muita perspectiva de

futuro. Ela contou que frequenta muito pouco o Recife Antigo, apenas no carnaval. Vai

aos shows, dá algumas voltas e pronto. Não vê nenhuma ligação direta com o local.

Conta ainda que apesar de não existir uma diferenciação grande de quem reside nos

habitacionais e de quem mora nos barracos, mas há certa distância entre eles. O

sentimento é o de querer estar também em um desses apartamentos, de maneira que não

há uma rixa direta entre eles, mas “rola aquela coisa né? A gente queria estar lá também.

Mas não é nada pessoal, não. Não tem briga, nem nada”.

Kelly nos cumprimenta e se despedi. Diz que está à disposição, mas que precisa

continuar seus afazeres. Ao redor da entrada da sua casa, outros barracos de portas

fechadas parecem resistir ao tempo. Muitos deles caindo, outros sendo reformados.

Saímos da casa de Kelly sem deixar de nos impressionar com tal situação. Por mais que

aquilo parecesse rotineiro para eles, a realidade bate à porta todos os dias e cobra

resistência desses moradores. Ao virar para fechar a corrente que prende a porta da

casa, avistamos o prédio da Prefeitura de longe. Longe e perto ao mesmo tempo dos de

cá. Do outro lado da rua, observamos uma movimentação que entendemos como sendo

o tráfico; Zé já não está mais na calçada sentado. É hora de almoço e a comunidade

silencia. A cada ida ao campo, fica nítida a realidade desse lugar, que se torna invisível,

o Recife que ninguém vê, nem o poder público, nem muito de nós.

65

CAPÍTULO 4- Estigma, tática e direito: a dinâmica Pilar X Recife

Antigo

Como já sinalizamos no início deste trabalho, nosso objetivo maior foi o de

observar as dinâmicas existentes dentro do Pilar. É importante salientarmos que o que

tomamos como dinâmicas, aqui, constitui um grupo de fatores que versam entre as

relações mantidas entre os moradores do local, as que por ventura venham a possuir

com a parcela que não reside na comunidade e quaisquer outras que possam surgir e que

são somente percebidas pelo foco de lentes que pertence apenas ao morador. Nesse

sentido, nos ateremos nesse capítulo, a dissertar a respeito dessas dinâmicas que são

forjadas no contexto de um bairro popular, fronteiriço com um polo turístico e centros

administrativos. O objetivo foi o de perceber como a rotina do lugar é vivida por quem

está do lado de lá, como as redes de relações são constituídas, trabalhando-se a partir

das questões da representação social desses moradores e de pertencimento. O diferencial

perseguido, por este estudo, foi justamente o de buscar colocar esses moradores frente à

discussão do direito à cidade.

Ao longo de todo o trabalho, é evidente que o objetivo maior ao qual o mesmo

se propunha estava sempre direcionado aos moradores do Pilar. Muito além da

observação que pudemos fazer do lugar enquanto espaço físico-emotivo e diverso,

buscamos pontuar algumas questões e conceitos mais diretamente para desvendar

algumas das práticas cotidianas presentes dentro do lugar. O primeiro ponto a que nos

atemos, diz respeito à questão da estratégia. O termo é entendido aqui como sendo algo

que já está estabelecido por uma ordem maior. Estratégia seria o que podemos pensar

como um modelo de instituição, que dita as regras e se apresenta como mais concreto. A

estratégia em si, pode estabelecer as regras a serem seguidas, ou simplesmente serem

legitimadas. Uma característica primordial dela seria a capacidade de homogeneizar, de

organizar as relações de força. Estratégia, para Certeau (2014), é o que postula. O poder

reside aí.

Nas incursões ao campo, na fala dos sujeitos, na dinâmica local e até na nossa

perspectiva enquanto pesquisador, as relações de força forjadas em prol de um contexto

de manipulação daquela população, era claro. O tempo todo, nos discursos, era visível a

66

presença das instituições, seja ela partindo de um efeito mais direto sobre o Pilar, como

as igrejas existentes, a própria dinâmica segregadora do Recife Antigo, constituída

enquanto tal, e até mesmo de maneira mais indireta, como a da Fábrica da Pilar e a

Prefeitura do Recife. Identificamos aqui, estas sendo as estratégias presentes dentro do

Pilar. Certeau (2014) as denomina enquanto sendo esse cálculo das relações de força,

“Lugar do poder e do querer próprios” (CERTEAU, 2014, p.93).

Essa invisibilidade do poder, que o autor postula é evidente nas instituições que

observamos dentro do Pilar. A começar pela fábrica, que está localizada ao lado do

lugar. Como se percebe, a fábrica aparece no discurso de Jorge como sendo um espaço

que poderia estar em consonância com a comunidade; mas não está. Entendendo-a aqui

enquanto estratégia, é evidente a percepção dos poderes invisíveis que ela possui

quando se diz respeito à dinâmica da comunidade. Em um dos relatos, em que é relatado

um episódio em que uma parceria com a Pilar foi tentada, no intuito de angariar lanches

para um projeto da comunidade, pode-se perceber isso: “O que é uma caixa de biscoito,

pra uma fábrica inteira? ”. Há uma necessidade de manter esse limite, esse estado

fronteiriço entre a fábrica e a comunidade. De uma maneira ou de outra, é perceptível a

influência que ela exerce sobre a comunidade. Certeau fala de um corte, existente entre

o lugar que está sendo apropriado e o de quem o apropria, que tem como resultado

alguns efeitos, podendo ser “um domínio dos lugares pela vista. A divisão do espaço

permite uma prática panóptica, a partir de um lugar de onde a vista transforma as forças

estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar e, portanto, incluir na

sua visão” (CERTEAU,2014, p.94).

É importante falar de um domínio dos lugares pela vista, pois através do que foi

relatado, ficou claro que há esse domínio de algumas instituições sobre o lugar. A

fábrica, de certo modo, com o muro que faz fronteira com a comunidade, também a

vigia. Em relato colhido, como foi visto mais acima, a tática de começar a pular os

muros da Pilar, foi repreendida por ações da polícia, que “sem motivo aparente”,

começou a fazer incursões mais severas no local.

Os meninos começaram a pular pra pegar biscoitos, comida, entendeu? Não

era nada demais, mas eu sei que está errado. Não é seu você não tem que

mexer. Mas aí a polícia que já vivia aqui dentro, começou a vir mais, a dar

baculejo, entrar nas casas(...) Foi ficando tenso. Aí algumas pessoas

começaram a se organizar e pedir aos meninos que parassem com isso,

pessoal da comunidade mesmo. Mas vê mesmo, era por umas caixas de

biscoito! (Entrevistada que preferiu não se identificar)

67

Esse exemplo se coloca bem diante do termo de tática de Certeau. Essa arte do fraco.

“A tática é movimento dentro do campo de visão do inimigo” (CERTEAU, 2014, p.94).

O ato de pular o muro para roubar os biscoitos se configura enquanto tática, como o que

vem para subverter o que está dito.

Sendo assim, tática se percebe também, no posicionamento com relação à

prefeitura do Recife. Entende-se aqui que há um jogo de poderes que está o tempo todo

atuando na comunidade. O jogo de poderes se traduz nesse caso enquanto abandono. O

desinteresse e a pouca formulação de políticas públicas para o Pilar são estratégias

também. Chego à ideia de o abandono do poder público se reflete enquanto tal, pois

para que haja o enfrentamento das consequências há uma série de táticas que são

utilizadas pelos moradores para subverter o que o jogo de poderes tenta fazer. Com

relação à prefeitura, essas táticas estão imbuídas de resistência, em permanecer

ocupando o lugar, quando o que se dita é o contrário, que a população seja deslocada

daquele local.

Com relação ao Recife Antigo, isso é ainda mais perverso. O Pilar é de fato essa

negação dele e vice e versa. Uma lógica tenta anular a outra e isso é perceptível mesmo

que fora das narrativas. A própria configuração espacial reflete isso. A maneira como o

espaço do Pilar é vista do lado de “lá” é excludente e tenta camuflar a existência do

espaço. Podemos pensar isso, a partir do que Zukin (2000) pontuou a respeito da real

necessidade de construção de outros espaços, com vistas a enriquecer os lugares e

afirmar cada vez mais essa lógica capitalista de mercantilização dos mesmos. O Recife

Antigo é colocado “à venda” após o processo de revitalização dos seus espaços e o Pilar

permanece sendo a comunidade que sempre foi, tendo as modificações feitas pelos que

subvertem a lógica das estratégias.

As táticas, que pudemos identificar, estavam presentes desde a utilização de um

tapume colocado pela prefeitura, como porta da casa de um morador, até a saída de

alguns moradores do lugar para trabalhar como vendedores ambulantes nos arredores.

Chegar aqui foi o maior desafio, eu não conhecia muita gente, então eu tive

que começar sozinho. Logo de cara vieram e fecharam um terreno com uns

tapumes dizendo que ia sair um posto de saúde. Pararam a obra, disseram que

encontraram um cemitério aí, antigo. Veio um monte de gente que passava o

dia cavando, levando pedaço de pedra daqui e nada do posto sair. Aí fui

olhando direitinho e vi que podia dar uma porta pra mim, uma coberta.

68

Depois todo mundo foi fazendo isso e daqui a pouco não tinha mais nada

(risos). Pelo menos isso a gente pode aproveitar (Zé).

Com relação ao trabalho informal percebido aqui enquanto tática, isso aparece,

porém de forma mais branda e não tão bem vista pelos moradores. Sempre que

indagados a respeito de como se dá a relação entre o Pilar e o Recife Antigo, as

narrativas pontuam que a relação “É essa mesmo”. Nada de especial ou de grande

importância. Há certo desdém nas falas. A relação de quem mora no Pilar é apenas a de

vendedores ambulantes de água mineral e pipoca e isso de maneira alguma aparece

como sendo algo que beira uma tática. Na opinião de quem vive lá, a relação deveria ser

mais estreita, de maneira a dar mais importância e visibilidade ao lugar. Segundo

algumas falas, o que se previa é que inclusive o Pilar, com todas as suas peculiaridades,

deveria ocupar um lugar turístico, em que moradores pudessem guiar as idas de turistas

ao local, de que melhores condições de vida fossem dadas a quem reside ali, e que o

Pilar passasse a integrar um espaço que também é de quem reside lá. O que se percebe

nas falas e no dia-a-dia do lugar é a situação do lado de cá da linha férrea que Sarlo

(2004) menciona. É só o cinza da zona.

Quando faço menção ao Pilar enquanto espaço estigmatizado, é importante

destacar que esse abandono não é recente. Como foi supracitado, esse desprezo social

reside em instâncias de tempo muito anteriores. Visto enquanto espaço da escória da

cidade, habitado pelas margens e pouco conhecido, o espaço foi se desenvolvendo até

que pudesse se estabelecer enquanto comunidade que é hoje. Quanto tratamos aqui de

estigma, nos referimos em termos goffmanianos a rótulos e a marcas colocadas em

pessoas e lugares. Goffman (1988) pontuou que a vida social cria meios de categorizar

as pessoas conforme alguns atributos que ela considera como sendo comuns e aceitáveis

dentro do espaço de vivências que a mesma proporciona. Quem não partilha desse

conjunto de regras e normas aceitáveis é visto como sendo estranho e, portanto,

destituído do direito de compartilhar da convivência dentro de um contexto normal em

sociedade.

(...)deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma

pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente

quando o seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes ele também

é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem e constitui uma

discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social

real (GOFFMAN, 1988, p.6).

69

O Pilar, e toda a dinâmica que o constitui, vivencia claramente essa situação de

estigmatização. Isso ocorre desde os primórdios, incluindo o Recife Antigo, com zona

portuária. Ao longo do tempo, apenas o Pilar permaneceu dentro dessa categoria e

responde, até hoje, por ser assim conhecido: violento, desconhecido e esquecido.

Percebo, aqui, como sendo esse estigma criado não pelas formas corretas que uma

sociedade partilha como sendo as que são criadas para serem seguidas, mas como algo

que foi sendo forjado, ao longo do tempo, para excluí-lo da lógica do mercado de

turismo. A criação do estigma foi aqui, então, intencional, depreciativa e tem seus

efeitos sendo prolongados pela forma com que as instâncias de criação dessas normas

de sobrevivência têm tratado o espaço.

Nas falas dos entrevistados, isso é mais que claro e, até de certo modo, aceito

por quem lá reside. Isso não quer dizer, no entanto, que haja uma conformação, no

sentido de que os moradores incorporem isso e passem a viver segundo o que é ditado

por esse rótulo. O normal e o estigmatizado não são pessoas, mas sim perspectivas,

geradas em situações sociais, criadas em contatos mistos, por causa das normas não

cumpridas, que atuam sobre o encontro entre os dois. “E já que aquilo que está

envolvido são os papeis em interação e não os indivíduos concretos, não deveria causar

surpresa o fato de que, em muitos casos, aquele que é estigmatizado num determinado

aspecto exibe todos os preconceitos normais contra os que são estigmatizados em outro

aspecto (GOFFMAN,1988, p.149).

O estigma, nesse caso, pode ser contado também em outro aspecto: o do

desconhecimento. O espaço do Pilar é estigmatizado porque não quer se conhece o

lugar, o estigma garante a invisibilidade do lugar. A comunidade estampa capas de

jornais com reportagens11 a respeito do abandono pelo poder público, o atraso na

conclusão das obras dos habitacionais previstos no plano de revitalização da prefeitura e

do estigma de um lugar marginalizado, ocupado por pessoas que passaram a constituí-lo

enquanto espaço de moradia, mas que são desconhecidas.

11http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vidaurbana/2015/09/21/interna_vidaurbana,59

8617/comunidade-do-pilar-aguarda-plano-de-urbanizacao-em-meio-a-miseria-e-o-esquecimento.shtml.

Acesso em 20 de maio de 2017.

http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2016/04/20/comunidade-do-pilar-ainda-

sem-teto-digno-231906.php. Acesso em 20 de maio de 2017

70

Sempre que a gente vai fazer algum cadastro, alguma entrevista de emprego,

ou mesmo quando alguém pergunta onde a gente mora, a gente diz. A gente

sabe que os outros já olham com cara feia, mas nós somos daqui mesmo, da

comunidade do Pilar. Eu não me importo com o que pensam não, eu me

importo é com meu apartamento que ainda não saiu, com esse esgoto que

passa aqui na minha porta, com a minha mãe doente, isso sim (Kelly).

Percebemos, então, que o impacto do estigma está mais situado em uma questão das

consequências do que ele proporciona com relação aos aspectos estruturais para a

comunidade. Se incomoda aos moradores que eles sejam vistos enquanto

marginalizados por quem está fora do contexto, o incômodo está muito mais situado na

falta de assistência dada a eles, pois “Morar no Pilar é um orgulho, eu só saio do meu

barraco para o meu apartamento12”.

Refletir acerca do estigma, remete também à questão do direito à cidade. É

bastante presente na fala dos moradores a noção de conhecimento dos seus direitos

políticos. O tempo todo, em algumas narrativas, comenta-se a respeito de projetos

iniciados pela prefeitura, em determinado ano, ou de projetos que foram sendo trazidos

para dentro da comunidade, do incômodo no que diz respeito aos atrasos da obra dos

habitacionais e muitas reclamações com relação ao valor disponibilizados pela

prefeitura para contar como auxílio moradia. “O valor é muito pequeno, como eu vou

alugar um barraco de 400 reais, se eles só pagam 200? É impossível! ”. “Derrubaram

meu barraco e eu construí outro, eu não tinha pra onde ir com esse dinheiro que eles

dão, espero que agora eles não derrubem de novo, eu não tenho pra onde ir”. É notório

que os moradores estão conscientes do que lhes falta e do que lhes tem que ser dado.

Isso fica claro na fala dos coordenadores da ONG que desenvolve atividades lá e de

certo modo, passado para eles.

O trabalho que a gente faz com as crianças, de certo modo chega nos pais

dela e isso vai abrindo mais. A gente tenta oferecer um pouco de

oportunidade pra elas e elas sabem do que tem direito e do que não tem. Às

vezes eu canso, é trabalho de formiguinha, mas só em ver meus meninos

conseguindo alguma diferente da realidade que eles têm aqui, ou dos pais me

perguntando pra onde podem levar eles pra fazer um curso, uma coisa, isso

me alegra demais (Júnior).

Pensar a respeito do problema do conhecimento dos direitos políticos, faz-nos

pensar a problemática que Lefebvre (2015) levanta com relação à questão do direito à

12 Referindo-se aos habitacionais que estão em processo de construção.

71

cidade. Segundo ele, “forças muito poderosas tendem, a destruir a cidade. Um certo

urbanismo, à nossa frente, projeta para a realidade a ideologia de uma prática que visa à

morte da cidade” (LEFEBVRE, 2015, p.104). A cidade, nesse contexto, é desconstruída

para ser refeita a partir de outro ângulo e sentido: o da não integração.

Grandes são os efeitos de uma integração desintegrante, como propõe o autor, e

isso é percebido no Pilar. Essa integração ilusória beira a não existência. A integração

proposta é de fachada, é vista por detrás dos tapumes colocados. No entanto, é evidente

que há conhecimento disso por parte dos moradores. Essa consciência política é

presente nas falas e no cotidiano. “Para a classe operária, vítima de segregação,

expulsa da cidade tradicional, privada da vida urbana atual ou possível, apresenta-se um

problema prático, portanto político” (LEFEBVRE, 2015, p.104). Problema, nesse caso,

conhecido e questionado, pelos moradores, pelas particularidades e multiplicidades que

compõem o Pilar.

Entendemos que existem alguns elementos centrais para a construção da

identidade local dentro do Pilar que não se traduz somente enquanto o estabelecimento

de uma moradia compartilhada, por exemplo. Ser morador do Pilar é galgar

diariamente, através de autos de resistência, a melhoria das condições de vida que

incluem a organização do lugar para que se reconheça o lugar enquanto existente. É

evidente que os moradores se percebem enquanto comunidade vulnerável e esquecida,

mas ao mesmo tempo forte e com poder de representatividade. Mesmo diante da

ausência de lideranças mais concretas, o simples fato de sermos direcionados no

momento da entrevista para conversar com pessoas “escolhidas” pelo nosso guia,

mostra que há, mesmo que de forma encoberta, uma organização em prol do lugar que

se traduz em representatividade.

72

73

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando no início desse trabalho, propomos perceber a dinâmica do que

denominamos de morar, no contexto da comunidade do Pilar, imaginávamos que

encontraria uma situação de precariedade no lugar. Essa situação, já conhecida em

outras situações, junto ao fato da localidade estar situada junto às aglomerações

turísticas e a prédios administrativos, foi o motivo principal que nos levou a toma-la

como objeto de pesquisa. Dentro das questões que buscamos abordar, todas elas se

encaminhavam para uma possível relação existente entre esses dois lados da fronteira e

mais especificamente sobre como é viver, no sentido de morar em uma delas. É evidente

também nas falas, o cansaço em relatar os problemas que parecem tão óbvios para

todos. Fazer com que um enredo se montasse e conseguir extrair desses moradores,

detalhes sobre seu cotidiano se apresentou como mais uma dificuldade em campo.

É possível perceber na fala dos entrevistados, mesmo que de maneira breve, a

questão de residir em um lugar estigmatizado pela fama que possui. Mas muito mais

difícil, é conviver entre as dificuldades estruturais presentes. Há ao mesmo tempo um

sentimento de revolta, mas de acomodação diante de uma situação que pode ser pouco

modificada por eles. Resta-lhes apenas esperar que algum dia a situação mude, e para

conviver com as intempéries que se apresentam, vão à sua maneira buscando

mecanismos de resistência para permanecer no lugar. É notável que ao mesmo tempo

que a dificuldade se apresenta, esses moradores lançam mão de determinadas

estratégias de enfrentamento a elas. Em grande parte dos relatos, os entrevistados

contam que utilizam os restos das obras abandonadas para arrumar os barracos onde

moram. Percebemos que isso claramente se apresenta enquanto mecanismo de

subversão à realidade que lhes é imposta.

Conseguimos perceber também dois aparentes vieses sobre as práticas do Pilar,

ambas marginalizadas, mas com valores éticos opostos: o crime, servindo de fundo ao

turismo e ao trabalho informal. O primeiro deles é também o grande personagem da

comunidade. Todos lutam contra ele e o estigma que traz. Nas falas, é evidente que

tenta se camuflar a atividade criminosa dentro do Pilar. No entanto, não consigo

perceber isso como sendo uma maneira de escondê-la propriamente. As evidências

apontam muito mais num sentido de mostrar que determinados comportamentos já são

74

tidos como “normais”. Há uma consciência por parte de quem mora de que o Pilar

ocupa uma situação marginal, e que por mais que haja mecanismos de subversão, aos

quais determinados moradores lançam mão, essa é uma realidade que marca. Isso, de

certa forma confirma o recorrente cansaço que pude presenciar nas falas, quando

questionava a respeito de temas variados referentes ao contexto da comunidade. “-Se eu

disser que não tem coisa errada aqui dentro eu vou estar mentindo. Mas onde é que não

tem? A gente não ganha nada com isso, mas é assim mesmo”.

A atividade marginal, em si, não carrega um ethos de resistência a opressões,

mas opera no meio e nas brechas dessa realidade opressora. Enquanto o Marco Zero se

fecha, a fim de esconder o Pilar, ele ajuda a operação criminosa que ele próprio tenta

ofuscar. Quanto mais o centro se distancia visualmente do Pilar, mais ele cresce. A

guetificação produz criatividades que levam a táticas de resistência variadas em prol da

luta contra um inimigo em comum. É interessante pensar nesse contexto, no que

Beatriz Sarlo (2004) denominou como “enfraquecimento da sensação de se pertencer a

uma sociedade” (SARLO, 2004, p. 53). Se, por um lado, a autora coloca as classes mais

populares e médias como possuindo, por vezes, esse sentimento de abandono por parte

do Estado, no que diz respeito à segurança, percebemos entre os moradores com quem

pudemos conversar, que existe uma sensação de conformidade entre eles. Quando opto

por falar aqui em conformidade, não tem como concluir que haja uma simples e pacífica

aceitação das condições em que se desenvolve a dinâmica de morar no Pilar. A

conformidade repousa no cansaço em repetir o que já parece clichê.

Outro aspecto que pudemos perceber na dinâmica do local, foi a presença do

trabalho informal como grande fonte de renda dos moradores. Alguns vêm de outras

regiões para o Pilar justamente por esse nicho de trabalho que os arredores

proporcionam. Como se pode observar nas narrativas, a relação que existe entre os

moradores do lugar e o Recife Antigo é o que envolve as instâncias do trabalho

informal. Essa ideia remete ao conceito de zona cinza que Beatriz Sarlo (2004)

denominou como sendo uma zona que abriga indivíduos desagarrados, que são iguais e

diferentes ao mesmo tempo, em busca de oportunidades.

O reluzente setor terciário, filho do capitalismo tardio e da transformação

tecnológica, é multiplicado em uma região cinza, repleta de perambulantes.

Há, entre eles, gente desesperada por que foi parar ali vindo de outras

ocupações (SARLO, 2004, p.112).

75

Em todo caso, observamos que as atividades se complementam tornando o Pilar um

lugar de serviços insólitos e baratos que servem justamente o polo Marco Zero e

também os outros empreendimentos.

Chegamos a principal conclusão de que o Pilar é a negação do Marco Zero. Não

vejo possibilidades de afirmar que o contrário possa ser dito, pois não se percebe nem

uma atenção mínima para com o lugar, que se apresente ao menos como negação.

Enquanto um representa o principal cartão postal e o lugar que abre as portas para o

Recife, o Pilar é, por sua vez, quem fecha as portas, é o escondido, o Recife que

ninguém quer mostrar, mas ambos se completam. A legalidade, a limpeza e a

centralidade do Recife antigo, operam com a ilegalidade e a sujeira na periferia do

centro com o Pilar. É como se o jogo de exclusão presente na cidade do Recife, que

alterna entre favelas e condomínios, estivesse representando em menor escala na ilha,

como Zé salienta:

Isso aqui é muito rico, uma favela dessa num lugar desse, não sei como

ninguém tirou daqui... na verdade eles tentaram a muito tempo e ainda

tentam... será que isso aí (aponta para os prédios) não é uma forma de tirar

um pessoal daqui? Muita gente não vai se adaptar a isso não, pagar conta,

pagar IPTU, água, daqui uns dias mais da metade vai ter vendido, isso vai

tirar a favela daqui, vão vir outras pessoas (Zé).

Mesmo não sendo o milagre prometido, a requalificação do Pilar traz uma

esperança na vida de muitas pessoas que não tinham nem o básico para sobreviver.

Apesar de ser alvo constante de politicagem de todas as formas, a construção destaca o

quanto o direito e a dignidade daqueles moradores foram perdidos ao longo de décadas

de abandono e descaso. Isso justifica também o cansaço presente nas falas e no

cotidiano dos moradores. Viver no Pilar é reconstruir a cada dia o significado do lugar

habitado. “Viver aqui, é matar um leão todo dia” (Zé).

76

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78

SANTOS, Milton. Ensaios sobre a urbanização Latino-Americana. São Paulo: Editora

Hucitec, 1982

ANEXO I

Roteiro de entrevista narrativa

Nome:

Histórico e vivência:

Qual a sua relação com o Pilar? (Reside no local, trabalha nos arredores,

etc.);

Há quanto tempo você conhece a comunidade? Do tempo que você chegou

até agora, muita coisa se modificou no lugar?

Em outras palavras, como era o Pilar quando você chegou aqui?

Relação Pilar x Recife Antigo:

Você se recorda como era o Recife Antigo, quando você chegou aqui?

Como você vê a relação do Pilar com o Recife Antigo? Percebe como duas

realidades independentes ou não?

Na sua visão, o Pilar depende do Recife Antigo para continuar existindo?

Você conhece alguém que trabalha no Recife Antigo que reside no Pilar?

Como você definiria o Recife Antigo hoje?

Relação Pilar x Poder público:

79

Na sua opinião, qual a relação do Pilar com a Prefeitura do Recife hoje?

Que outros órgãos atuam dentro da comunidade?

Para você, o que significou a construção dos habitacionais?

Se você pudesse descrever o Pilar hoje, como seria?