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O QUEBRA DE XANGÔ: 100 ANOS DEPOIS ENTREVISTA COM O ANTROPÓLOGO ULISSES NEVES ERVAS E COMIDA DE SANTO: POR DENTRO DOS TERREIROS OS TEXTOS SOBRE O QUEBRA PUBLICADOS EM 1912, NO JORNAL DE ALAGOAS E AINDA: ACÁSSIA DELIÊ, LUÍS GUSTAVO MELO, CAROLINE GUSMÃO, WEBER BAGETTI, RAFHAEL BARBOSA, LARISSA FONTES E RAUL LODY GRACILIANO Nº 13 R$ 8,00 O quê estava por trás do episódio contra as religiões de matriz africana 9 771984 345005 3 1 0 0 0 ISSN 1984345-3 Escultura ritual de Ogum, integrante da Coleção Perseverança, formada por peças retiradas dos terreiros de Maceió durante o Quebra

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O QUEBRA DE XANGÔ: 100 ANOS DEPOIS

ENTREVISTA COM O ANTROPÓLOGO ULISSES NEVES

ERVAS E COMIDA DE SANTO: POR DENTRO DOS TERREIROS

OS TEXTOS SOBRE O QUEBRA PUBLICADOS EM 1912, NO JORNAL DE ALAGOAS

E AINDA: ACÁSSIA DELIÊ, LUÍS GUSTAVO MELO, CAROLINE GUSMÃO, WEBER BAGETTI, RAFHAEL BARBOSA, LARISSA FONTES E RAUL LODY

GRACILIANO Nº 13 R$ 8,00

O quê estava por trás do episódio contra as religiões de matriz africana

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ISSN 1984345-3

Escultura ritual de Ogum, integrante da Coleção Perseverança, formada por peças retiradas dos terreiros de Maceió durante o Quebra

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TIME DE BAMBAS

É impossível fazer uma revista de qualidade sem

um bom time de colaboradores. Desde que passou

por uma reforma gráfica e editorial, em junho

de 2011, a Graciliano não abre mão de contar

com a colaboração de talentos do jornalismo, do

design gráfico e das artes visuais. Felizmente, o

resultado tem sido reconhecido pelos leitores.

Nesta edição, contamos com colaboradores

especiais. O fotógrafo Ricardo Lêdo assina a

série de imagens que ilustram a capa desta edição

e a reportagem sobre a Coleção Perseverança,

um tesouro arrancado dos terreiros de Maceió

durante o Quebra de Xangô e preservado pelo

Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. A

reportagem de fôlego sobre o tema central da

revista – o Quebra de 1912 – é de autoria da

jornalista Vitória Alcântara. Para ilustrar o

texto sobre os orixás e as entidades do candomblé

e da umbanda, contamos com o traço original

do artista visual e ilustrador Weber Bagetti.

A jornalista Acássia Deliê escreveu sobre a

pesquisa pioneira, realizada por antropólogos

IMPRENSA OFICIAL

GRACILIANO RAMOS

GOVERNO DO ESTADO

DE ALAGOAS

Janayna Ávila

Editora

Michel Rios

Projeto gráfico / Diagramação

Elayne Pontual e

Lucas Almeida

Estagiários

Ricardo Lêdo

Foto de Capa

Os textos assinados são de exclusiva responsabilidade do autor.

Graciliano é uma publicação da Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Marli Josefina

Revisão

Equipe Secom

Arquivo Público de Alagoas

Instituto Histórico e Geográfico

de Alagoas

Museu Palácio Floriano Peixoto

Paz Comunicação Estratégica

Colaboração

Contatos:

0800 095 8355 | [email protected]

ISSN 1984-3453

Moisés de Aguiar

Diretor-presidente

Hermann de Almeida Melo

Diretor-comercial

José Roberto Pedrosa

Diretor-administrativo financeiro

Janayna Ávila

Coordenadora editorial

Michel Rios

Editor de arte

Teotonio Vilela Filho

Governador de Alagoas

José Thomaz Nonô

Vice-governador de Alagoas

Luiz Otavio Gomes

Secretário de Estado do Planejamento e do

Desenvolvimento Econômico

da Ufal, que mapeou os terreiros existentes em

Maceió. O também jornalista Luís Gustavo

Melo foi em busca da origem dos sons que

acompanham os rituais nas religiões de matriz

africana. A jornalista e fotógrafa Larissa Fontes

assina o ensaio visual desta edição, com imagens

que põe o leitor dentro das principais festas e

rituais dos terreiros. A arquiteta, professora e

curadora Caroline Gusmão fez um passeio pela

obra do artista visual José Zumba, que dedicou

parte do seu trabalho à temática negra e há

poucos meses ganhou uma exposição no Museu

Palácio Floriano Peixoto. Por fim, o jornalista e

cineasta Rafhael Barbosa viajou a Penedo,

antigo reduto dos malês, os negros muçulmanos,

para investigar a passagem do grupo por Alagoas.

Como se vê, uma edição que reúne um time de

colaboradores brilhantes.

EXPEDIENTE

Mich

el Ri

os

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OS SILÊNCIOS DO QUEBRA

JOIAS NEGRAS

A COR DO SOM

O POVO DE SANTO

CEM ANOS DE SOLIDÃO

REGISTROS DO PRECONCEITO

TERREIROS NO MAPA

PELOS CAMINHOS DA FÉ

JOSÉ ZUMBA: UM OLHAR ENTRE ROS-TOS E PAISAGENS

DEVOTOSDE MAOMÉ

SEM FOLHA NÃO HÁ ORIXÁ

O IMAGINÁRIO DA COMIDA SAGRADA

JANAYNA ÁVILA

JANAYNA ÁVILA

LUÍS GUSTAVO MELO

LARISSA FONTES

VITÓRIA ALCÂNTARA

ACÁSSIA DELIÊ

LUCAS ALMEIDA

CAROLINE GUSMÃO

RAFHAEL BARBOSA

ELAYNE PONTUALRAUL LODY

ENTREVISTA

REPORTAGEM REPORTAGEM

REPORTAGEM

REPORTAGEM

REPORTAGEM

REPORTAGEM

ENSAIO VISUAL

SAIBA MAIS

DOCUMENTA ARTIGO

ARTIGO

ESPECIAL

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SUMÁRIO

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PELOS CAMINHOS DA FÉPara entender melhor os princípios que regem algumas religiões de matriz africana, confira uma breve apresentação dos principais orixás do candomblé e das entidades e falanges da umbanda

TEXTO: LUCAS ALMEIDA

ILUSTRAÇÕES: WEBER BAGETTI

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Oxumarê, o orixá do arco-íris: segundo a mitologia, a cada vez que a chuva aparece, ele aponta sua arma para o céu

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Somente a mistura de dezenas de etnias africanas – infelizmente, viabilizada pela escravidão negra no Brasil – resultaria no candomblé, uma religião de matriz africana caracterizada pela junção de vários cultos e pela presença dos orixás, inkices(deuses para os bantos) e voduns(deuses da etnia jeje) que representam a natureza e são, portanto, a ligação entre o homem e Deus. Há informações de que cada nação africana teria como base o culto a um único orixá. No Brasil, eles acabariam unidos numa mesma religião.Segundo a mitologia africana, Olorum (deus supremo) criou a natureza e, logo depois, o homem. Para os que cultuam orixás, a natureza é a ligação entre o homem e Olorum. Durante o período de escravidão, a prática do candomblé era realizada principalmente nos quilombos. Essa religião, assim como todas as outras, possuía sua própria mitologia,

CANDOMBLÉ

EXU

Considerado o orixá mensageiro, é tanto o elo entre Olorum (deus supremo) e os orixás quanto entre os orixás e o homem. No candomblé, não se pode fazer nenhuma obrigação ou ritual sem que Exu seja servido primeiramente. Muitos acreditam que, se a regra não for seguida, o orixá interferirá nas ofertas, provocando o caos. De acordo com a mitologia africana, Exu visitava constantemente Oxalá e adorava vê-lo fabricar os seres humanos. Também outros apareciam para ver o orixá criador dos homens e traziam oferendas. Com o tempo, Exu passou a ajudar Oxalá em sua tarefa e viveu com ele 16 anos. Certo dia, Oxalá pediu a Exu que se postasse numa encruzilhada, que dava acesso à casa de Oxalá, e recebesse suas oferendas. Passado algum tempo, Oxalá ordenou aos visitantes que Exu também deveria receber presentes. Desde então, Exu se tornou o senhor das encruzilhadas e das comunicações. Suas cores são o vermelho e o preto.

contada através de lendas ou itans. “Essas lendas surgiram na África para explicar as coisas do mundo para os mais jovens”, explica o babalorixá (ou pai de santo) alagoano Célio Rodrigues, o Pai Célio. Entre elas, a criação da Terra, chamada Orum, por Olorum ou a entrega do segredo do ferro aos homens por Ogum. O número de orixás no candomblé é incontável. No entanto, há 16 que são os mais cultuados no Brasil: Exu, Ogum, Oxossi, Ossaim, Iroco, Oxumarê, Obaluaê, Nanã, Euá, Obá, Oxum, Logum Edé, Xangô, Iemanjá, Iansã e Oxalá.Considerando o fato de a história das religiões de matriz africana no Brasil estar ligada à identidade e, portanto, a pertencimento, o sincretismo – que se caracteriza pela fusão ou influência entre diferentes religiões – é uma forte característica do candomblé. Logo quando chegaram ao Brasil, os africanos de origem Iorubá, oriundos de uma região onde

hoje se encontra a Nigéria, depararam-se com a religião oficial da colônia, o catolicismo. Por isso, para poder realizar seus cultos disfarçadamente, esses africanos associaram seus orixás a santos católicos, buscando neles características e histórias parecidas com as dos orixás. Entre eles, por exemplo, encontra-se Oxalá, associado a Jesus por ter sido esse orixá que, a pedido de Olorum, o deus supremo, criou os homens. Essa associação, no entanto, varia de acordo com as regiões do País. Muitos orixás são associados a mais de um santo católico. É o exemplo de Oxossi, associado a São Sebastião e a São Jorge.Muito do que é habitualmente sabido sobre as religiões afro-brasileiras deriva das informações propagadas pelos católicos. “Logo no início, quando os portugueses invadiam os locais de culto e viam a figura de um falo humano, que é a representação de Exu, começaram a associá-lo com o demônio”, explica Célio, que faz questão de ressaltar: “A associação ao demônio é incorreta. No candomblé, não existe demônio”.

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REPORTAGEM

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OGUM

Segundo a mitologia africana, Ogum foi o último orixá que apareceu na Terra. Sua vinda coincidiu com a Idade dos Metais, por isso representa os metais e a tecnologia. Nos sacrifícios de animais, o nome de Ogum é sempre pronunciado, pois é com sua faca que a ação é realizada. Segundo a mitologia dos Orixás, foi Ogum quem ensinou aos homens o segredo da produção de ferro, como é contado na seguinte lenda: “Em uma terra criada por Olorum (deus supremo), os orixás e os seres humanos viviam em igualdade. Caçavam e plantavam usando utensílios feitos de madeira, pedra e metal mole. Com o acréscimo da população, resolveram aumentar a área de lavoura. Para isso, usaram seus materiais a fim de limpar o terreno. Nada dava certo. Até que Ogum usou seu facão de ferro para campear. Os orixás ficaram admirados com os benefícios que o metal de Ogum trouxera”.

OXOSSI (ODÉ)

Conta-se, todos os anos, o rei de Ifé comemorava a colheita do inhame. A festa transcorria normalmente até que um pássaro, mandado por feiticeiras que não tinham sido convidadas para a comemoração, veio aterrorizar a cerimônia. O rei chamou os melhores caçadores para abater o animal. Da região de Idô, veio Oxotogum (o caçador de 20 flechas); de Morê, veio Oxotogi (o caçador de 40 flechas) e de Ilarê, veio Oxotadotá (o caçador de 50 flechas). Todos prometeram matar o animal, mas não conseguiram e foram presos pelo rei. Por último, apareceu Oxotocanxoxô (o caçador de uma só flecha). Caso errasse o alvo, seria morto. Temendo a morte de Oxotocanxoxê, sua mãe realizou oferendas para que seu filho continuasse vivo. Com isso, ele acertou o peito do pássaro com apenas um disparo. A partir desse momento, o caçador Oxô ficou popular e as pessoas cantavam Oxossi, ou seja, “o caçador Oxó é popular”. Desde então, ele virou Oxóssi.No candomblé, quando Oxóssi incorpora é executada uma imitação de uma caçada. Em suas representações, ele sempre aparece com uma flecha e um arco, unidos em um só elemento. No catolicismo, Oxóssi é representado por dois santos: São Jorge e São Sebastião.

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OSSAIM

Representa as matas, folhas e ervas. Dizem ainda que é o orixá da Medicina. A origem desse seu poder é explicada pela seguinte lenda: “No momento da criação do mundo, o deus supremo Olorum distribuiu, entre os orixás, os elementos da natureza. A Xangô foi dado o trovão; a Ogum, o ferro, a Oxossi, os animais de caça; a Iansã, os ventos; a Iemanjá, as águas salgadas e a Ossaim, as plantas. Xangô não ficou satisfeito com a divisão pois queria o poder das plantas. Por causa disso, pediu a sua esposa Iansã, orixá do vento, para que varresse com uma ventania as matas de Ossaim. Com isso, as plantas de Ossaim foram espalhadas e cada orixá pegou algumas para si. No candomblé, cada orixá possui o segredo de cura de suas ervas. A cor de Ossaim é o verde.

IROCO (TEMPO)

Na África, Iroco é um orixá que habita a árvore sagrada de mesmo nome. No Brasil, essa árvore é representada pela gameleira branca, cujo nome científico é . Estas duas árvores representam a ligação entre o céu e a Terra. Na África, para se colher folhas dessas árvores é preciso realizar oferendas. Somente as folhas viradas para o céu são utilizadas. Esse orixá tem o poder da cura e é invocado quando se tem febre. As mulheres recorrem a ele quando não podem engravidar. No candomblé, Iroco é um orixá raro, ou seja, dificilmente se manifesta.

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REPORTAGEM

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OXUMARÊ

É o orixá do arco-íris. A mitologia conta que Oxumarê não gostava de chuva. Todas as vezes que as nuvens se reuniam, ele apontava sua arma de bronze para o céu e desenhava o arco-íris para que ela desaparecesse. Certa dia, Olorum (deus supremo) ficou cego e pediu que Oxumarê o curasse. Temendo que a cegueira voltasse, Olorum ordenou que Oxumarê vivesse no céu e que só fosse à Terra de vez em quando.

OBALUAÊ (OMOLU)

É o irmão mais velho de Oxumarê (orixá do arco-íris). Conta-se que Omolu nasceu com o corpo coberto de chagas, purulento e foi abandonado por sua mãe, Nanã, na margem de um rio próximo à praia. Iemanjá ajudou o jovem e lavou o corpo dele com água do mar, por isso seus ferimentos secaram. Apesar de saudável, Omolu ainda carregava cicatrizes por todo o corpo. Por isso, Iemanjá confeccionou uma roupa com fibras de palmeira da costa para cobrir os ferimentos.

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NANÃ

Esse orixá mulher, junto a Euá (orixá das águas correntes) e Iemanjá (orixá das águas salgadas), está ligado à água. Ele representa as águas paradas, como lagos e lagoas. Na mitologia, a importância de Nanã se deve ao fato de ela ter ajudado Oxalá na criação do homem. Conta a lenda que Olorum pediu a Oxalá que criasse o homem para habitar a Terra. Oxalá, no entanto, tentou de diversas maneiras, mas não conseguia realizar essa tarefa. Tentou moldar o homem na areia. Não deu certo. Tentou fazê-lo usando apenas água. Também não funcionou. Por fim, já sem esperança, pediu ajuda ao orixá dos lagos, Nanã. Esta, por sua, desceu até as profundezas de um lago e trouxe lama para Oxalá. Dessa vez, Oxalá conseguiu moldar o homem com destreza. Mas a vida só veio depois que Olorum deu o seu sopro sagrado (Enim) e criou a vida.

EUÁ

Euá representa as águas correntes, como córregos, fontes e rios. Conta a lenda que Euá caminhava todos os dias pela floresta com suas duas filhas para colher lenha. Certo dia, as três estavam na mata e Euá percebera que estava perdida. Caminharam horas e as filhas reclamavam de fome e de sede. Para não vê-los nessa situação, Euá pediu a intercessão de Olorum (deus supremo). Com isso, Euá deitou junto às filhas já moribundas e transformou-se em uma nascente de água. As filhas mataram a sede, a água transbordou e formou uma lagoa que não suportou o volume de água e transformou-se em um rio.

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REPORTAGEM

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OBÁ

Segundo a mitologia, Xangô teve três mulheres: Obá, Oxum e Iansã. Obá não era tão charmosa quanto Oxum, por isso Xangô preferia a segunda. Certo dia, inocentemente, Obá perguntou a Oxum o que fazer para conquistá-lo. “Corte uma de suas orelhas, faça um guisado com ela e dê para Xangô comer”, respondeu Oxum. Após ter comido o amalá (guisado), Xangô perguntou que comida era aquela. E Obá, que havia colocado um pano branco na cabeça, disse: “Veja, é a minha orelha!”. Xangô ficou horrorizado e nunca mais quis saber de Obá. Obá, que representa os rios, dificilmente aparece nos terreiros e briga todas as vezes que encontra Oxum. Suas cores são o vermelho e o amarelo.

OXUM

É o orixá da fertilidade e representa a sensualidade, pois é dengosa e muito vaidosa. Conta-se que, quando os orixás chegaram à Terra, foram feitas inúmeras reuniões a fim de organizar o mundo. Como não era permitida a participação de mulheres, Oxum ficou aborrecida. Os orixás perceberam, então, que nenhuma criança nascia para povoar o planeta. Foram, obviamente, falar com o deus supremo, Olorum. Este perguntou se Oxum participava das reuniões e todos responderam que não. Olorum avisou que sem a presença de Oxum a fertilidade estaria prejudicada. Os orixás decidiram convidá-la a participar das reuniões. Com isso, a Terra começou a ser habitada.

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LOGUM EDÉ

É filho de Oxum e Oxóssi, por isso herdou características dos dois. A lenda conta que, após a separação dos pais, Logum Edé passava a metade do ano nas matas, com o pai, Oxóssi, e a outra metade passava no rio, com a mãe, Oxum. Por causa disso, muitos acreditam que Logum Edé é metade homem e metade mulher. Certo dia, esse orixá foi nadar no rio quando foi puxado para as profundezas por Obá que, guardando raivas antigas de Oxum, queria vingança. Olorum salvou o filho de Oxum e, desse dia em diante, Logum Edé passou a proteger os pescadores.

XANGÔ

É o orixá que recebeu de Olorum o controle do trovão. Xangô representa também a justiça. Sua insígnia é um machado com dois gumes. Quando jovem, foi rei de Oió, cidade africana da etnia iorubá. Por isso, quem o incorpora usa uma coroa. Na mitologia africana, Xangô se apresenta como o marido de Obá, Oxum e Iansã. Na religião católica, Xangô é associado a São Jerônimo – responsável pela tradução da Bíblia, do hebraico para o latim, no século 4 – e a João Batista, primo de Jesus, que o batizou nas margens do rio Jordão.

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IEMANJÁ

Iemanjá é um orixá mulher que ajudou Olorum a criar o mundo. Representada com seios fartos, Iemanjá é mãe dos orixás Obá, Xangô, Ogum, Oxum, Oxóssi, Obaluaê, Exu e outros. Antes da criação do mundo, Olorum vivia no infinito, cercado apenas de fogo. Cansado dessa situação, resolveu liberar suas forças e o resultado fez aparecer uma tormenta de águas. Dessa maneira, foram feitos os oceanos e a parte não inundada tornou-se a terra. Na superfície do mar, Iemanjá consagrou-se rainha do mar e foi coroada por Oxumarê, o arco-íris. Olorum e Iemanjá dominaram o fogo no fundo da terra e deram-no a Aganju, o mestre dos vulcões. O fogo que existia na superfície transformou-se em cinza e fertilizou os campos, dando origem às matas, florestas e bosques. O poder sobre elas foi dada a Ossaim. Nos lugares onde as cinzas foram escassas, criaram-se os pântanos e, com eles, surgiu a peste. Para controlar esse mal, Iemanjá deu a Obaluaê o controle sobre a peste. Por fim, quando tudo estava pronto, Olorum pediu a Oxalá que criasse o homem. E assim foi feito. Por ser a mãe de inúmeros orixás, Iemanjá é associada a Nossa Senhora da Conceição, umas das representações católicas da Virgem Maria, mãe de Jesus. Iemanjá é o orixá mais popular no Brasil. Na Bahia, sua festa acontece no dia 2 de fevereiro. Em Alagoas, o orixá é celebrado no dia 8 de dezembro, Dia de Nossa Senhora da Conceição. A orla de Maceió – especialmente a Praia de Pajuçara – recebe centenas de pessoas que fazem suas oferendas à Rainha do Mar, com pequenos barcos de madeira, flores, perfumes e espelhos. A festa acontece ao longo do dia e as oferendas são lançadas ao mar ao som de atabaques e cantos.

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IANSÃ

Na mitologia iorubá, Iansã foi, primeiramente, esposa de Ogum e, logo depois, viveu com Xangô. Este último deu a Oyá (um de seus nomes) o título de Iansã, que faz referência ao entardecer. Iansã é a deusa dos raios, ventos e tempestades. Na doutrina católica, Iansã foi associada a Santa Bárbara, protetora contra tempestades e trovões.

OXALÁ

Por ter sido o responsável pela criação do homem, atendendo a pedido de Olorum, segundo a mitologia africana, Oxalá foi associado pelo catolicismo a Jesus. A Terra era um grande pântano, com bastante água, onde a vida ainda não existia. Olorum pediu a Oxalá que o pântano fosse transformado em terra firme. Para a realização da tarefa, o deus supremo dos orixás deu a Oxalá uma concha com terra, uma pomba e uma galinha. Oxalá desceu ao pântano e apoiou a concha no chão. A galinha e o pombo ciscaram a areia, espalhando-a até que tudo estivesse aterrado. Oxalá também recebeu de Olorum a tarefa de criar o homem. Só que, dessa vez, por não ter conseguido realizá-lo sozinho, pediu ajuda a Nanã. No candomblé, Oxalá se apresenta de duas maneiras: Oxalufã (moço) e Oxaguian (velho) e tem outros nomes como Orinxalá e Obatalá.

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Há quem atribua ao médium Zélio Fernandino de Moraes, ao incorporar a entidade espiritual Caboclo das Sete Encruzilhadas, a criação da umbanda, em 1908, no Rio de Janeiro. O termo “aumbanda”, que teria dado origem ao nome, significa, em sânscrito, “Deus ao nosso lado”. A religião mescla elementos de cultos de matriz africana, do catolicismo e do espiritismo. Segundo relatos da pesquisadora Diana Brown, no livro

, os homens que participaram da criação da umbanda eram, em sua maioria, pertencentes à classe média do Rio de Janeiro (professores,

ENTRE OS ESPÍRITOS DA UMBANDAadvogados, jornalistas, trabalhadores do comércio etc). Quase todos eram homens e de cor branca. Muitos estavam insatisfeitos com o espiritismo e preferiam as divindades africanas dos cultos de origem africana, apesar de se sentirem incomodados com a presença de alguns rituais do candomblé, como o sacrifício de animais.A partir dessa mistura, é possível observar a presença de elementos da cultura afro (como o culto a alguns orixás já citados anteriormente) e da cultura indígena (como a prensença dos caboclos) nos terreiros de umbanda. Segundo a crença, essas entidades seriam espíritos que voltam para a Terra a

fim de ajudar os seres humanos. “É impossível dizer com precisão quantos espíritos existem. Pode acontecer de uma pessoa morrer hoje e amanhã ela já se tornar um espírito. Além disso, os espíritos mais antigos já estão em outro nível espiritual”, explica o pai de santo Manoel do Xoroquê. Conforme informações do pai de santo Célio Rodrigues, a umbanda foi trazida para Alagoas na década de 50 pelo babalorixá carioca Rubílio e sua esposa, Capitulina. Essa religião consolidou-se, no entanto, apenas com a chegada da também carioca Mãe Jurema, por volta dos anos 60.Confira as entidades mais famosas e as principais falanges – agrupamentos de espíritos – da umbanda.

ZÉ PELINTRA

Zé Pelintra é o espírito de um mestre e representa o malandro. Conta-se que ele nasceu em Bodocó, Sertão de Pernambuco e, ainda jovem, mudou-se para o Recife com a família. José dos Anjos, seu verdadeiro nome, perdeu a mãe e o pai e passou a viver entre os malandros da capital pernambucana. Namorador, esse pernambucano possuía diversas namoradas no Recife e sempre se vestia de maneira peculiar: terno de linho branco, chapéu panamá e sapatos bicolor. Há informações de que ele teria sido encontrado morto, aos 41 anos, em sua casa. Atribuem a morte de Zé Pelintra a uma de suas companheiras, Zulmira.

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PRETOS VELHOS

Essas foram as primeiras entidades a baixar nos terreiros de umbanda, no início do século. Eles representam os espíritos dos escravos e, quando incorporam, gastam seu tempo sentados, fumando seu cachimbo. Entre os pretos velhos mais famosos, pode-se citar Pai João, Maria Conga, Vovó Catarina, Pai Joaquim etc. É comum incluir nessa falange os baianos, que representam os imigrantes nordestinos que morreram nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, principalmente durante meados do século 20. Apesar de muitos pretos velhos terem vivido em senzalas e morrido no tronco, eles trazem para o mundo sabedoria e paciência.

CABOCLOS

Juntamente aos Pretos Velhos, os caboclos foram os primeiros a aparecer nos terreiros e são espíritos indígenas. Quando incorporam, dançam o toré, ritual indígena de etnias do Nordeste, insinuam uma caçada e cantam suas canções, também chamadas de pontos. Em Alagoas, é comum a presença do Caboclo Sete Estrelas e do Caboclo da Lua. Aquele, quando se manifesta, canta este ponto: “Sete Estrelas é um Caboclo de pena/ Foi Zambi (deus) quem me curou/ Na minha frente eu trago sete estrelas/ Na minha mão eu trago arco e flecha”.

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CIGANOS

Essa falange representa os espíritos de homens e mulheres do povo cigano. Muitos foram andarilhos durante os séculos 13,14 e 15. Quando incorporam nos terreiros, simulam nas mãos o toque das castanholas e falam, em alguns casos, o esperanto. Os ciganos são um povo nômade oriundo da Índia e marcado por inúmeras levas de imigração. Entre os anos 500 e 1000 d.C., foram obrigados a migrar para a Europa. Durante a Segunda Guerra Mundial, foram perseguidos e colocados em campos de concentração pelos nazistas. Hoje, apesar de o Brasil possuir cerca de 800 mil ciganos (dados estimados pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2011), concentram-se na Europa, em países como a Espanha, Romênia e Bulgária.

MARUJOS

Os espíritos dos marinheiros e náufragos são representados através dessa falange. Apesar de raros nas festas e reuniões umbandistas, esses espíritos, quando incorporam, simulam a embriaguez causada neles pelo balanço do mar. Entre os mais conhecidos estão Maré Mansa e Zé do Leme.

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CRIANÇAS

Essas entidades representam os espíritos de pessoas que morreram na infância. Também podem ser chamadas de ibejis. A festa dedicada às crianças, nas religiões afro-brasileiras, é celebrada em 27 de setembro por causa dos gêmeos bíblicos associados a elas, Cosme e Damião. Nesse dia, os terreiros de umbanda distribuem guloseimas como bolo, balas e pipocas. As crianças incorporadas degustam as guloseimas e brincam. Em cidades como o Rio de Janeiro, é comum, no dia 27, as pessoas oferecerem doces às crianças pelas ruas. No catolicismo, Cosme e Damião viveram por volta de 300 d.C. e se tornaram santos por exercerem gratuitamente a Medicina.

BOIADEIROS

Essa falange representa o espírito daqueles que morreram na lida diária com o gado. Quando incorporam nos terreiros, simulam a “pega” do gado, empunham o laço, colocam o cigarro de palha na boca e cantam toadas. Entre os mais populares, destacam-se os boiadeiros Chico da Porteira, Zé do Laço e João de Aruanda.

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REPORTAGEM

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POMBAGIRA

É consenso afirmar que Pombagira pertence à falange dos Mestres. Mesmo assim, essa entidade possui diferentes nomes e tipos. Em Alagoas, conta-se que a primeira Pombagira a baixar nos terreiros de umbanda foi Tata Mulambo. Em meados dos anos 1950, o espírito incorporou em Mãe Jurema, importante mãe de santo do Rio de Janeiro que visitava Alagoas nesse período. Exatamente por essa variedade, é difícil afirmar detalhes de suas vidas. Uma delas, Figueira Maria, nasceu em Roma, na Itália, e apareceu nos terreiros de Alagoas por volta dos anos 70. Segundo o pai de santo Júlio Alexandre, essa entidade, ao incorporar nele, perguntou a um prefeito da cidade na época se ele falava alemão. O político, habilidoso no idioma, respondeu afirmativamente. Conversaram um pouco e, ao se despedirem, a Pombagira Figueira Maria desferiu insultos ao político na língua tupi guarani.

FONTE

As informações trabalhadas nesta reportagem foram fornecidas pelos pais de santo Júlio Alexandre de Araújo Filho, Manoel do Xoroquê e Célio Rodrigues. Foram consultadas ainda as seguintes obras: , de Reginaldo Prandi (Companhia das Letras,2001); , de Eneida Leal (Spala, 1988);

, de Zaydam Alkmim (Editora Pallas,1992);

(Summus editorial, 2005); , de Paulo Newton de Almeida (Editora Pallas, 2006)

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