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O QUE SE TEM SOBRE O PROCESSO DE BEATICAÇÃO DE PADRE DEHON? Primo Corbelli Na apresentação deste trabalho publicado na revista uruguaia “Umbrales” (Montevidéu) o autor inicia seu escrito com as seguintes frases: “Padre Dehon: a beatificação bloqueada. No último ano de seu pontificado, João Paulo II confirmou e anunciou a beatificação de Padre Dehon, que deveria realizar-se no dia 24 de abril de 2005. Nessa mesma data assumiu o pontificado, o novo papa Bento XVI que suspendeu a dita beatificação. Passados cinco anos, apresentamos aqui aos nossos leitores o que aconteceu e qual é a verdade história sobre o padre Dehon, uma exemplar figura sacerdotal para nossos tempos”. Devido à morte do papa João Paulo II, a beatificação de Dehon foi temporariamente suspendida. Os superiores da congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos), deixaram passar um tempo prudencial antes de solicitar uma nova data e lugar para a beatificação. Mas, inesperadamente, surgiram novos obstáculos. O diário católico francês “La Croix” publicou depois do anúncio da beatificação de Dehon que o conhecido historiador Jean-Dominique Durand havia alertado aos bispos franceses sobre a existência de “parágrafos anti-semitas” nos escritos de Dehon e que a Igreja “podia ter problemas com este processo de beatificação”. A notícia foi coletada no dia 24 de março pela agência judaica “Metula New Agency” (MENA) que publicou em seguida alguns artigos, com citações de Dehon, do jornalista Luc Rosenzweig que, mesmo reconhecendo em Dehon “um indubitável divulgador do cristianismo social de Leão XIII”, o acusava de “anti-semitismo desenfreado” e de unir, ao mesmo, “um ódio não menos poderoso contra a maçonaria”. Rapidamente a campanha judaica contra a beatificação se estendeu pela França, Estados Unidos e Israel, inclusive através das embaixadas. Alguns líderes do mundo judeu compararam a beatificação de Dehon com a de Pio XII, ameaçando congelar qualquer diálogo com a Igreja se a dita beatificação se realizasse. Obviamente, assinalou o rabino chefe de Roma Ricardo di Segni, “a beatificação de Pio XII é objetivamente um obstáculo ao diálogo com a Igreja muito maior que a beatificação de Dehon”. O presidente da Conferência Episcopal Francesa, Jean-Pierre Ricard, de Bordeaux, escreveu então uma carta a Bento XVI pedindo a suspensão da beatificação de P. Dehon em razão da postura deste frente aos judeus. A carta foi assinada também por três cardeais e pelo arcebispo de Paris, André Vingt-trois. Na Carta se reconheciam as qualidades espirituais do P. Dehon, sua fecundidade pastoral e seu compromisso pessoal para promover uma democracia social fiel às orientações do papa Leão XIII. Ao mesmo tempo, assinalava-se que uma parte dos escritos de P. Dehon não parecia ter sido estudada, pelos peritos encarregados deles, de maneira detalhada. Os textos questionados encontram-se sobretudo no Manual Social, no Catecismo Social e em uma das chamadas Conferências Romanas. Todos eles, segundo o card. Jean-Pierre Ricard, prejudicariam gravemente as relações da Igreja com os judeus se fosse efetuada a comentada beatificação; e que, portanto, deveria suspender-se. Os bispos franceses, em geral, tinham que se reconciliar com judeus devido à atitude do episcopado francês durante a Segunda Guerra Mundial. A Conferência Episcopal Francesa, ademais, não queria outra polêmica depois do recente debate acerca de uns documentos que testemunhariam a educação cristã de crianças

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O QUE SE TEM SOBRE O PROCESSO DE BEATICAÇÃO DE PADRE DEHON? Primo Corbelli

Na apresentação deste trabalho publicado na revista uruguaia “Umbrales” (Montevidéu) o autor

inicia seu escrito com as seguintes frases: “Padre Dehon: a beatificação bloqueada. No último ano de seu pontificado, João Paulo II confirmou e anunciou a beatificação de Padre Dehon, que deveria realizar-se no dia 24 de abril de 2005. Nessa mesma data assumiu o pontificado, o novo papa Bento XVI que suspendeu a dita beatificação. Passados cinco anos, apresentamos aqui aos nossos leitores o que aconteceu e qual é a verdade história sobre o padre Dehon, uma exemplar figura sacerdotal

para nossos tempos”. Devido à morte do papa João Paulo II, a beatificação de Dehon foi

temporariamente suspendida. Os superiores da congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos),

deixaram passar um tempo prudencial antes de solicitar uma nova data e lugar para a beatificação. Mas, inesperadamente, surgiram novos obstáculos. O diário católico francês “La Croix” publicou depois do anúncio da beatificação de Dehon que o conhecido historiador Jean-Dominique Durand havia alertado aos bispos franceses sobre a existência de “parágrafos anti-semitas” nos escritos de Dehon e que a Igreja “podia ter problemas com este processo de beatificação”.

A notícia foi coletada no dia 24 de março pela agência judaica “Metula New Agency” (MENA) que publicou em seguida alguns artigos, com citações de Dehon, do jornalista Luc Rosenzweig que, mesmo reconhecendo em Dehon “um indubitável divulgador do cristianismo social de Leão XIII”, o acusava de “anti-semitismo desenfreado” e de unir, ao mesmo, “um ódio não menos poderoso contra a maçonaria”. Rapidamente a campanha judaica contra a beatificação se estendeu pela França, Estados Unidos e Israel, inclusive através das embaixadas. Alguns líderes do mundo judeu compararam a beatificação de Dehon com a de Pio XII, ameaçando congelar qualquer diálogo com a Igreja se a dita beatificação se realizasse. Obviamente, assinalou o rabino chefe de Roma Ricardo di Segni, “a beatificação de Pio XII é objetivamente um obstáculo ao diálogo com a Igreja muito maior que a beatificação de Dehon”. O presidente da Conferência Episcopal Francesa, Jean-Pierre Ricard, de Bordeaux, escreveu então uma carta a Bento XVI pedindo a suspensão da beatificação de P. Dehon em razão da postura deste frente aos judeus. A carta foi assinada também por três cardeais e pelo arcebispo de Paris, André Vingt-trois. Na Carta se reconheciam as qualidades espirituais do P. Dehon, sua fecundidade pastoral e seu compromisso pessoal para promover uma democracia social fiel às orientações do papa Leão XIII.

Ao mesmo tempo, assinalava-se que uma parte dos escritos de P. Dehon não parecia ter sido estudada, pelos peritos encarregados deles, de maneira detalhada. Os textos questionados encontram-se sobretudo no Manual Social, no Catecismo Social e em uma das chamadas Conferências Romanas. Todos eles, segundo o card. Jean-Pierre Ricard, prejudicariam gravemente as relações da Igreja com os judeus se fosse efetuada a comentada beatificação; e que, portanto, deveria suspender-se. Os bispos franceses, em geral, tinham que se reconciliar com judeus devido à atitude do episcopado francês durante a Segunda Guerra Mundial.

A Conferência Episcopal Francesa, ademais, não queria outra polêmica depois do recente debate acerca de uns documentos que testemunhariam a educação cristã de crianças

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judias francesas entregues a famílias católicas e conventos durante a Segunda Guerra Mundial. Esta polêmica havia estourado no final do ano anterior por supostas instruções do Vaticano de não devolver crianças judias batizadas depois da guerra, a fim de garantir-lhes a educação cristã.

A oposição dos bispos franceses à beatificação de P. Dehon agradou efetivamente aos judeus franceses e talvez pôde servir para fazer esquecer outras coisas. O diretor geral do Conselho que representa as instituições judaicas na França, Haim Musicant, se alegrou com eles: “Havia sido um obstáculo para o diálogo com a Igreja Católica”.

Chama atenção a opinião apressada, sem tomar-se o tempo de informar-se melhor sobre as objeções do historiador Durand e sobre os numerosos escritos do P. Dehon, por parte dos bispos franceses. A Conferência Episcopal, depois da carta ao Vaticano não voltou a pronunciar-se.

A nível diocesano, pronunciou-se, de uma forma equilibrada, o bispo de Soissons, Marcel Herriot, com um comunicado assinado também pelos Dehonianos de sua diocese. O bispo defende a figura e a obra do P. Dehon, que foi um dos sacerdotes mais destacados de sua diocese, mas, reconhece como “absolutamente inaceitáveis” certas expressões suas sobre os judeus. Entretanto, explica como as atitudes de P. Dehon se deviam à indignação que sofria pela exploração dos trabalhadores, por parte dos que eram donos do capital e dos bancos. E convida a não julgar, com nossa mentalidade e sensibilidade de hoje, acontecimentos de outras épocas; as expressões do P. Dehon são o espelho do pensamento da Igreja e da sociedade daquele tempo e o “reflexo moderado de uma opinião pública ecoava na grande imprensa”.

Bento XVI recebia, por outra parte , no dia 9 de junho, o Comitê Internacional Judeu sobre as Consultas Inter-religiosas, que nucleia os organismos judeus mais importantes a nível mundial, e frente a eles declarava “querer seguir o caminho aberto por meus antecessores para melhorar as relações com o povo judeu” e lutar contra o anti-semitismo. No encontro, os líderes judeus fizeram presente sua oposição à beatificação de Pio XII e também à de P. Dehon. Frente à postura da Conferência Episcopal Francesa e dos líderes judeus, o Papa nomeou uma Comissão provisória formada pelos cardeais José Saraiva Martins, Paul Paupard, George Cottier, Roger Etchegaray, os arcebispos Angelo Amato e Leonardo Sandri, os Dehonianos P. Ornelas Carvalho e P. Evaristo Martínez de Alegría, que se reuniram no dia 24 de junho de 2005, mas, não chegaram a nenhuma conclusão. Nesse encontro, cada qual apresentou seu ponto de vista, sem discussão. Os cardeais franceses e o cardeal suíço Cottier, baseando-se nas informações recebidas pela Conferência Episcopal Francesa e as notas do historiador Durand, eram contrários à beatificação. Ao finalizar o encontro, decidiu-se a constituição de uma comissão de historiadores para estudar o chamado “anti-semitismo do P. Dehon” no contexto histórico de seu tempo. Esta comissão se reuniu mas se desconhecem seus resultados.

Por sua parte, a Comissão Teológica dos Dehonianos, em um comunicado de imprensa de junho de 2005, aclarava que todas as obras de P. Dehon, inclusive as passagens incriminadas, haviam sido publicadas e submetidas ao exame dos censores do Vaticano, sem a menor “camuflagem” como pretendia o diário “Le Monde”. Trata-se de parágrafos, segundo a Comissão, que se referem a um muito limitado período histórico da vida de P. Dehon e “são só uma voz dentro de muitas outras” naquele tempo. São expressões “inseparáveis da análise sócio-política que o move a buscar as causas da injustiça social. Serve-se muito facilmente sem dúvida e de maneira não crítica da informação da época.

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Enquanto à questão judaica não foi nada original em relação ao que comumente se opinava naquela época, mas não foi agressivo, nem manifestou ódio pessoal aos judeus”. A polêmica anti-judaica de Dehon “nunca foi considerada por ninguém como uma característica de sua personalidade, que se distinguia pela moderação”. A Comissão reconhece que “os textos questionados são lamentáveis e insuportáveis para nossa mentalidade de hoje. Mas, seria injusto reduzir a personalidade do autor a este aspecto totalmente secundário”.

Enquanto o tema da beatificação ia-se dissolvendo pelos corredores do Vaticano, no dia 6 de novembro de 2006 chegava a decisão do Papa de suspender por tempo indeterminado a cerimônia da beatificação, reafirmando, no entanto, que o processo de beatificação havia sido definitivamente concluído e aprovado. Na mensagem, se explicava que a decisão não era porque se colocava em dúvida “a luminosa figura de P. Dehon nem sua preciosa atividade apostólica, continuada pela Congregação por ele fundada”, senão por razões de oportunidade. O que havia acontecido?

POR QUE O VATICANO CONGELOU A BEATIFICAÇÃO?

Apresentamos distintas motivações que podem ajudar a compreender a situação. Sabe-se que os seiscentos mil judeus da França formam um grupo de pressão muito forte. Sabe-se, também, que o card. Jean-Marie Lustigier, agora falecido, de origem judaica e personalidade de grande transcendência na Igreja, havia chegado a bloquear o processo de beatificação em Roma de Isabel, a Católica por recriminar-lhe a expulsão dos judeus. Sabe-se da desconfiança inicial dos judeus sobre este novo Papa. Conhecem-se os vaivens da beatificação do papa Pio XII cujo processo chegou a uma positiva conclusão, mas que o atual Papa também bloqueou até que em dezembro passado declarou-o venerável. O P. Peter Gumpel, postulador da causa de Pio XII, disse claramente: “Este Papa quer fazer tudo o que é possível para melhorar as relações com os judeus”, que seriam gravemente comprometidas no caso da beatificação de Pio XII.

O rabino de Haifa expressou-se publicamente no Sínodo de 2008 no Vaticano. Os judeus exigem além disso, no caso de Pio XII, que sejam abertos os arquivos vaticanos da época, os que conteriam uns dois milhões de documentos e dezesseis milhões de cartas vinculadas com a fase da Shoá. O Papa, por sua vez, e o demonstrou com sua viagem a Israel, quer uma aproximação com os judeus e uma aceleração das negociações com o Estado de Israel.

Estas negociações, muito delicadas e demoradas, fazem-se urgentes a fim de assegurar ali a presença da Igreja Católica. Há problemas de propriedades, regime fiscal, personalidade jurídica, dificuldades para os vistos de sacerdotes e religiosos.

O mais grave é que os cristãos estão fugindo da Terra Santa e o Papa quer assegurar um futuro para eles, fortalecendo o processo de paz na zona.

Nem todos, no entanto, concordam, ainda dentro da Igreja, com esta linha que pareceria deixar-se pressionar por uma estratégia judaica que instrumentaliza questões religiosas e históricas para obter determinadas vantagens políticas ou simplesmente distrair a atenção sobre Israel, mostrando que respeita os direitos humanos para com seus vizinhos, os palestinos.

O fato de Pio XII ter sido declarado venerável gera a esperança de que se avance no processo e que todos entendam que a beatificação de Pio XII, como a dos demais, é um

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assunto interno da Igreja e os critérios para a beatificação, como foi visto no caso de Pio XII, não se referem a suas opções políticas ou à valorização do alcance histórico de suas decisões, senão ao seu testemunho de vida cristã.

O Superior da Congregação, o português P. José Ornelas Carvalho, acatou com serenidade a decisão do Papa, mas aclarou que estes escritos do P. Dehon eram conhecidos e “nunca interpretamos como expressão , e menos ainda como convite a cultivar sentimentos ou atitudes de anti-semitismo. Não negamos seu conteúdo negativo, limitado e deplorável, sobretudo à luz dos trágicos feitos do século passado” (refere-se ao massacre dos judeus por parte dos nazistas). O P. Ornelas questionou o diário francês “Le Monde” por afirmar que o papa Leão XIII se distanciou de Leão Dehon e recorda como em 1897 o nomeou para um cargo de extrema confiança: consultor da Congregação romana do Índice.

O mesmo Papa o defendeu: “Que se saiba que aprovo suas posições, pois lhe confio a função de quem tem que julgar a doutrina dos demais”. Ornelas alegou também que expoentes judeus franceses e parte da imprensa internacional haviam difamado a personalidade de Dehon “utilizando textos totalmente tirados do contexto e citados de maneira mutilada para acentuar-lhes o negativismo”. Finalmente, em uma enérgica carta a seu instituto do dia 13 de novembro de 2006 afirmou: “Não podemos absolutamente aceitar acusações de anti-semitismo e racismo contra P. Dehon, tal como foram apresentados na imprensa e inclusive na argumentação de homens da Igreja. Poder-se-á não estar de acordo sobre a análise que ele fez da sociedade de então, mas não é lícito adulterar seu pensamento cujo objetivo não eram nem os judeus nem os maçons, mas a justiça social”.

A Congregação inteira acatou a decisão do Vaticano e se disse mais interessada em restabelecer a verdade histórica sobre a figura do P. Dehon do que na beatificação. Para que a suspensão por tempo indeterminado não desse cabimento a injustificadas sombras de dúvida sobre a pessoa e as obras de P. Dehon que, já em sua vida, teve que sofrer muitas incompreensões, foi multiplicado estudos e congressos.

O mais importante dos congressos talvez tenha sido o de Paris, dos dias 21 e 22 de setembro de 2007, sobre o tema: “O catolicismo social e a questão judaica; o caso Leão Dehon”. Uma dezena de relatores expuseram, todos professores de universidade e em sua maioria especialistas de história contemporânea. Não faltaram explícitas reservas, em particular, para certas afirmações de Dehon pronunciadas em uma conferência pública em Roma no dia 11 de fevereiro de 1897 sobre “Judaísmo, capitalismo e usura” Esta conferência se deu no contexto de outras quatro às quais Dehon desenvolveu os temas da “Crise socioeconômica na França e Europa”, “Verdadeiras causas e remédios do mal-estar social contemporâneo”, “Socialismo e anarquia”, “Ação social da Igreja”. Dehon era conhecido a nível de Igreja como uma das principais figuras na França, primeiro dos Católicos Sociais (com La Tour Du Pin, Albert de Mun, Leon Hormel...) e depois da incipiente Democracia Cristã; era um dos chamados “sacerdotes democratas” que queriam levar o compromisso social ao campo político e pediam a intervenção do Estado para leis mais justas. Apresentava-se, além disso, como perito em Doutrina Social da Igreja e grande divulgador da “Rerum Novarum” e demais encíclicas de Leão XIII. Falando em Roma sobre judaísmo, capitalismo e usura, o P. Dehon condenou, por exemplo, a “usura voraz” (que era comumente atribuída aos judeus). Dois meses depois, era nomeado Consultor do Índice, como um prêmio a essas conferências ministradas a cardeais, bispos e altas personalidades.

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RESULTADOS DE UM CONGRESSO

Os resultados do Congresso de Paris foram publicados em um livro, editado pelo P. Yves Ledure. Unanimemente os participantes deste Congresso comprovaram que o P. Dehon não pode absolutamente ser tido como anti-semita no sentido racial que este termo acarreta hoje; ele não tinha nada contra os judeus enquanto judeus. Não é correto identificar o que se chamava “questão hebraica ou judaica” no final do século XIX, com o anti-semitismo racial e irracional do século XX nem tampouco interpretar esse anti-semitismo como causa do anti-semitismo nazista. Obviamente, é preciso reconhecer que este último tampouco nasceu por simples geração espontânea. Se é falado de “anti-semitismo” por parte dos católicos sociais da França do final do século XIX (este termo já era utilizado naquele tempo), não é por ódio a um povo ou uma raça. O próprio P. Dehon afirma: “Nós não somos partidários de um anti-semitismo extremista; não pedimos sua expulsão ou a confiscação de seus bens”. Os Católicos Sociais queriam, por motivos sócio-econômicos e políticos, que se limitassem alguns direitos dos judeus. E, isto foi estabelecido no congresso católico de Lyon de 1896; pedia-se a exclusão dos judeus do ensino universitário, de cargos na Justiça, na administração pública e no exército, tendo em vista que se propunham à reforma das leis sobre sociedades anônimas, monopólios e acumulação. Estas propostas inspiravam-se na necessidade, que advertiam, de defender-se; era a época do “capitalismo selvagem”, de Rotshild, Pereire, Fould. A usura naquele tempo havia chegado a manejar interesses exorbitantes, até 40%. Obviamente, as posturas dos católicos sociais hoje nos parecem deploráveis, mas eram comuns nessa época e o P. Dehon não soube fazer uma avaliação crítica das mesmas. Escreve um estudioso de P. Dehon, o dehoniano P. André Perroux: “Se Dehon foi um apóstolo de vanguarda em muitos aspectos, enquanto à questão judaica teve os preconceitos de seu tempo, de seu ambiente”. A mesma Democracia Cristã nos anos que vão de 1894 a 1903, na qual Dehon figurava como uma de suas personalidades mais moderadas segundo o historiador J. M. Mayeur, considerava como agentes principais do capitalismo: os judeus e os maçons.

Foi importante recordar no recente Congresso de Paris como a vocação social de Dehon surgiu de sua experiência sacerdotal nos bairros da cidade industrial de San Quintín (norte da França), muito antes de ser lançada a “Rerum Novarum”. Foi ali onde nasceu sua aversão pastoral aos exploradores e usurários; para defender aos mais fracos ele denunciava a presença de lobbies entrincheirados nos bancos, na alta financia, no comércio. Não era apenas Karl Marx, como recordava no Congresso o P. Jean-Yves Calvez, quem declarava que “o fundamento moderno do judaísmo é o negócio e seu Deus o dinheiro” mas também um católico, grande defensor dos judeus no caso Dreyfus, como Charles Peguy, que denunciava a convivência do judaísmo e capitalismo como “aliados na construção do reino do dinheiro”. Por outro lado, o historiador Jacques Prevotat apontou uns dados interessantes através dos arquivos vaticanos. O anti-semita violento que queria a exclusão étnica e a marginalização total dos judeus naquele tempo, era Charles Maurras com sua “Ação Francesa”. O P. Dehon pelo contrário apoiou abertamente o movimento “Le Sillón” (=o sulco) de Marc Sangnier em contraposição ao outro; e quando foi nomeado acessor do Papa para a censura dos livros (na Congregação do Índice), condenou decididamente o anti-semitismo de Maurras como anticristão.

Dehon também foi acusado de ser amigo de Eduard Drumont, outro anti-semita autor de: “La France juive” (=a França judaica). O livro de Drumont teve 200 edições e o autor, que se declarava católico, teve uma turbulenta intervenção no congresso de Lyon de

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1896. O mesmo Dehon escreve em seu diário que no congresso do ano seguinte apreciou-se um clima totalmente diferente, justamente graças à ausência de Drumont. Dehon cita-o muito pouco em seus escritos. Afirma haver lido seu livro: “É a obra de um jornalista. O tom exagerado e violento, ainda que no fundo diga algumas verdades”. Quando fala de “verdades”, refere-se ao que, segundo ele, passava no campo sócio-econômico e político. Diz Dehon: “Nós consideramos o anti-semitismo como o despertar do espírito cristão, sempre que fique no âmbito da legítima defesa contra a usura e a exploração”. No caso Dreyfus (um judeu condenado injustamente ao exílio na Guiana) o P. Dehon, em um momento em que eram muito poucos os católicos que o faziam, pediu a revisão do processo.

Portanto, pode-se criticar Dehon por haver supervalorizado o peso dos judeus na sociedade daquele tempo, por sua análise deficiente e superficial da sociedade, mas não se pode desconsiderar seu esforço para assinalar as causas da miséria das massas que antes só se aliviavam com os atos beneficentes. A nível teológico, tampouco se pode julgar o pensamento do P. Dehon sobre os judeus com os critérios do Concílio Vaticano II. Como todos os católicos sociais de sua época, era de uma linha doutrinal intransigente e querendo reaver para a Igreja uma sociedade cristã, o P. Dehon via o fenômeno judaico em estreita relação com “os males da sociedade” e com os “inimigos da Igreja”: protestantes, revolução francesa, capitalismo, maçonaria, anticlericais, socialistas. Não se pode esquecer que ao chegar ao poder em 1879, o Partido Republicano enfrentou a Igreja, fortemente inclinada para a monarquia apesar das instruções de Leão XIII que a convidava a aderir à república. O anti-clericalismo republicano era apoiado por positivistas, maçons e judeus; e esta batalha anticlerical levou, mais tarde, a uma aberta perseguição contra a Igreja com Waldeck-Rousseau e Emile Combes. Como todos em sua época, o P. Dehon acreditava no “deicídio” ["matar Deus" (do Latim Deus, "Deus" + -cida, "matar"). Grifo nosso] dos judeus, sua substituição pelo “novo Israel” (a Igreja) ainda mantendo a esperança de um “retorno” para o final dos tempos na perspectiva do capítulo 11 da Carta aos Romanos. É bom recordar que todavia em 1904 o Papa Pio X ao receber Theodor Herzl, que desejava obter seu reconhecimento para o movimento sionista, ele sentiu que a Igreja não podia reconhecer o povo judeu nem suas aspirações na Palestina, já que os judeus não haviam reconhecido a Cristo.

Fazendo uma síntese histórica da “invasão judaica” o P. Dehon afirmava. “O judeu, inimigo do cristianismo, amante do ouro e usurário graças aos princípios do Talmud, havia sido marginalizado pela Cristandade e já não podia fazer dano. Havendo esquecido a Igreja seu papel social, o judeu pôde chegar ao poder, especialmente econômico e saciar seu ódio para com o cristianismo conduzindo as sociedades secretas anticristãs e conquistando o poder através do capitalismo financeiro. Portanto a reação atual contra os judeus, talvez algo exagerado, é bom e permitirá uma volta aos princípios cristãos”.

Estas frases realmente fortes explicam-se porque, segundo Dehon, os judeus estão unidos pelo ódio contra Cristo; não perdoam os cristãos pela humilhação secular que lhes fizeram sofrer; - sempre segundo Dehon – são movidos pela sede de ouro e a ambição do domínio universal, o que dava forma às suas esperanças messiânicas. Por outra parte, Dehon afirma que não se devem desprezar os judeus: “Deus ainda os ama por causa de seus pais e estão destinados a voltar. Deus não se arrepende de seus dons nem de seu chamado”. Vê como algo muito positivo o primeiro Parlamento das Religiões que se realizou em Chicago, em 1893, onde “judeus, protestantes e católicos reconheceram juntos

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o Antigo Testamento, proclamaram sua fé em um Deus único e criador e testemunharam a originária unidade do gênero humano”. O povo judeu “é um povo que é testemunha da realidade de promessas divinas..., portador de um testemunho teológico necessário à Igreja. É preciso praticar a tolerância com seu culto e não obrigar seus filhos a serem batizados. As criança judias não devem ser pressionadas a batizar-se; seria contrário à justiça natural”.

No caso Mortara (1858) e no caso Coen (1864), crianças judias haviam sido batizadas com a autorização de Pio IX, agora beato, sem o consentimento de seus pais. O P. Dehon afastou-se desta prática. Dizia: “A Igreja não tem nenhuma hostilidade pelas pessoas singulares dos judeus. Nós desejamos sua conversão e sua salvação, porque foram os depositários da fé em Deus e no Messias; foram os custódios das Sagradas Escrituras. São um povo providencial. Deus não os abandonou para sempre. Terão uma grande missão no fim dos tempos”. O P. Dehon queria que as grandes personalidades do Antigo Testamento estivessem presentes, inclusive, no calendário litúrgico cristão. Se em algum momento promoveu certa repressão contra os judeus, esclarece ele mesmo, “não foi por razões religiosas, senão patrióticas”. Estamos, portanto ,muito longes não só do anti-semitismo propriamente dito mas do anti-judaísmo religioso dos “pérfidos judeus”, sempre que se lêem os escritos de Dehon em seu conjunto.

CONCLUSÃO

Os escritos incriminados de P. Dehon são uma pequeníssima parte de sua imensa

obra de escritor, jornalista e conferencista. O interesse por este tema se reduz, em sua longa vida (82 anos), a um período de apenas 14 anos: de 1889 a 1903, ano no qual o novo papa, Pio X, proibiu aos sacerdotes escrever sobre temas sociais sem passar pela censura eclesiástica. Este período de sua vida coincide justamente com o período de maior intensidade de seu apostolado social. Os livros nos quais se podem encontrar as expressões incriminadas são tão somente quatro e todos dessa época: “Manual Social Cristão” (1894), “A usura no tempo presente” (1895), “Catecismo Social” (1894) e “Renovação Social cristã” (1900). O campo específico dos estudos e da atividade de Dehon é o campo social, não a questão judaica. Inclusive o aspecto social em Dehon é tão somente uma conseqüência de sua espiritualidade; ele queria fazer reinar o Coração de Cristo “nas almas e na sociedade”. O P. Dehon foi, fundamentalmente, um mestre de espiritualidade, um místico que colocava na contemplação do Coração de Cristo toda sua razão de ser. Seu carisma: ser profeta do amor e da misericórdia de Deus para com os pequenos.

Estes escritos eram conhecidos pela Congregação, mas considerados como muito secundários e frutos de uma época; o eram também pelos historiadores (Airiau, Pierrard, etc) e mesmo pelo Vaticano. O card. José Saraiva Martins, que esteve à frente da Congregação pela Causa dos Santos e examinando os escritos, ao deixar o cargo, no final de 2008, declarava em uma entrevista: “Creio que se trata de acusações injustas e anacrônicas, espero que quanto antes o P. Dehon chegue à honra dos altares”. Há, sem dúvida, violência no tom e excessos nas apreciações de Dehon, no qual, no entanto, era chamado “le très bon pere” (o padre muito bom); na realidade veremos que são fruto de seu zelo apostólico numa batalha que, naquele tempo, havia indício de cruzada. Na vida e na obra de P. Dehon, como na de todos os santos, não faltaram erros e limitações.

São os erros e limitações daqueles homens e mulheres que sujam as mãos no compromisso de melhorar a história da humanidade.

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CORBELLI, Primo. Revista “El Reino del Corazón de Jesús” – setembro de 2010. p. 19-

27. Tradução: Sem. Thiago Pereira (Brusque-SC)