O QUE É SER LEITOR
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22/fev./2015, 16h12min
Afinal, o que é ser leitor?
¿Por qué no estudian directamente los textos?Si estos textos les agradan, bien; y si no les agradan, déjenlos,
ya que la idea de la lectura obligatoria es una idea absurda:
tanto valdría hablar de felicidad obligatoria.
Jorge Luis Borges, em Siete noches
Por Carlos Alberto Gianotti
No Jornal Rascunho
Em seu recente livro A civilização do espetáculo (Objetiva), Mario Vargas Llosa é
concludente: vivemos um tempo de banalização da cultura, um tempo de metamorfose
daquilo que se entendia por cultura, na época em que era alimentada e preservada por
uma elite (cultural) e a ela mesma se destinava. Diz Llosa que essa concepção de cultura
inapelavelmente acabou, e que estamos em plena civilização do espetáculo, do
entretenimento fútil, do falatório mediante vocabulário glamourizado e da irrelevância da
criatividade estética. Seguindo-se um pouco além por esta trilha do Nobel peruano, pode-
se perceber a mencionada espetacularização também na atividade empresarial, na
educacional escolarizada e na esportiva, amadora ou profissional. Enfim, bem seanalisando, constatar-se-á que tudo se move visando um espetáculo sempre alimentador
de vaidades.
Nunca encontrei alguém instruído que, pelo menos da boca para fora, não considerasse a
leitura como essencial para a vida das criaturas. A leitura aparece, para além do mero
entretenimento, como fator de aprimoramento individual, de formação da pessoa humana
integral. Muitos especialistas dizem que, suplementarmente, pela leitura, além de outros
proveitos, o ledor torna sua imaginação mais frenética; isto é, quanto mais se lê, mais
imaginativo se fica, ou os que lêem bastante restam com a imaginação mais arguta do que
aqueles que pouco ou nada lêem. E ter imaginação fértil, dizem, é um refrigério para o
intrapsíquico. Em outras palavras, a capacidade imaginativa das criaturas precisa serirrigada com doses de leitura, para crescer como uma planta. Uma tal quantificação
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parece-me ela mesma imaginária, coisa que é bonita de se dizer, mas que não se pode
efetivamente aferir.
Formar leitores?
Algumas semanas atrás, o reputado jornalista, editor e escritor espanhol Juan Cruz,
quando esteve em Buenos Aires para o lançamento do último de seus livros, em entrevista
ao caderno Ñ , do Clarín, saiu-se com esta: “ La tarea del editor es decirle a la gente por qué
debe ler um libro y no irse a la playa”. Parecem-me tais ações irrelacionáveis (ler ou ir à praia;
soa como se a atividade de ler estivesse acima de qualquer outro fazer), mas
indiscutivelmente, como assertiva, rende dividendos na comunidade bem-comportada dos
intelectuais do bem. São as verdades que mentem. Vargas Llosa, ao falar na civilização do
espetáculo, identifica-a também na miríade de manifestações absurdas, a exemplo da de
Cruz, tidas como “culturais”, com que somos bombardeados continua e impiedosamente.
Conforme pude constatar durante mais de trinta anos de magistério, sempre foi intenção
de meus colegas docentes das disciplinas de Língua Portuguesa e de Literatura fazer com
que seus alunos se tornassem leitores, apreciadores da leitura. Continuam eles ainda hoje
a asseverar pelas salas de aula, num psitacismo que enuncia uma verdade que lhes é
válida, que é indispensável ler, porque é por meio da leitura que se lapida o espírito crítico,
se aprimora o redigir, se acura o bom gosto e se estará apto a exercer com discernimento
a cidadania — seja lá isso o que for. Pode-se, entretanto, constatar que esses professores,
no que se refere a tal intenção, têm alcançado o mais absoluto insucesso: basta notar que
38% dos brasileiros com curso superior, hoje, não conseguem entender um texto simples
ou escrever algumas linhas sem solecismo e de forma coerente (Indicador de
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Analfabetismo Funcional 2012, dado pelo Instituto Paulo Montenegro, ONG Ação
Educativa), como um bilhete para (des)marcar um churrasco com amigos — que acaba
por sair em garranchos e ao estilo semântico daquele doSamba do Arnesto, de Adoniran
Barbosa. (Nessas condições, leitor destas linhas, noto que há uma nada desprezível
probabilidade de o seu médico ter-lhe prescrito aquela medicação sem haver entendido
perfeitamente o que diz a bula.)
Homenagem de Jonathan Burton ao quadro de George Seurat “Uma Tarde de Domingo na Ilha de
Grande Jatte“.
Ao mesmo tempo de magistério, pude também constatar que colegas professores de
Educação Física, alguns deles mesmos com sobrepeso corporal e que não arredavam pé
da vida sedentária (porque isso não depende apenas de uma vontade racional), viviam a
incentivar seus alunos à prática de esportes e de exercícios físicos para a vida saudável,
para um longo e bem viver. Igualmente se pode constatar o insucesso das elocuçõesdesses educadores físicos, a se julgar pelo hábito de realizar exercícios entre os adultos
de hoje: quantos entre nós mantemos continuadamente a prática recomendada por nosso
antigo professor do colégio?
Fazer exercícios físicos regrados depende de força de vontade, de disciplina, de
continuidade por parte do praticante, o motivo indubitável de a maioria manter-se
sedentária; a leitura, por sua vez, impõe ao leitor disciplina, atenção, reflexão, razões pelas
quais tantos são os refratários a ela. É certo que ler ficção popular, como a de Paulo
Coelho, literatura de auto-ajuda ou policial requer miúda aplicação intelectual; já literatura
de proposta, de problematização, exige do leitor, além de um vocabulário mais amplo e
refinado, um espírito sutil, uma capacidade de entendimento esmerada, um pensamentocriativo bem-conformado; reclama a faculdade da abstração e demanda estabelecimento
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de relações — como para ler Proust, Macedonio Fernández, Pessoa, Bernhard, Kafka,
Musil —, condições que, por sua vez, se aprimoram com o continuado deleite com autores
como esses.
Mulher lendo [Edward Hopper]
Então, fazer com que as pessoas passem a apreciar a atividade de ler parece-me umhomólogo de fazer com que as pessoas venham a gostar de praticar exercícios físicossistemáticos. A primeira para uma vida crítica, “cidadã”; a outra para uma longevidade daquelavida crítica: mens sana in corpore sano. Assim, os que não leem estariam para o âmbito dacultura como os sedentários estão para o do fisicultura.
Preliminares
Agora, chegou-me às mãos um exemplar da recém-lançada publicação Plano Estadual do
Livro, Leitura e Literatura (PELL), 2013-2023, do Rio Grande do Sul, que, como outros
projetos similares, estabelece as bases para uma ação coletiva visando o incremento do
hábito de ler. Documento burocrático, fala sobre a importância da leitura, assevera que as
escolas devem formar leitores e que sua difusão deve começar na família. Tudo muito
bonito. Porém, como costuma acontecer sempre que se fala em fomentar a leitura, o que
não diz também este documento é o que vem a ser “a leitura”, o que é “ser leitor”. Parece-me esta uma indagação preliminar essencial quando no Brasil se fala tanto em “formação
de leitores”, pois não é possível formá-los se não se tem noção exata do que é ser leitor.
Portanto, quais seriam os critérios para considerar uma pessoa como leitora e outra como
não leitora? O que caracterizaria como leitor, por exemplo, um eletricista, um
desembargador, uma embaixadora, um contador, um bombeiro, uma taquígrafa, um
engenheiro, um delegado, um caixa de banco, uma manicure?
Será leitor o oficial do tabelionato que passa o dia lendo escrituras de compra e venda de
imóveis? Será leitora a telefonista que, entre um e outro atendimento, examina a Contigo e
a Caras de que é assinante? Ou a dona de casa que apenas folheia o jornal diário, atenta
especialmente ao obituário? Será leitor o escrivão de polícia que se entretém comliteratura policial nos momentos de folga do plantão da calada da noite? Ou o ascensorista
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que, em seu irremediável sobe e desce, lê e relê as recomendações dos compêndios de
Lair Ribeiro? Ou o professor de Literatura que apenas lê os livros que recomenda a seus
alunos? Ou aqueles que leem tudo considerado fundamental pela intelligentsia nacional,
desde Homero, Ovídio, Camões e Cesário Verde até Verissimo, Caio Abreu, Ruffato e
Galera? Ou aquele que, não sendo muito afeito à poesia e à ficção, é, entretanto,
estudioso inveterado de filosofia — Platão, Kant, Nietzsche, Hegel, Heidegger, com
algumas passadinhas ligeiras por Freud e Lacan?
Poder-se-ia estabelecer, sem auto-engano, que, para ser considerado “leitor”, a criatura
deverá ler aquilo que a intelectualidade, aqueles que tanto dizem ler, estabeleça como
escritos dignos de serem lidos?
Poder-se-ia também conjecturar, não sem coragem, mas com desentusiasmo, que o
hábito de ler será reservado à elite cultural, àqueles a quem foi conferido o dom de
apreciar a leitura, com disciplina, atenção, análise, num paralelo àquele dizer de Vargas
Llosa que considera a cultura algo a ser preservado e apreciado apenas pelas elites
culturais, que realmente se deleitam lendo o que há de bom?Ou, ainda, aceitar que seja provável que aqueles que não gostam de ler jamais virão a
fazê-lo, simplesmente porque acham isso chato ou despiciendo, como quem não gosta de
exercitar-se fisicamente nunca irá além da poltrona.
Enfim, o que é ser leitor?
Carlos Alberto Gianotti é professor de Física, é editor-executivo da Editora Unisinos. Autor Um rio
circunferencial (WS Editor). Vive em Porto Alegre (RS).