O QUE É FILOSOFIA DA PSICANÁLISE.pdf

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    O QUE FILOSOFIA DA PSICANLISE?

    Luiz Roberto Monzani (Unicamp)* [email protected]

    Resumo: A questo que se pe : o que se entende pela expresso Filosofia da Psicanlise? Pode-se, em primeiro lugar, ficar espantado com essa pergunta, porque, ao menos, genericamente, essa expresso deve possuir um significado muito aparentado s expresses tais como: filosofia das matemticas, filosofia da fsica, filosofia da biologia etc, a respeito do que no faltam exemplos de trabalhos srios e bem sucedidos. Pensando as coisas assim, a filosofia da psicanlise, assim como a filosofia das matemticas etc., nada mais seria que um ramo, uma espcie dessa disciplina mais geral que denominamos filosofia da cincia, que consiste, em linhas gerais, em se tentar saber qual o modo prprio e especfico que cada disciplina tem de estabelecer suas teses. Qual, por exemplo, o papel da observao, da experincia, do raciocnio etc. Como essa disciplina encadeia suas proposies, como ela procura fundament-las. O que tal ou tal disciplina entende por verdade, por proposio verdadeira. Enfim, o filsofo enderea s diferentes cincias questes do tipo: qual o seu regime de provas e validao? Qual o papel da experimentao e das hipteses? H uma adequao entre as proposies que ela coloca e aquilo atravs do qual procura estabelec-las? Esses so exemplos de questes colocadas por isso que entendemos correntemente por filosofia das cincias. o que examinaremos nesse artigo.

    Palavras-chave: Filosofia, Psicanlise, Filosofia da cincia.

    1- A questo que se pe : o que se entende pela expresso Filosofia da Psicanlise? * Luiz Roberto Monzani professor Adjunto da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil e pesquisador do CNPq.

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    2- Pode-se, em primeiro lugar, ficar espantado com essa pergunta, porque, ao menos, genericamente, essa expresso deve possuir um significado muito aparentado s expresses tais como: filosofia das matemticas, filosofia da fsica, filosofia da biologia etc., a respeito do que no faltam exemplos de trabalhos srios e bem sucedidos. 3- Pensando as coisas assim, a filosofia da psicanlise, assim como a filosofia das matemticas etc., nada mais seria que um ramo, uma espcie dessa disciplina mais geral que denominamos filosofia da cincia, que consiste, em linhas gerais, em se tentar saber qual o modo prprio e especfico que cada disciplina tem de estabelecer suas teses. Qual, por exemplo, o papel da observao, da experincia, do raciocnio etc. Como essa disciplina encadeia suas proposies, como ela procura fundament-las. O que tal ou tal disciplina entende por verdade, por proposio verdadeira. Enfim, o filsofo enderea s diferentes cincias questes do tipo: qual o seu regime de provas e validao? Qual o papel da experimentao e das hipteses? H uma adequao entre as proposies que ela coloca e aquilo atravs do qual procura estabelec-las? Esses so exemplos de questes colocadas por isso que entendemos correntemente por filosofia das cincias. 4- A filosofia da cincia visa, portanto, uma investigao metodolgica e procura saber se os resultados de uma determinada disciplina esto ou no de acordo com um determinado critrio de verdade, freqentemente clssico. Se a resposta for positiva, ento estaremos frente a um discurso que pode ser rotulado de cientfico. Caso

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    contrrio, estaramos frente a uma pseudocincia ou frente a algum outro tipo de saber que no se submete ao figurino pressuposto. 5- Embora eu considere legtimo e vlido esse tipo de atividade, todo o problema est em que esse tipo de procedimento muito limitado, e diferentes cincias, ou mesmo a mesma cincia em diferentes estgios, dificilmente se amoldam a esses critrios externos. Tal o caso da fsica contempornea, cincia cannica por excelncia, na qual a obra de G. Bachelard mostrou a precariedade desses critrios. Na verdade eu tenho impresso , esse procedimento funciona bem pra disciplinas constitudas segundo um certo modelo, o que, modernamente, parece ser cada vez mais raro. Eu repito, no est em meus propsitos negar o direito de quem quer que seja de utilizar tais procedimentos. Apenas quero realar suas limitaes, aquilo que vejo como suas limitaes, e apontar outras possibilidades. 6- No caso da psicanlise (Freudiana) isso fica patente e gritante. Em primeiro lugar, porque difcil dizer que a psicanlise uma disciplina j constituda. De uma certa maneira, em segundo lugar, isso que eu estou afirmando a respeito da psicanlise, suspeito que seja vlido para um bom nmero de disciplinas que enfeixamos sob a designao geral de cincias humanas. A idia talvez mais correta seja a de que, na melhor das hipteses, so disciplinas que esto se fazendo, e o resultado disso muito difcil de se saber.

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    7- Por isso mesmo que talvez a idia cannica de filosofia da cincia freqentemente se aplique mal a esses domnios e, em espcie, psicanlise. Deve haver um certo tipo de abordagem que tambm se interesse pelos modos de procedimento de uma disciplina que no se reduza a isso e que, sobretudo, no queira instaurar um tribunal em que essas diferentes formas discursivas tenham de humildemente depositar aos seus ps seus ttulos de cidadania, para que sejam julgados segundo regras pr-determinadas. 8- Um primeiro grupo de abordagens seria tomar o discurso psicanaltico como o primeiro corpus de textos (a obra de Freud, por exemplo) e tentar estabelecer um conjunto de genealogias conceituais que influenciaram e mesmo determinaram, em certa medida, a constituio desse discurso, sem se preocupar com a verdade ou falsidade desse mesmo discurso. Pode-se, por exemplo, tentar retraar toda a trama conceitual que levou de Charcot a Freud, com relao ao problema da histria. Ou, ento, tentar examinar como certas redes ou grades conceituais (por exemplo, os ideais cientficos de Helmholtz, Fechner, Bruckner que seguramente Freud conhecia) influenciaram a tica freudiana na sua leitura dos fenmenos psicopatolgicos. Os exemplos no faltam e existem inmeros trabalhos nessa linha, de excelente qualidade. 9- Pode-se tambm, e esse um outro tipo de trabalho, tomar a teoria psicanaltica como uma rede discursiva, trat-la assim, como um tecido de significaes que vale a pena ser explicitado, comentado, discutido e interpretado.

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    Podemos, ento, ler Freud, no preocupados com a verdade da doutrina, mas sim preocupados apenas em como estabelece, prope, abandona, alarga ou estreita os significados de diferentes conceitos no interior da teoria, como, por exemplo, a teoria da seduo, o complexo de dipo ou a pulso de morte. Tratar-se-ia, neste caso, de uma leitura interna do texto, do discurso que procuraria decifrar o seu encadeamento, seus embates, suas contradies etc., etc. 10- Vislumbro ainda um terceiro tipo de leitura, talvez a mais interessante. Pelo menos para mim a mais interessante. Aqui, mais uma vez, penso que esse tipo de leitura mais frutfera e fecunda para a psicanlise e as cincias humanas. Os pressupostos desse terceiro tipo de leitura esto totalmente enraizados no segundo tipo que acabei de mencionar. Parte-se da idia de que cada disciplina produz um determinado saber que tem seu contorno e sua especificidade prpria. Enfim, desse ponto de vista, abandona-se o ideal unitrio de cincia, pelo menos provisoriamente, e seu correlato: o de que s existe um tipo de verdade (o figurino que mencionei acima). A partir da [e realizada essa leitura interna preconizada no segundo tipo (encadeamento das teses, postulados, conseqncias etc.)] esse terceiro tipo de leitura procurar examinar e demarcar o conjunto dos critrios prprios e especficos de validao da disciplina em questo, e qual o critrio e a idia de verdade que da brotam. Trata-se, portanto, neste ltimo caso, de inverter o procedimento tradicional da filosofia da cincia, que parte de uma pr-determinada idia de verdade, e se pergunta se as diferentes

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    disciplinas que vo desfilando frente a ela (matemtica, fsica, biologia, psicanlise etc.) se adequam ou no a esse modelo pr-estabelecido. Quer dizer, ao invs de procurar impor de fora, como uma camisa-de-fora, certos critrios que se julgam vlidos para toda e qualquer disciplina que se queira apresentar como cincia, procura-se, neste outro caso, a especificidade do modo de produo discursiva, quais os critrios prprios e especficos desse particular regime de validao. 11- A questo que se coloca agora, por exemplo, no : a psicanlise uma cincia? Mas esta outra: que tipo de racionalidade nos traz a psicanlise? J que, de uma vez por todas, a psicanlise se enquadra muito pouco dentro da concepo tradicional de cincia. J que esse tipo de pergunta foi feita no prprio interior da fsica contempornea, como mostrou Bachelard, por que no aplic-la a outros domnios? claro que a questo mais geral, que est por trs dessa que enunciei, a questo de se saber at onde a proliferao desses novos discursos, desses novos saberes, no nos convida a repensar a noo de verdade que, talvez, seja ela tambm, na sua forma cannica, algo datado e fruto de um conjunto de avaliaes sobre o real, o conhecimento, o discurso verdadeiro etc. que exatamente essas novas disciplinas nos convidam a repensar? 12- Da, sobretudo, de onde eu vejo o interesse de uma filosofia da psicanlise: no para se saber se uma cincia ou no, mas sim porque ela nos faz repensar os nossos pressupostos mais enraizados.

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    13- Se se quer dar nome aos bois mas essa questo no tem grande importncia , o primeiro tipo de leitura que eu apontei o traado dessa genealogia conceitual pertenceria histria das cincias ou dos saberes; a segunda, essa leitura interna, pertenceria reconstituio discursiva, algo como uma anlise dos procedimentos e encadeamentos discursivos; e o ltimo trabalho eu denominaria epistemologia da psicanlise. 14- Nessa linha de raciocnio, trata-se, como diz muito bem o professor Bento Prado Jr., de uma via de duas mos; se a filosofia, se o discurso filosfico pode e deve colocar algumas questes ao discurso psicanaltico, sem dvida alguma a psicanlise coloca alguns problemas centrais para a filosofia. 15- No vou levar em considerao certas apropriaes indevidas que o discurso filosfico fez algumas vezes da teoria e dos conceitos psicanalticos porque esse tipo de trabalho jamais deu certo. De resto, limito-me apenas em apontar isso porque a crtica dessas tentativas j foi feita, e muito bem feita, por diversos autores. Ainda, eu indicaria para vocs dois belos artigos do professor Bento Prado Jr., o primeiro deles intitulado: Auto-reflexo ou interpretao sem sujeito... (includo no livro Alguns ensaios1) e outro: Entre o alvo e o objeto do desejo... (que est na coletnea Filosofia da Psicanlise2) onde, respectivamente, o professor Bento critica com muita pertinncia as apropriaes ou ms leituras que Habermas e Marcuse fizeram da teoria freudiana.

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    16- Mas, deixando isso de lado, eu repito, a teoria psicanaltica no deixa de colocar problemas para o discurso filosfico, tais como (estou citando aleatoriamente) o problema da gnese e constituio do aparelho cognitivo. H inmeras pistas e problematizaes em Freud. Outro problema: o da origem e o papel da conscincia moral tanto na esfera do sujeito singular, como tambm de seu papel nas sries coletivas. Por outro lado, existe, sem sombra de dvida, em Freud, seno uma teoria, pelo menos preciosas indicaes sobre os fatores da hominizao, um esboo da gnese histrica da sociabilidade e dos fatores psquicos determinantes dessa mesma sociabilidade.

    Por ltimo, mais um exemplo, talvez o mais significativo e importante, para ilustrar o quanto estamos tateando. Quem estudou seriamente a obra de Freud sabe perfeitamente que o conceito, ou melhor, a concepo de sujeito sofreu, em suas mos, uma transformao de monta. Mas o que significou isso? Destronamento do cogito e de seus privilgios? Em certa medida, sim. Ponto final e definitivo nas filosofias da conscincia? Problemtico, j que o prprio Freud afirmava que a conscincia o nosso nico farol nas trevas da psicologia profunda. Isso sem falar no famoso adgio: Wo es war, soll ich werden. Descentramento radical do sujeito e determinao pela instncia do outro? Com certeza, sim. Mas o que significa exatamente isso? Qual o sentido dessa transformao e quais as suas conseqncias? A bem da verdade, ainda no sabemos direito, e por isso que, entre muitas outras

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    razes, amemos Freud ou no, sua leitura nos obrigatria e indispensvel.

    NOTAS

    1 Prado Jr., Bento. Alguns Ensaios. So Paulo: Paz e Terra, 2000.

    2 Prado Jr. Bento. Entre o alvo e o objeto do desejo: Marcuse, crtico de Freud. In: Filosofia e Psicanlise. So Paulo: Brasiliense, 1991.