O QUE AS CRIANÇAS FALAM E QUANDO ELAS SE CALAM –...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO MARLUCE LEILA SIMÕES LOPES O QUE AS CRIANÇAS FALAM E QUANDO ELAS SE CALAM: O PRECONCEITO E A DISCRIMINAÇÃO ÉTNICO-RACIAL NO ESPAÇO ESCOLAR VITÓRIA 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

MARLUCE LEILA SIMÕES LOPES

O QUE AS CRIANÇAS FALAM E QUANDO ELAS SE CALAM: O PRECONCEITO E A DISCRIMINAÇÃO ÉTNICO-RACIAL NO

ESPAÇO ESCOLAR

VITÓRIA 2008

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MARLUCE LEILA SIMÕES LOPES

O QUE AS CRIANÇAS FALAM E QUANDO ELAS SE CALAM: O PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO ÉTNICO-RACIAL NO ESPAÇO

ESCOLAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação na linha de pesquisa “História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais”. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vânia Carvalho de Araújo.

VITÓRIA 2008

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Lopes, Marluce Leila Simões, 1966- L864q O que as crianças falam e quando elas se calam : o

preconceito e a discriminação étnico-racial no espaço escolar / Marluce Leila Simões Lopes. – 2008.

213 f. : il. Orientador: Vânia Carvalho de Araújo. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito

Santo, Centro de Educação. 1. Escolas. 2. Violência. 3. Violência escolar. 4. Infância. 5.

Silêncio. 6. Direitos sociais. 7. Discriminação na educação. I. Araújo, Vânia Carvalho de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...........................................................................................15 CAPÍTULO 1 1. (RE) TRATOS DA INFÂNCIA NO CONTEXTO DAS VIOLÊNCIAS ........................19 1.1. AS MÚLTIPLAS VIOLÊNCIAS NA SOCIEDADE E SUAS MANIFESTAÇÕES NO ESPAÇO ESCOLAR .....................................................................................................19 1.1.1 O preconceito e a discriminação: a questão da raça e etnia .........................23 1.1.2 A dinâmica das violências na escola................................................................29 1.1.3 As desigualdades sociais/raciais e a instituição escolar: o currículo etnocêntrico como fator de exclusão ........................................................................32 1.2. REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, INFÂNCIA, CULTURA E GLOBALIZAÇÃO..37 1.2.1 Infâncias capturadas: considerações sobre os diferentes tempos vividos pelas crianças na história...........................................................................................37 1.2.2 O capitalismo, a cultura e a mundialização na constituição da criança: alguns apontamentos .................................................................................................39 1.3 A INFÂNCIA NA PERSPECTIVA ÉTNICO-RACIAL...............................................44 1.3.1 Imaginário racial e as marcas na infância.......................................................44 1.3.1.1 Notas sobre a infância indígena e a ideologia étnico-racial em Aracruz ..50 1.3.2 Os silêncios e silenciamentos: o racismo como pano de fundo ..................57 1.3.3 A estética como representação do belo/feio na construção da identidade da criança negra..........................................................................................................61 1.4 CONTRAPONTOS ENTRE A VIOLÊNCIA, DISCIPLINA E AUTORIDADE NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR .............................................................................................68 1.5 O DESAFIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS 71 1.5.1 A igualdade na diferença e a diferença na igualdade ....................................71 1.5.2 A maioria na condição de minoria: negros e índios na escola brasileira ....75 CAPÍTULO 2 2 OS CAMINHOS DA PESQUISA ...............................................................................77 2.1 A ESCOLHA DA TEMÁTICA..................................................................................77 2.2 O CONTEXTO PESQUISADO ...............................................................................78 2.2.1 Histórias de um lugar........................................................................................78 2.2.2 A escola: esta conhecida tão desconhecida! .................................................85

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2.3 “CRIANÇAS AO SOL!” OS SUJEITOS DA PESQUISA .........................................88 2.4 A CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA..................................................................92 CAPÍTULO 3 3 CENAS E CENÁRIOS DA DISCRIMINAÇÃO ÉTNICO-RACIAL .............................101 3.1 CABELO COMO CRITÉRIO DE EXCLUSÃO ........................................................102 3.1.1 “Cabelo pixaim”: algumas considerações sobre raça e gênero ...................102 3.1.2 “Cabelo raspadinho, estilo Ronaldinho”.........................................................111 3.2. AGRUPAMENTOS: OS CONVIDADOS E OS REJEITADOS...............................113 3.2.1 O menino negro não entrou na roda”..............................................................113 3.2.2 “Brincar de viver”..............................................................................................123 3.2.2.1 “Tropa de Elite”: a brincadeira imita a vida? ...............................................126 3.2.3 Recreio: o “apartheid” étnico-racial ....................................................................130 3.3 ”TODOS SÃO IGUAIS?” A POSTURA DA ESCOLA FRENTE AS DISCRIMINAÇÕES .......................................................................................................132 3.3.1 A autoridade do professor frente às discriminações.....................................138 3.4 E A FAMÍLIA, O QUE DIZ? ....................................................................................142 CAPÍTULO 4 4 O QUE AS CRIANÇAS FALAM E QUANDO ELAS SE CALAM? ...........................146 4.1 DE QUAL SILÊNCIO ESTAMOS FALANDO?........................................................146 4.2 “CRIANÇAS INVISÍVEIS”: (SER) NEGRO/A, (SER) INDÍGENA NA ESCOLA .....156 4.2.1 A escola e o currículo frente a diversidade étnico-racial ..............................156 4.2.2 (ser) indígena na escola dos não-índios. ........................................................158 4.2.3 (ser) negro na escola de brancos ....................................................................170 4.2.4 “Moça preta do curuzu, beleza pura” ..............................................................173 4.3 “É RAIVA!”..............................................................................................................175 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................180 6 REFERÊNCIAS.........................................................................................................189 APÊNDICES .................................................................................................................201

ANEXOS .......................................................................................................................210

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Eu sou a luz do mundo

E ninguém me vê aqui

Eu sou o sal da terra

E ninguém me sabe aqui

Brincando de existir

Ninguém pode me pegar

Eu sou a voz da vida

Nada vai me calar. (C. Buarque, A. Antunes, Djavan, Caetano Veloso)

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RESUMO

Esta pesquisa se caracteriza em um estudo sobre as relações étnico-raciais

entre/para com crianças das séries iniciais de uma escola de ensino básico no

município de Aracruz/ES. O estudo de caso do tipo etnográfico oferece elementos

de sua composição para melhor entender a complexidade do contexto da pesquisa.

Tal cenário se constitui em espaço de presença multicultural, em que crianças

indígenas, brancas e negras convivem cotidianamente em uma relação às vezes

conflituosa e ora, opressora. A histórica expropriação dos povos negros e indígenas

relegada a teorias de raças inferiores ficou impregnada na ideologia racial brasileira.

O mito, como afirma Chauí (2006) serve mais uma vez, ao discurso dominante. O

mito da democracia racial persiste na sociedade brasileira. Na escola, as crianças

sentem as marcas deste “mascaramento” quando são submetidas às mazelas do

racismo, dentro de uma instituição que lhes é de direito. Neste contexto, a escuta

das narrativas dos pequenos atores produzem e lapidam as formas representativas

deste cenário. Os silêncios dos sujeitos discriminados se fazem perceber ou

camuflar, mas sutilmente demonstram o sofrimento de exclusão experienciados. Os

sentidos e significados pintam a tela das cenas e complementam o cenário: As

crianças e as discriminações étnico-raciais como incidentes na violência escolar.

Violência invisibilizada pela não-escuta dos adultos que deveriam direcioná-las e

mostrá-las o “mundo”, como sugere Hannah Arendt (1972).

Palavras-chave: Escola. Violência. Infância. Cultura. Silêncios. Direitos Sociais.

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ABSTRACT

This research is characterized in a study about the relationships ethnic-racial

between/for with children of the initial series of a school of basic teaching in the

municipal district of Aracruz/ES. The study of case of the type ethnographic offers

elements of its composition to better understand the complexity of the context of the

research. Such scenery is constituted in space of multicultural presence, where

indigenous, white and black children, stay together daily in a relationship sometimes

conflicting and sometimes, oppressive. The historical expropriation of the black and

indigenous people relegated to theories of inferior races was impregnated in the

Brazilian racial ideology. The myth, as Chauí (2006) affirms, serves once again to the

dominant speech. The myth of the racial democracy persists in the Brazilian society.

At school, the children feel the marks of this “mask” when they are submitted to the

sore spots of the racism, inside of an institution that belongs to them of right. In this

context, the listening-in of the small actors' narratives produces and cut the

representative forms of this scenery. The silence of the discriminated people is

possible to notice or to camouflage, but subtly they demonstrate the “suffering

exclusion experienced. The senses and meanings paint the screen of the scenes and

they complement the scenery: The children and the ethnic-racial discriminations as

incidents in the school violence. Violence invisible by the no-listening of the adults

that should address and show them to the “world”, as Hannah Arendt suggests

(1972).

Key-Words: School. Violence. Childhood. Culture. Silence. Social Rights

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A meu pai Moacyr Juvêncio Lopes (in memorian) pelo exemplo de dignidade,

conhecimento e arte com os quais me ensinou o encantamento pelo ser humano.

À minha mãe Maria Vearildes Simões Lopes pela disciplina, luta e fibra que

possibilitou minha formação.

Aos meus filhos Milena e Lázaro aos quais quero deixar como herança os exemplos

de vida recebidos.

Aos meus avós Pedro Simões Santos e Otaviana Maria da Fonseca, memória e

história vivas cheias de sabedoria e amor.

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AGRADECIMENTOS À torcida fiel de toda a família: minha irmã Margarete Neiva S, L. de Deus e meu

cunhado Ademir de Deus. Ao meu irmão Magdiel S. Lopes e cunhada Elizete P.

Vieira. Aos meus sobrinhos: Mayara, Marina, Leonardo, Larissa, Lavínia, Magdiel

Filho, Bruna e Vítor. Aos tios Josoel e Miriam, Eliseu e Raquel, Laura; e primos,

Suélen, David, Gisele.

Às meninas e meninos sujeitos desta pesquisa, minha maior inspiração. À instituição

pesquisada e todos os profissionais, principalmente os amigos e amigas Pedro

Ribeiro, Romilda, Deusdeth, Helena Ribeiro, Alice, Iranilda e Aloísio Júnior. À

comunidade de Barra do Riacho

À Geucilene Mello pelo incentivo, reconhecimento e carinho de sempre.

Às amigas Janaína Madeira B. Stange e Liliane Caniçali Peruchi pela companhia de

todas as horas, de muitas histórias e de enfrentamento de desafios.

À amiga de alma e sonhos, Roselene D. de Oliveira, à amiga Sandra Fonseca e aos

demais amigos e amigas de Ibatiba. Aos professores(as) e ex- alunos(as) da escola

“Maria Trindade de Oliveira”.

À Ironilda Rangel minha grande amiga e “anjo da guarda” pela fidelidade à amizade

e à missão de cuidar.

Ao Iguatemi Rangel pelo incentivo e apoio.

Ao amigo Sérgio dos Santos Pereira pelo apoio incondicional e suas ponderações,

por ter sido um grande amigo nas horas mais difíceis. À Rosalina pela torcida em

dupla.

À família Madeira e Brito pela força e fé. À Lívia pela “parceria socialista”.

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Ao amigo Moisés Aleixo e o “Coral Amigos” pela compreensão e inspiração. À

equipe Referência pelo apoio e reconhecimento.

Às amigas Sandra M. Machado e Jenilza Spinassé pela enorme parceria de

amizade, trabalho e militância. Por tantas horas de discussão e busca de caminhos

mais justos para as populações negra/indígena. Às colegas de trabalho da

Semed/Aracruz: Marilza Furieri, Gorete Moro, Zélia, Raudinéia, e às demais

companheiras de trabalho na educação.

Aos companheiros de luta do CECUN, especialmente Gustavo Forde, Luís Carlos,

Patrícia, Walace e Sueli.

Ao incentivo de todos os amigos, amigas e colegas de trabalho, especialmente Luís

Vasconcelos, Kátia Vasconcelos, Kátia e Leninho, Ednéia Pralon, Dauth, Tony Pig e

Maria Sampaio.

Aos colegas da turma 20 pela convivência divertida e respeitosa. Aos colegas da

linha de pesquisa: Sérgio Pereira, Daniel Barbosa, Marcos Peu, André Pirolla,

Charlini Contarato, Polyana dos Santos e Maria das Dores.

Ás queridas colegas pesquisadoras com as quais compartilho experiências da

pesquisa com crianças: Moyara, Sumika, Rosane, Angélica, e os pesquisadores

Marcelo e Ailton.

Ao professor Robson Loureiro pelo imenso apoio, incentivo e contribuições.

Aos indígenas Guarani e Tupunikim de Aracruz, especialmente Andréia, Jocelino,

Mauro, Andréia Almeida e Marli, educadores que vêm lutando pelo respeito à suas

culturas.

A todos os professores e funcionários do PPGE pela mania de gostar de gente.

À minha Orientadora Drª Vânia Carvalho de Araújo pelos ensinamentos e

encaminhamento à pesquisa com crianças.

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Às professoras da banca: Drª Luíza Mitiko Y. Camacho pelas considerações

importantes, atenção e carinho. Drª Denise Meyrelles de Jesus pela atenção sempre

bem humorada, pelas “pistas” indicadas e sugestões teóricas. Drª Vânia Maria

Manfroi pelas valiosas contribuições, paciência e disponibilidade em aceitar o

convite para a defesa.

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INTRODUÇÃO

Diante das violências1 cotidianas, não é difícil encontrarmos muitas dessas

instituições imersas em diversas situações de violências intra e extra-muro, com

dificuldades de efetivarem o enfrentamento deste problema. Evidencia-se

sentimentos de impotência de muitos profissionais da educação, frente aos múltiplos

casos de violências físicas e não-físicas, envolvendo crianças e adultos no espaço

escolar.

De maneira geral, a concepção do que seja violência é multifacetada, podendo

apresentar-se sob diferentes concepções. Uma destas, como demanda colocada em

discussão nos diversos movimentos sociais atualmente é o não-reconhecimento das

diferenças. Esta premissa está relacionada com as relações de poder na sociedade

quando a dominação e opressão atreladas às diferenças acentuam ainda mais as

desigualdades entre os diferentes.

No espaço escolar convivem crianças, nem sempre aceitas na sua diversidade por

outras crianças e até mesmo por profissionais da escola. Collares e Moysés (1996)

confirmam em suas pesquisas a presença de preconceitos e juízos sobre os alunos

e suas famílias nos diferentes momentos da escola. Segundo estes pesquisadores,

a justificativa para o fracasso escolar, por exemplo, sempre aponta para o aluno e

seu contexto de vida. A escola, na maioria das vezes desconhece as discriminações

que ocorrem em seu espaço e assim, permite que a diversidade seja motivo de

preconceitos e violências.

Este trabalho apresenta dados sobre a violência que se manifesta no espaço

escolar, de diferentes formas (física, não-física) relacionadas às diferenças étnico-

raciais nas relações estabelecidas entre adultos e crianças e prioritariamente entre

as crianças, no espaço escolar.

1 Violência neste trabalho de pesquisa refere-se a violências físicas e não-físicas.

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Os atores desta pesquisa são meninos e meninas envolvidos em situação de

violência étnico-racial na primeira etapa do Ensino Básico da Escola “Amanda da

Luz”2 situada em uma região periférica do litoral de Aracruz3. O local da pesquisa se

apresenta um lócus privilegiado de investigação sobre a temática étnico-racial por se

localizar em contexto social e cultural complexo. A constituição prioritariamente de

negros e indígenas, e o grande fluxo de pessoas no seu cotidiano, devido à

característica econômica do bairro, oferecem elementos concretos à investigação

das ações discriminatórias ali manifestadas assim como, dos encontros suscitados

na alteridade.

O estudo de caso do tipo etnográfico potencializa a observação-participante das

interações tecidas neste contexto, assim como as entrevistas, conversas e análise

de outros registros. Nas palavras de André (2005), este contato intensivo do

pesquisador possibilita desvelar os encontros e desencontros em suas diferentes

expressões, no dia-a-dia da escola.

A perspectiva deste trabalho busca dar visibilidade às crianças, na perspectiva

descrita por Bazílio e Kramer (2003, p.90): “[...] propiciar que deixem de ser in-fans

(aquele que não fala), para adquirirem voz e poder”. Estes autores valorizam a

interação com os discursos das crianças, com suas experiências de vida construída

nos encontros e nos conflitos. A memória e aspectos da história destes sujeitos

podem se apresentar por meio de suas diferentes formas de expressão. Assim, as

considerações tecidas neste estudo se propõem apreender as vozes e silêncios

que ecoam no espaço escolar nas relações étnico-raciais. O estudo e a análise de

dados se inscrevem sob as seguintes expressões:

O que as crianças falam – Nesta perspectiva buscou-se a parceria com as

experiências das crianças em uma relação dialógica. As narrativas sob o ponto de

vista da própria criança oferecem outra dimensão da realidade diferente daquela

percebida pelo adulto.

2 Nome fantasia em homenagem a uma ex-aluna da escola que foi silenciada pela violência durante a coleta de dados. 3 Município localizado na região norte do estado do Espírito Santo.

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Quando as crianças se calam - A investigação dos silêncios foi se delineando a

partir das observações em diferentes tempos e espaços da escola. Desta forma,

buscou-se analisar as significações atribuídas às atitudes das crianças em relação a

si mesmas e ao outro a partir da não-fala. No entanto, na sutileza dos gestos, nas

expressões do olhar, na postura diante das situações, os silêncios carregam

sentidos. Para Orlandi (2007), no silêncio, o sentido ecoa trazendo seus significados.

Nas narrativas ou nos silêncios, a orientação deste trabalho considerou as

interações tecidas nas circunstâncias étnico-raciais, neste caso, o recorte no campo

de investigação lança os refletores em direção às crianças negras e indígenas.

Esta escolha temática é justificada por depositar uma confiança na capacidade que

as crianças possuem de expressar o que sentem por meio das falas, no esforço

também de perceber ou não conseguem dizer, mas podem demonstrar através de

outras formas de linguagem (o próprio silêncio) como caminho em direção à

percepção das suas experiências em relação às discriminações sofridas e ou

praticadas.

Pensar a criança imersa em suas subjetividades4 construídas no contexto destas

tramas sociais implica em conhecer as diferentes configurações de infância tecidas

ao longo da história, assim como abarcar diferentes contribuições teórico-conceituais

neste campo. O desenvolvimento deste trabalho busca principalmente na Sociologia

da Infância elementos teóricos de alguns pensadores: Sarmento (2003, 2005, 2007)

Quinteiro (2005), Araújo (1997, 2007), dentre outros autores como Pino (2005),

Postman (2006) e Bazílio e Kramer (2003).

Sobre a temática violência, as discussões de Abramovay e Rua (2003), Arendt

(1972, 1998, 2001), Camacho (2000), Wieviorka (2006), Chauí (2000, 2003, 2006),

além da contribuição de outros referenciais importantes na compreensão sobre a

temática étnico - racial, Arendt (1972, 1998, 2001), Camacho (2000), Wieviorka

(2006), Chauí (2000, 2003, 2006), fundamenta a discussão sobre os Direitos

Sociais.

4 Manfrói (mimeo, 2007) fundamentada na teoria Marxista descreve que “a subjetividade não é uma dimensão interna, mas está totalmente imbricada com o mundo social, há um complexo de relações entre interioridade exterioridade, uma dimensão está presente na outra” (p. 10). A autora compreende a objetividade e subjetividades implicadas, produzidas na materialidade e na história.

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As discussões aqui explicitadas consideram prioritariamente as categorias de

análise: Escola, Violência, Infância, Cultura, Direitos Sociais e o Silêncio. Este último

tem como eixo norteador a Análise de Discurso, na perspectiva de Orlandi (2007),

na concepção de linguagem de Bakhtin (2002) e na ideologia.

Para desenvolver as discussões e análises propositadas, a dissertação se divide em

quatro capítulos e seus desdobramentos. O primeiro trata da situação da infância

atravessada pela multiplicidade de fatores relacionados à violência na escola – a

cultura, a globalização, as diferenças e a igualdade.

No segundo capítulo, a trajetória metodológica é apresentada: a escolha do tema, os

sujeitos e as opções metodológicas aplicadas durante a coleta de dados. O terceiro

capítulo traz as análises de dados com base nas narrativas das crianças sobre a

temática racial. Os sub-capítulos se distribuem por aspectos evidenciados no

contexto investigado. Analisa-se a questão das características físicas das crianças

negras e indígenas como critério de seleção e segregação, assim como as formas

de resistência evidenciadas. Ainda neste capítulo os relatos discursivos dos

professores e da instituição são analisados, bem como as narrativas das crianças,

em relação às questões de investigação apresentadas neste trabalho, sejam elas:

Como se efetivam as relações étnico-raciais entre e para com as crianças no espaço

escolar? Caso existam, o que elas sentem e expressam em relação às diferenças

étnico-raciais? Qual é a postura da escola em relação às questões de discriminação

racial?

O último capítulo apresenta os silêncios em suas diferentes facetas e sua gênese

nas relações raciais entre/para com as crianças. Silêncios que para Orlandi (2007)

ecoam e trazem seus significados, constituídos na história, na cultura e na vida

social.

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CAPÍTULO 1 1 (RE) TRATOS DA INFÂNCIA NO CONTEXTO DAS VIOLÊNCIAS 1.1 AS MÚLTIPLAS VIOLÊNCIAS NA SOCIEDADE E SUAS MANIFESTAÇÕES

NO ESPAÇO ESCOLAR

Somente a pura violência é muda, e por este motivo a violência, por si só, jamais pode ter grandeza. (Hannah Arendt).

Muito se tem discutido na sociedade sobre o porquê das violências cotidianas. A

incessante busca de alternativas de mudança desta realidade é mostrada a cada dia

por meio de projetos e programas sociais específicos. Enquanto isso é possível

evidenciar através dos noticiários midiáticos que os índices oscilam, mas na verdade

a situação de medo e insegurança vivida pela grande maioria das pessoas é

intermitente.

A violência não é um fenômeno típico de determinada época ou sociedade e suas

formas de manifestação na história da humanidade foram deveras diferenciadas:

guerras e dominações, extermínio de povos, etnias e escravidão. Sobre esta

questão Bazílio e Kramer (2003, p.111) afirmam:

Historicamente, a violência sempre foi utilizada como marca de dominação de uma classe sobre outra, de um gênero, de uma idade, de um grupo social sobre outro. Mas parece agora que ela se generaliza e se transforma em moeda corrente em nossa sociedade.

Dentre as diversas explicações para o fenômeno da violência Zaluar (1996), traz

uma instigante reflexão quando questiona a relação que se estabelece dos sujeitos

que praticam atos violentos com a renda salarial. Para a autora, baixos salários não

justificam os altos índices de violência. Ela utiliza exemplos de diferentes países,

que em contexto de baixos salários obtiveram baixos níveis de criminalidade. Nesta

mesma perspectiva Zanotelli (2003, p.238) alerta que “é preciso evitar cair nessa

facilidade interpretativa de associar pobreza à violência e ver os pobres como seres

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bárbaros”. Seria impossível então afirmar que a violência tem um fator determinante.

Não eram pobres os jovens que queimaram o índio Pataxó em Brasília, em 1997, e

longe de julgarmos tal fato, isso nos leva a pensar que a prática da violência

independe da cor, condição social, etnia, credo religioso.

Quanto a esta questão Zaluar (1996) complementa que é preciso reconhecer que os

que mais pagam por ela, são os jovens, negros e brancos pobres. Ao concordar com

essas ponderações, Peralva (2000) explica que é preciso fazer avançar a idéia de

criminalizar os pobres. Segundo a autora, esta premissa estaria no bojo das

complexas contradições inerentes à democracia brasileira, às transformações

advindas deste processo e à ineficácia das instituições públicas como promotoras da

ordem pública.

A pesquisa de Camacho (2000) em duas escolas freqüentadas por jovens de

diferentes contextos sociais, uma escola pública e outra particular, frequentada pela

“elite”, identificou a violência em ambas. As relações entre os jovens das diferentes

escolas se davam, em muitos momentos, permeadas por incivilidades e violências.

O resultado apresentado demonstrou entre outros fatores, que a pobreza não é fator

determinante no fenômeno da violência.

Velho (1996) complementa esta consideração ao afirmar que, para além das

desigualdades sociais, a desvalorização da ética e dos valores nas relações sociais,

principalmente nos grandes centros urbanos, é um dos fatores que intensificaram o

fenômeno da violência. Para ele, todo o processo de modernização que foi

acompanhado do desenvolvimento tecnológico e da cultura de massas, fez surgir o

individualismo. Com este, a indústria cultural e suas poderosas armas de sedução

ao consumismo, cria valores, padrões de estilos e modos de ser na sociedade, que

a grande maioria não consegue ter acesso.

Desse modo, as disparidades de acesso a bens sociais e culturais tornam-se

explícitas. Zonatelli (2003) também participa deste diálogo consensual quando relata

que, a riqueza ostentada pela elite convive ao lado da pobreza e miséria da grande

maioria. O crime atinge a ambos e o poder público não se faz presente efetivamente

nas áreas onde vivem os mais pobres. É o que demonstram as estatísticas de

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pobreza, exclusão e violências no Brasil. O autor avança o debate ao reconhecer a

pobreza e a ausência das políticas sociais como agravantes para estas populações.

Alguns autores concebem o fenômeno da violência como o enfraquecimento do

diálogo enquanto instrumento de negociação e consenso. Wieviorka (2006)

reconhece o conflito como o contrário da violência. Para o autor, o debate instala a

negociação evitando a força – a violência. Segundo ele, esta ação pode possibilitar o

reconhecimento da interlocução. Sobre esta questão Arendt (2001) também afirma

que a palavra institui um mundo comum onde o diálogo assume o lugar da violência.

Para Chauí (2003), no Brasil, existe o mito da não-violência. Neste sentido, a

violência não é percebida como tal, e sendo escamoteada é assim, naturalizada. As

explicações colocadas frente às violências invisibilizam os fatores reais – as

desigualdades econômicas e sociais. A função do mito, neste caso, é assegurar a

tese de um Brasil pacífico, onde as belezas naturais, a alegria, a cordialidade e a

mistura de raças comprovam a inexistência da violência, ou a negação da gênese

deste fenômeno. Nesta perspectiva, as imagens produzidas através da mídia

pulverizam fatos violentos e acabam por atribuir as responsabilidades às instituições

e à crise ética da sociedade em geral. Quanto a esta discussão a autora

complementa:

[...] As desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, a intolerância religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e a violência aparece como um fato esporádico de superfície. (p. 52)

Quanto a esse discurso ideológico, Chauí (2003) o considera universalizante, na

medida em que institui uma lógica particular e o apagamento das diferenças e

contradições - a inversão do real. Neste sentido, a justificativa para as violências na

sociedade desconsidera os fatores estruturais. Na verdade, as discussões são

periféricas ou ocultam os aspectos econômicos e políticos que fundamentam

qualquer sociedade e os fenômenos emergentes, como a violência contra a mulher,

índios, negros, crianças. Violências justificadas e naturalizadas no discurso

autoritário. A autora afirma que a sociedade brasileira é autoritária. E o Estado

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legitima esta realidade quando se configura atrelado às concepções privatistas no

espaço público. Nestes espaços, os privilégios são distribuídos e vendidos, e assim,

o lucro fácil é garantido e protegido pelo próprio Estado, em detrimento do bem-estar

coletivo.

Relacionar a pobreza com a violência então, não é uma hipótese considerada nesta

pesquisa, mas há que se refletir sobre a desigualdade social, como um dos fatores

incidentes ao se analisar o fenômeno da violência. Ela atinge a todos, mas seus

rastros se alastram principalmente nos bairros mais pobres onde as políticas sociais

inexistem ou são ineficazes. Os grupos mais fragilizados, dentre estes, as crianças,

são os mais atingidos. Sofrem da violência estrutural produzida historicamente e são

atingidos cotidianamente pela violência do descaso por parte do próprio Estado.

Neste cenário, as crianças são as que mais sofrem com a violência das

desigualdades econômicas e sociais - o abandono público, o trabalho infantil, a

violência doméstica, o abuso sexual e os conflitos étnicos5. Bazílio e Kramer (2003,

p. 93) relatam sobre a banalização da violência a que as crianças são submetidas

em seu cotidiano:

É em uma realidade violenta, hostil, que não sabe lidar com a diferença que educamos nossas crianças obrigadas a conviver com chacinas de crianças, mendigos, e homossexuais; torturas de presos por policiais; crianças com mãos baleadas por traficantes; métodos disciplinares que violentam os direitos das pessoas; processos visíveis e invisíveis de calar a palavra alheia, eliminando a diferença ou o dissenso.

Nessa perspectiva das violências contra a infância, a escola não é tão diferente, pois

mantém estrutura curricular, avaliativa e classificatória que, em muitos casos,

reproduz opressões e desigualdades quando trata os desiguais como iguais. Desse

modo, torna-se evidente a violência: do poder público que ignora e desampara a

infância, da mídia sensacionalista, da escola excludente.

5 O filme “Crianças Invisíveis” (2005) retrata a saga de crianças vitimizadas pela pobreza, descaso político, fome e violência. Mostra meninos africanos armados em meio aos conflitos étnicos sangrentos, nos quais agem em função da morte e encaram a guerra com coragem. Outras crianças de diferentes países e classes sociais convivem com violências e ainda encontram brechas para brincar e sonhar.

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1.1.1 O preconceito e a discriminação: a questão da raça e da etnia

Os termos preconceito e discriminação possuem significados diferentes, mas

convergentes. Preconceito para Heller (1992) representa um sentimento de juízo

provisório frente aos argumentos racionais. Desse modo, se ele é provisório, pode

então ser modificado. Esse juízo confere valor ao que parece inferior ou

simplesmente diferente. Por outro lado, a discriminação não é abstrata e sim uma

ação na concretização do preconceito. É quando, por exemplo, há uma interferência,

por mais sutil que seja na vida do outro, e desse modo, efetiva-se o desrespeito à

diferença. A discriminação então é a conseqüência do preconceito. A autora

complementa ao dizer que, crer em preconceitos é uma forma de se proteger de

possíveis conflitos.

Em Arendt (2001 p. 32) o preconceito significa o julgamento na pessoalidade. Para a

autora: “A função do preconceito é defender o homem julgante para não se expor

abertamente a cada realidade encontrada”. A atitude discriminatória pressupõe uma

impossibilidade de convivência entre diferentes, o que para a autora, significa uma

incapacidade de se viver em um mundo comum, como uma mesa, interposta entre

os seres humanos, que, ao redor dela, mantêm-se juntos, e ao mesmo tempo

separados. Metaforicamente a mesa, representa o espaço público que seria o

vínculo entre as pessoas.

Os estudos e pesquisas sobre discriminação étnico-racial no Brasil apresentam

conceitos que especificam a abordagem sob diferentes aspectos. Gomes (2005)

conceitua alguns termos importantes ao analisar a diversidade étnico-racial e

entender seus meandros:

Diversidade étnico-racial entende este termo como julgamento antecipado,

negativista e inflexível de uma pessoa ou grupo em relação ao outro.

Discriminação na concepção da autora significa a efetivação na prática do

preconceito ou racismo.

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O conceito de raça possui conotação política e isso significa negar a

concepção biológica que hierarquizam as “raças”6. O termo etnia representa

os diferentes povos e suas culturas. A autora esclarece também que o termo

étnico-racial para os intelectuais e militantes se refere às representações

histórico-sociais e culturais dos negros no Brasil. Deste modo, a referência à

raça está absolutamente desvinculada da questão genética, mas é

compreendido como uma construção cultural.

O racismo é uma ação motivada pela aversão às pessoas por suas

características físicas ou culturais consideradas inferiores. Neste caso, pode

ser individual ou institucional.

O etnocentrismo refere-se a valores culturais de um grupo humano em

relação de superioridade em relação a outros.

O preconceito e a discriminação contra grupos étnicos são categorizados por

autores que abordam essa problemática. O entendimento sobre o termo raça em

Munanga (2004) possui dimensão social e política, pois biologicamente não existem

raças humanas. Ele complementa tal discussão ao destacar o termo étnico-racial

como o mais coerente, por abranger toda a dimensão cultural. Neste trabalho, optou-

se pela utilização deste termo. Mas o que seria então o racismo?

A conceituação de alguns autores facilita a compreensão deste problema. O mesmo

autor o conceitua como uma ideologia pela qual há a crença de que os valores e

características de um grupo são concebidos sob o ponto de vista da natureza

(biológica) e, portanto, inferior. Os conhecimentos e valores construídos

historicamente por um grupo social sob o olhar racista podem ser classificados

como: civilizado/não-civilizado, desenvolvimento/atraso, belo/feio, cultural/exótico,

tradição/folclore.

6 Schwarcz (2007) apresenta as diversas concepções naturalistas (eugenia, evolucionismo) assumidas pela sociedade intelectual no início do século XX, intensificadoras da inferioridade racial dos negros e indígenas. A eugenia e o darwinismo pleiteiam esta causa. A autora faz referências a museus, institutos de pesquisa e registros históricos, faculdades em conjunto com o Estado, como promotores e guardiões de uma suposta verdade sobre a inferioridade de algumas raças e a superioridade da raça branca. A mestiçagem e a teoria do embranquecimento na concepção desta sociedade eram a alternativa de depuração das raças. Uma sociedade constituída de negros e indígenas estava relegada ao atraso. A autora cita o trabalho antropológico de Lacerda no qual os índios Botocudos eram descritos como de cérebro atrasado e incapaz de civilizar-se.

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Para Wieviorka (2006), o racismo representa a negação da alteridade e se baseia no

preconceito e discriminação por meio da ideologia. É a negação da subjetividade do

outro – anti-sujeito,7 na medida em que é invisibilizado como sujeito válido. O anti-

sujeito desqualifica quando limita o reconhecimento ao que lhe é estranho. O

desconhecido é ignorado, silenciado ou invisibilizado.

Prosseguindo nesta reflexão, vê-se em Heller (1992, p. 54) que, “[...] a classe

burguesa aspira universalizar sua ideologia”. Dessa forma, é pertinente afirmar que,

a diferença utilizada como juízo de valor, baseia-se na projeção de um ideário

personificado nos modos de ser, que reduz o pertencimento cultural dos sujeitos à

crença em uma cultura tida como única e aceita pela sociedade em geral. Essa

ideologia impõe a neutralização das contradições históricas de povos, etnias e

grupos humanos sob a referência de uma cultura dominante.

O consenso destes autores/a sobre os termos acima, refere-se às relações de poder

e pré-julgamento com base no senso-comum, na pessoalidade (vida privada). E

assim, julgar sob o ponto de vista de valores individuais constitui-se em preconceito.

A aversão às diferenças na relação entre sujeitos equivale a afirmar uma suposta

superioridade. Neste sentido, as ações classificatórias e excludentes representam

uma discriminação. O racismo então pode ser compreendido como a interdição do

sujeito por suas diferenciações étnico-raciais.

Ver, ouvir e ser ouvido neste mundo comum, segundo Arendt (2001), mesmo de

ângulos diferentes, representa uma possibilidade da convivência entre os homens

como iguais. Nesse sentido, o pressuposto da violência é a inexistência do diálogo,

da comunicação entre as pessoas, o que as leva ao uso da força física ou de outras

formas de violência, como forma de subjugar o outro. A história dos povos oprimidos

pela força do poder instituído facilita a compreensão desta problemática.

Bosi (1992) descreve sobre o processo histórico colonialista exploratório, que

propiciou o encontro e desencontro dos colonizadores europeus com os grupos

indígenas e posteriormente com os negros africanos. A formação multicultural

7 Wieviorka (2006) compreende a dominação e a opressão ao sujeito como ações do anti-sujeito ou não-sujeito. Neste caso, há a interdição deste outro sujeito, ou seja, a negação da sua subjetividade.

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advinda desse processo desfavoreceu, sobretudo, os valores simbólicos das

culturas consideradas pelos colonizadores como inferiores - os indígenas, negros,

ciganos, imigrantes. E assim, a trajetória social destes sujeitos ao longo dos últimos

séculos, foi marcada pela imagem de inferioridade e subjugação em relação ao

grupo étnico dominante (branco). Desse modo, tornaram-se minorias, por serem

classificados sob critério cultural, em uma lógica hierárquica.

No decorrer da história, sociedades vivenciaram verdadeiros massacres racistas e

genocídios em nome de uma superioridade, de um ethos cultural. Nos EUA,

exemplos como a Ku Klux Klan, os Skinheads, a xenofobia e o Totalitarismo na

Europa, deixaram uma ferida profunda na história ocidental moderna. Os resquícios

destes atos violentos ainda sobrevivem, apesar dos avanços legais e denunciativos

existentes. Quanto a essa problemática, Ianni (2004)8 considera as ações racistas

explicitadas como limpeza étnica que persiste ainda no século XXI.

Fernandes (2007) descreve sobre as teorias filosóficas, históricas e religiosas que

justificavam a escravização de povos considerados “escravos naturais”. Segundo o

autor, o preconceito justificava a relação escravo-senhor9 e era necessário naquele

contexto de dominação/escravização, pois fundamentava as relações hierárquicas.

Na verdade, esta justificativa serviria de pretexto para a exploração do trabalho e de

recursos naturais. O argumento da inferioridade fortalece a naturalização da

dominação e do extermínio, fato também evidenciado nos mais de seis milhões de

judeus mortos pelo regime nazista, na Alemanha.

Chauí (2006) e Munanga (2006) ressaltam a ideologia nacionalista em fins do século

XIX e início do século XX no Brasil, após a “abolição”. As concepções naturalista,

evolucionista e positivista fundamentavam a ideologia que retratava o caráter do

brasileiro. Os autores analisam o discurso de Silvio Romero. Na visão deste

intelectual, o brasileiro é uma sub-raça mestiça, pois descende do índio e do negro

juntamente com uma superior, a branca ou ariana. Para evitar a degeneração da

8 Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Rio de Janeiro: PENESB. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação do RJ, 2003. 9 Florestan Fernandes (2007) compreende os efeitos do preconceito e da discriminação que acontece sem conflitos, de forma silenciosa, ou seja, quando o negro é mantido à margem dos direitos sociais – educação, trabalho. Este fator interfere na construção de uma democracia racial no Brasil.

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nova raça mestiça, seria preciso um projeto de embranquecimento da população por

meio da imigração européia. Estas imagens ainda influenciam as relações inter-

raciais no Brasil e isso ocorre nas instituições, na mídia, nas relações intersubjetivas

e também entre as crianças. Para Chauí (2006) a ideologia esconde a violência real

(mulheres, trabalhadores, negros, índios, sem-terra, a criança abandonada) e a

naturaliza. Estes sujeitos são culpabilizados e, às vezes, criminalizados por sua

condição.

A representação10 do negro e do índio predominante nos livros, revistas e no livro

didático, pode reproduzir estes discursos ideológicos. Para Silva (2005) a

negrofobia11 está presente no imaginário sócio-racial brasileiro. A aversão declarada

à religiosidade africana e afro-brasileira fere a dignidade e o direito à liberdade

religiosa. A instituição escolar brasileira, em sua maioria, admite a simbologia do

cristianismo em seus diferentes espaços e até mesmo apregoa seus princípios. No

entanto, assumir outra religião torna-se desconfortável para muitos estudantes que

preferem o silêncio frente a uma possível discriminação religiosa. Esta situação pode

também desencadear formas de exclusão.

As análises sobre a questão da raça e etnia descritas neste texto, partem do

princípio de que o racismo fundamenta-se em múltiplos fatores que se enredam, se

enraízam e se alastram por diferentes sociedades e espaços sociais. Dois fatores se

imbricam e se tornam relevantes nesta discussão: a dominação econômica e política

e a dominação justificada pela ordem da diferença. Neste caso, os atributos físicos,

sociais e culturais são tomados como referenciais de uma condição humana inferior,

passível de dominação, exploração, estigma e outras desqualificações.

Entrelaçados, estes aspectos solidificam as estruturas de relações existentes.

Nesta rede, o Estado, por meio das instituições públicas – cumpre a função de

manter privilégios e proteger interesses elitistas. Os serviços públicos oferecidos à

10 Bourdieu (2007) descreve sobre as funções práticas com o objetivo de produzir realidade. A questão da etnicidade, para ele, relaciona-se com a representação mental dos sujeitos usada como estratégia em função de interesses dominantes. Não se pretende avançar nos estudos de Representação Social, mas apenas usar o termo para analisar seus propósitos e sua inserção no imaginário racial infantil. 11 O autor se refere ao sentimento de temor aos valores das filosofias e africanidades das populações negras do Brasil, dentre elas as religiões e todo o seu universo mítico.

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população mais empobrecida são precários. Os que utilizam cotidianamente nem

sempre percebem a violência da negação de direitos, pois há um disfarce por parte

do Estado e da sociedade capitalista. A instituição escolar corporifica esta lógica,

quando ignora os fatores histórico-estruturais da violência, dos “problemas das

crianças”, da “desestrutura familiar”, do baixo aproveitamento escolar, da evasão,

quando concebe os estudantes como iguais e suas diferenças como “anomalias”.

Silenciar o racismo ou manter práticas discriminatórias institucionais em suas

diversas formas e dimensões interfere negativamente na vida de crianças e jovens.

Sendo negros ou indígenas, a proporção é bem maior, por representarem maioria

nas escolas.

Pesquisas realizadas por Castro e Abramovay (2006) demonstram que as

discriminações étnico-raciais estão arraigadas na instituição escolar. Elas coexistem

com o silêncio e a indiferença que reproduzem esta problemática. Sendo o Brasil

um dos países do mundo em maior número de negros e afro-descendentes, pode-se

pensar que as discriminações raciais podem ocorrer em número muito maior. Deste

modo, a instituição escolar é um espaço público onde nem sempre os direitos são

efetivados. Mesmo entre e para com as crianças menores, a discriminação é

deflagrada. Foi o que Cavalleiro (2003, p. 53) constatou em sua pesquisa com

crianças da Educação Infantil. Ela descreve situações de racismo entre as crianças

e afirma: “O que se pode ver naquele parque infantil é nada mais que uma pequena

reprodução da própria história do negro em nosso país.”

Os indígenas brasileiros também sofrem com a invisibilidade histórica e com o

descaso para com seus valores, seus conhecimentos e suas produções culturais.

Quanto a essa premissa, em sua dissertação de mestrado sobre a educação

indígena Tupinikim de Aracruz, Almeida (2007, p. 28) descreve:

Ao longo da história, os direitos dos povos indígenas foram e são violados por causa dos interesses das elites por suas terras, pelos interesses dos não-índios nos recursos minerais e naturais, no patenteamento de receitas indígenas.

Na escola pública, concentra-se a maioria das crianças negras/afro-descendentes e

indígenas. Neste espaço, convivem de forma desafiadora com o imaginário racial

construído historicamente. Estas crianças estão vulneráveis a essa violência, na

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medida em que as discriminações raciais estão estruturadas na sociedade, nas

instituições educacionais. Na infância, as relações estabelecidas estão entrelaçadas

às formas de sociabilidades com imagens e discursos que as crianças compartilham

na vida cotidiana. Neste contexto, elas aprendem a oprimir ou aprendem a dialogar,

assim como podem romper com determinismos e construir outras possibilidades.

A questão que se coloca nesta discussão expõe a instituição escolar enquanto

Estado/Poder Público, diante das complexas redes de manutenção da lógica

econômica instituída, da dominação e exclusão de pessoas, assim como da

ineficácia de práticas educacionais que sistematizem processos nos quais os direitos

sociais são precários, ou não se fazem presentes.

1.1.2 A dinâmica das violências na escola

Diante da preocupação – mundial, nacional, estadual e local - com a violência em

todos os níveis e esferas da vida humana, é possível evidenciar que em muitas

escolas as violências são recorrentes. Notícias sobre vandalismo, agressão física ou

verbal, discriminação, tráfico de drogas e até homicídios, estão constantemente em

destaque na mídia. Segundo Abramovay e Rua (2003), a violência atinge a escola

de fora para dentro, de uma maneira muito difícil de evitar, pois está presente na

cultura dos alunos e até mesmo na dos educadores. No entanto, em muitas escolas,

as explicações para o problema da violência têm, geralmente, como foco a

responsabilização unicamente do aluno e seu contexto familiar. Para estas escolas,

de modo geral, a violência é simplesmente questão de impor a ordem e o limite, no

uso de variadas formas de punição.

Camacho (2000) acrescenta através de suas pesquisas, que a escola não tem

conseguido atuar nos dois mundos – o do pedagógico e o do relacional dos

estudantes. Segundo a pesquisadora, isso significaria inserir no currículo, por

exemplo, reflexões sobre identidade, alteridade, gênero, etnia, preconceito,

discriminação e violência. Porém, é possível observar que a prioridade dos

educadores nas escolas de modo geral, é com os conteúdos propostos no currículo

instituído. A discussão sobre temas vivenciados diariamente por crianças e jovens é

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relegada a momentos eventuais. Ouvir esses sujeitos e propor reflexão sobre

assuntos polêmicos poderia aproximar o mundo real, vivido em sua essência, dos

temas pedagógicos. Contraditoriamente, as subjetividades desses atores tornam-se

desconhecidas.

Presume-se que a escola é freqüentada por sujeitos que vivenciam a violência em

suas diferentes facetas, em contextos de vida diversos, todavia, na maioria das

instituições o convite à discussão sobre estas experiências de vida tendo em vista, a

construção de outras formas de relações não é efetivado. Camacho (2000) descreve

que, o não-reconhecimento da diferença é um dos aspectos implicadores da

violência na escola e acrescenta também que tais práticas não acontecem de uma

forma só e não seguem os mesmos rituais. Elas apresentam faces, tempos, e

particularidades sutis, e tudo depende do cenário onde se apresentam.

Percebe-se então, que muitas escolas têm se tornado alvos fáceis para a

reprodução e perpetuação da violência, mesmo quando erguem muros, colocam

grades e implantam estrutura disciplinar baseada estritamente em punições, visto

que a violência é conseqüência de diversos fatores (econômico, político, cultural,

social). Cercear o comportamento dos estudantes na escola por meio da disciplina

do corpo, mencionado por Foucault (1977) como docilidade-utilidade12, pode reforçar

e reproduzir as violências e mais exclusão social, na medida em que a idealização

de comportamentos tidos como aceitáveis pela escola, dimensiona toda a prática

escolar.

As práticas disciplinares, pelo que se pode observar, apesar de serem históricas nas

escolas em geral, não conseguem evitar nem coibir a violência. Visível ou sutil, física

ou não-física, ela continua presente. Intervenções disciplinares podem ser

evidenciadas em grande maioria das escolas brasileiras. A estrutura física impõe

regras, normas rígidas e hierárquicas13. Quanto a esta premissa, Bujes (2002)

12 Na concepção de Foucault (1977, p. 127) quando se refere aos “[...] corpos submissos e exercitados” A sociedade disciplina os agentes tendo em vista a dominação. Neste contexto, as instituições possuem papel fundamental, de aplicar medidas coercitivas como forma de submetê-los à ordem vigente. 13 Normas e regras escolares, como a exemplo do Regimento Comum, que é construído sem a participação dos estudantes e suas famílias, por isso hierárquica, pois sua elaboração é concentrada nos sistemas de ensino municipais e estaduais.

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confirma a existência de uma concepção modeladora de comportamentos infantis da

escola moderna. A disciplina como medida de comportamento dócil e submisso

pode escamotear fatores de ordem econômica e social.

Ao analisarem o fenômeno da violência na escola, Abramovay e Rua (2003), citando

Charlot, classificam-na em três níveis: Violência (ferimentos, violência sexual,

crimes, vandalismos) Incivilidades14 (humilhações) e Violência Simbólica ou

Institucional (imposições, relações de poder, indiferença), o que nos parece

naturalizado hoje nas relações hierarquizadas entre os indivíduos, na sociedade e

também na escola.

Bourdieu (2007) caracteriza essa relação hierárquica como umas das faces do poder

simbólico. Esse poder invisível cumpre a função de promover a perpetuação da

dominação de um grupo sobre outro - violência simbólica15que pode ser

presentificada nas instituições, na mídia, nas práticas pedagógicas ou nas relações

estabelecidas entre os diferentes. Na relação com a infância, por exemplo, o poder

da voz do adulto comumente se sobrepõe.

Para Camacho (2000) a complexidade de se conceituar violência, refere-se às

variáveis relacionadas a este fenômeno, o qual a autora reconhece que independe

da classe social e pode apresentar-se sob diferentes formas.

A violência pode ser silenciosa - mascarada, irrelevante para muitos, mas que fere,

ofende e humilha como o preconceito e a discriminação - de raça, etnia e gênero,

com destaque ao “massacre” escolar aos homossexuais. Para a autora, o

silenciamento é terreno fértil de disseminação das violências sutis. De um lado, os

aceitos e integrados e do outro, “os diferentes” em outra posição, são ocultados pelo

poder de quem os ofende por sentirem-se superiores. Os lados opostos destes atos

preconceituosos podem ser ocupados por profissionais ou estudantes, visto que, a

violência é exercida por diferentes atores em diferentes espaços. Ela ressalta

também, as violências na ante-sala (provocações) e na sala da violência (reações 14 Violências anti-sociais como desrespeito, humilhações e transgressões de regras escolares (Abramovay e Rua, 2003, p.24) 15 Para Bourdieu (2007) a violência simbólica significa o poder de imposição de uma ideologia visando à legitimação de uma hierarquia, cujo domínio é instituído pelo capital.

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dos alunos). A postura da escola em relação ao diferente é dividida com a sociedade

que cria estereótipos, em detrimento da diversidade dos grupos sociais. Desta

forma, ignora os direitos e estigmatiza aqueles que não se enquadram aos

diferentes critérios instituídos.

Isso nos leva a pensar sobre a postura de escolas que negam a vida para além de

seus muros, permitindo que as relações intra-escolares fiquem submetidas a um

campo aberto de fatores produtores de violências, instaurando a vulnerabilidade dos

estudantes. Tal análise refere-se às formas de violências físicas e não-físicas,

arraigadas na cultura escolar, muitas vezes reforçadas ou naturalizadas pelos

próprios docentes.

Transferências de escolas, invisibilidade das culturas infantis e juvenis, assim como

a banalização das marcações disciplinares, demonstram a incapacidade da

instituição escolar em reconhecer e lidar com a diversidade de infâncias e

juventudes. Se a escola não é espaço de todos, aqueles que não se adaptam a seu

formato tornam-se ainda mais fragilizados, diante do caos social a que se chegou a

sociedade brasileira. “Onde não há direitos, não há sujeitos”, afirma Chauí (2006, p.

140). Neste caso, o direito a estar na escola e ser atendido, reconhecido e

respeitado, vai se restringindo até que essa não-identificação com a escola e suas

múltiplas formas de organização fazem com que muitos a abandonem.

1.1.3 As desigualdades sociais/raciais e a instituição escolar: o currículo etnocêntrico como fator de exclusão No Brasil, dados sobre desigualdades sociais podem ser constatados nos elevados

índices de pobreza e exclusão social de uma grande parcela da população, fatos

estes, não deterministas, porém passíveis de se constituir em implicadores na

problemática das violências. Mesmo não sendo justificáveis sob o ponto de vista das

condições sociais, as desigualdades de acesso aos bens elementares à vida do ser

humano, podem provocar e/ou incidir sobre os índices de violência, situação essa

emergente nos bairros mais pobres - violência simbólica. Quanto a isso, Abramovay

e Rua (2003, p.42) assinalam:

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[...] exclusão social é entendida como mais que desigualdade econômica. Engloba dimensões e processos culturais e institucionais, por meio dos quais numerosas parcelas da sociedade brasileira tornam-se e permanecem alheias ao contrato social, privados do exercício da cidadania, desassistidas pelas instituições públicas, desamparadas pelo Estado.

A indiferença com que o poder público vem tratando a questão da pobreza no Brasil

é histórica. As políticas efetivadas não provocam rupturas estruturais. Para Telles

(2006), a pobreza no Brasil persiste em meio a discursos políticos

desacompanhados de ações que efetivem direitos. A pobreza envergonha o país do

futuro e das promessas de progresso. Aqui ainda vigoram as relações hierárquicas

patriarcais, de autoritarismo, de racismo, em que os direitos valem para uns e

inexistem para a grande maioria.

Partindo do pressuposto da desigualdade, pode-se concluir que um país com

extremas disparidades sociais e que ainda não prioriza políticas públicas sociais que

realmente transformem as pauperizadas condições de vida das pessoas mais

empobrecidas, vê suas crianças e jovens à mercê de riscos sociais. A violência que

atinge os meninos e meninas de rua, a prostituição infantil, o aliciamento ao crime

são algumas das dimensões de uma violência maior, enraizada na sociedade e no

interior das instituições.

A violência institucionalizada na sociedade se explicita e se fundamenta nas

desigualdades sociais. Lessa (2007) ao ressaltar a emancipação política e a

emancipação humana à luz de Marx descreve sobre os pressupostos fundantes não

velados como causadores da crise nas instituições nestes tempos. Segundo o autor,

o capital circula livremente, sem barreiras, enquanto a fome no mundo avassala

multidões. Neste esquema, o enfraquecimento dos movimentos de resistência

(emancipatórios), deixa livre um sistema econômico que produz cada vez mais

desumanidade e mais exclusão. O autor propõe a superação desta lógica instituída

a partir da emancipação humana. Isto significaria uma nova sociedade construída a

partir do “trabalho emancipado”16.

16 Lessa (2007, p. 45) esclarece: “Para que as necessidades e possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas possam se realizar é imprescindível a passagem de uma produção ordenada pelo trabalho alienado em sua forma a mais desenvolvida (o trabalho assalariado) a outra, ordenada pelo trabalho emancipado”.

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A apatia dos movimentos de resistência, a invisibilidade das causalidades das

questões sociais, dentre outros fatores, funcionam como mantenedoras de uma

conformidade com as relações econômicas e sociais. A exclusão de milhões de

pessoas integra essa organização estratégica do capital.

Vê-se que a problemática racial está comprometida com as desigualdades sociais,

visto que, provenientes das expropriações econômicas históricas, estes grupos se

mantêm, em sua maioria, à margem do desenvolvimento econômico e das

possibilidades de inclusão social. Nas palavras de Bourdieu (2007) acumulam um

capital social menor. Quanto a isto, Henriques (2002, p. 51) afirma:

[...] Além das diferenças de recorte estritamente econômico associadas à renda familiar, existem importantes diferenças derivadas do pertencimento racial das crianças. Essas diferenças decorrem, seguramente, de processos discriminatórios anteriores à escola que se manifestam no interior dos mesmos grupos de renda.

Isso não significa que o racismo não esteja atrelado também às formas de

discriminação pela diferença física, pois salvo poucas exceções, este problema

atinge todas as camadas sociais da sociedade, porém, negros e indígenas são os

grupos mais excluídos.

A instituição escolar pública recebe todos os dias sujeitos excluídos de muitos

recursos – materiais/simbólicos. Porém, a organização dos tempos e espaços da

escola, em suas diversas configurações, ainda ignora tal debate. Aos resultados

excludentes não são incorporadas as discussões atravessadas pela questão racial.

Neste cenário, é possível pensar que a escola ainda não está devidamente

“qualificada” para lidar com múltiplos fatores raciais que refletem no baixo

rendimento17, na evasão, na reprovação e na relação entre (a)s estudantes mais

empobrecidos. A ênfase da escola se remete mais intensamente na função

17 Os resultados de rendimento descritos por Henriques (2002) e Castro e Abramovay (2006) demonstram diferenças significativas em todos os níveis de escolarização, entre negros e brancos. Brancos obtêm melhores resultados nas avaliações externas, que os negros. Isso não significa que o racismo atinja somente os mais empobrecidos. Na verdade, está em todas as classes sociais. No entanto, compreende-se que a pobreza das crianças negras e indígenas acentua ainda mais problemática da exclusão destes sujeitos. Na escola, além do racismo a que são submetidas, as crianças negras não se percebem no currículo e nos valores da cultura escolar.

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modeladora das atitudes e comportamentos do que nas experiências tecidas na

análise das questões subjacentes às desigualdades econômicas, sociais e raciais.

Quanto a isso, Macedo e Bartolome (2000) relatam sobre a dificuldade que os

estudantes apresentam em construir uma análise aprofundada e contestadora da

história e da organização social da sociedade, pois estes conhecimentos são

transmitidos de forma fragmentada e acrítica pela instituição escolar. Neste embate,

a escola espera resultados de aprendizagem e atitudes comportamentais sob

critérios estruturados em uma lógica universalista.

Para além de um currículo homogêneo, estão os sujeitos que não se enquadram ou

que simplesmente não se submetem ao que está posto. Neste caso, a escola dispõe

de diferentes dispositivos de seleção e exclusão, podendo ser: os conteúdos, a

disciplina, a cultura, a avaliação. A estrutura disciplinar marcada por delimitações de

espaço, tempo e liberdade, coexistem com práticas pedagógicas também

autoritárias. As diferenças, muitas vezes são ignoradas e os conflitos abafados ou

reprimidos.

A violência pode emergir no espaço escolar como uma estratégia do estudante,

segundo Dubet (2003) de “salvar sua dignidade”. Na problemática da exclusão, a

avaliação como medida de qualidade, vem configurar ou reforçar esse quadro de

violência. Em conseqüência disso, pode ocorrer em grande medida, a classificação

dos bons/ruins, capazes/incapazes, bonito/feio, negro/branco, e assim por diante.

Estas normatizações desconsideram as desigualdades de condições de

permanência e aproveitamento escolar. A culpa pelo fracasso recai sobre os

próprios sujeitos, em sua maioria, negros.

Quanto a essa situação, Chauí (2003) afirma que a idéia de padrão cultural único e

melhor esbarra no impedimento de acesso dessa cultura “melhor” a todos. Segundo

a autora, essa conceituação contradiz o sentido dado pela burguesia quando

considera o sujeito “culto” como aquele que detém os elementos da cultura ocidental

branca e ideologicamente dominante. O que pensar então de uma escola que exige

de seus estudantes aquilo que nunca lhe foi disponibilizado?

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Para Dubet (2003), a entrada massiva dos estudantes na escola não representa

igualdade de formação e oportunidades. A escola não é neutra, portanto, não

deveria admitir esta injustiça – a desigualdade multiplicada ou reforçada. Segundo

ele, os alunos não são mais selecionados na entrada, mas no processo de

escolarização. Os resultados deste processo retornam ao indivíduo e assim, a

igualdade é vista como direito de todos, mas as desigualdades, no discurso

instituído, são inerentes ao sujeito.

Estas elucidações levam ao questionamento das exigências opressoras colocadas

pelas instituições educacionais ao desconsiderarem as diferenças de acesso aos

bens culturais no contexto de vida dos diferentes atores. É importante destacar que

não se trata de ignorar regras e normas de convivência e sociabilidade, mas

conceber a voz dos sujeitos. Trata-se também de uma análise cuidadosa dos casos

e circunstâncias em que ocorrem os desentendimentos, as “indisciplinas”, os

conflitos entre pares.

Castro e Abramovay (2006) identificaram em pesquisa sobre as relações raciais nas

escolas brasileiras, que a forma de tratamento para com as crianças negras e

indígenas é um dos fatores incidentes na evasão e reprovação escolar.

Diante destas proposições, percebe-se que a problemática racial tem sido usada

como forma de dominação ao longo dos últimos séculos, e ainda hoje, estes sujeitos

precisam lutar pela efetivação de direitos, até mesmo o de estar/permanecer na

escola, ter reconhecimento e respeito em suas diferenciações.

Nestes embates, o movimento negro e as populações indígenas continuam a

implorar reconhecimento de direitos dentro do próprio espaço público, tendo em

vista, as violências a estes submetidas.

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1.2 REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO, INFÂNCIA, CULTURA E

GLOBALIZAÇÃO

1.2.1 Infâncias capturadas: considerações sobre os diferentes tempos vividos pelas crianças na história Conceituar a infância constitui-se, a priori, o debruçar-se na historiografia deste

campo de pesquisa, na busca de compreendê-la como categoria social. Encontramos

em Áries (1973) a caracterização da história da infância a partir da iconografia

retratada em diferentes épocas. Na Idade Média, a criança era retratada como anjo. A

partir do século XV é simbolizada com o putto e só aparece retratada como criança no

século XVII. Segundo o autor, até esta época, o sentimento de infância era inexistente

e o in fant (aquele que não fala), era apenas mais um em um universo de tantas

crianças e tão poucas chances de sobrevivência, dada às condições da época.

A partir do século XVII a criança ganha visibilidade. Surge o interesse em registrar

sua forma de expressão, do corpo, dos hábitos e da fala da criança pequena. Áries

(1973, p.28) complementa que: ”A criança passa então a ser paparicada, ora pelos

pais, ora por amas responsáveis por cuidar delas (famílias ricas)”. Ele descreve

então, que um novo sentimento de infância havia surgido, no qual a criança, por sua

ingenuidade, gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento

para o adulto, um sentimento que poderíamos chamar de “paparicação’’.

Este novo descortinar do pensamento sobre a criança surge juntamente com a

imagem de família. Até o século XV, assim como ocorreu com o sentimento em

relação à infância, a família societal, percebida enquanto linhagem ou grande família

patriarcal desaparece, emergindo assim, a família nucleada, centrada na criança,

mudando hábitos, investindo na educação moral, movida pela devoção à Igreja. É

possível notar que apesar dos avanços em relação à visão da infância, existia

também a diferença em relação às crianças pobres, mulheres e grupos distintos, não

inseridos na análise deste autor.

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A partir do século XVIII, contrapondo-se à concepção universal de infância ignorada

e despercebida pela sociedade, a preocupação dos moralistas e educadores incide

sobre a mentalidade da criança. Quanto a isso Barros (1997, p.149) assinala: “A

preocupação era sempre a de fazer dessas crianças ‘pessoas honradas e probas’ e

homens racionais. Essa educação infantil fala da preocupação dos moralistas do

século”. Desse modo, evidencia-se que as famílias burguesas passam a controlar e

vigiar seus filhos protegendo-os das doenças do corpo (cerco higienista) e do

espírito (moral cristã). É a vigilância discreta, com fins de proteger os “pequenos”

dos males do mundo.

Enquanto isso, as famílias mais empobrecidas, desprovidas dos recursos para a

formação intelectual de seus filhos, os entregam às escolas ou internatos, tendo em

vista a vigilância constante e o enclausuramento. A diferenciação quanto ao destino

destes sujeitos estava posta. O futuro era determinado pela origem social. Esta

visão reducionista de infância tem por objetivo consolidar o modelo jesuítico de

doutrinamento da criança visando à instituição dos ideais burgueses. Alguns valores

inculcados pela Igreja, por exemplo, como submissão e humildade, reforçaram

esses objetivos capitalistas. Esta instituição assim como outras, sempre estiveram

convenientes ao projeto capitalista de sociedade.

Araújo (1997) ao pesquisar o trabalho infantil descreve sobre as situações adversas

vividas sob a lógica do capital. A autora relata também sobre a criança escravizada

no Brasil. Segundo ela, a partir dos sete anos interessava ao senhor antecipar sua

entrada no mundo adulto para utilizar sua força de trabalho. Até esta idade, as

crianças escravas viviam como se fossem bichinhos de estimação das famílias

escravistas. Enquanto isso, a criança branca iniciava sua formação escolarizada no

colégio, no qual recebia rígida educação modeladora de seus instintos. À criança

pobre ou escrava, restava o abandono social e o trabalho. O próprio poder público

encaminhava as crianças desvalidas ao trabalho escravo ou à moralização, tendo

em vista, segundo Enguita (2004, p.114), o desenvolvimento das qualidades servis.

Apesar das mudanças paradigmáticas sobre a infância a partir do século XVII, o

discurso da infância tutelada persiste. O processo de busca de garantias dos direitos

da infância inicia-se com a instituição do Código de Menores em 1927. Em 1990, a

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promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente surge a partir de um

movimento da sociedade civil, que clamava por mudanças estruturais nas

instituições estatais para menores. Nota-se, portanto, que apesar dos avanços das

cartas constitucionais e demais legislações de amparo à infância e adolescência o

descaso para com as crianças mais pobres, que continuam violentadas e

desassistidas socialmente, muitas vezes desamparadas pelas próprias famílias e

pelo poder público, persiste.

1.2.2 O capitalismo, a cultura e a mundialização na constituição da criança: alguns apontamentos

O modelo econômico neoliberal incide sobre todas as esferas da sociedade e atinge

de forma direta e indireta todas as relações sociais. O capital, e com ele o

neoliberalismo, estimula o individualismo, produz desigualdades sociais e de acesso

aos bens culturais acumulados historicamente.

No livre jogo da regulação do mercado pela política econômica vigente, as

desigualdades sociais são naturalizadas. A singularidade do sujeito, neste percurso,

se pretende vinculada às leis do mercado na sua totalidade e produzida por suas

demandas. Os determinantes históricos não aparecem e o espaço do jogo livre do

lucro18 é tomado fartamente por uma parcela da população. O que acontece com

aqueles que não participam do “jogo”, mas produziram a “bola” é algo não

visibilizado.

A mundialização na concepção de Ortiz (1994) se enraíza nas ações cotidianas das

pessoas e influencia as práticas sociais. Mas o autor pondera quanto à

homogeneização ao enfatizar que outros tipos de expressões coexistem neste

contexto da globalização. Para ele, há diversidade dentro mesmo das culturas

tradicionais e reconhece também as distinções individuais nas culturas de massa.

18 A alienação que se apresenta no consumismo, assim como na assimilação dos padrões de estética balizadores de sua essência. Quanto a isto Fromm (1975, p. 59), afirma: “Todos anseiam por coisas, coisas novas, para ter e usar. Eles são receptores passivos, os consumidores, presos e debilitados pelas próprias coisas [...]’.

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Deste modo, a afirmação de uma homogeneidade pretendida pela indústria cultural,

não impede fugas e ressignificações dos modelos impostos.

Na atual conjuntura neoliberal, a submissão das singularidades em face à cultura

global, assim como amplia o universo de conhecimentos daqueles que o acessam

com facilidade, aumenta a expropriação dos bens elementares, degenera os

recursos naturais e promove a desumanização da maioria. A crítica de Netto (2004)

aos intelectuais pós-modernos se confronta com as conexões entre a política

econômica e a realidade social, que se apresenta nas extremas desigualdades

sociais.

Chauí (2003) compartilha desta mesma idéia, quando explicita sobre a Inversão do

Real. Isso significa entender a cegueira da sociedade em relação à desigualdade

econômica que alimenta a concentração de riquezas, privilégios de uma elite política

e a privatização do espaço público. Neste contexto, a naturalização da pobreza, da

violência e do racismo está atrelada a estas problemáticas.

Para Macedo e Bartolome (2000), a globalização intensificou o distanciamento entre

os países ricos e pobres, assim como acabou provocando modelos de imigrações e

verdadeiros ataques xenófobos a diferentes etnias, em todo o mundo – uma

verdadeira guerra cultural.19 Nesta mesma perspectiva, Ortiz (1994) explicita a

crença na missão civilizatória da cultura moderna européia. Segundo ele, destituídas

deste projeto de progresso, estariam as culturas populares, as tradições dos povos

indígenas, negros e ciganos.

Neste cenário de mundialização do capital, as crianças representantes da face

precarizada da classe trabalhadora, têm servido quase que unicamente, aos

interesses da ordem econômica capitalista. Tais demandas podem ser sintetizadas

não apenas na forma como o capital utiliza o trabalho infantil, em diversos países da

periferia capitalista, como também do forte publicitário com fins de formar futuros

consumidores. O fim, senão outro prenuncia a submissão das crianças ao mercado

19 Os autores Macedo e Bartolome (2000), assim denominam o fato de que países como EUA, França e Espanha, por exemplo, utilizam a linguagem como recurso de dominação ideológica racista. O objetivo é a inferiorização e contenção de representações étnicas em seus países.

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da cultura de massa, intensificado pela mídia, produzindo simbolicamente uma

homogeneidade cultural. A invisibilidade da infância é um dos aspectos inerentes a

essa discussão. A prostituição infantil, a exploração do trabalho infantil e a violência

contra a criança, são apenas alguns dos fatores que não são questionados em sua

profundidade, visto que são também naturalizados. Araújo (1997, p. 73) compartilha

desta perspectiva ao ressaltar que:

A dimensão dada à criança, hoje, revela-se, na sociedade brasileira, como uma síntese que se determina a partir de manobras produzidas pelo poder econômico, pois o que é próprio e característico da criança define-se como instrumento de lucro, de imagens e de consumo.

Esse mercado consumidor é um dos implicadores na construção da singularidade

infantil. Ao projetar signos, imagens e modelos padronizados observados nos

brinquedos e outros artefatos culturais que encantam os pequenos consumidores, a

força midiática acaba por inserir as crianças nas estratégias do capital a partir do

desejo das mesmas.

A idéia da função modeladora da mídia é explicitada por Postman (2006), quando

descreve sobre as implicações de todo o aparato tecnológico e da comunicação na

vida das crianças. O referido autor tece críticas à exposição de imagens e temas que

ele descreve como conhecimento privado. Estes assuntos, abordados

indiscriminadamente são revelados às crianças, quando deveriam ser relegados ao

mundo adulto. O fim prenunciado seria o “desaparecimento da infância20”

Nesta perspectiva, pretende alertar sobre o espaço minimizado para a presença das

tradições da infância. São expressões, modos de ser, vestir e a linguagem de um

mundo adulto assimilado enquanto modelos pelas crianças. Quanto a estas

considerações, Postman (2006, p.142) reforça: “À medida que o conceito de infância

diminui, os indicadores simbólicos da infância diminuem com ele”.

20 Tendo em vista o entendimento sobre esta questão Postman (2006, p. 111) assim descreve: “Também não afirmo que no passado as crianças ignoravam completamente os assuntos do mundo adulto; nunca, porém, desde a Idade Média, as crianças souberam tanto sobre vida adulta como agora. Nem mesmo as meninas de dez anos que trabalhavam nas minas da Inglaterra no século dezoito eram tão sabidas como as nossas crianças. As crianças da revolução industrial sabiam muito pouco além do horror de suas próprias vidas. Graças ao milagre dos símbolos e da eletricidade, nossas crianças sabem tudo que qualquer outra pessoa sabe – de bom e de mau.”

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Compreende-se então, essa desigualdade social como causa desta rede de

interesses cumulativos da mundialização do capital. Neste cenário, a circulação de

produtos simbólicos massificadores convive ao lado da situação da infância

pauperizada, ora inalterada e invisibilizada. Sobre isso, Postman (2006, p. 145)

afirma: “À medida que a infância desaparece, desaparece também a concepção

infantil de brincar”. As brincadeiras populares, que antes ocupavam o cotidiano das

crianças, hoje são relegadas ao folclore e entraria neste espaço, o universo de

brinquedos e brincadeiras produzidos pela indústria cultural para crianças.

Em contrapartida, diante de todas as problemáticas sociais vivenciadas pelas

crianças empobrecidas em todo o mundo, a infância sobrevive. Isso porque as

crianças não são somente espectadoras, mas atores sociais. Sarmento e Pinto

(1997) complementam que, convivendo com a cultura transmitida pelo adulto e a

cultura produzida na relação entre pares, a questão é o grau de autonomia que a

criança consegue sustentar diante das complexas relações sociais a que as culturas

infantis se configuram na relação geracional, assim como na interação com a cultura

dos adultos. Mas existe uma única cultura geracional? O que é cultura?

Para Chauí (2003, p. 130) a cultura “[...] é concebida como fazer humano na relação

com a materialidade e com a história”. Essa concepção afasta a idéia de uma única

cultura geracional, superior ou inferior. Brandão (1985, p. 22) participa da mesma

proposição de Chauí e complementa: “Assim, a própria história humana não é outra

coisa senão a trajetória do processo por meio do qual o trabalho social do homem

opera a dialética da transformação da natureza em cultura”.

Estes autores concebem a cultura como fazer humano21 através do trabalho sobre a

natureza. Desta forma, compreende-se a cultura como resultado da história do

sujeito ou do grupo social. A infância, neste percurso, enquanto categoria geracional

se constitui neste fazer humano, que lhe é próprio, a partir da história e da cultura.

Apesar da invisibilidade política da infância, as crianças produzem cultura. Sarmento

(2005, p.21) considera que “As crianças não são passivas, emitem juízos,

21 Para Brandão (1985) o homem age sobre a natureza e sobre o mundo. Através do trabalho o homem se humaniza a si mesmo e atribui significado ao mundo e aos objetos produzidos por ele.

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interpretações que configuram e transformam as relações sociais”. Esta afirmação

demonstra, portanto, que as crianças agem, ressignificam e interferem nas relações

sociais. Desse modo, apesar das investidas homogeneizantes configuradas pela

indústria cultural e pela proposta padronizante da instituição escolar por meio de

seus diferentes mecanismos, as crianças podem construir seus próprios modos de

ser e viver no mundo que lhes é oferecido.

Este paradigma da criança passiva frente à socialização do adulto é também

analisado por Trevisan (2007) quando afirma ser este termo desadequado à nova

concepção de infância – visto que estes sujeitos não só recebem influências do

contexto social, mas recriam e produzem outros significados. Esta aposta pode ser

confirmada nos relatos de Fernandes (2007) ao descrever sobre “As Trocinhas”,

brincadeiras infantis que pesquisou na cidade de São Paulo no início do século XX.

Segundo ele, nas brincadeiras tradicionais as crianças interagem socialmente com

pessoas diferentes. Nestas interações grupais elas experimentam papéis sociais e

suas organizações e assim, as regras são respeitadas ou transgredidas em função

do grupo.

A historicidade e o contexto cultural influenciam as sociabilidades infantis. Para

Fernandes (2007 p.334): “O essencial, contudo, é que nessas várias circunstâncias

a criança age ou atua segundo modelos de comportamento fornecidos e

sancionados pela sociedade global”. Desta forma, é possível compreender as

relações estabelecidas nas brincadeiras, nos jogos infantis como relações

construídas na históri, na cultura e no seu grupo social.

A partir destas considerações é possível compreender as brincadeiras infantis como

formas de reprodução/recriação das relações sociais mais genéricas. Daí pode-se

compreender a brincadeira e a violência entrelaçadas se constituindo

conjuntamente.

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1.3 A INFÂNCIA NA PERSPECTIVA ÉTNICO-RACIAL

1.3.1 Imaginário racial e as marcas na infância Bosi (1992) relata a história do processo modernizador predatório como estratégia

mercantilista, intensificado a partir do século XVI. Nestas circunstâncias, o genocídio

de povos abriu caminho e/ou intensificou a exploração de riquezas naturais. A

aculturação de índios, por exemplo, significou a concretização do modelo econômico

dominante. Esse processo “civilizatório” do branco europeu, imposto aos povos

colonizados, é parte de um projeto expansionista. As relações de exploração e

aculturamento continuam em pleno século XXI, quando ainda persistem com toda a

força, as violências para com os povos indígenas22, a perseguição a grupos

minoritários e estrangeiros nos EUA e na Europa.

Chauí (2006), ao dissertar sobre o mito fundador da sociedade brasileira retrata o

cenário construído por intelectuais nacionalistas no século XIX. Visionários de uma

sociedade próspera e bem vista pelos europeus, estes progressistas constroem um

projeto de sociedade. As divisões sociais e raciais são naturalizadas ou

consideradas desvio moral. Ao abstrair a materialidade das desigualdades sociais,

negros, índios, mulheres, são apresentados de forma negativa e estereotipada. Os

discursos imagéticos e a ideologia sobre as diferentes etnias, na visão dos

intelectuais modernistas ganham corpo nas obras da época (século XIX):

Em relação aos índios: “A inferioridade objetiva dos nativos na hierarquia natural dos

seres justifica que, subjetivamente, escolham a servidão voluntária e sejam legal e

legitimamente escravos naturais”. (p.65) “O índio é o símbolo do Brasil audaz,

guerreiro, e puro” (p.51)

22 Luciano (2006) explica que o apelido índio surge pelos navegantes que pretendiam chegar às índias. Para o autor, não existe nenhuma população indígena que tenha se denominado indígena. Segundo ele, cada índio tem sua nação própria, autodeterminada – Guarani, Yanomami, Tupunikim. Portanto, desde Colombo, a denominação índio continua, pois o sentido antes pejorativo ganha significado político para estas populações.

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Em relação aos negros: “Dada à afeição natural dos negros para a lavoura, era

também natural que os vencidos da guerra fossem escravos naturais para o trabalho

da terra.” (p.66).

O folclore também era uma forma de inferiorizar negros e indígenas. Fernandes

(2007, p. 242) ao pesquisar tal tema na cidade de São Paulo no século XX, identifica

diversos elementos simbólicos preconceituosos presentes na tradição oral - lendas,

canções, rimas. Alguns exemplos desta representação levam à compreensão da

construção ideológica negativista. O tipo físico aparece como legado desta

representação de inferioridade:

Deus quando fez o negro Começou no calcanhar, Quando chegou ao nariz, Deu o diabo para acabar, O diabo tinha preguiça, Não queria trabalhar: Deu um soco no nariz E o acabou de esborrachar.

A ideologia neste quadro de inferiorização do índio e do negro impregnou a

sociedade com imagens deturpadas sobre os mesmos. Ser um país miscigenado

retirava o “peso” de ser um país constituído de uma maioria de negros e índios. Em

tal contexto, ser mestiço “aliviaria” tal sina.

Os livros, obras de arte, fotografias, as imagens e discursos da época tinham como

objetivo legitimar as classificações raciais. No topo da hierarquia o homem branco

europeu reinava absoluto e na Europa circularia notícias de um Brasil

embranquecido e “civilizado”.

Neste mesmo contexto, a miscigenação é retratada com a mesma finalidade:

O branco é filho de Deus, O mulato é enteado O cabra não tem parente E negro é filho do Diabo (p. 241)

A convivência nestas tradições alimentava o imaginário racial das crianças. Nesta

concepção ideológica o “papão” representava o negro, que ameaçava as crianças:

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Olha o negro velho Em cima do telhado Ele está dizendo Quero menino assado (p. 228)

Vê-se por estes poucos exemplos, o quanto o discurso ideológico atrelado à

linguagem, à cultura e às tradições, acaba por legitimar o “lugar” destinado a tais

grupos étnicos. Acrescenta-se a este conjunto uma canção carnavalesca de

Lamartine Babo: “O seu cabelo não nega mulata, porque é mulata na cor. Mas como

a cor não pega mulata, mulata eu quero o seu amor”. Os sentidos aferidos à mulher

negra neste texto demonstram uma negação às diferenciações inerentes à

raça/etnia. Ainda hoje é possível verificar muitos destes materiais sendo utilizados

nas próprias escolas, sem uma análise dos elementos presentes nos textos.

Algumas canções folclóricas como “Dança neguinha, eu não sei dançar, pega no

chicote que ela dança já”. Brincadeiras como “Boca da nega” também fazem parte

destas representações raciais.

Além deste imaginário racial outras formas de violências são constatadas na história

da infância no Brasil. Ramos (2000) descreve sobre a trajetória de sofrimento de

muitas delas durante o processo de colonização (século XVI). A exposição a

diferentes formas de violências a que os grumetes e órfãs do Rei eram submetidas

nas navegações marítimas. Os abusos sexuais, o trabalho insalubre, os castigos

físicos e o desamparo sofrido pelos pequenos meninos e meninas ao serem trazidos

para o Brasil, são fatos que retratam o sentimento de desprezo e discriminação para

com a infância. Para o autor, o objetivo em trazê-las era que servissem de alguma

forma, fosse através do trabalho árduo ou para o casamento (caso das meninas

ciganas).

Ainda sobre esta questão, Chambouleyron (2000) descreve que as crianças

indígenas eram consideradas inocentes como uma cera em que tanto se desejava

marcar e inscrever-se. Isso demonstra que elas eram ignoradas, enquanto

produtoras de cultura, uma vez que seus cantos e suas alegorias eram proibidos.

Eram chamadas de pequenos gentios. e a “salvação de suas almas” estava nas

mãos dos jesuítas.

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Esse quadro de discriminação para com as crianças ao longo da História do Brasil é

relatado também por Rizzini (2000), quando descreve sobre as crianças esquecidas

das Minas Gerais, no ciclo do minério. Segundo a autora, elas eram totalmente

ignoradas. Não apareciam de nenhuma forma nas correspondências da época; e em

raras vezes as crianças negras eram retratadas como ‘anjinhos’, o que ocorria com

as crianças brancas.

Desse modo, em contexto de sobrevivência onde o ambiente insalubre, a exposição

às doenças, a fome e outras mazelas sociais, a morte desses meninos e meninas,

pouco ou em nada importava, pois outros nasceriam e com sorte sobreviveriam.

Quanto às crianças escravas e pobres a discriminação era ainda pior, pois não

tinham direito nem mesmo ao enterro oficializado. Nasciam e morriam sem terem

existido legalmente.

Outras formas de discriminação podem ser apontadas na história do Brasil, como a

roda dos expostos23, nesta, eram colocadas as crianças abandonadas, por sua

condição social/racial. O internato era o destino possível dos menores que eram

vistos como “moleques de rua”, os quais deveriam ser educados contra os vícios da

malandragem. Por outro lado, os filhos da elite recebiam a clássica educação

burguesa das artes, literatura, línguas e matemática.

A discriminação podia ser evidenciada com mais freqüência quando se tratava das

crianças negras e/ou pobres. O estigma do termo menor utilizado nas legislações do

século XIX e XX relacionava a criança empobrecida à delinqüência. Passetti (2000,

p.362) cita o exemplo da lei estadual nº 2. 705 do Rio de Janeiro que diz:

Crianças e jovens infratores ou abandonados, provenientes das situações de pobreza passam a ser identificados como menores e o complexo institucional de controle para inimputáveis se expande justificando o atendimento para os menores de idade pobres e perigosos, os pequenos bandidos. (grifo do autor)

A partir da constituição de 1988, o estigma do termo menor diminui, porém, a

discriminação para com os meninos e meninas, em sua maioria negros, em situação

23 Segundo Rizzini (2000, p.181,) instituição que acolhia crianças através de um mecanismo que impedia a identificação de quem aí as abandonava.

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de abandono nas ruas e albergues permanece. Na década de 1980, inicia-se a

discussão sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, legitimado em 1990.

Porém, esta política ainda não se desdobrou em ação/transformação da situação de

desamparo social e violências a que as crianças brasileiras ainda são submetidas. A

inauguração do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) trouxe às crianças

brasileiras, a expectativa de uma vida digna, amparada na forma da lei. Ocorre que

essa lei é ainda uma ficção, quando na verdade, a realidade das crianças pobres e

dos chamados grupos minoritários, continua cercada por descaso e negligência por

parte do poder público em geral.

Esta ficção é explicitada por Telles (2006) ao afirmar que, a igualdade prescrita na

lei produz signos de identidade cívica, porém, em essência exclui as maiorias. Desta

forma, há um sentido de justiça proclamado, mas seus efeitos são bloqueados. O

artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (2001) afirma que “Nenhuma

criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade, opressão.” Todavia, este fato ainda é ignorado pela

maioria das escolas brasileiras.

Desta forma, fecha-se o cerco excludente que incide sobre as crianças

discriminadas, agredidas de variadas formas e por diferentes agentes e instituições.

Esta questão é descrita por Bazílio e Kramer (2003, p. 116) quando afirmam: “Cada

vez mais vão se enfraquecendo seus laços afetivos e seus vínculos sociais; sua

identidade se constitui na violência”. Deste modo, colocar a infância na discussão

sobre violência da discriminação racial torna-se relevante, na medida em que traz à

tona questões pouco discutidas, considerando a histórica indiferença da criança

como sujeito de direitos, até mesmo pela própria escola.

Para Araújo (1997, p 47), na história da sociedade brasileira, a mulher, a família e a

escola vêm legitimar o projeto conformista de infância estruturado nas diferenças

sociais, articulado ao modelo capitalista de sociedade. A autora faz uma análise em

relação à constituição desse interesse político hegemônico quando afirma:

Nesta trama construída pela classe dominante, a criança indígena e a criança escrava revelam-se como integrantes de uma realidade sintetizada por interesses especulativos sobre a infância, advindos do campo religioso,

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econômico e político. Aculturadas por regras e costumes, expressam a força utilizada pela elite em cooptar as camadas populares, os expropriados de condições econômicas para um projeto de sociedade conformista e dependente da cultura dominante.

A criança negra e indígena no Brasil, imersas nesta trama econômica estrutural,

vivencia os reflexos da política neoliberal excludente, que lhes nega direitos

elementares. Crianças expropriadas da dignidade e da tão falada cidadania. Essa

negação de direitos, segundo Araújo (2005, p. 68) “[...] tem excluído a criança da

dimensão pública da vida social, mantendo-as sob a égide das diferenças que

recusam toda perspectiva de construção da igualdade”.

Ao manter-se indiferente às condições de pobreza da maioria, o Estado oferece o

espaço da assistência visando minimizar a miséria. É o que sintetiza Telles (2006),

parafraseando Sposati. Segundo ela, isso representa o lugar da não-cidadania. A

cidadania parece ser um presente oferecido pelo Estado através das legislações que

a corporificam e do assistencialismo. Por outro lado, aqueles que efetivamente não

acessam os bens e recursos necessários – os direitos sociais, vão se constituindo à

margem destes direitos. O que se pretende ressaltar diante destas ponderações é a

relação da infância com a ideologia, tecida na história e nas relações materiais.

Em relação aos grupos étnicos, à proporção que a marginalização social e a

negação dos direitos constituídos se perpetuam na sociedade, isso interfere na

construção de relações sociais respeitosas. Apesar da renovação de estratégias de

invisibilização do indígena e do negro, estas populações24, na tentativa de afirmar

sua identidade buscam romper com a histórica exploração e discriminação racial

carregadas de sentido pejorativo, que ainda marcam suas vidas.

24 Segundo Luciano (2006) dados demográficos identificam cerca de 5 milhões de índios no Brasil no ano de 1.500. Atualmente, existem aproximadamente 700.00024 índios em todo o país. Deste total, 49% se concentram na região Norte e apenas 2% na região Sudeste. Cabe esclarecer que este contingente de populações indígenas se divide em diversas etnias e grupos lingüísticos. No entanto, não há uma análise crítica aprofundada na história sobre a violência e extermínio destes povos.

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1.3.1.1 Notas sobre a infância indígena e a ideologia étnico-racial em Aracruz

Quando eu tinha seis anos de idade, eu ainda era medroso [...] Eu não tinha experiência da mata toda. Quando eu tinha sete anos de idade eu já andava mais, às vezes com a ajuda do meu pai [...] peguei conhecimento e entendimento de toda região de mata. Quando eu tava com sete anos apareceu... Eu nunca tinha visto um carro. Dessas coisas modernas, só uma bicicleta eu tinha visto. Determinada época chega aí um trator [...] Como é que tava acontecendo isso? [...] Nós vê aquela máquina tão potente derrubando [...] Nós achemo bonito aquilo lá. É uma coisa que nós nunca vimo. E quando nós precisava derruba uma árvore para fazê uma canoa, nóis batia quase o dia prá derrubá e eles chegava com aquela máquina, com dez minuto ela derrubava um trecho enorme, e não escolhia madeira! [...] hoje quando eu lembro nisso eu fico revoltado... Eu não digo só índio, mas, as árvores, as suas madeira de lei que existia na região dentro dessas mata, e as caça... O meu filho não sabe o que é uma anta, porque eu não tive o prazer de conhecer, porque logo que eu comecei a toma liberdade que minha idade estava permitindo, já veio a destruição [...] E eu ainda achei bonito!

(Cacique da aldeia Caeira Velha - 1996)

Aracruz é o único município do Espírito Santo com aldeias indígenas, oficialmente

reconhecidas. Coutinho (2006) relata o processo histórico que levou à extinção

muitos grupos indígenas que habitavam várias regiões do estado. Atualmente os

grupos indígenas em Aracruz, se dividem em aldeias assim distribuídas: Povo

Tupinikim: Caieiras Velhas, Comboios, Irajá, Pau-Brasil. Povo Guarani: Boa

Esperança, Três Palmeiras, Piraquê-açu.

Os índios Guarani25 no Espírito Santo vivem no litoral de Aracruz. São provenientes

do fluxo migratório que lhes é peculiar, enquanto povo Guarani. Vieram do sul do

país cumprindo uma antiga tradição cultural. Os Tupinikim26 vivem em aldeias mais

afastadas geograficamente e são nativos da região. Estes grupos se diferenciam

entre si, no que se refere à cultura, religião, língua, mas compartilham a história de

exploração, exclusão, inferiorização a que sempre foram tratados ao longo da

história. Há décadas estas populações se unem na luta pela terra e pelos direitos ao

25 Cota (2008) descreve sobre a história dos Guarani e o deslocamento deste grupo indígena para a região de Aracruz/ES na década de 60. Provenientes dos países vizinhos ao sul do Brasil, eles migraram passando pelo Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Chegando aqui, tiveram conflitos com os grupos Tupinikim e posteriormente, dividiram as terras entre si, ficando com as terras no litoral de Aracruz. 26 Com base em dados de pesquisas antropológicas, Almeida (2007) afirma a existência dos Tupinikim no Espírito Santo há mais de 500 anos. Pela História Oral, os indígenas mais idosos, relembram informações de aldeias que existiam na região e que desapareceram com a instalação da Companhia Ferro e Aço (1940) e da empresa Aracruz Celulose (década de 70).

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reconhecimento da identidade e cultura do seu povo. Sofrem também o descaso dos

órgãos públicos para com suas necessidades e aspirações. Além disso, são

discriminados por parte da sociedade. Sobre este contexto, Cota (2008, p. 95)

afirma:

Outra frente de luta dos Tupiniquim e Guarani dá-se no intuito de reverter a política de produção da não-existência e invisibilidade em relação a eles adotada pelo governo do Espírito Santo, que sistematicamente não se tem interessado em resolver os problemas que afetam diversos setores – subsistência, saúde, educação - da vida dos Tupiniquins e dos Guarani. Os planos do Governo Estadual têm privilegiado o aumento da produção agropecuária e industrial em detrimento dos direitos das sociedades tradicionais.

Na convivência dos não-indígenas com os indígenas em Aracruz - nas ruas, no

comércio, nas instituições públicas e privadas, é possível observar expressões

preconceituosas de desrespeito à cultura e movimentos de luta destes grupos. As

referências são estereotipadas e às vezes a raiva é explicitada verbalmente, como

foi possível presenciar em várias situações. Piadas preconceituosas, xingamentos,

olhares de repúdio direcionados aos indígenas – crianças, jovens e adultos. Isso

acontece em Aracruz! Os indígenas ouvem e sofrem, porém têm dificuldades em

romper com esta ideologia.

Nessa rede de interesses mantenedores de uma política da indiferença para com

estes sujeitos, a ideologia e o silêncio concretizam o que Chauí (2003) denomina a

inversão do real. Ao ignorar direitos sociais dos povos indígenas, o Estado se

configura em uma lógica privatista. E assim, destituídos da visibilidade no espaço

público de direito, eles são representados como violentos.

Essa premissa ideológica do indígena de Aracruz como violento tornou-se mais

intensa quando em 2006, policiais federais vieram em missão de desocupação das

terras, na Aldeia Olhos D’água, disputada pela empresa Aracruz Celulose27. O que

se pronunciou na imprensa fez referência à suposta violência dos índios, que além

de terem “invadido” área privada, atacaram os policiais federais. Essa notícia

“mascarada” demonstra a potencialização do poder ideológico do capital local em

parceria com redes de televisão e com o próprio Estado. 27 Empresa produtora de papel celulose a partir do eucalipto. Está localizada na Barra do Riacho, litoral de Aracruz/ES.

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Outro exemplo da ideologia preconceituosa presente na vida desta comunidade

aconteceu em 2006, durante o processo de disputa de terras entre os grupos

indígenas e a Aracruz Celulose, quando esta empresa espalhou outdoors (fotografia

em anexo) por diferentes bairros do município com as seguintes frases:

“A FUNAI defende os índios, quem defende nossos empregados?” “A Aracruz trouxe o progresso, a FUNAI, os índios” “Basta de índio ameaçando os trabalhadores”; “Essa agressão a Aracruz Celulose atinge nossas empresas também!”

Estas expressões ficaram expostas por um tempo, causando euforias aos mais

veementes defensores da política da empresa em relação aos indígenas e, por outro

lado, a indignação aos questionadores desta situação. Diante destes fatos, os

indígenas – vítimas diretas deste massacre denunciaram tal desrespeito à justiça e

continuaram na luta pelos direitos a terra.

Nota-se que o trabalho e trabalhadores são termos que apareceram em todas as

frases. Observa-se, de forma publicizada, um fragmento do que seja a relação de

trabalho alienado28. A intenção exploradora da lógica econômica pode estar atrelada

à consciência dos trabalhadores da empresa. Isso porque estas frases foram

legitimadas por eles, em passeata. Os gritos que se repetiam eram relacionados às

frases dos outdoors. A postura destes trabalhadores ao demonstrarem repúdio aos

indígenas em função do trabalho na empresa pode representar um receio de perder

o emprego ou uma distorção dos valores éticos, sob o ponto de vista do

individualismo se sobrepondo aos direitos do outro, neste caso, dos indígenas.

Fromm (1975) tece considerações sobre as categorias alienação e trabalho em

Marx. Chama a atenção uma citação plausível nesta discussão: “Essa alienação da

essência humana leva a um egoísmo existencial, descrito por Marx como a essência

do homem convertendo-se em “um meio para a existência individual dele. Ele (o

28 Fromm (1975) analisa o conceito de alienação em Marx. Para ele, “essa alienação da essência humana leva a um egoísmo existencial, descrito por Marx como a essência humana do homem convertendo-se em” um meio para a existência individual dele” (grifo do autor).

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trabalho alienado aliena o homem de seu próprio corpo, natureza externa, vida

mental e vida humana). (grifo do autor)

Esta situação deixa à mostra o individualismo típico da sociedade capitalista. Nela,

os valores são invertidos sob a força impelida pelo poder. No caso Aracruz, vê-se

uma disparidade social nas divisões de classe. Os “guetos” se distribuem nos

bolsões de pobreza. O descaso social para com as aldeias indígenas e bairros mais

pobres é visível.

Outro aspecto que merece uma reflexão diz respeito aos indígenas não serem

considerados trabalhadores. Este discurso é também “mascarado”, pois é possível

perceber os indígenas tendo que deixar suas tradições do trabalho na própria aldeia.

E assim. Podem ser vistos trabalhando em supermercados, postos de gasolina ou

como garis nas ruas do município.

No período de conflito mais intenso, o repúdio aos indígenas era explicitado nas

expressões das pessoas, inclusive em órgãos públicos. O que permeava os conflitos

era a negação da existência de indígenas em Aracruz. Quanto a esta questão, Cota

(2008, p. 62) pesquisadora da Educação Indígena Guarani neste município,

assinala:

A não-existência dos povos indígenas continua sendo produzida nos dias atuais. No ano de 2006, a empresa Aracruz Celulose, lançou no Espírito Santo, uma ampla campanha, pelos diversos meios de comunicação, tentando provar que no Estado não existiam mais índios, argumento para tentar justificar seu domínio da área reivindicada pelos Tupiniquim e Guarani.

Loureiro (2006 p.05) discute em seu texto que idéias revisionistas e negacionistas

em relação à história dos índios e negros apresentam exemplos de expropriação de

direitos destas etnias. Isso significa terem o passado e suas histórias revisadas ou

negadas. Para o autor, um desses exemplos se refere à situação vivida pelos índios

Tupinikim e Guarani no município capixaba de Aracruz. Segundo ele: “Faz alguns

anos o nítido propósito desses outdoors é fortalecer e reproduzir um ideário de

discriminação e preconceito em relação aos índios”.

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Negar o visível diante dos olhos é uma prática de poder. Como seria possível afirmar

a não-existência daqueles que sempre estiveram aqui?29 Essa ação negacionista

produz a invenção de uma suposta realidade com fins de perpetuação da rede de

influência política a favor de uma classe, de uma lógica instituída.

Chauí (2000) considera a ética como práxis. O caráter da ética é a autonomia do

discernimento em relação à justiça, aos valores morais subjacentes às formas de

sociabilidade. Desta forma, é possível identificar os vários mecanismos utilizados

pelo poder local (empresas, instituições públicas, sociedade) de se tentar justificar a

violência direcionada a estes grupos. A veiculação de uma suposta representação

dos indígenas em Aracruz desemboca na produção e legitimação de uma “verdade”

inventada e injusta, ou seja, uma “máscara”.

Goffman (1988) prescreve a estigmatização de certos grupos como estratégia de

afastá-los das possibilidades de competição. Essa afirmação leva ao entendimento

de que a dominação requer antes de tudo, a coisificação. Assim, o estigma serve de

legitimação de que uma “coisa” não será reclamada, portanto, não será também um

atropelo aos fins desejados.

As tiras publicitárias que a referida empresa divulga na mídia não retratam o que

realmente acontece. O impacto sobre o próprio bairro30 onde ela se insere é

elucidativo de injustiça, pseudo-ética, além da degradação dos recursos naturais.

Todo este triste cenário está em exposição logo após a sua porta de entrada. Até as

vias de acesso ao bairro foram delineadas a partir de seus interesses. Estas

informações não constam nas cartilhas, nem na frase veiculada na televisão, em

ocasião dos Jogos Pan-americanos no Rio de Janeiro/2007: “O Brasil fazendo um

bonito papel no mundo inteiro”.

29 Além do conhecimento comumente verificado nos livros de História do Brasil sobre os indígenas anterior à colonização, é possível acessar informações sobre os indígenas no Espírito Santo, principalmente ao longo da costa. Almeida (2007, p. 45) afirma, com base em pesquisas: “Estima-se a fundação de dez aldeamentos no Espírito Santo, sendo que dois se destacaram predominantemente, que são o de Reritiba, em seguida Benavente e hoje denominado Anchieta e Aldeia Nova, depois chamada Reis Magos e atualmente Nova Almeida [...] É importante lembrar, porém, que o primeiro aldeamento do Espírito Santo foi fundado em Santa Cruz no ano de 1556.” 30 Sobre os diversos impactos provocados aos povos indígenas de Aracruz e regiões vizinhas, vê-se em “Campanha Internacional pela Ampliação e Demarcação das Terras Indígenas Tupinikim e Guarani (1996).

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Também não está na mídia o resultado dos anos de luta dos guarani e Tupunikim

pela posse das terras, quando em 27 de agosto de 2007, o ministro da justiça assina

a posse das terras, pelos indígenas de Aracruz.31

Neste contexto de discriminação, as crianças também são afetadas pelo imaginário

preconceituoso em relação à sua história e de seus antepassados. Nos bairros

vizinhos às aldeias indígenas, a discriminação aos “indiozinhos” denominação

pejorativa aferida às crianças indígenas, é constante.

Nas escolas do município, “convivem” estudantes índios e não-índios. A luta pela

Educação Indígena32 ganhou espaço e reconhecimento. Porém, nem todas as

crianças indígenas estudam nestas escolas, localizadas nas aldeias. Muitos

estudantes indígenas estudam em diferentes escolas do município, estaduais e

municipais.

As nossas crianças que estudam fora muitas vezes são humilhadas, como aconteceu na escola de Rio Bananal que um professor xingou uma criança guarani de “índio porco”. Por isso não acho certo também as crianças saírem para estudarem fora da aldeia. Teao (apud Cota, 2008, p.91) Em 2004, devido às discriminações sofridas pelos alunos guarani no ônibus escolar da Prefeitura Municipal de Aracruz que os transportava até à escola de Coqueiral, foi necessário transferir os alunos dessa escola para a EMEF de Santa Cruz, e esses passaram a ir de ônibus de linha. Cota ( 2008, p.91)

Além dos estudantes indígenas estarem nas escolas não-indígenas, nota-se que

grande parte da população do litoral de Aracruz é indígena não aldeado. Estes

sujeitos sofreram a extinção de suas aldeias de origem e vivem precariamente nas

periferias do município e principalmente no litoral33. Assim como os indígenas das

aldeias, os não aldeados também são afetados pela ideologia preconceituosa em

relação à sua etnia e ancestralidade. Ouvem-se relatos de pessoas que preferem

31 A devolução da posse das terras aos indígenas Tupinikim e Guarani de Aracruz se deve à militância dos próprios indígenas, lideranças políticas, religiosas indigenistas e de diferentes movimentos sociais que a eles se juntaram, ao longo de quase 40 anos. 32 Almeida (2007) relata a trajetória do movimento em prol da Educação Escolar Indígena no município de Aracruz, que culminou com a formação específica para professores indígenas assim como, a ampliação das séries finais do Ensino Fundamental nas aldeias a partir de 2005. 33 Coutinho (2006) descreve sobre os aldeamentos existentes na região antes dos processos de invasão e posteriormente, da industrialização. O aculturamento advindo da extinção das aldeias, principalmente no litoral do município, provocou a marginalização e empobrecimento destes povos, que hoje sobrevivem no município, e em maior número, no litoral.

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esconder sua descendência indígena, por receio de uma possível discriminação

étnico-racial.

Na escola pesquisada, se fazem presentes muitas crianças indígenas advindas

deste processo de desocupação de suas terras e de aculturação, fortemente

evidenciada no município. São crianças nativas, netas e bisnetas de indígenas que

em algum tempo viviam nas aldeias. Crianças provenientes de diferentes estados e

outros municípios também freqüentam esta escola. Muitas famílias saem do

nordeste, principalmente da Bahia, vindo para o município em busca de emprego.

Pode-se identificar que a grande maioria da população é constituída de negros e

indígenas .

Negros, indígenas aldeados e não aldeados, descendentes de europeus (em menor

número) convivem no bairro onde ocorre a pesquisa. Essas minorias interterritoriais,

no sentido pleiteado por Enguita (2004) representam os diferentes grupos

convivendo no mesmo espaço territorial, os quais carregam suas marcas regionais,

da linguagem, crenças, religião, hábitos e neste espaço precisam intercambiar-se

com os diferentes sujeitos. Na escola, essa comunicação pode acontecer às vezes

de forma injusta, na medida em que reproduz os interesses de certa cultura, de um

poder e de certo valor de mundo – etnocêntrico que se contrapõe às especificidades

dos tidos como “diferentes”.

A histórica expropriação dos direitos dos indígenas no Brasil implica em reconhecer

um dos entraves à democracia, na medida em que o não reconhecimento destas

populações em suas especificidades justificaria a “natureza inferior dos mesmos” 34

e, portanto, sua distinção e dominação.

34 Retomam-se aqui as proposições anteriores de Telles (2006) sobre o discurso da naturalização e coisificação do humano em suas diferenciações.

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1.3.2 Os silêncios e silenciamentos: o racismo como pano de fundo

“Tem certas coisas que eu não sei dizer”

Poucos autores se propuseram a discutir os silêncios, talvez pela própria concepção

negativista imposta a este, a partir do desenvolvimento da linguagem. As diferentes

formas de comunicação, construídas ao longo da história da humanidade foram

aprisionando o silêncio, ficando este, cada vez mais relegado à margem. Pesquisar

os silêncios tornou-se desafiante por se configurar em algo difícil de compreender.

Cantado e poetizado por artistas e escritores, o silêncio é representado de diferentes

formas, ganhando visibilidade poética, romântica ou melancólica. Lulu Santos canta:

“Não existiria som se não houvesse o silêncio [...] Tudo que cala fala mais alto ao

coração [...] Somos feitos de silêncio e som. Tem certas coisas que eu não sei

dizer”. Pode-se pensar que neste trecho ele exalta o silêncio existencial. O silêncio é

enaltecido ou justificado como necessário. O autor se refere a sentimentos intensos

quando em silêncio, e assim, reconhece o lugar da não-fala. Ele se diz implicado

pelo “tudo o que cala” e aponta a existência desse espaço em todo o ser humano.

Em “silêncio”, muitos artistas, em épocas difíceis, encontraram na música, o espaço

para a palavra censurada (calada). A letra de música era uma das formas de

resistência encontradas por aqueles que não se submetiam às imposições políticas

da época.

Mesmo calada a boca, resta o peito. Silêncio na cidade não se escuta [...] Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano. Esse silêncio todo me atordoa. Atordoado eu permaneço atento [...] Mesmo calado o peito, resta à cuca [...] Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue. (Chico Buarque)

O sentido do silêncio que é opressão, e ao mesmo tempo resistência está na

metáfora do “cálice”. A repressão ditatorial não o impede de usar o espaço do

silêncio como possibilidade de movimentos, pois a resistência não aparece nas

palavras, mas nos espaços, nos sentidos e significados expressados sob diferentes

formas.

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Para além de uma reflexão mais aprofundada deste texto, o silêncio não é descrito

como o vazio, pelo contrário, ele existe e se movimenta em sentidos positivos. Ele é

vivo! É vida! Assim, na arte e na poesia, o silêncio perpassa toda a expressividade,

adquirindo sentidos e diferentes contornos. A interpretação do significado dos

silêncios da música de Chico pode ser apreendida a partir das palavras que

acompanham o texto. Pode representar impasses, contradições ou simplesmente

não ser compreendido. O silêncio poderia ser simplesmente silêncio, nada mais,

porém, é vida, na medida em que abarca sentidos.

O silêncio filosófico de Oliveira (2007, p.79) é tratado como o “Pai”. Pai de toda a

palavra. Para ele, o silêncio é o que verdadeiramente unifica a experiência. “O

silêncio dá densidade aos seres. Os sons dão ritmo, alegria, movimento,

graciosidade, lentidão, tristeza, melancolia, euforia [...] Mas o silêncio dá o peso do

existir. Tudo o que existe parece existir antes do silêncio”.

Assim, o silêncio é reconhecido na arte, na poesia e na filosofia. Na perspectiva da

Análise de Discurso, Orlandi (2007, p. 42) descreve que, “O silêncio não fala, ele

significa”. A autora concebe o silêncio como matéria significante, carregada de

sentido. Para ela, o silêncio não é falta, ele fala por si e constitui-se no simbólico. O

silêncio então é projetado a um campo de análise pouco explorado. Neste espaço

dos sentidos ele ganha imponência, positividade, um lugar ou lugares. Estabelece

mediação com as palavras na medida em que as atravessa, porém, não é

linguagem, mas é sentido, significação. O silêncio nesta perspectiva inscreve-se na

história, na cultura e na política. Não é metafísico, é real.

Outros referenciais de análise podem trazer à luz algumas reflexões inerentes a não-

fala. No entanto, a análise do discurso na perspectiva de Orlandi (2007) é que

fundamenta as questões aqui apresentadas. O que significaria então o silêncio? É

passível de interpretação? A autora afirma existir uma multiplicidade de silêncios,

dentre eles a contemplação, a revolta e o exercício do poder. O silêncio não é

interpretável e compreendê-lo exige refletir sobre sua historicidade. Isso pressupõe

uma observação dos seus efeitos, daquilo que o produz e que é produzido por ele.

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Segundo Orlandi (2007, p. 48), “[...] pensar o silêncio é pensar a solidão do sujeito

em face dos sentidos. [...] É por aí que se pode fazer intervir as ‘fissuras’ que nos

mostram efeitos de silêncio”. (grifo da autora). Nota-se que há uma possibilidade

colocada pela autora, de se provocar outros movimentos de sentidos nos silêncios.

E neste caminho, é possível pensar no silêncio e silenciamento das crianças,

tentando, por exemplo, identificar formas de “fazer calar” presentes e dialogar com

os sentidos ali camuflados.

Ao discutir o silêncio, não se pode perder de vista a existência dos diferentes

significados, formas e sentidos. Para Orlandi (2007, p. 68), nos silêncios os sentidos

são diversos e transitam em uma dinâmica de movimentos produzidos antes e fora

do sujeito - na historicidade, na ideologia subjacente às formações discursivas.

“Evidentemente, não é do silêncio em sua qualidade física de que falamos aqui, mas

do silêncio enquanto sentido e história (silêncio humano), ou seja, como matéria

significante”.

Orlandi (2007) concebe o silêncio de duas formas distintas: o silêncio fundador, “princípio de toda significação” e o silenciamento do “poder dizer, atestado pelo

discurso”. Para ela, o silêncio fundador é significante por si mesmo e a política do

silêncio (silenciamento) são os sentidos não ditos, por não poderem ser ditos. Desse

modo, não se corre o risco de que algo indesejável seja dito (censura). Neste

sentido, o silêncio é provocado por uma instância externa, histórica, ideológica. É o

que afirma Decca (1994, p. 69):

Arrancar os dominados do silêncio significa também entender como esse silêncio foi produzido, isto é, como o proletariado foi derrotado não só na luta política, mas também suprimido pela visão ideológica constituída pelo exercício de dominação.

Neste aspecto, olhar sobre a história pode revelar as disposições estruturadas e

suas manifestações na formação da identidade dos sujeitos. Há que se retomar as

contradições inseridas na sociedade capitalista e seus reflexos na subjetividade dos

mesmos. Neste contexto, Paulo Freire (1988, p. 43) aponta: “Quem inaugura a

negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada, mas os

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que a negaram, negando também a sua”. Estas considerações situam a opressão do

racismo como uma das artimanhas da dominação.

Autores como Cavalleiro (2003), Munanga (2006) e Gomes (2000) compreendem a

gênese do silêncio em torno da questão racial no Brasil, como uma estratégia de

ocultamento desta problemática. As discussões sobre a representação do negro e

do indígena na história do Brasil refletem esta lógica – na invisibilidade, o silêncio é

resistência.

Sobre a invisibilidade da infância, Benjamim (1984) afirma que a criança produz

barulho como uma alma penada e mesmo assim, ninguém a vê. Este barulho pode

ser considerado como o próprio silêncio. O silêncio tomado como sentido do não

poder falar, do impedimento ou da não visibilidade do que se fala. O barulho pode

representar também as resistências, ou seja, o silêncio (manter-se calado). E neste

silêncio, provocar barulhos (violência). Silêncio este passível de ser percebido

também na negação da fala pelo sujeito ao saber que será ignorado. A opção por se

calar diante do que não quer enfrentar pode ser o medo da exposição. E isto é

também uma forma de resistência passível de estar atrelada às relações raciais na

infância.

Assim como o silenciamento, que é opressor, o silêncio na ideologia racial é também

uma violência. E é pelas vias deste silêncio, que adentramos neste trabalho de

pesquisa. Os silêncios dos sujeitos, podem se constituir de diferentes significados.

Neste trabalho, o silêncio nas relações étnico-raciais ganha “status” e assim,

compreendido ou não, o objetivo é dar-lhe visibilidade. Ao ser identificado, o passo

seguinte será a tentativa do diálogo, diálogo com os silêncios.

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1.3.3 A estética como representação do belo/feio na constituição da identidade da criança negra

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto. Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto o mau gosto. É que Narciso acha feio o que não é espelho (Caetano Veloso).

De forma geral, a instituição escolar recebe crianças dos mais variados contextos,

constituindo segundo Gómez (2001, p. 17) um “cruzamento de culturas”. São alunos

e alunas que trazem a marca, o registro da perversidade do sistema capitalista e que

tentam também expressar alguns traços de diversidade (forma de falar, de vestir,

religiosidade, gostos, estilos de ser), possíveis de serem observados nas múltiplas

manifestações da cultura que ainda resiste aos processos de

mundialização/globalização de um ethos único.

Essa questão é apontada por Abramovay e Rua (2003, p.41), quando afirmam: “[...]

A escola, embora seja vista como chave de oportunidades para uma vida melhor,

pode ser também, local de exclusão social. Ou seja, pode discriminar e

estigmatizar”. Partindo desta proposição, nota-se que as diferenças nos modos de

ser, usadas como critérios de valor em uma relação hierarquizada entre as pessoas,

podem incidir sobre a imagem que os diferentes sujeitos constroem sobre si mesmos

e sobre os outros. Diferentes signos carregam sentidos produzidos na ideologia,

estruturada nas relações sociais historicamente construídas. É o que afirma Pino

(2005). Para ele, as singularidades se constituem nos papéis e condutas

concretizadas nas práticas sociais. A representação do que seja considerado

belo/feio, por exemplo, se dissocia da essência humana ontológica.

Chauí (2000) complementa que a cultura é uma determinação de ordem simbólica e

por ela os humanos tendem a atribuir significados e valores às coisas, ações,

crenças e pessoas. Neste processo, a ética e estética ganham sentido de valor.

Tudo depende do conceito de quem avalia e de que/quem é avaliado. Sabe-se que

na sociedade do consumo, os critérios estéticos dão suporte a muitas

discriminações. Neste impasse, pessoas, culturas, religiões, crenças e tradições são

valorizadas ou descartadas.

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Neste texto, a música de Caetano Veloso “Sampa” é utilizada como ilustração, tendo

em vista a compreensão da relação dos critérios de beleza com os processos de

massificação na sociedade da imagem e do consumo.

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto

A negação do direito a ser diferente marca a desigualdade e legitima a inferioridade

frente aos padrões estéticos globalizados. As conseqüências destas exclusões

podem ser difíceis de prever, considerando que uns se calam, outros resistem,

muitas vezes, de forma também violenta.

Neste sentido, Bakhtin (2003) afirma que nos avaliamos para o outro e a partir do

outro. Segundo o autor, existe uma necessidade estética, que se imprime na

personalidade. Assim, pode-se pensar que a criança se vê diante da imagem

refletida na expressão do outro e precisa dessa avaliação para se auto-afirmar. Em

contrapartida, as atitudes de rejeição frente ao que não se apresenta esteticamente

aceitável ou “normal”, podem estigmatizar o sujeito expondo-o a ações

discriminatórias, excludentes e violentas.

Para além de determinismos a capacidade ontocriativa é inerente a todo o ser

humano, o que não significa que este humano esteja desvinculado da realidade

material e social. Aliás, o que se propõe aqui, é pensar o sujeito constituído em uma

ética ontológica Netto (2004), parafraseando Lukács descreve sobre a relação

necessidade e liberdade, na qual a ética e estética estão vinculadas. A ética

enquanto decisão autônoma das escolhas (liberdade) e a estética como processo

objetivado nas necessidades, na vida cotidiana.

Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto o mau gosto

Goffman (1988) identifica a vergonha, como uma auto-depreciação do sujeito que se

admite inferior ao incorporar padrões aceitos na sociedade. Isso significa que olhar e

julgar o outro a partir de nossas considerações sobre o mundo, pode provocar neste

outro, reações extremistas.

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Não gostar de si mesmo ou do outro por seus atributos físicos ou culturais

pressupõe que isso ocorra com base em critérios estabelecidos pelo indivíduo ou

por seu grupo social. Deste modo, Santos (2002) afirma que o mito em torno da

cultura africana alimenta a referência do diferente, do incomum - o exótico. Esse

olhar pode provocar o repúdio a tudo o que se relaciona ao negro e a África, assim

como o indígena e suas tradições.

O livro didático, a literatura, os filmes, ou seja, a produção simbólica sobre o negro e

o indígena carrega o peso dos mitos descritos pelos navegadores e exploradores do

período colonial. Estes sujeitos, na visão do europeu colonizador são “classificados”

como seres exóticos e inferiores. Esta concepção ainda se reproduz entre pessoas,

grupos e instituições.

Os valores estéticos tomam o senso comum como fundamento e transformam as

tradições e valores de determinados grupos em folclore. Inferiorizar o sujeito, suas

raízes culturais, religiosas, assim como, invisibilizar o construto científico e

intelectual de seu povo, constitui-se em estratégia estrutural de dominação.

Telles (2006) alerta que ao perderem os critérios de diferenciação do mundo como

medida, os homens poderão tomar sua própria subjetividade como referência de

julgamento. Na atual sociedade individualista, existe uma diminuição da capacidade

de julgamento das pessoas, uma dificuldade de discernimento entre o que é

particular (vida privada) e o que é de responsabilidade de todos (coletividade), como

humanos, na convivência ética no entre os homens·.

Desqualificar as diferenças coloca em cena pressupostos éticos baseados na

pessoalidade, distante dos alicerces de uma coletividade, dos direitos e da

igualdade. A dominação tem seus métodos e seus objetivos. As especificidades são

transformadas em desigualdades econômicas, sociais, e culturais.

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É que Narciso acha feio o que não é espelho

Segundo Bakhtin (2003), desde pequeno dependo de ouvir das pessoas mais

próximas (família, amigos, outro) sobre mim mesmo. Essas informações conferem a

mim, minha imagem a partir do outro. Neste caso, a imagem percebida pelo sujeito é

aquela vista pelo outro, o que nos leva a pensar nas possíveis comparações e

classificações a que as crianças podem ser submetidas ao longo da vida.

Outro aspecto que pode levar a classificação e comparação é o que se considera

belo. Se o que se vê transmite sentimentos negativos a quem olha, é porque há um

critério pré-estabelecido sobre tal imagem (objeto, pessoa, características) que

impede a observação a partir de outra estética, da existência humana, enquanto

gênero humano, das singularidades deste humano. A reação das crianças olhadas

com inferioridade e rejeição por suas particularidades, pode se manifestar de

diferentes formas – silêncio, agressão física e não-física, boicote a atividades, a

pessoas, a agrupamentos.

Para Goffman (1988), o sujeito exige de si mesmo uma imagem e frente ao espelho,

ocorre a auto-depreciação. Nos momentos de solidão, os pensamentos sobre si

podem levar a pessoa a se martirizar, por saber que sua imagem não é aceita. Aqui,

o silêncio pode ser entendido como auto-rejeição.

E foste um difícil começo, afasto o que não conheço, e quem vem de outro sonho

feliz de cidade

Se não conheço, não identifico simbolicamente, e então me afasto. A interpretação

desta frase pode ser amplamente estendida para o que é considerado diferente.

Para Goffman (1988), uma pessoa poderia ser aceita no seu grupo social, mas por

apresentar algum aspecto que em tese, o diferencia, este outro se afasta e perde a

oportunidade do convívio. Neste sentido, a diferença pode levar o preconceituoso a

se afastar de alguém ou de um grupo. Desta forma, o estigma imputado a este

alguém prejudica a ambos. O estigmatizado deixa de ser conhecido, ouvido e visto e

o preconceituoso perde por excluir a possibilidade de convivência de ambos. Isso

leva a pensar nas segregações entre as crianças. Muitas delas selecionam as que

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querem compartilhar experiências pelo tipo físico, por exemplo. A exclusão pode se

dar em diferentes tempos e espaços, tendo por parâmetro atributos aceitáveis,

desejáveis ou não.

Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Munanga (2004) relata que aprendemos a olhar a diversidade humana a partir das

particularidades, ou seja, no corpo, na cor da pele, tipo de cabelo, classificando

essas características como perfeito-imperfeito, belo-feio, inferior, superior.

Discorrendo sobre o olhar estético em relação ao corpo, Bakhtin (2003) ressalta que,

o corpo do outro sendo externo a mim, possibilita lhe conferir um valor imediato por

suas características apresentadas. Segundo o autor, eu não posso perceber o meu

corpo externamente, em seu conjunto, mas posso vivenciar imediatamente o corpo

do outro. Sendo assim, o corpo não basta a si mesmo, ele necessita do

reconhecimento do outro.

As características do corpo do negro - a cor da pele, os traços do rosto, são

destacados como um conjunto de atributos físicos que demarcam a diferença. O tipo

de cabelo, as tranças, os penteados, podem ser vistos como marcas de um sujeito

estigmatizado.

Da força da grana que ergue e destrói coisas belas

Ortiz (1994) descreve sobre o universo da cultura burguesa. Os critérios do que se

concebe culto, de bom gosto, de estilo, bonito, feio, adequado, representam um

conjunto de atributos sociais como referência. Neste caso existe um padrão, uma

marca, um critério para cada característica. Todo o resto é resto. A conta é alta, pois

este universo não pertence a todos. Alguns são escolhidos e privilegiados, mas

quem paga essa conta?

Para Goffman (1988), o estigmatizado pode também usar de todos os mecanismos

possíveis para “corrigir” aspectos de sua aparência que o incomoda. Os defeitos do

corpo sob a lógica da estética globalizada são acertados nas medidas de beleza. O

que importa é estar em dia com a imagem que se propaga a melhor. Assim, o

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pertencimento está vinculado ao que se julga esteticamente aceito, tendo em vista,

os modelos massivos. Constrói-se um sentimento de poder sobre o outro ou

manifesta-se a recusa incondicional ao que se vê como diferente – o estigma.

Pan-américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba, mais possível novo quilombo

de Zumbi

Gomes (2000) ressalta que o racismo atribui significado de inferioridade ao corpo do

negro (tipo de cabelo, cor da pele), mormente a mulher. A atitude de submissão, no

entanto, pode dar lugar à resistência, através mesmo do próprio corpo – da beleza

negra. Na mesma perspectiva, Oliveira (2007) ao descrever sobre a ética do corpo,

ele se remete ao corpo do africano e do indígena. A representação imputou marcas

de uma violência simbólica, através de um regime de signos.

É possível perceber através destes relatos, a concepção do caráter e da beleza dos

negros na história. A altivez, a beleza e a inteligência viravam motivos de deboche.

Hoje não é muito diferente, pois em muitas situações o negro é estigmatizado,

quando consegue um cargo relevante, ou quando está “bem vestido”, por exemplo.

Esta é uma das faces perversas do racismo que ainda permeia as relações entre as

pessoas.

O racismo institucional no caso da escola pode ocorrer de diferentes formas. Uma

delas se refere ao tratamento oferecido às crianças negras. O elogio, o toque, o

olhar, são atitudes importantes para o processo de subjetivação das crianças. No

entanto, pesquisas demonstram o quanto esse tratamento é desigual, ao se

considerar as crianças negras.

Cavalleiro (2003) relata a diferença entre a relação da professora com crianças

brancas e negras. Sua pesquisa apresenta dados que demonstraram que as

crianças brancas recebiam mais atenção no desenvolvimento das atividades de sala

de aula do que as crianças negras. As professoras se mostravam indiferentes às

situações de discriminação entre as crianças, por não perceberem ou por não

saberem o que fazer.

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Além da relação entre pares, Gomes (2000) alerta sobre a abordagem curricular que

insiste em apresentar o negro sob enfoque da escravidão. Imagens de troncos e

correntes ainda predominam nas aulas. Desta forma, a possibilidade da criança

negra se ver na condição de sujeito, fica prejudicada. Os murais da escola, os

concursos de beleza ali realizados, assim como as imagens apresentadas no

cotidiano das atividades escolares, são elementos simbólicos à disposição das

crianças. Estas experiências escolares podem contribuir para a reprodução do

imaginário de belo/feio de forma negativa ou positiva.

E os novos baianos te podem curtir em uma boa

Assumir a identidade negra pressupõe para Gomes (2000) um trabalho pedagógico

no qual o negro tenha visibilidade. As características físicas seriam ressaltadas

como marcas de uma etnia, de um grupo humano. A criança negra a se ver nos

tempos e espaços da escola, enquanto negra, pode se constituir nestas referências

positivas.

Filhas de Gandhi Ê povo grande Ojuladê, katendê,babá obá Netos de Gandhi Povo de Zambi Traz pra você Um novo som: Ijexá [...] Revela a leveza De um povo sofrido De rara beleza[...] (Clara Nunes)

O estilo afro de ser, de vestir, de cuidar do cabelo tem se popularizado no Brasil.

Atualmente é possível identificar, principalmente entre os/as jovens formas de

afirmação da identidade, de um ethos negro. O mercado da moda, do cosmético, do

artesanato, tem investido na produção e afirmação de estilos afros. Para além da

questão do uso da cultura pela indústria da moda, vê-se que há movimentos de

reconhecimento e valorização da imagem do negro, a partir de elementos simbólicos

de sua ancestralidade. O jogo de capoeira é também uma forma de encontro com

outros significados para o corpo do negro – resistência. Porém, é possível perceber

também, que indiferentes à classe social, estilo da roupa e/ou do cabelo, o racismo

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não dá trégua. Ele atravessa classes sociais, instituições e os diversos segmentos

da sociedade.

1.4 CONTRAPONTOS ENTRE A VIOLÊNCIA, DISCIPLINA E AUTORIDADE NA

INSTITUIÇÃO ESCOLAR

Nota-se que a escola é a instituição responsável por remodelar o comportamento

das crianças, durante o processo de escolarização no final do século XIX. Barros

(1997, p.155) descreve que a educação vigiada tem como objetivo, institucionalizar

essa educação, evitando que as crianças se tornem “perigosas”, consolidando dessa

forma, as práticas sociais hegemônicas. Neste contexto de estreitamento da

liberdade de expressão da infância, estruturou-se a escola moderna, imbuída do

espírito de seleção dos aptos em detrimento dos “incapazes” e indesejáveis, no caso

evidentemente, dos filhos das famílias mais pobres, em sua maioria crianças negras.

Estas deveriam desocupar as ruas onde eram considerados perturbadores da ordem

pública.

Nesta mesma perspectiva, o trabalho dos higienistas foi de extrema importância

para a demarcação do processo de construção política e econômica do Estado

Liberal, para o qual seria necessária a formação de homens fortes e dóceis. Diante

deste fato, é possível identificar a violência simbólica como o preconceito e a

discriminação presentes desde o surgimento da escolarização básica. O professor

torna-se o articulador da modelação do comportamento das crianças e jovens, na

valorização dos capazes e seleção daqueles considerados inaptos. Quanto a isto,

Basílio e Kramer (2003, p. 111) afirmam:

Abordar a violência ao lado da questão da desigualdade e da exclusão (e de seus riscos maiores, a escravidão e a eliminação ou o extermínio) significa levar em conta os complexos processos de socialização vividos na história passada e na contemporânea.

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Há que se considerar o trabalho diferenciado que muitas escolas vêm

desempenhando atualmente, no sentido de compreender e respeitar a diversidade.

No entanto, a violência escolar continua fazendo vítimas - física e moralmente. E as

humilhações que muitas delas sofrem por não conseguirem os resultados esperados

podem deixar marcas difíceis de prever. Além do mais, a sutileza da discriminação

pode provocar diferentes reações nos sujeitos. Não havendo a escuta das situações

ocorridas, o disciplinamento acaba por causar ainda mais violência ao discriminado.

Isso porque uma agressão física pode ter sido causada por um xingamento racista.

E a punição, ao atingir o autor da agressão física, relega a violência não-física à

margem.

Acredita-se que uma instituição atenta às particularidades dos seus atores e as

relações estabelecidas entre eles, na autoridade, pode perceber e intervir na

problemática evidenciada. É importante ressaltar a dissociação entre o autoritarismo,

que desconsidera o diálogo, a voz dos atores e a autoridade. Em muitas escolas,

credita-se ao autoritarismo, o caminho para a manutenção da ordem e disciplina

escolar tida como necessária, tendo em vista o bom funcionamento da organização

escolar.

Arendt (1972 p. 221) traz em sua obra Entre o passado e o futuro, considerações

importantes sobre autoridade e educação, dentre outras abordagens políticas.

Segundo a autora, “[...] a crise que acometeu o mundo moderno em toda a parte e

em quase toda esfera da vida se manifesta diversamente em cada país, envolvendo

áreas e assumindo formas diversas”. A autora acredita que a perda da autoridade na

instituição escolar é um dos aspectos da crise instalada na educação neste século,

pois se responsabilizar pela educação das crianças e jovens, é não deixá-los à

mercê de suas próprias conclusões acerca deste mundo. No entanto, esta missão

exige do educador uma boa formação e competência profissional para com estes

“novos estrangeiros” na mediação entre o passado e o futuro.

Diante do impasse, a figura da autoridade ao que parece, nem sempre é legitimada,

todavia, distintamente enfraquecida. A relação autoritária em muitos casos é

referenciada por métodos disciplinares estabelecidos em rígidas regras

institucionais, tendo em vista a manutenção da ordem e reconhecimento impositivo

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do poder. Desse modo, o uso da força e da imposição disciplinar parte do princípio

da desconfiança na capacidade dos sujeitos, de discernir, julgar e dialogar. Arendt

(1972 p.239) aponta que a legitimidade da autoridade descarta o uso da força e da

violência35, quando afirma: “Face à criança, é como se ele (o professor) fosse um

representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à

criança: _ Isso é o nosso mundo”.

Entende-se, portanto, que na perspectiva da autoridade desta autora, o professor

que busca o acordo com seus alunos, mostrando-lhes o mundo, dando-lhes a

palavra frente a esse mundo, guiando-lhes em suas ações neste mundo possibilita

assim, a liberdade enquanto sentido da própria vida, da arte, do sentir, do ser, do

pertencer a um grupo, a uma comunidade, na qual se insere como partícipe e

integrado. A escola como um espaço da vida ativa, mostra aos jovens os princípios

(preceitos) e busca o resgate ético daquilo que se perdeu ao longo dos tempos.

Diante disso, quais são os canais de interlocução que a escola disponibiliza a estes

sujeitos, de participarem das ações e decisões?

Arendt (1972) descreve que o poder fundamenta-se na coletividade, é mantido na

própria coletividade e por ela legitimado. Desse modo, a participação de todos deve

ser assegurada desde seu princípio (tradição). Essa legitimidade, segundo a autora,

deriva do início da ação conjunta, ação que exige o pensar - conceitos

indissociáveis. A criança como ser político, se insere nesta visão: uma escola

promotora da participação política de seus atores. Em busca do verdadeiro sentido

da educação, A autora transmite uma mensagem de otimismo e esperança na

capacidade do ser humano construir outras formas de vida, mais humanitárias.

35 Segundo Aquino (2003), essa violência por parte da instituição pode se apresentar sob diferentes formas: indiferença, segregação, expulsões e transferências.

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1.1 O DESAFIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS

HUMANOS

1.1.1 A igualdade na diferença e a diferença na igualdade

Questões freqüentemente abordadas nos mais diversos âmbitos da sociedade,

principalmente nos discursos proferidos ideologicamente, postulam certa igualdade.

Vê-se um antagonismo quando ora enaltecem a diversidade cultural, ora negam a

diferença e universalizam o ser humano – universalizam no discurso, nas legislações

que desconsideram as especificidades dos diferentes grupos, sua historicidade e

cultura. Nesses discursos políticos, “tendenciosamente igualitários”, acredita-se estar

legitimando as expressões dos grupos minoritários e representando-os

politicamente.

A obra de Pierucci: Ciladas da Diferença (1988, p. 19) possibilita uma instigante

reflexão sobre os riscos de submeter à questão da diferença a manipulação política,

econômica e ideológica.

[...] a certeza de que os seres humanos não são iguais porque não nascem iguais e, portanto não podem ser tratados como iguais quem primeiro a professou e apregoou nos tempos modernos foi a direita. Para ser historiograficamente mais exato, foi a ultradireita do final do século XVIII e primeiras décadas do XIX.

O autor considera ponderável avaliar a coerência política do ideário filosófico dos

movimentos reivindicatórios da igualdade em relação às minorias, por parte da

direita, tendo como ponto de partida o século XVIII, época em que a tradução dos

ideais da Revolução Francesa de liberdade, fraternidade e igualdade significaram

uma total abstração. Segundo ele, longe de serem autênticos, os ideais de igualdade

entre os homens fracassaram por não se sustentarem efetivamente na práxis desse

ideário, visto que o ser humano é essencialmente singular e difere de outros.

Portanto, essa igualdade tão apregoada é inócua e representa uma farsa.

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Pierucci (1988) explicita o fascínio oratório desses ideais da direita e esquerda e

utiliza-se das considerações de Hannah Arendt sobre o termo abstrata nudez36,

como um paradoxo entre o homem universal (desnudo), sujeito de direitos

garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, e o ser humano

imbuído de suas subjetividades, concebido em certa cultura. Essa premissa do ser

humano desnudo desmerece as especificidades deste, generaliza as condições

humanas, ao mesmo tempo em que desconsidera as diferenças. Por outro prisma, a

diferença pode servir de arma e poder para justificar as conseqüências pelo lado da

diferença. Para ele, as diferenças explicam as desigualdades de fato e reclamam a

desigualdade (legitima) de direito ( p. 19 grifo do autor).

A crítica que Pierucci (1988, p. 21) faz ao universalismo, é de que este representa

uma arbitrária cilada. Para ele, “O homem universal é o resultado histórico de um

desnudamento: ele surge historicamente quando despojado do valor de suas

diferenças culturais”. Sob essa perspectiva, o autor então vem alertar quanto ao

perigo da preponderância; ora da diferença, que permite a rejeição, a comparação, a

humilhação e até mesmo as práticas de extermínio, a exemplo dos judeus; ora a

condição de 37abstrata nudez, elucidativa de um sopro de igualitarismo subserviente

a interesses às vezes espúrios.

O genocídio, os campos de extermínio, a perseguição aos “diferentes” não passou

pelo crivo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, séculos

antes dos terríveis feitos da humanidade dos tempos modernos, como os regimes

totalitários. Nota-se a contradição daquilo que é princípio universal, dito em alto e

bom tom, àquilo que se efetiva enquanto ações políticas para com todos,

consideradas as devidas diferenciações. Portanto, falar de igualdade é antes de

tudo, perceber as diferenças, referenciar o outro como um alter, pertencente a uma

comunidade.

No Brasil, as discussões universalistas sobre cidadania, direitos, inclusão ganham

força em toda a sociedade e principalmente na escola. Cria-se o imaginário da 36 Termo utilizado por Arendt (2001) para referir-se ao homem universal apenas como uma realidade genérica que se diferencia da raça animal. 37 Refere-se ao despojar cultural, “a abstrata nudez de ser apenas homem, nada mais” (LAFER, 1988, p.19).

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igualdade entre as pessoas, quando na verdade, nem mesmo os direitos mais

fundamentais são garantidos. As instituições públicas, já sucateadas a partir da

implementação do projeto neoliberal, não abarcam a demanda de carências sociais

em todos os âmbitos: saúde, segurança, educação. Neste contexto, a escola é

conclamada como antes, a participar ativamente desta artimanha da qual é co-

participante, mesmo que seus atores não percebam.

Neste prisma da equivocada visão de homem universal, Touraine (1997, p. 72)

afirma: “Somos iguais entre nós por que somos diferentes uns dos outros. Em

contrapartida, se definimos a igualdade por nossas crenças comuns, encontramos

facilmente minorias ou até mesmo maiorias que não as compartilham e que, por

isso, consideramos como inferiores”. O autor afirma que a diferença entre os seres

humanos evoca o direito a ser reconhecido e respeitado.

Pensar a igualdade requer reconhecer as diferenças e repudiar a dominação e

exploração que se constituiu com base nestas diferenças, ao longo do processo

histórico da humanidade. Enquanto o processo de humanização e emancipação não

se concretiza, a efetivação da força de lei e do contrato social na relação entre as

pessoas é fundamental. Na instituição escolar, estes direitos não deveriam ser

negados, principalmente em se tratando daqueles pequenos sujeitos presentes

neste espaço público – as crianças.

Marques (1991, p. 88) explicita o compromisso da sociedade para com os direitos

constituídos, como o Art. I “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e

direitos” e no Art. VII “[...]. Todos têm direito a igual proteção contra discriminação

que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a discriminação”. É

possível afirmar que as palavras dignidade e direito estão presentes nos discursos

de diferentes âmbitos e níveis pessoais ou institucionais, em espaços públicos ou

privados. Na escola está presente nas falas dos profissionais. O que se pode

perceber então é uma banalização do discurso dos direitos. A lei é clara quanto às

garantias de proteção contra qualquer forma de discriminação. No Estatuto da

Criança e do Adolescente, Art. 5º inscreve-se: ”Nenhuma criança ou adolescente

será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou

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omissão, aos seus direitos fundamentais”. No entanto, a discussão sobre a

efetivação dos direitos, começando pela legitimação da voz das crianças nos

diferentes momentos da escola, ainda é algo teorizado.

Deste modo, Jesus (2003) conclama a instituição escolar a assumir sua função

diante da diversidade humana como um valor universal. Para isso, a escola precisa

promover a desconstrução das igualdades e incluir as diferenças, e assim, educar a

todos.

Nesse sentido, esta premissa está associada à posição de Telles (2006) sobre os

direitos fundamentados na gramática civil, como diretrizes para as práticas e

interações sociais como exigência de cidadania. Para ela, estas interações se

legitimam, a partir da constituição de espaços públicos democráticos. Na escola, a

tão falada cidadania ainda está por vir, por se discutir.

A escola é um espaço público por decreto, mas o deveria ser por ação - das

crianças, dos jovens, dos educadores. Quanto a isso, Touraine (1997, p. 89) “[...]

destaca que a lei tem sempre menos força face ao poder e ao lucro e a sorte da

liberdade e da igualdade depende, portanto, cada vez mais dos movimentos sociais

que se manifestam em nome da maioria”. O autor reconhece os movimentos sociais

de resistência como reivindicação de direitos, na medida em que se fazendo serem

vistos e ouvidos, estes grupos sociais (negros, mulheres, homossexuais, indígenas)

imbuídos de sentimentos de afirmação de identidade impõem sua visibilidade ao

demonstrarem o que são e o que querem ser. Gritam lemas de repúdio ao

preconceito e discriminação quando proclamam liberdade e igualdade.

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1.5.2 A maioria na condição de minorias: negros e índios na escola brasileira

A discussão sobre as Políticas de Cotas no Brasil vem ganhando força enquanto

movimento social. No entanto, esta questão não é foco de discussão deste trabalho,

porém, faz-se importante registrar a importância destas ações, com vistas a inserir o

negro em todos os espaços da sociedade.

Ao refletir sobre os movimentos sociais, Certeau (2001, p.147) alerta para o risco

dessas micro-revoluções ao entrarem “[...] no jogo de uma sociedade que constitui o

cultural como espetáculo e que instaura por toda parte os elementos culturais como

objetos folclóricos de uma comercialização econômico-política”. Diante dessas

considerações, pode-se pensar que a construção de uma política de direitos não se

dá na transformação das diferentes culturas em espetáculos e exposições

mercadológicas como acontece na indústria cultural dos artefatos culturais. Não

decorre também, da divulgação midiática de elementos de certas culturas. Porém, a

política da igualdade na diferença em Arendt (2001), só é possível quando o ser

humano reconhecer no outro, um sujeito de direitos.

Em relação ao reconhecimento do direito à diferença, na educação, leis mais

específicas têm sido aprovadas, como resultado de movimentos sociais, objetivando

desestruturar práticas e relações discriminatórias. O currículo escolar e a prática

pedagógica constituem pilares de novas propostas de trabalho com enfoque na

cultura afro-brasileira e indígena.

A Lei 10639/ 03, que altera a Lei 9394/96 garante, no sentido legal, a inserção do

”Ensino da História da África e dos Africanos e Cultura Afro-brasileira” nos currículos

escolares. No entanto, ao observar as intervenções praticadas pela escola,

constatou-se que, as questões relacionadas à raça/etnia tendo em vista a

implementação da lei, parece ser um incômodo para a instituição escolar.

A Lei 11.645 de 10 de março de 2008, que altera a Lei 10.639/03, inclui no currículo

escolar obrigatório, a História de luta e Cultura dos grupos indígenas, em face à

inexpressividade das abordagens sobre essas temáticas, dominantes no currículo

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das escolas brasileiras. O objetivo é democratizar a cultura, ao introduzir outras

performances étnicas e seus valores como possibilidade de encontros interculturais.

Ao problematizar ideologia e currículo, Apple (1995) descreve sobre a educação

implicada com a cultura, e o poder, quando há ênfase a uma cultura e a

marginalização de outras. O autor menciona os textos provocativos ao continente

africano quando se referem ao mesmo como “Idade das Trevas” (grifo do autor).

Nesta proposição os conteúdos curriculares priorizam uma cultura – a escola é de

branco, na medida em que impõe um conhecimento homogeneizante, enaltece

personagens e heróis brancos, valoriza a religiosidade branca. Diante deste

contexto, foi preciso uma lei (10.639/03) exigir abordagem dos conhecimentos sobre

a África e Afro-brasileiros, e uma complementação da lei, quanto à história dos

indígenas do Brasil, ainda marginalizados no currículo escolar.

Diante da neutralização do legado africano, assim como do indígena na cultura

brasileira e na escola, nota-se que as resistências destes grupos ao longo da

história, foram apagadas da maioria dos registros diz Ianni (2004). O autor ainda

complementa que apesar disso, o estigmatizado, “o estranho” produz outros

movimentos de consciência para si, na contra-mão da história.

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CAPÍTULO 2 2 OS CAMINHOS DA PESQUISA

2.1 A ESCOLHA DA TEMÁTICA

A temática investigada nesse projeto de pesquisa justifica-se por três aspectos, a

serem explicitados. O primeiro pela problemática social, considerando a condição da

criança frente ao fenômeno da violência cotidiana, presente em todos os níveis e

esferas da sociedade. Os efeitos perversos da política econômica excludente, da

histórica exploração e segregação étnica no Brasil, são fatores agravantes deste

fenômeno.

Inserida neste complexo contexto de negação de direitos básicos à pessoa humana,

vê-se a escola sentindo os efeitos da violência que interpenetra o cotidiano das

relações no espaço escolar, motivada em muitos casos, pela precariedade das

condições de vida de grande parte da população e, sobretudo, da vida das crianças.

O segundo aspecto justifica-se pela relevância profissional, pois frente aos desafios

de lidar com a questão das violências no espaço escolar, vivencio no cotidiano da

escola as angústias dos docentes que se sentem perplexos diante desta realidade.

A dificuldade sentida pelos educadores em intervir de forma positiva nas situações

de preconceito para com as crianças, pode deixá-las vulneráveis e/ou afetadas por

esse tipo de violência, muitas vezes manifestado de forma sutil, difícil de ser

identificada. O silêncio das crianças e professores face à exclusão a que são

submetidas, torna-se a cada dia mais desafiador. O terceiro aspecto é a realização

da pesquisa a partir da criança e não sobre a criança.

Diante destes fatos, propusemos então as seguintes questões, elencadas a partir da

própria voz da criança: Como a criança vista como “diferente” tem sido tratada no

espaço escolar? Que imagem as crianças apresentam sobre si mesmas e sobre o

outro? Que atitudes a escola tem tomado diante das reações discriminatórias e

excludentes?

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2.2 O CONTEXTO PESQUISADO

2.2.1 Histórias de um lugar

Há muito tempo que saí de casa Há muito tempo que caí na estrada Há muito tempo que eu estou na vida Foi assim que eu quis E assim eu sou feliz Principalmente por poder voltar A todos os lugares onde já cheguei Pois lá deixei um prato de comida Um abraço amigo E um canto pra dormir e sonhar (Gonzaguinha)

A escolha do local da pesquisa se deve ao fato desta instituição estar localizada

num bairro do município de Aracruz/ES, o qual passou a receber grande número de

trabalhadores de diversos lugares do país e até de outros países, a partir da década

de 1970, pelo fato de ter se transformado em um grande pólo industrial. Neste local,

concentra-se a maioria das grandes indústrias do município, mantenedoras da

multinacional Aracruz Celulose, instalada no bairro que era uma pacata vila de

pescadores, cercada por aldeias indígenas Tupinikim.

A partir da ocupação pela empresa, essa comunidade passa por grandes

transformações sociais. Além do impacto ambiental provocado pelo processo de

industrialização, os problemas sociais culminam com a ocupação desordenada e

descaso dos órgãos públicos para com os sujeitos “da terra” e para com os

“estrangeiros”, que passaram a residir ali, na esperança de emprego, o que não

aconteceu, na maioria dos casos.

Uma das representações que se pode fazer desta instituição diz respeito a graves

problemas sociais gerados no processo de crescimento do bairro (pobreza, tráfico

de drogas, prostituição, alcoolismo) vivenciados por estes sujeitos, refletidos na vida

das crianças. O bairro é composto por uma população com características

multiculturais. Isto talvez se deva ao fato de esta escola estar localizada em uma

região com grande fluxo de trabalhadores e de ser também uma zona portuária.

Deste modo, pode-se observar uma grande diversidade étnica e cultural, juntamente

com o imaginário construído pelos interesses do capital local de que indígenas

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oprimidos e discriminados, a prostituição e o tráfico de drogas são normais em todas

as sociedades, ou seja, há uma concepção banalizada de que todas essas “mazelas

sociais” são naturais.

O alto índice de desemprego no bairro demarca a diferença social entre a maioria

desempregada, ou que vive de “bicos” e uma parcela da população que vive da

pesca, funcionários públicos municipais e operários de empreiteiras da região. Em

épocas específicas do ano, a fábrica de celulose realiza a “parada” e neste

movimento de reparações industriais, surgem empregos temporários nas empresas

prestadoras de serviço para a referida empresa. Nas demais épocas do ano, é

possível observar as constantes filas que se formam nas portas das pequenas

empresas terceirizadas pela fábrica. São operários, na sua maioria homens, em

busca de emprego.

A coleta de mamão na região de Linhares38 também mobiliza moradores do bairro

para o trabalho. Eles saem de madrugada em ônibus fretado pelos produtores ou se

fixam naquele município durante a semana, tendo em vista a coleta de mamão.

Outros moradores se deslocam para outros municípios em busca de trabalho nas

lavouras de café.

É possível identificar grande número de famílias constituídas de mães e/ou avós que

criam seus filhos/netos/as sozinhas, e em sua maioria, trabalham de domésticas

para as famílias do bairro, onde reside grande número de funcionários da empresa

Aracruz Celulose. Outras mulheres trabalham nas empresas pesqueiras do bairro,

limpando e embalando peixes e camarões, ou como cozinheiras e camareiras nos

hotéis e restaurantes da região.

A pesca, antes da industrialização do bairro era a principal fonte de subsistência,

juntamente com a agricultura. Atualmente, a escassez de peixes ao longo da costa,

devido à poluição, dificulta a pesca varejista. Os empresários da pesca dominam o

38 Município vizinho ao município de Aracruz. É reconhecido como grande produtor de mamão Papaya.

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mercado exportador de peixes e mariscos39, isso porque a pesca só é possível para

quem possui barcos, inclusive com recursos de alta tecnologia. Os pequenos

pescadores agora buscam emprego nestas empresas pesqueiras.

O bairro se divide em pequenos sub-bairros. Antes da industrialização, a pequena

vila de pescadores se concentrava no que hoje é o centro do bairro. A chegada de

trabalhadores a partir da instalação da empresa causou explosão demográfica na

região, com a ocupação desordenada na periferia. Estes trabalhadores não foram

acolhidos pela empresa, como ocorreu com os demais profissionais - técnicos,

engenheiros, mecânicos. A mão-de-obra exigida na construção da estrutura da

empresa, realizada por estes trabalhadores, foi temporária, assim como os “bicos”

que muitos deles ainda fazem nas empreiteiras da região.

No centro, existe uma escola estadual, uma pequena praça, lojas, restaurantes, a

Unidade de Saúde, a delegacia de polícia, igrejas, mercados, farmácia, salão de

beleza, padaria. A associação de moradores tem sua sede que funciona no andar

sobre a Unidade de Saúde. No centro também está localizada a maioria dos

serviços públicos e privados, onde a circulação de pessoas é grande. Além dos

moradores, é possível verificar grande número de trabalhadores, chamados de

“fichados”, aqueles que têm trabalho de carteira assinada nas empreiteiras. Estão

sempre de uniformes e se misturam à vida dos moradores no cotidiano. Lotam os

restaurantes no horário de almoço e os bares no final da tarde.

O sub-bairro onde a escola está inserida é conhecido como “o bairro lá de cima” ou

“o “bairro da invasão”, fruto de doações de terrenos irregulares em épocas de

eleição política. As construções são precárias e bem próximas umas das outras,

imprensadas em pequenos lotes. Na maioria das casas não existem quintais. São

casas pequenas onde geralmente residem famílias numerosas. Isso porque estas

pessoas acolhem parentes e amigos vindos de outros lugares com o mesmo objetivo

– emprego na região.

39 A maior parte dos pescados é exportada para outros estados e exterior. A comunidade tem pouco acesso a esses produtos, pois o preço é alto, ou seja, eles não têm como pescar, mas limpam o pescado que eles não podem consumir. (relato de crianças, pais e comunidade)

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O mar azul e bravio que atravessa o bairro teve sua principal praia modificada pela

implantação do porto, que exporta placas de celulose. O rio que abastece a

comunidade e que antes a servia com grande quantidade de peixes, hoje está

contaminado. Às margens, em um aglomerado de casas construídas de tábuas,

papelão e algumas de alvenaria, muitos moradores se acomodam como podem. Na

antiga paisagem ribeirinha, o manguezal, antes, fonte de boa parte da dieta

alimentar, de trabalho e de alimento para os peixes, hoje, só pode ser visto em

fotografias.

O porto se localiza na entrada do bairro e divide espaço com a estrada de ferro e

indústrias prestadoras de serviço para a empresa. O movimento de carretas,

caminhões e carros é intenso. Neste vai e vem do barulho, dos perigos à beira da

pista, dos estrangeiros cotidianos – brasileiros, coreanos, finlandeses, os moradores

do bairro vivenciam pesadelos, assim como, convivem sempre com o novo, com o

desconhecido, dos que chegam, trazendo suas marcas culturais. Sobre esses

encontros, Gonzaguinha canta:

E aprendi que se depende sempre De tanta muita diferente gente Toda pessoa sempre é as marcas Das lições diárias de outras tantas pessoas E é tão bonito quando a gente entende Que a gente é tanta gente Onde quer que a gente vá E é tão bonito quando a gente sente Que nunca está sozinho Por mais que a gente pense estar

No Bairro do centro há diversas igrejas evangélicas e uma igreja católica. Existem

muitos bares e um supermercado. Não há farmácia, unidade de saúde, praça,

quadra ou outra área de lazer. O comércio é formado de pequenas lojas e muitos

bares. Há uma diferença social e cultural entre os sub-bairros e o centro. Os

moradores do centro são em sua maioria, os nativos da região – antigos pescadores

e agricultores, indígenas e seus descendentes chamados de “caboclos”.

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No sub-bairro onde se localiza a escola, além de nativos, “caboclos” 40, residem

muitos nordestinos, mineiros, assim como um grande número de pessoas de

diferentes lugares, que ficam por um tempo, depois se mudam para outros

municípios em busca de outras possibilidades de trabalho. Por isso, o fluxo de

moradores neste local é intenso.

O índice de violência é considerado alto. O tráfico de drogas é frequente e ocorre em

pleno dia. Casas de prostituição também compõem o cenário do bairro. Nelas e nos

bares, se concentram também muitos marinheiros dos navios que aportam na

região. Durante a presença de navios, é possível identificar crianças circulando na

área próxima ao porto e até mesmo na companhia de marinheiros. Alguns meninos

relatam: “a gente é intérprete!” Eles acompanham marinheiros até o comércio local,

falando poucas frases em inglês, mas que facilitam a permanência do estrangeiro na

cidade.

Para além de uma discussão mais ampliada da condição destas crianças neste meio

portuário, o objetivo desta informação é explicitar as diversidades de experiências

que muitas crianças deste bairro vivenciam, sendo que muitas delas, aos 12/13 anos

fazem parte do índice dos “não alfabetizados”. Outro aspecto é a própria convivência

bem próxima com riscos de violências e com a prostituição, fato fortemente

evidenciado no bairro.

Nos últimos oito anos, alguns projetos sociais foram criados no bairro, atendendo

crianças, jovens e adultos em diversas atividades culturais e profissionais. São

ONGs que oferecem reforço escolar, teatro, capoeira, futebol, vôlei, dentre outras

atividades. Para além de ponderações sobre a questão destas instituições no Brasil,

o que se quer refletir, diz respeito a processos de intervenção da sociedade civil

criadas nas comunidades mais precarizadas, nas quais as políticas sociais não

chegam como deveriam. Enquanto isso, a comunidade conta com poucas

alternativas de acesso a cultura e lazer.

40 No livro “Educadores Tupiniquim” (1996) produzido pelos professores indígenas de Aracruz, eles reproduzem parte da história dos costumes de seu povo. Em um dos trechos do livro, relatam que foram denominados caboclos e bugres pelas autoridades da época (década de 1960). O objetivo era de facilitar a comercialização de suas terras.

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A instituição pesquisada era discriminada no bairro e também no município. As

crianças que ali estudavam eram chamadas pelos moradores do centro como “os

meninos da invasão”, que estudavam na “escola da invasão”. As expressões

preconceituosas para com a escola, alunos e funcionários segregavam ainda mais a

comunidade. Eram vistos como os mais pobres, violentos, incivilizados estudando

em uma escola também vista como tal.

Após a chegada de uma nova equipe de um concurso público municipal como

efetivos naquele espaço educacional, iniciou-se uma nova fase de trabalho na

escola. O diretor41, professores, funcionários e equipe pedagógica, passam a

observar como se dava toda a organização da escola e quem eram aquelas

crianças, o que pensavam, sentiam, e queriam. Antes de traçar estratégias de

intervenção pedagógica específicas para a realidade apresentada, buscou-se

conhecer e entender o que as crianças e suas famílias apontavam em suas falas. È

importante destacar que a vontade de transformar a escola em espaço do

conhecimento e das sociabilidades, era de toda a equipe escolar, fato que propiciou

impacto sobre a realidade escolar e comunitária42.

A partir dos registros coletados nesta investigação in lócus, iniciou-se uma mudança

no currículo, na forma de ensinar, na relação com as crianças e comunidade. Fruto

desta mobilização em torno da práxis escolar surge uma atividade de grupo com 51

crianças envolvidas em situação de violência, na escola e nas suas vidas. Deste

grupo de atividades – conversas, brincadeiras e musicalização, surge o Coral

Amigos43.

O coral, criado pelas pedagogas da escola44 tem funcionado neste espaço

atendendo 60 crianças e adolescentes. O diálogo com meninos e meninas é

41 O diretor da escola é indígena e morador nativo do bairro. O conhecimento da comunidade e de seus problemas contribuiu para uma maior compreensão da realidade. 42 Merece destaque a participação da comunidade, que foi conquistada aos poucos pelo trabalho da escola. 43 Atualmente o Projeto Sol, como é nomeado, funciona com a participação de um músico43 do bairro há oito anos. Atualmente, faz parte de uma ONG (Referência), que coordena o projeto, sustentado com o trabalho voluntário da pedagoga, músico e uma psicóloga. Esta experiência está publicada em Anais de congressos, nos quais se apresentou dados e resultados de todo o trabalho realizado na escola. 44 Uma das pedagogas é a regente do coral e uma ex-pedagoga da escola, coordena as atividades com jogos e brincadeiras.

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constante. Além disso, as brincadeiras, aulas de canto e de percussão envolvem os

participantes em uma relação de compartilhamento, organização, cultura e produção

musical. Relatar essa história se faz necessário por entender que, em uma pesquisa

do tipo etnográfica, todas as informações que mostram as marcas do local da

pesquisa permitem maior compreensão da realidade investigada. E esta instituição

carrega algumas marcas expressivas, e que a torna conhecida na região – a música,

a capoeira, os projetos pedagógicos.

Enfim, as crianças desta pesquisa se constituem neste contexto e vivenciam as

dificuldades características deste contexto social complexo. Todavia, é possível

perceber que estes meninos e meninas brincam, correm, disputam espaços, e criam

estratégias próprias de sobrevivências. Cada espaço do bairro é explorado por elas.

Nos projetos sociais elas se fazem presentes, com suas marcas e modos de ser.

Apesar destes espaços sociais a escola é uma das poucas instituições que lhes

apresentam sentido do público, da sociabilidade e da palavra. Nesta escola, muitos

deles chegam sempre muito cedo e não têm vontade de ir pra casa. É na escola que

muitos fazem sua única refeição do dia, e em alguns casos, até os irmãos menores

e algumas mães, pedem para fazê-la, durante o recreio.

Contar a história desta escola significa ressaltar as suas possibilidades como o

principal espaço público pela qual, a grande maioria das pessoas desta comunidade

passa no processo de escolarização. E isso fica evidente nas falas das crianças e

nos discursos da própria comunidade escolar.

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2.2.2 A escola: esta conhecida tão desconhecida!

Quando me chamou, eu vim Quando dei por mim, tava aqui. Quando lhe achei, me perdi. Quando vi você, me apaixonei. (Chico César)

A escola “Amanda da Luz” funciona desde 1997 e atende a 23 turmas de 1º ao 5º

ano. Dos 23 professores, 15 possuem o curso de pedagogia. O diretor e as duas

pedagogas atendem a esta escola e outra nucleada, que fica no Assentamento do

MST, localizado no interior do município.

O prédio possui 12 salas de aula e 01 de Educação Física. Logo na entrada há uma

pequena secretaria bem organizada. Á esquerda localiza-se o refeitório com uma

pequena cozinha ao fundo. As salas da direção, pedagoga e coordenadora se

encontram neste refeitório. Seguindo no corredor à direita, as salas de aula

terminam com a biblioteca ao fundo. Segue-se em outro corredor onde se localizam

os banheiros e sala do professor e seguindo este corredor estão as demais salas de

aula.

Na sala de Educação Física concentram-se os brinquedos e materiais esportivos.

Subindo a rampa ao lado, existem mais duas salas de aula. O pátio calçado por

blocos, é pequeno para a quantidade de crianças que alí estudam. Não há cobertura

deste pátio, nem quadras ou outro espaço para brincadeiras. As grades cercam

parte da escola e não há pixação ou depredação no prédio. Do lado de fora da

escola, as casas estão bem próximas do muro e formam um círculo em torno da

mesma.

De um concurso municipal de Aracruz em 2001, chegou à escola uma equipe vinda

deste processo – 11 professoras, e duas pedagogas. O diretor, coordenadoras e

demais funcionárias ali já estavam. Recém-chegada de outro município onde

trabalhava como professora e pedagoga de escola estadual, a expectativa era de

conhecer outro contexto de trabalho e ampliar a experiência profissional. Destaco

que quando fui escolher a vaga do concurso, a classificação permitia a escolha

privilegiada do local de assunção. Logo, escolhi trabalhar neste bairro, nesta escola.

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A surpresa da equipe da secretaria que organizava a escolha dos cargos naquele

momento me decepcionou.

Questionaram o porquê de poder escolher outras escolas, em outros bairros

“melhores”, escolas ”melhores”, menos violentas e, no entanto, escolher justamente

esta. Insistir nesta opção causou estranheza e certa antipatia com minha decisão:

“Você poderia contribuir muito mais assumindo uma escola aqui do centro!” Esta

resposta me desapontou, mas me impulsionou ainda mais a seguir minha escolha. A

opção acertada me rendeu muitas experiências, encontros, alegrias e entrada em

movimentos sociais do bairro. O envolvimento com as crianças e comunidade foi

intenso. Esta história demonstra também, o preconceito até mesmo dos órgãos

públicos, em relação ao bairro e a esta instituição.

As dificuldades eram diárias – violências na escola, nas famílias das crianças, na

comunidade; escassez de recursos, de apoio dos órgãos públicos de assistência à

saúde, à criança – alto índice de crianças com baixo rendimento escolar, evasão e

reprovação.

Todavia, o trabalho responsável de toda a equipe da escola apresentou resultados

positivos, dentre eles o índice de evasão que era de 6% em 2001, passa a 0% nos

anos seguintes. A partir de 2004, a maioria dos professores e uma pedagoga,

transferem para outras escolas modificando a formatação do trabalho pedagógico.

Outras mudanças ocorreram e interferiram na qualidade do trabalho da escola.

Enfim, os processos de mudanças e retrocessos transformam-se em uma das

motivações à compreensão de alguns aspectos inerentes à realidade social da

instituição. A decisão pelo mestrado se deu por ser uma expectativa antiga,

motivada pelos professores do curso de Especialização na universidade (UFES).

É tão bonito quando a gente vai à vida Nos caminhos onde bate Bem mais forte o coração O coração Ah! O coração (Gonzaguinha)

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A apresentação como pesquisadora na instituição ocorreu de forma bastante

tranqüila e acolhida por toda a equipe. O projeto foi apresentado aos professores, às

crianças em todas as salas de aula, aos pais durante reunião e ao Conselho de

Escola. O apoio incondicional de todos, principalmente do diretor da escola,

possibilitou-me abertura para conversas, entrevistas, sem constrangimentos ou

preocupações. O início foi muito difícil, pois a equipe da escola e algumas crianças

procuravam atenção da pedagoga. Com muita cautela fui atendendo quem me

procurava, mas orientava a que conversássemos no outro horário, no qual eu

trabalhava. Isso levou certo tempo para se ajustar, mas enfim, consegui cumprir o

período da coleta de dados, sem maiores atropelos.

Algumas crianças vinham correndo em minha direção e perguntavam: “Tia, agora

você é da escola?” A pergunta era se eu poderia atendê-las naquele momento, por

saberem da minha condição na pesquisa. Evidentemente a atenção às crianças não

atrapalhava os momentos de pesquisa, mesmo porque, muitas das vezes, eles

queriam denunciar situações de violências. O cuidado neste momento era de

acompanhá-las à pedagoga ou coordenadora do turno, sem precisar dizer que eu

não poderia atendê-los. Assim, eu acompanhava as intervenções ou não-

intervenções nos casos narrados pelas crianças.

Com as famílias, meu posicionamento foi o mesmo. E em alguns momentos, os

ouvia como pesquisadora, sem a presença de outro profissional da escola.

Registrava no diário de campo e depois passava a situação para a pedagoga do

turno que dava os encaminhamentos necessários. No decorrer da pesquisa, fui

percebendo situações que provocaram reflexão sobre minha prática. Percebi que o

olhar de pesquisadora é diferente, mais atento às particularidades e sutilezas.

Quando comecei a observar as salas de aula, observei que as relações

preconceituosas entre as crianças “pipocavam” a todo instante. Foi impossível não

me incomodar com os dados que apareciam em todos os espaços - as

invisibilidades, os silêncios, as exclusões veladas, enfim, esta escola conhecida era

desconhecida!

Nas reuniões de pais e de professores, as “conversas paralelas” me fizeram

conhecer outras faces e particularidades que não percebia enquanto pedagoga. As

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exclusões, discriminações, indiferenças foram dando forma a outra concepção de

escola. O olhar e escuta mais apurados possibilitou-me perceber também, muitos

processos de invenção, produção, busca de soluções aos desafios cotidianos, que

também não percebia como pedagoga, naqueles formatos e espaços. No contexto

da sala de aula, a vida pulsa aceleradamente, e só é possível vivenciar os meandros

desta dinâmica, observando de perto as interações, as produções e cada

expressividade surgidas nos diversos movimentos cotidianos.

Deste modo, posso afirmar que em muitas circunstâncias da pesquisa deparei-me

com situações surpreendentes, fluídas num percurso que para mim, era conhecido.

Mas os desvios, as curvas e encruzilhadas me deram de presente outra paisagem:

mais complexa e desconhecida, por outro lado, mais íntima e desafiadora.

1.1 “CRIANÇAS AO SOL”: OS SUJEITOS DA PESQUISA

A escolha deste título está relacionada a alguns aspectos inerentes à vida das

crianças desta escola e de suas “travessuras” nas ruas do bairro. Os dados

apresentados no jogo de palavras estão nos registros da escola. A escolha da

apresentação das crianças através da música se justifica por ser esta, uma

referência na vida de muitas delas. A música “Solar” de Milton Nascimento e

Fernando Brant abraça a apresentação das meninas e meninos, foco desta

pesquisa.

“Sou filho da terra do sol”

Filhas e filhos de terras diferentes – de diferentes lugares, de diferentes gentes.

Crianças indígenas e negras de muitos lugares: nordestinas, mineiras, de Linhares,

de Pedro Canário. No discurso local, as indígenas são caladas e atentas, os baianos

se irritam e brincam com as imitações. São muitas as diferenças que enchem a

escola de alegria e movimentos. O que se vê de tão diferente?

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A linguagem, a cor da pele mais escura, bronzeada e poucas de pele branca. As

muitas, a maioria tem a cor da terra do sol. Ah! Essas crianças! Todas filhas do sol,

mas nenhuma igual a outra. Agitadas, amorosas, inteligentes, caladas, faladeiras,

chorosas, brincalhonas. Algumas têm medo do sol, mas estão sempre sentindo seu

calor.

“A força que o sol me dá, canto o que eu quero viver”

O sol é companhia constante destas crianças. A rua compensa o espaço que lhes

falta em casa – um quintal, um jardim. Então, nas calçadas, no meio-fio do asfalto,

nas janelas das casas, lá estão elas. O sol na cabeça e nos ombros as queima e as

tornam douradas. No caminho para a escola, a dança dos passos rápidos ou lentos

ocorre sob o sol. Nas brincadeiras de pique - esconde ou nos carrinhos de rolimã, ao

jogar bola, soltar pipa, trocar figurinhas, pular elástico, elas estão sob o sol.

O barulho do trem se mistura às gargalhadas e aos gritos desta meninada. Nas

brincadeiras de rua, a música está sempre presente. A coreografia no portão da

escola a espera do sinal ocorre ao som de seus cantos – o funk é o preferido, ele é

cantado e dançado sob o sol. Enfim, a rua é o melhor lugar para conversar, brincar,

fazer amizade, ou simplesmente ver o trem passar.

Na ginga da capoeira45, ou no canto do coral, a música acompanha o movimento

dos corpos ágeis. A expressão do rosto destes meninos e meninas é de que a arte

representa sentidos impressos na realidade (histórica e social). Uma das músicas

cantadas pelas crianças do coral é exemplo desta realidade:

“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, a gente estancou de repente, ou foi o mundo então que cresceu [...] a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá”. (Chico Buarque)

45 Oliveira (2007) ao descrever sobre o jogo de capoeira, que reúne canto e movimento, caracteriza esta atividade como um jogo pelo qual inaugura-se uma ética da alteridade. Para jogar, é preciso a presença do outro, embalados em movimentos estéticos carregados de sentidos éticos.

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Ao som do triângulo, do afoxé e do tambor, esses meninos são pura melodia e ritmo!

E eles gingam e cantam: “Deixa o menino jogar ô Iá Iá, deixa o menino aprender ô Iá

Iá [...]” A consciência do povo daqui, é o medo dos homens de lá [...] (Natiruts).

No recreio, as crianças continuam sob o sol (forte).46 Nesse espaço, cada cantinho

se transforma em lugar de brincadeira – perna-de-pau, pula-corda, bola de gude,

polícia e ladrão, “hoje não”47 (essa brincadeira é proibida, mas eles brincam

escondidos). Mas o recreio é lugar também de conversa, da troca de lanches ou da

solidão e do silêncio. Nestes cantinhos, algumas crianças choram (sofrem) ou

simplesmente pedem atenção. A correria de alguns no horário da saída, atropela a

vagareza de outros, que teimam em querer ficar mais um pouco – talvez pra sentir

calor por mais tempo, do “sol”.

“É o sol somos crianças ao sol a aprender a viver e sonhar e o sonho é belo” O sol representa calor, o calor aquece a vida e os sonhos – A esperança, neste

caso, depositada em pessoas ou na instituição.

Estas crianças têm uma vontade de conhecer o mundo. Elas perguntam muito,

disputam o que desejam, brigam pelo que querem. Querem crescer e trabalhar na

“fábrica”, naquele lugar que lhes parece um sonho – é amplo, limpo, seguro, tem um

porto, se ganha dinheiro, dinheiro pode trazer felicidade... E pode? Elas sonham ter

um computador, viajar de avião, “quero ser médica ou catadora de lixo” (Milena, 07

anos). Tudo é sonho! E o sonho pulsa a vida, no calor do sol.

Pois tudo ainda faremos, nada está no lugar. Tudo está por pensar, tudo está por criar. Estas crianças esperam algo da vida. Não esperam tudo, mas elas esperam. As

possibilidades são agarradas quando elas confiam. Isso nos leva a pensar na

responsabilidade de se criar essas possibilidades. Mesmo em meio à injustiça social,

46 Isso ocorre porque nesta escola não existe pátio ou quadra coberta. Assim, as aulas de Educação Física e o recreio acontecem sob o sol. 47 Brincadeira que consiste em dar vários socos e tapas na cabeça de alguém distraído.

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existem brechas pela qual a escola pode atravessar e ampliar as expectativas

destes sujeitos. Na roda-viva da vida já nos conta a história, tudo se transforma,

nada é para sempre. A produção e a dinâmica da história nos remetem à formação

para a emancipação, já! – A esperança!

Eu quero é viver o sol é triste ter pouco sol, é triste não ter o azul todo dia a nos alegrar Nem todo dia tem pão, nem flor, calor ou sol. Nem todo dia tem escola, pois existem

as férias – “Tia, por que tem que ter férias?” A inconstância na vida destas crianças

as deixa inseguras. A mãe foi trabalhar e o pai, onde estará? Do dia e do irmão sou

eu quem vai cuidar!

O olhar apreensivo de muitas delas nem sempre é percebido. O sorriso discreto

demonstra algum desconforto, afinal, nem todo dia é dia de dar gargalhada. A não

ser que por um momento, as carências sejam esquecidas. Nesse momento, o calor

as aquece, até que a dor da falta lhes devolva o sentido. A necessidade do calor

nem sempre é atendida, às vezes, o olhar indiferente, a incompreensão dos boicotes

às atividades, a invisibilidade, o silêncio na dor, faz o dia ficar frio.

Nossa energia solar irá nos iluminar o caminho O tempo nesta escola tem data marcada pra terminar. Ir pra outra escola? Nem

pensar! Mas a vida nos obriga a crescer e seguir nosso caminho. “É pra lá que eu

vou ano que vem?” (outra escola, de séries finais) A preocupação com os que se

vão fica com os que conhecem os perigos da estrada. Mas existe o sol e a

expectativa construída pode dar confiança e segurança, quem sabe a certeza. O

futuro pode ser melhor e a vida lhes aguarda surpresas. Sigam em paz!48 Uns se

vão para sempre (Amanda) outros se perdem no caminho, outros mandam cartas,

ou simplesmente aparecem todo dia prá dizer: “Tia, eu sou de lá, mas continuo

aqui”.

48 As crianças são transferidas para outra escola, localizada no centro, onde funciona de 5ª a 8ª série (Escola estadual)

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2.2 A CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA

A escolha metodológica parte do pressuposto de que a infância é uma categoria

social e desse modo investigá-la, merece o olhar atento às suas especificidades,

culturas e modos de interpretar as realidades sociais, reconhece Quinteiro (2005).

Este pressuposto deve considerar a observação de seus modos de administrar a

realidade social. Isso significa acreditar na competência das crianças em expressar

suas considerações e contradições sobre tal contexto.

A pesquisa qualitativa constituiu-se em um estudo de caso do tipo etnográfico. A

justificativa desta opção metodológica é explicitada por Sarmento (2000, p. 151),

quando reconhece a importância da etnografia na pesquisa com crianças. Para ele,

a voz e a participação delas na produção dos registros é mais direta e ativa que

outros métodos de investigação.

A pesquisa teve como objetivo investigar o que as crianças sentiam e expressavam

em relação às violências motivadas por preconceito e discriminação. Tal empreitada

exigia também verificar quais os mecanismos utilizados pela escola frente às

situações de preconceito e discriminação vividas e ou praticadas pelas crianças no

espaço escolar. Enfim, o foco de análise era os diferentes discursos das crianças em

torno dos preconceitos e discriminações étnico-raciais presentes no contexto

escolar.

Acredito nas vantagens desse contato mais próximo com os sujeitos e local da

pesquisa descritas por Minayo (2004), quando diz que a inter-relação das

afetividades, das interações e experiências, assim como a linguagem, é condição

sine qua non de uma boa pesquisa qualitativa.

O Estudo de Caso possibilitou uma análise mais segura da realidade investigada

Segundo Lüdke e André (1986, p. 21), neste tipo de pesquisa, “[...] o objeto

estudado é tratado como único, uma representação singular da realidade que é

multidimensional e historicamente situada”. Desse modo, por ser uma pesquisa com

crianças, manteve-se uma interlocução permanente, em diferentes momentos do

cotidiano escolar.

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A escolha desta escola como lócus de estudo de caso se justifica pelo contingente

multicultural e econômico no cerne da estrutura social do bairro na qual se insere. O

trabalho diferencial desta escola há alguns anos atrás não foi suficiente para romper

com a problemática da discriminação no seu espaço. A diversidade étnica e a

proximidade com os estrangeiros, desde os trabalhadores, marinheiros, empresas

multinacionais assim como a convivência com a cultura indígena nos pareceu um

contexto particular de pesquisa do tipo etnográfica.

Considerando estas prerrogativas, entende-se que a pesquisa com crianças,

pressupõe uma abordagem em uma perspectiva sócio-histórica. Nesse sentido,

Minayo (2004) descreve sobre a abordagem metodológica dialética como uma

opção ideológica, por considerar que melhor responde às necessidades da pesquisa

nas Ciências Sociais. Ela complementa que nesta perspectiva, a mudança na forma

de ver a realidade e como esta pode ser transformada está fundamentada nesta

relação de busca pela emancipação subjetiva e objetiva do homem.

A pesquisa qualitativa abarca essa perspectiva. Portanto, não se concebe a

neutralidade da pesquisa. A subjetividade do pesquisador imprime marca neste

processo. Silva, Barbosa e Kramer (2005, p. 51) parafraseando Velho, confirmam

esta proposição ao afirmarem: “Por isso, a capacidade de ver, no familiar, o exótico

torna-se um instrumento precioso para o pesquisador”. Isso significa se colocar no

lugar do outro, vir com seus olhos, o que para mim, é familiar. Desse modo, a busca

pelo exótico, o estranho, naquele lugar conhecido, foi possível, a partir deste

estranhamento. E assim, as surpresas apareciam e as expressividades das crianças

apresentavam outros cenários, antes desconhecidos.

O processo de entrada nesta instituição como pesquisadora ocorreu no período de

05 a 16 de junho/07. A apresentação exigiu cautela quanto às medidas documentais

de apresentação e esclarecimentos quanto à forma e sentido da pesquisa para os

sujeitos envolvidos. Para isso, estivemos em todas as turmas da escola

conversando com as crianças. Explicamos sobre o que era o mestrado e a trajetória

escolar até tal nível de formação. Durante as conversas surgiam algumas perguntas

sobre o processo de escolarização, porém uma expressão foi recorrente: Nó!

(nossa!) Tia! Demora muito estudar! O espanto das crianças era como tempo gasto

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com a formação. Eles queriam entender o porquê estudar tanto, se algumas

profissões não precisavam de estudo. (comentários dos alunos)

Nas visitas às turmas a conversa com as crianças esclarecia sobre a pesquisa,

como se daria os diferentes momentos e quais instrumentos seriam utilizados.

Procuramos também estabelecer junto com elas, a diferença entre a profissional e a

pesquisadora. Este mesmo processo foi realizado com os demais seguimentos da

comunidade escolar. A acolhida foi interessante e alguns professores relataram a

vontade que tinham de também fazer tal curso. A apresentação à equipe pedagógica

(direção e pedagogas) foi recebida com muitos votos de apoio.

O início da coleta de dados ocorreu no período de 03 de julho a 23 de dezembro/07,

durante três dias da semana. A escolha do turno matutino se deu por ser pedagoga

no vespertino, na mesma escola. Em princípio a observação-participante acontecia

de forma aberta, sem muita sistematização. Desta forma buscou-se lançar um olhar

sobre toda a instituição e seu funcionamento, antes mesmo da organização do

roteiro de observação.

André (2005) justifica esta postura quando afirma que, em uma pesquisa qualitativa

os sistemas de trabalho se realizam de forma aberta e flexível. Ela complementa que

cada situação identificada no decorrer da pesquisa definirá especificamente como os

dados serão coletados. Assim, a observação vai configurando as decisões a serem

tomadas diante dos mesmos.

A partir de agosto o roteiro de observação-participante (anexo) orientou o caminhar

pelos vários espaços, tempos e situações da escola, agora com algumas pistas

fornecidas anteriormente. Uma destas se refere à escolha da faixa etária/turmas a

serem observadas. Tais observações ocorreram no período da manhã, de sete ao

meio-dia.

Por ser uma pesquisa do tipo etnográfica em uma escola de séries iniciais de ensino

ampliado (09 anos), a opção foi pesquisar todos os anos de ensino. Então, dentre as

12 turmas, a coleta de dados em sala de aula ocorreu sistematicamente em 07

turmas, sendo:

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1º ANO – 01 turma (crianças de 6 anos)

2º ANO _ 01 turma (crianças de 7 anos)

3º ANO – 01 turma (crianças de 8 a 12 anos)

4º ANO – 02 turmas (crianças de 9 a 14 anos)

5º ANO _ 02 turmas (crianças de 10 a 14 anos)

Além das sete turmas observadas, houve observação em outras, todavia, em

momentos pontuais como em situações de violências, atendimento da coordenadora

ou pedagoga, durante a produção de alguma atividade, durante visita inesperada de

algum familiar ou em outras situações que julgava importante. Os momentos de

observação nas turmas eram alternados com as aulas de Educação Física, recreio,

horário de vídeo e biblioteca. Neste espaço, estar no fundo da sala facilitava o olhar

sobre toda a turma.

Quando as crianças estavam envolvidas em alguma atividade que julgava

interessante observar mais de perto, circular pela sala e/ou procurar um

posicionamento estratégico, me possibilitava ver e/ou ouvir as crianças. No início

eles rodeavam, perguntavam sobre o que eu escrevia. Em um destes momentos

uma criança relatou: “Ah! Eu sei o que você está escrevendo! É tudo o que a gente

faz aqui na sala, né?” O diário de campo ficava à mesa, mas apenas uma criança

durante a pesquisa quis ler um trecho do mesmo.

Após o encerramento do turno (11h30min) me posicionava no portão da escola e

observava a saída das crianças, o movimento das famílias e as interações que ali

aconteciam. Em princípio, a opção por não estar no portão na saída ocorreu por

observar constrangimentos de algumas crianças com relação a combinados que

aconteceriam entre elas no portão. Ao perceber que minha presença implicava em

solicitações de intervenção ou rompimento de algumas interações, o afastamento

era a alternativa mais conveniente.

A conversa com os professores acontecia no horário de recreio, durante os

planejamentos e na saída da escola. Neste horário, enquanto observava a saída das

crianças, aproveitava para me posicionar ao lado dos professores que ali,

aguardavam o ônibus.

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As observações foram registradas no Diário de Campo. Quanto a este instrumento,

Sarmento (2003) ressalta a descrição densa nas pesquisas do tipo etnográfico.

Parafraseando Geertz ele descreve que no texto há as marcas simbólicas do autor e

de sua interpretação sobre os fatos observados. A simbolização da produção do

material escrito se constitui em uma intersubjetividade, visto que contém em seus

enunciados, um cruzamento de vozes. Assim, compreende-se a não neutralidade da

pesquisa em suas reflexões e apontamentos.

André (2005) indica algumas características importantes do pesquisador. Elas se

referem aos requisitos pessoais que consideram fundamentais ao desenvolvimento

da pesquisa, sejam eles:

A sensibilidade - Habilidade de estar sempre atento às situações em seus

atravessamentos, como gestos, expressões, sons.

Tolerância - Saber conduzir as investigações, mesmo diante das incertezas.

Isso exige certa flexibilidade da organização de sua pesquisa.

Comunicação - Qualificar os momentos de interação com os sujeitos

pesquisados. O clima de confiança, saber ouvir, ser paciente, enfim, conduzir a

conversa ou entrevista, com empatia.

A observação extra-sala de aula aconteceu em diferentes espaços do cotidiano

escolar, como no recreio, nas brincadeiras, na biblioteca, refeitório, corredores, filas,

na entrada e saída da escola e nos agrupamentos. Nestes espaços, as relações se

davam de forma mais intensa. Alguns casos não resolvidos na sala de aula ou não

visibilizados, ali ganhavam corpo.

Durante a coleta de dados, observaram-se três eventos nesta escola: “o dia da

criança”, “20 de novembro/Consciência Negra” e a “confraternização de

encerramento do ano”. Nestes eventos, foi possível evidenciar que as relações e

agrupamentos reproduziam aquelas, mormente estabelecidas no cotidiano da

escola. Porém, os conflitos eram menos freqüentes. Talvez porque estavam

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envolvidos em situações de aprendizagem sem muita imposição disciplinar, em

atividades de interesse das crianças - músicas, danças, brincadeiras.

A observação-participante foi constante e intensa. O fato das crianças já me

conhecerem a interação com elas foi muito tranqüila. Já havia uma confiança pelas

relações de trabalho antes tecidas. Mas foi possível perceber no decorrer do

processo uma mudança na relação comigo. No início, eram comuns os pedidos de

“socorro” e isso acontecia quando precisavam da intervenção de um adulto. Com o

tempo, elas me viam com os materiais de pesquisa circulando, mais próxima,

participando, perguntando, ouvindo. Estar mais presente, escutando-as, provocou a

construção de interações mais confiantes.

As conversas, os casos contados por crianças sofridas nas poucas palavras, nas

frases atropeladas, carregadas de dúvidas se poderiam falar ou não, tudo isso, me

levava a refletir sobre o lugar do ouvinte, do espectador. O lugar de pedagoga foi

dando espaço a outra personagem, em outro lugar, nos espaços onde não entrava.

enquanto pedagoga. Não falo de espaço físico, mas da palavra, da memória, dos

segredos - Quem falou? O que falou? Quem bateu? O que aconteceu em casa? O

sumiço do pai, o pai preso, a mãe ausente, estressada e cansada. Muitas coisas

foram ditas e eu estava ali para ouvi-las. Nestes momentos, evitava escrever, mas o

fazia logo após os encontros.

As entrevistas semi-estruturadas individuais e coletivas foram aplicadas (gravadas)

entre outubro/07 e dezembro/2007. Nesta pesquisa, a família aparece como

coadjuvante. Isso significa que não era foco de análise, portanto, as entrevistas com

as mesmas se deram de forma aberta, no momento em que compareceram à escola

para tratar de algum assunto relacionado a seus filhos. Não houve roteiro prévio.

Adultos entrevistados individualmente:

02 mães

04 professoras (3, 4, 5 anos e de Informática) e 01 professor (5)

01 professor de oficina pedagógica.

01 bibliotecária

01 coordenadora

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Três secretárias

Duas serventes

01 vigia

O diretor

Foram realizadas 18 entrevistas com as crianças, sendo 08 destas, coletivas.

Buscou-se a interação com os sujeitos, no tocante às relações étnico-raciais entre

pares e coletivizadas.

As duas serventes entrevistadas eram mães de crianças identificadas na pesquisa

como discriminadas racialmente. No entanto, elas responderam que desconheciam

qualquer atitude preconceituosa na escola. Demonstraram certo desconforto com as

perguntas e assim, só respondiam sim ou não. Enfim, foi possível perceber o receio

em falar sobre algo que pudesse avaliar “negativamente” a escola. Mesmo assim,

elas concordaram com a entrevista e disseram que era preciso mesmo pesquisar tal

tema na escola.

A entrevista com as crianças se deu de forma individual e coletiva. Esta opção se

deve ao fato de que falar sobre racismo, sobre o negro ou o indígena, causava

desconforto para a maioria das entrevistadas. As respostas eram rápidas, como se

evitassem refletir sobre tal assunto. Quando a entrevista acontecia com duas, três

ou mais crianças, a discussão provocada as levava a argumentar, relembrar fatos,

acusar ou defender colegas. Assim, as narrativas se concretizavam tornando

possível extrair os discursos dos sujeitos. Na persistência dos silêncios, os gestos e

expressões se constituíram em instrumentos de analise.

A análise de dados exigiu cuidados éticos, reflexão intensa e ampliada sobre os

dados encontrados. Quanto a isto, André (2005, p. 61) alerta:

Quando começa um trabalho de pesquisa, o pesquisador não pode deixar de lado os seus valores, as suas crenças e os seus princípios. No entanto, ele deve estar ciente deles e deve ser sensível a como eles afetam ou podem afetar os dados.

Foram catalogados os registros das observações e transcrições das entrevistas.

Buscou-se agrupá-las por categorias de análise. O trabalho de análise exigiu

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recortes dos discursos, catalogando as expressões que se repetiam. A seleção das

narrativas carregava o contexto em que haviam ocorrido. O próximo passo foi

entrelaçar os discursos das crianças com dos adultos na escrita do texto. O

referencial teórico foi dando corpo e fundamentação ao texto.

Em relação a o que as crianças falam, os registros se basearam nas entrevistas

semi-estruturadas e registros das narrativas coletadas nos diferentes momentos de

observação. Buscou-se interagir com as experiências e sentidos explicitados nestes

momentos. Como se dava a seleção dos grupos, as interações, as rejeições,

tentando capturar as expressões mais sutis, como sílabas, palavras ditas em baixo

tom. Neste sentido, Demartini (2002, p. 08) observa que é importante estar atento às

marcas de cada criança, de cada infância. E chama a atenção para o desafio de “[...]

aprender a trabalhar com aquilo que é dito e com aquilo que não é dito ou aquilo que

é dito em uma‘palavrinha só’ [...]” (grifo do autor).

Sobre essa questão, Bakhtin (2002, p. 14) ressalta que “[...] a palavra é a arena

onde se confrontam os valores sociais contraditórios, os conflitos da língua refletem

os conflitos de classe no interior mesmo do sistema [...]” Sendo a fala de natureza

social, a palavra possui um sentido, carregado de signos construídos na interação,

nas relações histórico-sociais.

Durante o processo de pesquisa, os registros documentais possibilitaram conhecer a

história das crianças mais envolvidas em situações de discriminação. Os registros

verificados foram: Atas, fichas de matrícula, censo escolar, livro de registro diário

(ocorrências).

Quando elas se calam – No primeiro momento identificou-se as crianças mais

caladas. Isso ocorreu no início da observação. A escolha das salas a serem

observadas teve este, como um dos critérios. O processo de observação neste caso

ocorreu de forma mais intensiva, ou seja, a atenção aos movimentos das crianças

mais caladas era constante. O olhar e a escuta se dirigia a elas e a seu entorno.

Assim, em algumas situações, a criança expressava através do outro – colega mais

íntimo. O olhar e os gestos eram direcionados ao colega e, às vezes, a expressão

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significava o não poder falar, e nestes momentos, era preciso observar os detalhes

ainda mais sutis da interação que ocorria.

Os gestos, as expressões do corpo, os silêncios possuem sentidos. É o que afirma

Orlandi (2007) e segundo ela, o silêncio não é ausência de sons ou de palavras,

mas o principio de toda significação. Para a autora, o silêncio está nas palavras e as

atravessa. Esses sentidos não verbalizados podem estar relacionados com a

negação de sua cultura e de seu modo de ser e viver no mundo. Nesta mesma

perspectiva Minayo (2004) ressalta, que observações sobre conversas informais,

comportamentos, eventos, gestos, expressões que digam respeito ao tema da

pesquisa devem ser explorados durante a investigação.

Os silêncios identificados não estavam relacionados a não saber falar, mas o evitar

falar por algum motivo. E as crianças identificadas como caladas em sua maioria

eram negras e indígenas. Esses silêncios eram relatados pelos professores e outros

funcionários da escola. Deste modo, checar estas informações proporcionou maior

segurança à análise dos dados.

Orlandi (2007) descreve que para compreender o significado do silêncio é preciso

perguntar o que ele ‘cala’. Assim, captar os sons, na possibilidade de identificar

fragmentos despercebidos nas atitudes silenciosas, nas palavras não-ditas, porém

significantes, se constituem em possibilidades de dar visibilidade à criança. São

pistas e indícios que foram analisados, na tentativa de dialogar com os possíveis

significados sociais das diferentes linguagens e dos conflitos vivenciados em suas

relações. Estar na instituição como profissional, ao mesmo tempo investigar o

contexto de trabalho, foi desafiador. Estive perto pela intimidade, porém distanciada,

buscando lançar outro olhar menos encarnado, mas nem por isso neutro.

Os momentos de observação trouxeram enorme carga emocional. Decepção,

indignação, surpresas boas/ruins, decepções e muita esperança. Em algumas

entrevistas chorei sem que a criança percebesse, pois, para elas, o espaço da

escuta trouxe a possibilidade da fala, o desabafo e até mesmo o choro. Muitas

destas crianças são violentadas - física, moral, política e eticamente. E elas sabem

disso, e resistem.

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CAPÍTULO 3

3 CENAS E CENÁRIOS DA DISCRIMINAÇÃO ÉTNICO-RACIAL

A violência nesta escola já foi mais intensa em anos anteriores. Atualmente, os

índices são menores, mas ela existe. Foram constatadas violências físicas:

empurrões, socos, tapas, puxões de cabelo. Violências não-físicas também se

fizeram perceber de diversas formas - a indiferença, o silenciamento, o baixo-

aproveitamento escolar. Violências vistas como situações naturais, produzidas e

reproduzidas na instituição escolar.

Percebeu-se que a composição de algumas organizações dos tempos e espaços da

escola permitia certas ações de violências. Um exemplo, era a longa espera em filas

no horário de entrada causada por atrasos dos professores ou outros incidentes

cotidianos intensificava desentendimentos e violências. A questão é que a fila vista

como forma de disciplinamento se tornava na maioria das vezes em momentos de

confusão entre as crianças. Era comum os empurrões, xingamentos, choros de

quem foi empurrado e se machucou. Algumas professoras exigiam uma nova

formação, troca crianças de lugar, “menores na frente, maiores atrás”... e o tempo

passa. Enfim, a entrada em fila não garantia a organização da entrada para a sala

de aula. O empurra-empurra era frequente.

O recreio e o portão no horário de saída são espaços onde ocorrem muitas das

violências entre as crianças. O racismo pode ser percebido como uma das

motivações às agressões físicas e não-físicas, que serão relatadas pelos próprios

atores, na apresentação da análise dos dados.

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3.1 O CABELO COMO CRITÉRIO DE EXCLUSÃO

3.1.1 “Cabelo Pixaim”: algumas considerações sobre raça e gênero

Se eu quero pixaim, deixa Se eu quero enrolar, deixa Se eu quero assanhar, deixa Deixa, deixa a madeixa balançar (Chico César)

A discriminação étnico-racial está engendrada na sociedade em geral, disseminando

efeitos nefastos sobre a população negra – mais pobre e desamparada pelas

políticas públicas. De fato, pensar a problemática racial no Brasil, não prescinde do

desdobramento reflexivo das condições materiais de existência, atreladas

historicamente. Todavia, o racismo não atinge somente os mais empobrecidos, está

enraizado nos estratos sociais, implicado no corpo, na cultura, na religião, na

condição do negro e indígena brasileiro. Para uma compreensão desta realidade,

salvo os limites desta empreitada, a pesquisa buscou analisar a voz e o silêncio das

crianças, com ênfase naquelas mais vitimizadas no cotidiano da escola.

Dentre as diferentes atitudes preconceituosos identificadas durante a coleta de

dados, as que mais apareceram foram as aferidas ao tipo de cabelo das crianças. E

ao observar as características físicas das mesmas, é possivel evidenciar que a

grande maioria apresenta as marcas estéticas do corpo negro – cabelo crespo, pele

escura. Traços estes que poderiam identificá-las enquanto descendência africana, e,

no entanto, tornam-se precedentes de conflitos inter-raciais. Assim, o fato da

clientela desta escola se constituir em sua maioria de crianças negras, não minimiza

as situações discriminatórias entre elas.

De forma geral este panorama demonstra o quanto a aparência física pode

influenciar as relações entre as crianças no espaço escolar. Em muitos casos, o tipo

físico transforma crianças em vítimas cotidianas de maus tratos por parte de outras

crianças e até mesmo de adultos com os quais convivem no espaço escolar. Sobre

essa relação corpo-alteridade, a pesquisadora Gomes (2000) descreve que na

instituição escolar, assim como na sociedade, as relações perpassam o corpo que é

biológico, porém, constiuído e simbolizado na cultura e na história.

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O sentido imputado ao corpo negro, possui uma dimensão simbólica, sob o ponto de

vista da construção da identidade em contexto de subjugo, opressão e negatividade.

Aspectos estes agregados aos povos africanos, desde o processo de colonização

pelos europeus. O negro neste perverso olhar do colonizador, era visto como coisa,

existindo como simples animalidade49.

Partindo da premissa de que o negro é estigmatizado por suas características

físicas, as crianças negras podem carregar o peso deste legado, quando são

desvalidas por seus modos de ser, externados por seu pertencimento étnico-racial.

A discriminação atinge de forma absurda crianças de todas as idades, até mesmo as

menores, fato esse, evidenciado nesta pesquisa, fortemente relacionado ao cabelo.

As narrativas das crianças negras discriminadas pelo tipo de cabelo, apresentam-se

carregadas de sentimentos de negatividade, de rejeição e de inferioridade sobre sí

mesmas. Os significados atribuídos ao cabelo, compõem o cenário de violências

físicas e não-físicas, visíveis ou silênciosas, vivenciadas pelas crianças.

Apelidos e xingamentos trazem consigo as marcas dos estereótipos sobre o fenótipo

das crianças negras. Adjetivos como “carvão”, “negrinho do pastoreio”, “neguinho”, “

preto”, “macaca”, “horrorosa”, foram identificados ao longo da pesquisa. Para Gomes

(2000), a cor negra representa feiúra no contexto das relações discriminatórias, e

desse modo, ser negro para muitas crianças é ser feio.

O cabelo crespo torna-se motivo de incômodo para uns e de ofensa para outros que

se utilizam de adjetivos negativos para desqualificarem o cabelo das outras crianças,

constantemente xingadas de ”cabelo de pico”, “cabelo de bombril” “cabelo de

assolan” e “bruxa”, xingamentos estes, quase sempre, direcionados às meninas.

Percebe-se neste caso, a discriminação étnico-racial atravessada pela questão de

gênero. Não sendo esta categoria foco deste trabalho, algumas ponderações podem

ser elencadas, ao considerar que as meninas são as maiores vítimas do racismo no

espaço pesquisado. Além disso, o silêncio se fez presente em quase todas as

49 “Se um negro em uma comunidade branca é considerado nada mais do que um negro, perde, juntamente com o seu direito à igualdade, aquela liberdade de ação especificamente humana [...] exemplar de uma espécie animal, chamada homem.” (Arendt. 1998. p. 235)

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ofensas discriminatórias direcionadas às meninas, como se pode perceber no relato

que se segue.

Na turma de 4º ano, dado o sinal de saída, Raísa se levanta e começa a organizar

seu material na mochila. Sem intenção, esbarra no colega de trás que a agride

falando baixinho: “Oh! Num ta enxergando não? Sua bruxa! Cabelo de bombril! Ela

olha para a pesquisadora e abaixa a cabeça demonstrando constrangimento. Ao

passar por ela, este menino lhe dá um tapa na cabeça e ainda fala: “Menina feia!

Horrorosa!”Ela nada fala e sai completamente calada.

Muitas meninas lidam diariamente com a opressão discriminatória quase sempre de

forma passiva. A impressão que se tem é de submissão a esse tipo de violência, por

não verem outra alternativa possível, naquele espaço. Foi possível identificar

meninas abaixarem a cabeça diante de violências físicas (tapas, puxões de cabelo,

empurrões) e não-físicas (xingamentos, apelidos, piadas, humilhações, segregações

coletivizadas), em gesto de subserviência ao poder imposto pelo outro (entre pares),

ou pelos outros (coletivizado).

Saffioti e Almeida (2003) apontam que a mulher é treinada desde pequena a

conviver com a impotência. Observa-se atitudes autoritárias por parte da própria

família, e nesse espaço privado, papéis sociais são internalizados, tendo como

figura repressora, geralmente, o pai, padrasto, primo ou irmão mais velho. Neste

contexto de relações de força, as mulheres e as crianças são as mais agredidas. O

poder gera a impotência, o medo, que também poderá ser expresso em violência.

Partindo destas considerações pode-se perceber o quanto as meninas desta escola,

desde bem pequenas, já recuam diante das investidas discriminatórias por parte dos

meninos. Essa atitude de passividade diante destas violências foi evidenciada na

análise dos dados, não sendo na sua totalidade, pois verificou-se também,

movimentos de resistência por parte de algumas delas. No entanto, como o objeto

de estudo desta pesquisa são crianças (meninos e meninas) discriminadas na

relação étnico-racial, foi nesse problema levantado no início do projeto de pesquisa

que as análises se delinearam.

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Ana ( n50, 7 anos) é uma das meninas identificadas durante a pesquisa, pelo fato de

ser constantemente agredida por discriminação racial. Em uma das observações, a

professora orienta uma atividade de recorte. As crianças estão concentradas na

tarefa proposta quando ela se levanta procurando uma posição mais confortável e

acaba esbarrando em Luís (b, 07 anos). Este menino pega sua tesoura, joga em

Ana e grita: “Sua horrorosa! Cabelo de pico! Você me fez errar”. Ana está ferida,

mas nada fala, apenas chora. A professora deixa a menina em sua carteira e

encaminha Luís à coordenação. Ana estaria chorando pelo ferimento físico ou pelo

sofrimento de ser violentamente discriminada pelo colega? O choro silêncioso de

Ana parece ter sido causado por múltiplos motivos, dentre estes, a frequência destas

atitudes por parte deste menino (único menino branco da sala) sem que nenhum

acontecimento viesse livrá-la desse infortúnio.

Além de provocar esta colega constantemente, Luís agride outras meninas, com

exceção de Mara, única menina branca da sala. Esta situação demonstra como as

crianças desde pequenas podem escolher suas amizades ou rejeições, baseadas

por preconceitos étnico-raciais. Diante desta consideração surge uma pergunta:

Como as crianças constroem a representação de belo e feio?

Em Pino (2005), constata-se que os processos de subjetivação se configuram a

partir das práticas sociais. O autor reitera a posição de Vigotski sobre a constituição

dos símbolos na cultura. Parafraseando Marx, ele atribui à cultura a junção de

elementos da “materialidade” e da “significação”. Desta forma, as produções

humanas, construídas na relação do simbólico (linguagem, signos) com o material

(produtos da ação humana ) produzem também outras relações e outros

significados.

Neste caso, a criança interage com o mundo, com a cultura, com a história, e nesses

movimentos estabelece seu próprio processo de significação, através da linguagem

e de seu meio social. Envolvida nessa mediação – história, cultura, linguagem e

50 Ao considerar a complexidade de se definir a identidade étnica será utilizada em referência à raça/etnia as letras: b (branca) e i (indígena) e n (negra). Negro se refere aos sujeitos afrodescendentes, mesmo os de pele mais claras, mas que apresentam fenótipo de descendência africana. Branco se refere aos sujeitos de pele clara, cabelo liso e indígena os identificados pela descendência das aldeias indígenas de Aracruz.

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signos, a criança vai incorporando e ressignificando os padrões de comportamento a

partir do outro, nas relações sociais51. É possível então, pensar as relações étnico-

raciais enquanto construção social. Isso remonta aspectos ligados à exploração

econômica de grupos humanos e a dimensão simbólica constituída nestas tramas

sociais.

A exploração econômica da África, a escravização dos povos africanos, as

imigrações e o nacionalismo, fazem parte das artimanhas capitalistas desde o

século XVI. Fatores estes, responsáveis por ajuntamentos de grupos humanos em

uma relação hierarquizada de poder, de valores subsumidos, abstraídos dos grupos

dominados. Neste cenário, o “estranho” deveria ser destruído. Para Arendt (1998, p.

335)

A razão pela qual comunidades políticas altamente desenvolvidas, como as antigas cidades-Estados ou os modernos Estados-nações, tão frequentemente insistem na homogeneidade étnica é que esperam eliminar, [...] essas distinções e diferenciações naturais e onipresentes que, por si mesmas, despertam silêncioso ódio, desconfiança e discriminação[...] O ‘estranho’ é um símbolo assustador pelo fato da diferença em si, da individualidade em si[...].

Além disso, outros fatores alimentaram o ódio incondicional às diferenças entre os

humanos como a perda das tradições, do diálogo e do reconhecimento do direitos

da pessoa humana, nestes últimos séculos.

Dentre esses valores, usados como critérios de classificação, pode-se perceber que

o conceito de belo e feio passam a considerar principalmente no mass média, a cor

branca, os olhos claros e o cabelo liso. Neste caso, ser menina negra, ter o cabelo

característico de seu pertencimento racial a diferencia da imagem de “menina

bonita”. Este aspecto pode provocar atitudes de estranhamento por parte do outro. O

estranho, neste caso, são suas diferenciações – as marcas étnicas impressas no

corpo. Quanto a isso Gomes (2000) aponta que o corpo expressa nossa relação

com o mundo, e assim, é natural e também simbólico.”

51 Pino (2005) fundamenta-se nos conceitos de Marx e Vigotski sobre as relações sociais na perspectiva do materialismo dialético, ou seja, as relações constituídas nas relações de produção material, por meio do trabalho.

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O cabelo crespo é comparado e relacionado a objetos (bombril, assolan, vassoura)

ou a personagens (bruxa), assim como, recebe o sentido de desarrumado, feio e

indesejável. Essa situação se reproduz e adquire proporções coletivizadas, na

medida em que meninos provocam o sofrimento de meninas em grupos, levando-as

a se protegerem da maneira que conseguem quando compartilham a dor de serem

constantemente xingadas no próprio grupo.

Ao perguntar a Thaís (n, 07 anos) se ela gosta dos colegas da sua turma, ela

responde: “Tem uns que ficam botando apelido [...] Eles me chamam de cabelo de

pico! Chama até minhas colegas da sala!” Elen (negra) e Raquel (indígena) relatam

as agressões que os meninos de sua turma direcionam às meninas : “Às vezes os

meninos ficam fazendo bolinha e tacando nos outros. “[...] Porque eu não falo nada

com eles e eles ficavam implicando [...]” (Elen) “É porque eles falam assim, que ela é

piolhenta, fedorenta.” (Raquel)

Em observação na turma de 1º ano (crianças de 06 anos), o convite à fotografia da

turma desvelou algumas situações de discriminação, pois ao pedir que as crianças

se agrupassem para a foto, algumas crianças se negaram a juntar-se ao grupo.

Nesta situação todas elas eram negras. As respostas que se seguem, podem

confirmar tal hipótese:

Por que você não gosta de ser fotografada? (pesquisadora) Porque sou muito feia! (Jerusa, n) Alguém já disse que você é feia? (pesquisadora ) Eles chamam ela de bruxa! Por causa do cabelo dela! (Ruan, n) É preto e enrolado (vários meninos) (risos) E como é um cabelo bonito prá vocês?(pesquisadora ) O cabelo de Isabel é lindo! (a turma) É loiro e liso! (a maioria da turma) (Diário de Campo, 23/08/07)

Várias fotos são tiradas. Algumas crianças continuam sentadas negando-se a serem

fotografadas, enquanto outras posam para a foto bem tímidas. Algumas se

mostravam constrangidas. As únicas crianças que ficaram mais espontâneas para a

foto foram três meninas (b) e um menino (n). Questionadas se ficaram bonitas na

foto as crianças respondem:

Não...a Isabel ficou...eu fiquei feia! (Brunela, n) Você se acha feia? ( pesquisadora )

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Acho! (Brunella) Por que? O que você não gosta em você? ( pesquisadora ) Do meu cabelo! É feio! O da Isa é bonito! A Isabel é a mais bonita! ( Ludmilla n) Ela é branquinha e tem o cabelo loiro (Jairo n) Tem uns cachinhos! ( Vanessa n)

Isabel sorrí o tempo todo, pois é apontada pelos colegas da turma como a mais

bonita. Ao perguntar se ela se achava bonita ela responde que sim, e ao ser

questionada se achava suas colegas bonitas também, ela olha para cada uma e

aponta as duas outras de cabelo liso e olhos claros e responde: “Eu acho ela e ela

bonitas”.

Durante a conversa, os meninos criticam o cabelo das meninas, mas não se sentem

à vontade diante da câmera. Eles se escondem atrás das meninas e falam que não

gostam de tirar fotos porque se acham feios. A professora observa esta cena

assustada pelo fato de nunca ter percebido reações discriminatórias na sua sala de

aula. As crianças são em sua maioria negras. Elas se acham feias, principalmente

por não terem o cabelo desejado (liso e loiro). E então, aos seis anos de idade, já

não são aceitas pelo outro por suas características físicas e acabam discriminando

entre sí, enaltecendo a imagem das três colegas, que possuem o fenótipo idealizado

por elas, reprodução do padrão de beleza propagado pela sociedade.

Alvos preferidos dos meninos, muitas meninas passam o tempo da aula mexendo

no cabelo, sempre presos por pregadeiras, arcos e elásticos. Elas os seguram,

amarram e desamarram, passam as mãos por diversas vezes, molham e penteam

os mesmos. Evidencia-se uma preocupação das meninas negras, com a arrumação

de cabelo e assim, lançam mão de uma variedade de acessórios com os quais

entram em uma dinâmica de movimentos e inquietações constantes.

Júlia se dirige à sala de Educação Física. Ela vem segurando a pregadeira na boca enquanto segura os cabelos com as mãos. Ela puxa as mexas do cabelo, se irrita, coloca a pregadeira na boca, segura os cabelos com as duas mãos. Observo um desconforto por parte desta menina para com seu cabelo. ( Diário de campo, 23/08/07)

Júlia foi identificada na pesquisa como uma das meninas que mais sofrem

discriminação. Ela é negra e os cabelos crespos sempre soltos não são assumidos

com naturalidade, talvez pelo fato das crianças estarem constantemente abordando-

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a com apelidos, xingamentos e agressões físicas. Foi o que aconteceu na saída da

escola, durante a observação: Júlia é uma das últimas crianças a sair, como quase

sempre acontece. Ao se distanciar do portão, três meninos que a identificam,

mesmo já estando distante, gritam: “Vai embora, cabelo de bombril... o colega rí e

fala: “Não é de bombril, é de assolan!” (risos)

Júlia se vira, olha para os meninos, abaixa a cabeça e continua caminhando em

silêncio até virar a esquina. Esse tipo de atitude em relação a Júlia foi observado em

vários momentos e espaços da escola e no portão em horário de saída das crianças.

Os meninos são os que mais a oprimem, principalmente nos momentos extra-sala,

longe dos olhares da professora. Isso não significa que as crianças não sofram

discriminação diante dos professores/as, pois nas observações nestes espaços,

constatou-se atitudes discriminatórias, invisibilizadas pela maioria dos profissionais.

Diante dos xingamentos sofridos, geralmente direcionados a seu tipo de cabelo,

Júlia está sempre isolada, travando uma luta com os mesmos. E assim,

constantemente, a reação instantânea desta menina é segurá-lo, tentar prendê-lo de

maneira que fique melhor aos olhos dos que a ofendem. Isso é possível afirmar

porque a causa desse desconforto visível é confirmado nas poucas palavras:

Meu cabelo é muito feio! (fala de cabeça baixa) Você não gosta do seu cabelo? (professora de Educação Física) Não! Não gosto! Eu quero ficar careca! Vou raspar tudo e ficar careca! Minha irmã disse que cortou o dedo penteando meu cabelo! (Diário de Campo, 23/08/07)

Esta criança expressa neste momento muita mágoa, tristeza e raiva por não gostar

do seu cabelo. No entanto, o que ela pensa sobre sí é consequência do olhar do

outro sobre ela. Sua imagem é avaliada pelo outro e neste caso, o outro, a

desqualifica, quando a agride, referenciando a seu tipo de cabelo, às características

de seu corpo. Para Gomes (2000), nos espaços sociais nos quais as crianças

convivem, estão presentes as referências ao corpo do negro estigmatizado por

preconceito racial.

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Foi possível observar agressões físicas deferidas na cabeça das meninas: tapas,

puxões de cabelo em demonstração explícita de agressividade para com as

mesmas.

A discriminação coletiva também ocorre dentro da sala de aula, distante ou próximo

do professor. Situação essa observada durante uma discussão sobre filmes de terror

por ocasião do “Dia das Bruxas”. A professora pede sugestões e as crianças gritam

nomes de diversos filmes: “ O Chamado”, “Boneco Assassino”, “Pânico na Floresta”

foram alguns dos citados. O objetivo da aula era simplesmente passar um filme de

terror. Não observei qualquer argumento explicitado pela professora, quanto ao

conhecimento a ser abordado com a exposição do filme.

Durante esta aula, falar sobre violência os deixou bastante agitados, interessados

em falar, contar histórias, emitir opiniões sobre relatos de homicídios vivenciados na

comunidade. Eles comentam cenas chocantes de filmes assistidos, sob os olhares

curiosos dos demais. Assim, foi possível perceber que há um interesse em relação

às cenas e cenários muito violentos, isso talvez se deva ao fato de que essas

crianças convivam de perto com múltiplas violências no seu contexto de vida e são

afetadas por esta realidade.

Em meio à euforia, um menino grita: “Jussara, assombração prá Dedéu!” ( A turma

se vira para a menina e dá gargalhadas) A professora ri e continua a escolha dos

filmes com a turma. Ao perguntar o porquê desta referência à colega, vários

meninos que estão mais próximos respondem:

Todo mundo aqui chama ela de assombração! (Carlos n) É por causa do cabelo dela! (Iuri b) É arrepiado! (risos da turma) (Jonas n) É tipo um sol! (risos da turma) (Raí n) Eles ficam chamando ela de bruxa, cabelo de bombril, cabelo de pico! Quando a professora pede prá fazer grupo, ninguém quer sentar com ela..ai a professora pede prá ela trocar de lugar. (Pietro n) (Diário de Campo, 03/08/07)

Ser discriminada por alguém já é humilhante para qualquer pessoa, porém, foi mais

terrível ainda observar essa menina ser alvejada publicamente por várias crianças,

em silêncio, de cabeça baixa, sem vislumbrar nenhuma acolhida ou atitude

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interventiva por parte da professora. Ao identificar a rejeição da menina, ela pede

sua localização em outro grupo em demonstração de que não há interesse algum

em romper com as discriminações veladas bem alí na sua frente, todavia, Jussara

continua vulnerável diante das frequentes opressões.

Em outra situação, Marina, uma menina (negra) se afasta de seu colega e explica o

porquê: Ele coloca apelido. Qual apelido ele coloca em você? (Pesquisadora) Cabelo de bombril! (Marina) Ele falou que o cabelo dela ta arrepiado! (Verônica aponta para o cabelo de Aline) Cabelo de quem que ta arrepiado? (pesquisadora) Mentira! (Aline segura o cabelo e fala chorando) As meninas aqui têm o cabelo arrepiado! (Tadeu b) Eu prefiro mais o da Ingrid (Tadeu) O que tem o cabelo dela? (pesquisadora) O cabelo dela é mais loirinho e o dela aqui é assim... (aponta para o cabelo de Aline)

Gomes (2000) alerta sobre as marcas do racismo nas crianças, em face à maneira

como a escola e a sociedade percebem o negro. Segundo a autora muitos sujeitos

só falarão das diversas situações discriminatórias sofridas na escola, em outros

momentos e espaços ou quando adultos. Dessa forma, a escola deixa de cumprir

seu papel social, quando não ouve essas crianças, e as deixa passar por

constrangimentos, às vezes em total silêncio. A passagem pela escola durante a

infância pode representar um verdadeiro “pesadelo” para muitas crianças, assim

como, pode levar muitas delas ao fracasso escolar, à baixa freqüência ou à evasão.

3.1.2 “Cabelo raspadinho, estilo Ronaldinho” Cabelo raspadinho, estilo Ronaldinho Cabelo pintado ou V-O Cabelo embaraçado, encaracolado, rastafari, Rock`n Roll. (Chiclete com Banana)

Em todas as observações e entrevistas realizadas, somente dois meninos

reclamaram de discriminação por causa do cabelo, as meninas aparecem como os

principais alvos. É fácil compreender tal diferença. Além da questão de gênero que

atravessa as relações entre as crianças, nota-se que os meninos aderem ao estilo

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”Ronaldinho” 52. Eles cortam o cabelo bem baixinho ou raspam o couro do cabelo.

Pode ser que esta opção esteja estreitamente relacionada ao receio de não ser

aceito: “Eu não gosto do meu não... porque ele é feio! (em silêncio, olha para o lado

e passa a mão no cabelo) Eu nem tenho cabelo” (Murilo, n, 08 anos)

É possível que o motivo seja não assumir o cabelo que tem, por medo de ser

discriminado. Os meninos mantêm o cabelo bem curtinho, quase imperceptível. O

que parece lhes dar o poder de desqualificar o tipo de cabelo das meninas, também

negras. Pode-se perceber que em quase todos os relatos apresentados nesta

pesquisa, os meninos provocavam as situações de racismo freqüentemente

envolvendo as meninas que relatam: “Porque os meninos ficam me chamando de

feia e bruxa, eles chamam de Fiona. Eu e ela eles chamam também de bruxa e de

Sherek!” (Luana n, 07 anos) “eles ficam xingando as meninas” (Jamile, n, 07 anos)

“O Fabiano xinga, um monte de coisas [...]” (Luíza, n, 08 anos)

As agressões físicas por racismo também foram evidenciadas na maioria dos casos,

a partir dos meninos “O Paulo e o Fabiano ficam batendo [...] ”Eu falo para eles pará

de chamar eu de cabelo de pico senão vou chamar o meu pai [...]” (Luíza, n, 08

anos) Os critérios de beleza nas narrativas dos meninos valorizavam o cabelo liso e

loiro. As meninas com pele mais clara também eram apontadas como bonitas: “As

meninas aqui tem o cabelo arrepiado!” (risos)

Os meninos falam pouco de si mesmos. Foi possível perceber que o alvo deles eram

as meninas. Então escapavam das possíveis respostas por direcionar suas

discriminações às meninas. Neste diálogo, Breno fala por Leonardo quando este diz

se achar muito feio.

Porque que você não se acha bonito? (pesquisadora) Silêncio Por causa do cabelo dele! (Bruno). O que tem o cabelo dele? (pesquisadora). (Risos, seguido de silêncio. Leonardo demonstra constrangimento e abaixa a cabeça. Bruno observa a reação do colega e rompe o argumento para não expor o colega) Não, eu tava brincando! (Bruno)

52 Jogador de futebol brasileiro conhecido mundialmente.

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Esse estilo “Ronaldinho” adotado por esportistas e atores, está no imaginário racial,

como padrão de beleza do negro, que prefere raspar a cabeça, escondendo assim,

o cabelo crespo. Atualmente, já é possível observar nas novelas, atores que vêm

assumindo a “cabeleira” como símbolo e valorização da raça negra. No entanto, na

escola pesquisada, nenhum menino negro com o cabelo mais comprido foi

identificado.

3.2 AGRUPAMENTOS: OS CONVIDADOS E OS REJEITADOS

3.2.1 “O Menino Negro não entrou na roda”

O Menino Negro não entrou na roda O menino negro não entrou na roda das crianças brancas - as crianças brancas que brincavam todas em uma roda viva de canções festivas , gargalhadas francas... O menino negro não entrou na roda. E chegou o vento junto das crianças - e bailou com elas e cantou com elas as canções e danças das suaves brisas, as canções e danças das brutais procelas. O menino negro não entrou na roda. Pássaros, em bando, voaram chilreando sobre as cabecinhas lindas dos meninos e pousaram todos em redor. Por fim, bailaram seus vôos, cantando seus hinos... O menino negro não entrou na roda. "Venha cá, pretinho, venha cá brincar" - disse um dos meninos com seu ar feliz. A mamãe, zelosa, logo fez reparo; O menino branco já não quis, não quis... O menino negro não entrou na roda. O menino negro não entrou na roda das crianças brancas. Desolado, absorto, ficou só, parado com olhar cego, ficou só, calado com voz de morto. (Geraldo Bessa Victor)

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Durante a coleta de dados, percebeu-se que as crianças subdividiam-se em grupos

nos diferentes tempos e espaços da escola. Foi possível identificar alguns critérios

utilizados pelos agrupamentos entre as crianças como a cor/raça, tipo de cabelo,

higiene, linguagem e aproveitamento escolar. Algumas professoras também usavam

de critérios para agrupar as crianças na sala, visível na sua cartografia (localização

das crianças na sala de aula). Neste caso, o aproveitamento escolar foi o critério

mais presenciado, fato esse, atrelado à questão étnico-racial, observada.

Durante a construção deste trabalho, uma pergunta provocou muitas inquietações:

Por que as diferenças provocavam tanto repúdio, opressão e rejeição? Essa

indagação atravessou momentos de conversas com as crianças e entrevistas. O

entendimento da pesquisadora, com base nos dados coletados pressupõe que as

características físicas das crianças determinam de forma intensa, as suas relações.

Foi possível perceber em muitas situações, que a diferença provoca em muitas

crianças, um processo de estranheza53 ao que lhe parece “anormal” e assim, passa

a desencadear nelas gestos de nojo, sarcasmo, olhares e risos entre cochichos,

diante de outras crianças, colocadas em cenas constrangedoras por seus atributos

físicos.

Se a criança é um sujeito concreto que emite juízos e, opiniões sobre o mundo em

que vive ela não é um ser inocente como afirmam algumas perspectivas teóricas,

sob o ponto de vista da naturalização da infância54. Desta forma, autores como Pinto

(1997), Sarmento (2007) e Quinteiro (2005) se fundamentam na Sociologia da

Infância e questionam o conceito moralista de socialização na concepção de

Durkheim. Apontam então outra dimensão de infância, na qual a criança é um ator

social e não um mero receptor de seu contexto de vida. A criança age no mundo e

suas ações nem sempre estão condicionadas às regras de convivência impostas.

53 Souza (2005) concebe o estranhamento como a experiência do sujeito consigo mesmo na sua relação com a própria imagem. Há nessa mediação o sentimento de estranhar o que é diferente, não reconhecível como parte de si mesmo. 54 Ver em Pinto (1997) a análise das teorias modernas que percebem a criança enquanto ser ingênuo e puro, necessitando assim, de proteção, para que não perca essa inocência.

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Esta afirmação é paradoxal na medida em que a criança constitui sua subjetividade

na história e na cultura, e desta forma ela pode reproduzir as situações relacionais

vivenciadas ou ressignificá-las em dado contexto. Pesquisar a violência entre as

crianças sob essa nova concepção possibilitou perceber alguns meandros acerca da

sociabilidade, explicitada pelas crianças na relação com os grupos de brincadeiras e

na interação entre as mesmas em outros momentos na escola. Exemplo disso são

as escolhas que elas fazem, as justificativas dadas pelas rejeições a tipos

específicos de características físicas nos espaços/tempos e os significados destas

atitudes, para os aceitos e os rejeitados. As discriminações se apresentavam de

forma individual (entre pares) e/ou coletivas (de um grupo para com uma criança, ou

grupo de crianças).

Ao considerar a dimensão das relações sociais determinadas pela cultura Pino

(2005) descreve que, a criança vai se constituindo em ser cultural na medida em que

recebe a significação55 dada pelo outro a partir do universo simbólico. Para o autor,

as ações de um desencadeiam as ações dos outros. Isso ocorre por intermédio da

comunicação semiótica, delineando as “funções superiores.”56

O tipo de cabelo nesse contexto é uma representação simbólica negativa na medida

em que se diferencia do padrão de cabelo aceito pelo grupo, no caso desta

pesquisa, o cabelo liso e claro. Ter esse tipo de cabelo, que não é comum neste

espaço de pesquisa, proporciona um poder ao sujeito - escolher, ser escolhido e

rejeitar quem não lhe agrada. A expressividade das significações objetivadas nas

práticas sociais demarca territórios – ser aceito/rejeitado pelo outro.

Outras características e modos de ser e viver, foram percebidos enquanto critérios

de aceitação ou rejeição por parte dos colegas. Uma professora que levou seu aluno

Pedro (menino negro) para a coordenação, por estar sujo, relata a discriminação que

ele sofre dos colegas de sala: “As crianças não querem sentar perto dele... por 55 Pino (2005) a significação (idéia) e a materialidade caracterizam o que é criado pelo homem através dos meios de produção. O autor se fundamenta em Marx, referindo-se à produção como materialização da idéia que direciona a ação. 56 Na perspectiva de Vigotski, Pino (2005, p. 107) compreende essas funções, a partir das relações sociais. Para o autor, é a essência do psiquismo. Segundo ele, [...] as funções mentais superiores não são simples transposição no plano pessoal das relações sociais, mas a conversão no plano da pessoa, da significação que têm para ela essas relações, com as posições que nelas ocupam e os papéis ou funções que delas decorrem e se concretizam nas práticas sociais em que está inserida.”

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causa do mau cheiro... quando peço pra formar grupos, ninguém quer sentar com

ele... dá dó!” (professora Cláudia)

Esse menino é rejeitado nos agrupamentos por sua condição de higiene e cuidados.

Isso implica em entendimento de que o suposto “mau cheiro” tem incomodado seus

colegas. Mas será que o fato de ser negro não acentua essa exclusão? Ou não seria

mais apropriado tratar dessa situação com mais cuidado, evitando que a exclusão

aconteça outras vezes?

Isso leva a refletir sobre o que move a ação da professora - a criança em si e, desta

forma, deixa outros aspectos inerentes à situação da criança como a prática

pedagógica, a discriminação, os maus-tratos a ela submetidos. A intervenção é

pontual por se direcionar apenas à apresentação física naquele espaço institucional.

Para Gomes (2000), a escola impõe padrões até mesmo de estética. Para estar na

escola é preciso apresentar-se fisicamente dentro de critérios de uniformização. O

cuidado com a aparência é um dos argumentos que nem sempre apresentam um

conteúdo racial explícito. Muitas vezes esse conteúdo mascara a verdadeira

intenção.

Sentir pena, ter dó, parece eximir a escola de sua função, de intervir na situação da

criança de maneira mais ampla. O sentimento é de naturalização quando ela diz: “dá

dó!” É como se nada pudesse ser feito, a não ser mais um contato com a família.

Neste sentido, Sarmento e Pinto (1997) ressaltam que além das diferenças

individuais, as diversidades de condições sociais de existência das crianças

(condição econômica, cultura, gênero, etnia), configuram a posição ocupada pelas

mesmas nas relações sociais.

É possível perceber então, que as carências de cuidados elementares identificados

pela professora, são demandatárias de políticas sociais que são negadas a essa

criança. Este aspecto fica camuflado quando a escola não reflete sobre essas

questões, e desse modo, reduz a situação da pobreza ao simples descaso da

própria criança e sua família para com sua aparência nada salutar.

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A dimensão simbólica de uma criança implicada pelo seu contexto social,

atravessado fortemente pela estrutura econômica e política, acaba por representá-la

com o estigma de descuidada, apática, preguiçosa, “terrível”, expressões

comumente percebidas na relação entre os diferentes atores, no espaço investigado.

A culpa pela situação de maus-tratos sofrida por muitas destas crianças, é relegada

a elas e às famílias que em tese, “não cuidam como deveriam”, dos seus filhos.

Desse modo, a criança torna-se “problema” para a escola e precisa ser

encaminhada para alguém que deverá enquadrá-la num modelo mais apropriado

para a instituição.

Outro fato marcante registrado no diário de campo aconteceu durante observação

da aula de Educação Física, por parte da turma, em relação a duas meninas negras.

A professora (Cristina) trouxe as crianças do 4º ano (a idade das crianças varia entre

9 e 10 anos) para o pátio. Ela explicou como seria a atividade daquela aula e

solicitou que as crianças se juntassem em grupos de cinco.

Elas então começam a se agrupar por afinidades, pois convidam os colegas para o

grupo pelo nome e neste movimento, demonstram alegria ao juntarem-se com os

escolhidos ou com quem as escolhia. A impressão é que tinham medo de se

agruparem com os que não queriam estar perto. Duas meninas sobram (negras).

Estão paradas em pé, observando os vários grupos já formados. A professora então

pede que os grupos as convidem, mas ninguém as chama. A professora insiste:

“Vamos crianças! As colegas precisam participar. Chamem elas para o grupo de

vocês!”

A convocatória da professora Cristina continua. Chama a atenção de cada grupo

para o fato das duas meninas estarem de fora dos mesmos. E insiste: “Qual grupo

vai chamar a Júlia?” As crianças riem e viram as costas. A professora fica

incomodada com a discriminação e insiste por várias vezes, mas as crianças

balançam a cabeça negativamente, viram de costas e dizem que o grupo está

completo. Ela pergunta quem vai receber Carol e as crianças do grupo mais

próximo da mesma riem e seguram as mãos, fechando o círculo.

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Enquanto isso, as duas meninas cansam de esperar e, constrangidas (semblante

triste), sentam-se na calçada, no canto do pátio. Ao perguntar o porquê de não

convidarem as meninas para os grupos, dois meninos respondem: “Elas são feias”!

(João Paulo n). “Elas são fedorentas!” (Marcelo b).

A justificativa da rejeição dada pelos meninos pode demonstrar certo poder. Eles

destituem as colegas do direito de estar num determinado lugar, que lhes pertence

por direito, mas lhes é negado por atores que se juntam nesta trama preconceituosa.

É uma discriminação coletiva. Nenhuma criança dos grupos teve outra atitude senão

a de aceitar essa distribuição injusta ou se contrapôs ao poder da dominação e

exclusão daquelas meninas. É uma relação de poder que demarca território onde

uns são incluídos, convidados, outros excluídos.

Ambas são vistas como descuidadas na percepção dos profissionais desta escola,

no que se refere às roupas, material escolar, cuidado com o corpo de maneira geral.

O cabelo também é alvo constante de apelidos pejorativos proferidos por grupos de

crianças. A convivência entre os diferentes na dinâmica das discriminações ganha

outros contornos: a exclusão coletivizada que acontece a todo instante. São

meninos e meninas, em sua maioria, privadas do direito à convivência nos grupos

por preconceito e discriminação. Em todas as turmas observadas, evidenciaram-se

crianças vitimadas pelo restante da turma. Foi o caso de Karina. Ela é

constantemente xingada e o mais lamentável foi comprovar essas atitudes por parte

da maioria dos colegas. Quando um xingava, outros davam continuidade às ofensas,

seguidas de gargalhadas diante dos adjetivos depreciativos. Eles a rejeitavam o

tempo todo, não a aceitavam nos grupos de trabalho nem nas brincadeiras. E Karina

não reclamava.

Diante de Karina, demonstravam olhar odioso, obcecado pelo assédio opressivo à

menina. Karina tem problemas urinários e segundo as crianças da turma às vezes

apresenta cheiro de urina no corpo, o que não foi evidenciado pela pesquisadora em

nenhum momento da pesquisa. Porém, a professora da turma, nunca havia

percebido e disse não ter visto ou ouvido qualquer atitude discriminatória aferida a

essa criança.

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O incômodo com o suposto “mau cheiro” de Karina não justificava tanta

discriminação. O que ficou perceptível nas observações foi o preconceito racial

declarado nas relações da turma para com ela. A hostilidade, principalmente dos

meninos para com Karina, era provocado pelo tipo cabelo da mesma, como se pode

perceber nas falas de algumas crianças: “Eca! Que menina horrorosa!” (João Pedro)

“Que saco! Essa garota fedorenta! Mijona! Não sabe nem pentear o cabelo! “(Leone)

“E o cabelo dela, parece bombril!” ( Jamile)

Essas são algumas das ofensas proferidas à Karina, durante uma aula de Educação

Física. Neste dia, as crianças estavam se afastando dela e do chinelo que a mesma

havia deixado no canto do pátio, para realizar a atividade física. A professora

percebeu a discriminação e reuniu as crianças para uma conversa. Depois de ouvi-

las e de refletir com elas sobre racismo, ela solicitou um texto sobre a situação de

Karina e pediu que eles expressassem o que sentiam em relação a ela.

As crianças resistiram bastante em realizar tal atividade e quando a fizeram,

demonstraram irritação com a intervenção da professora. Eles culpavam Karina por

terem que deixar de brincar, para discutirem sobre o ocorrido. Porém, a professora

insistia e colocava para as crianças o porquê de sua proposta. Foi interessante

observar o esforço da professora em dialogar com as crianças sobre as diferenças,

respeito, solidariedade, dentre outros aspectos abordados nesta aula. Este fato

causou-lhe indignação, por observar a hostilidade das crianças com essa menina e a

revolta que sentiram por estarem refletindo sobre essas questões.

Karina apresenta problemas de saúde desde o nascimento, além disso, ainda sofre

violências na escola pelas características físicas e por não receber atendimento

necessário do poder público. Desse modo, ignorada em alguns de seus direitos, ela

persiste e relata que quer ser médica. Ela não abdica de seus sonhos e quando

perguntada sobre alguém da escola que a ouve e que ela gosta, ela aponta a

professora de Educação Física, pois reconhece nela, a proteção de seu direito de

ser respeitada.

Ao dar visibilidade à violência da qual essa criança estava sendo vítima, a

professora ouve o discurso da turma em relação à mesma e planeja algumas

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estratégias pedagógicas: conversas, debate, escrita, painel de recortes e

conhecimentos sobre o racismo. Todo o movimento provocado a partir do drama

vivido por Karina se transforma em constantes rodas de conversa com a turma. Isso

possibilitou a professora ouvir essas crianças, conhecer melhor o que pensavam e

como concebiam a diferença nas suas relações cotidianas. É importante destacar

que durante todo o processo de coleta de dados nesta escola, apenas três

professores/as demonstraram estar atentas, de alguma forma às relações

preconceituosas entre as crianças.

Sarmento e Pinto (1997, p. 25) concebem a interpretação da criança como caminho

possível de conhecimento das estruturas sociais. Para eles “O olhar das crianças

permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou

obscurece totalmente”. Os autores ressaltam a criança como sujeito capaz de se

pronunciar, no uso de diferentes formas - negar aquilo que não querem burlar ou

modificar regras impostas pelos adultos, excluir ou incluir o outro nas suas

interações sociais.

Em uma das turmas de 1º ano a menina Betina (06 anos) chamou bastante atenção,

por ser constantemente discriminada pela turma. Ela é negra e aparenta estar

sempre triste e calada. Os meninos a xingam por causa do tipo de cabelo, das

roupas que usa, enfim, essa criança é vitimizada constantemente também por suas

carências sociais. As três meninas brancas da sala, a discriminam sutilmente. Não

foram observados xingamentos ou agressão física por parte delas, porém, excluíam

Betina de seu grupo. Na verdade, essas meninas excluíam também todo o restante

da turma e escolhiam sempre a companhia das mesmas colegas: Bárbara, Isabel e

Emanuela (meninas brancas).

A professora dividiu a turma em duplas para leitura de histórias. As crianças

escolheram as duplas e Betina sobrou (como sempre). Ela observou a exclusão,

pois uma menina estava sozinha, mas fingia não ver a colega também só. Betina

demonstrou estar tensa com o fato de não ter companhia para a atividade proposta

pela professora. Talvez sua inquietação era motivada pelo fato de ser

constantemente excluída dos grupos. Então, ela olha tristemente para as duplas,

apóia a cabeça sobre os braços, fica inerte e nada fala.

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Neste momento a professora troca as duplas, causando grande desconforto. A

turma reclama e a mesma insiste em reagrupá-los. Ela então pede a Bárbara que se

junte a um dos meninos e a Isabel com Betina. A turma estranha a situação das três

meninas que agora estão separadas e fixam o olhar sobre a dupla que foi mais

surpreendente para eles: (Isabel que é vista como a mais bonita por ser branca e

loira) e Betina (a mais rejeitada pela turma e pelo grupo da Isabel). E então Isabel se

sentou ao lado da colega, que deu lindo sorriso. Foi impressionante perceber o

orgulho estampado no seu rosto por estar ao lado da menina que todos queriam

estar perto e que as outras meninas se espelhavam, enquanto tipo físico. O sorriso

de Betina lembra a delicada canção de Clara Nunes: “Um dia morena enfeitada de

rosas e rendas, abriu seu sorriso moça e pediu pra dançar.“

A reação de Isabel foi pegar o livro, afastar sua cadeira da colega e ficar de costas

para a mesma. A professora pede que ela compartilhe a leitura e ela fala baixinho:

“Você nem sabe...”. A expressão do rosto de Betina vai se transformando, ao

perceber a rejeição de Isabel, apesar da insistência da professora, e assim, volta a

ficar com o semblante triste, vira-se para o outro lado e chora. A professora se

aproxima e pergunta o que ocorreu, mas ambas permanecem em silêncio. Betina

coloca a cabeça sob os braços e continua chorando, sem nada reclamar, até o final

da aula (umas duas horas). E Clara Nunes novamente canta para Betina: “Contam

que toda a tristeza que vem da Bahia, nasceu de uns olhos morenos molhados de

mar”.

Estas situações são fortes e incomodam a quem se dispõe a observar

cuidadosamente as relações entre as crianças. Nota-se pelo relato de duas

professoras, que elas percebem a discriminação entre as crianças:

É... as meninas não escolhem ela pra nada! Ah! Vão fazer um grupo! Ah! Vou colocar! Ah! Não tia! Põe ela em outro lugar! [...] Ela fica paradinha... ela fica assim, olhando [...] mas com certeza, reflete, entendeu? (professora Gisele). Eles não falam não quero você no meu grupo. No meu grupo vai ter fulano, fulano, fulano! Só Diego (risos), geralmente ele desiste na metade da coisa.” (professora Madalena)

Os profissionais que se propuseram a dialogar sobre a situação durante a coleta de

dados, apesar de constatarem as exclusões, não comentam possíveis práticas

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contra-discriminação em suas aulas, ou seja, não se observou práticas contra-

discriminatórias cotidianas e sistematizadas, apenas intervenções pontuais. Quanto

a essa questão, Wieviorka (2006) ressalta que as instituições públicas passam por

dificuldades frente às novas configurações sociais e tecnológicas.

Na educação, os profissionais também vivenciam uma crise ao ter que lidar com as

dificuldades e tensões dos últimos tempos que não são somente externas à escola,

mas que se intensificam dentro dela, como a violência. Os professores neste

contexto de inseguranças, perda de modelos pedagógicos e posturas antes tidas

como seguras e legítimas, demonstram não saberem que rumo tomar diante das

situações que lhes parecem simples e rotineiras, mas que nos resultados

educacionais, elas aparecem: a aprendizagem, aprovação, freqüência e reprovação.

É o que ocorria com uma criança do 4º ano: Geraldinho é um menino negro. Ele tem

13 anos e ainda não lê. É constantemente discriminado: pela idade, por não ler, por

ser negro. A professora reconhece sua “dificuldade de aprendizagem” e quando

questionada sobre o fato dele ser aceito pelo grupo que ela considera dos mais

“inteligentes”, a professora Madalena justifica:

Geraldinho tem uma bagagem muito grande. Ele só não sabe ler, mas ele sabe multiplicação, sabe divisão, sabe somar, subtrair, ele não sabe ler o problema, alguém leu pra ele, ele faz tudo. Ele tem um raciocínio lógico, ele tem lógica no que ele faz, em pensar, no agir, entendeu?

Mesmo reconhecendo todo o conhecimento deste menino, ela ainda o coloca como

fora do “grupo dos inteligentes”, porque ele não sabe ler. Relata então, que ele é

aceito por ser líder. Aliás, foi intrigante saber que este menino sabe tantas coisas,

mas não sabe ler... Além disso, ele se faz ser aceito. Que leitura ele não tem?

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3.2.2 “Brincar de viver”

Você verá Que a emoção começa agora Agora é brincar de viver (Guilherme Arantes)

Durante o recreio ou nas brincadeiras direcionadas percebeu-se que estes são os

momentos mais prazerosos para as crianças, pelo menos para a maioria delas. Elas

correm, dançam, gritam, viram cambalhotas na parede do corredor, interagem com

os colegas, mas também rejeitam e agridem. Entre a merenda e o corre-corre, as

brincadeiras se espalham: casinha, bonecas, jogos de tabuleiro dentre estes o

xadrez. Este último é acompanhado pelo instrutor Fernando. Existe até público para

as duplas de xadrez e há um compartilhamento de estratégias do jogo. Os mais

experientes ajudam os iniciantes. A música, cantada na entrada diariamente, toca no

som da escola durante o recreio. Tem até dia de show de calouros. Alguns grupos

lêem revistinhas em quadrinhos, outros jogam peteca, pula-elástico e o grupo de

capoeira têm espaço cativo.

Além das diversas interações estabelecidas entre as crianças durante as

brincadeiras, evidenciaram-se também rejeições e expulsões das mesmas.

Perguntada se gosta de brincar com os colegas da sala no horário do recreio,

Rafaela (8 anos, n.) responde:

Não... Porque eles não gostam! Ninguém gosta de mim. (segue-se um longo silêncio) E as meninas? Elas gostam de brincar com outras meninas, porque eu sou feia! (em silêncio ela abaixa a cabeça e começa a chorar) (fala chorando muito) Eles gostam mais de sentar com Renata, que é rica. Só porque Renata tem o cabelo comprido, é bonita e mais rica [...]

Essa criança percebe claramente que é rejeitada pelos meninos e até mesmo pelas

meninas da sala. Para ela, o motivo da rejeição é sua aparência física. Sente que

sua imagem provoca a rejeição de outras crianças. É chamada de feia e excluída

dos grupos de brincadeiras. Vista e avaliada pelo olhar do outro, entende que suas

características físicas e sua condição econômica a torna inapta para estar junto aos

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outros. E ao pensar que seu cabelo a faz ser menosprezada, expressa o desejo de

ter o cabelo liso, igual ao da sua avó, e o descreve: “é preto e liso”. (entrevista)

Ao final desta entrevista, Rafaela chora em demonstração de tristeza e indignação.

Expressa também o quanto isso é doloroso para ela. Relata também a discriminação

sofrida por meninos e meninas de sua turma, confirmadas durante observação.

Em outro momento de observação na turma do 1º ano, as crianças estão

aguardando o sinal. Após o término das atividades planejadas a professora “libera”

as crianças para brincarem livremente até o horário de saída. Bárbara e Isabel

juntam algumas cadeiras e chamam Emanuela para brincar de ônibus. As três

sentam-se nas cadeiras enfileiradas em duplas, imitando um ônibus. Elas estão com

suas bonecas ao colo. Ajeitam-nas, dão mamadeira, conversam entre si.

Após alguns minutos desta brincadeira, Renato (menino negro) senta em uma das

cadeiras e começa a “dirigir o ônibus”. Ele olha pra trás e sorri para as três

“passageiras” tentando ser aceito na brincadeira. As meninas param a conversa, se

olham e olham para o colega com desprezo. Elas ficam uns segundos observando

Renato na sua euforia. Bárbara se levanta, chama Isabel e a segura em sua mão:

“Sai daí, vamos brincar em outro lugar!”. Elas expressam indignação com o fato de

Renato ter entrado na brincadeira e desistem, não o querem em seu grupo e

ressaltam esta atitude quando saem e o olham com raiva. Este fato não é isolado,

pois estas crianças (meninas brancas) estavam sempre juntas e nos diversos

momentos de observação, foi possível evidenciar a rejeição a meninas e meninos

negros/as da sala de aula.

Em outro dia de observação, agora na aula de vídeo, as crianças estão envolvidas

em várias atividades, menos interessadas no filme, porque elas já haviam assistido

outras vezes. Bárbara e Emanuele (06 anos, b) brincam com suas bonecas.

Enquanto isso, três outras meninas (duas n e uma i) se movimentam na tentativa de

verem as bonecas, mas as colegas as escondem. Perguntadas se têm bonecas,

elas respondem que não, mas que vão ganhar no natal. Elas continuam olhando

fixamente para as bonecas das colegas. Ao perguntar se poderia mostrá-las para as

três colegas, uma delas olha a pesquisadora desaprovando a intervenção e deixa as

meninas pegarem. Ao afastar um pouco daquela cena e observar a situação de

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longe, uma delas dá a volta, toma a boneca das mãos da colega com violência e sai

limpando, como se as colegas tivessem sujado seus brinquedos.

Sarmento (2005) afirma que a brincadeira não é exclusividade das crianças. O ser

humano também brinca. A diferença é que as crianças brincam continuamente.

Através do jogo simbólico elas atribuem sentido ao real, ao mundo vivido. A

imaginação é fruto das experiências intermediadas pela cultura e compartilhadas

entre pares, nas relações inter e intra-geracionais. O autor complementa que nas

suas interações elas estabelecem processos de comunicação relacionados aos seus

mundos de vida. Essas considerações permitem compreender as brincadeiras e os

jogos infantis como formas de representar as relações sociais. Além da interpretação

de papéis sociais, as crianças constroem suas identidades, assim como fazem

escolhas intermediadas pelos elementos simbólicos que lhes são apresentados.

Deste modo, convivendo com o imaginário preconceituoso, elas também rejeitam

compartilhar experiências com o outro invalidado por sua condição social ou

pertencimento étnico-racial.

Durante a aula de Educação Física (4º ano) outra situação de discriminação velada

foi percebida. A professora Carmem orienta uma brincadeira a ser realizada em

duplas. Os pares são formados, no entanto uma menina (Laura) se nega a formar

dupla com Lucas (menino negro). A professora pede que ela faça dupla com Lucas,

porque os dois estão sem par, mas ela não aceita. Olha para Lucas e faz gesto de

nojo, dá uma risadinha e se afasta ainda mais do colega. A criança se mantém

calada, olhando para Laura como se desejasse que ela o aceitasse, livrando-o do

constrangimento da rejeição pública. Nesse instante dois meninos gritam: “Ela não

quer brincar com ele porque ela não gosta de preto, professora!” (fala rindo da

situação)

Laura balança a cabeça e os ombros, demonstrando pelo gesto, ser esse, o real

motivo de não querer formar dupla com Lucas. As crianças então começam a rir e

relatam que isso sempre acontece, pois muitas crianças da escola colocam apelidos

e o xingam, por ser negro. A professora então chama a pedagoga e iniciam uma

conversa com a turma e depois com Laura em particular. Ela ficou o tempo todo

sorrindo como se a intervenção naquela situação preconceituosa não fizesse sentido

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algum. Não disse muita coisa, apenas confirmou sua rejeição às pessoas negras.

Mais uma história de racismo entre crianças, que demonstram determinação em não

compartilhar experiências ou brincadeiras com o outro, pela cor da pele, por ter

cabelo crespo ou outros atributos relacionados à raça/etnia. Sobre esta

consideração,

Sarmento (2005) afirma que as culturas da infância estão imbricadas pelas culturas

societais como resultado das relações desiguais de classe, de gênero e de etnia.

Isso significa compreender as contradições inscritas no mundo globalizado e

desigual demarcando lugares e posições de poder e dominação na relação entre as

crianças.

Essas relações desiguais eram visíveis, observadas as escolhas e rejeições que

aconteciam a todo instante. Compreende-se que os critérios de aceitação,

entrelaçados à questão racial, eram os que mais aconteciam na escolha dos

participantes dos grupos de brincadeiras. Às vezes era impossível registrar todos os

apelidos e xingamentos racistas durante o recreio, pois eram banalizados.

3.2.2.1 “Tropa de elite”: a brincadeira imita a vida?

Tropa de elite osso duro de roer Pega um pega geral Também vai pegar você

As brincadeiras durante o recreio eram sempre muito agitadas. Polícia e ladrão

lideravam a lista de brincadeiras escolhidas pelas crianças. Em cada canto do pátio

grupos de meninos e meninas, disputavam o papel de policial. Ninguém queria ser

pego e não era fácil escapar, pois eram dois “policiais” ou três correndo atrás de

uma criança. A gritaria era intensa e por muitas vezes eles riram e debocharam de

alguns adultos que se aproximavam com o objetivo de separar uma possível briga

ou porque estavam machucados. Aliás, muitos se machucavam, ficavam com os

braços e pescoço avermelhados pelos puxões que levavam, mas diziam que a

brincadeira era assim mesmo: “Não é briga tia, é brincadeira”. (Heraldo)

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Uma brincadeira surgiu após o lançamento do filme “Tropa de Elite”57. Eles se

agrupavam e escolhiam os “soldados” que seriam agredidos em treinamento. Em

muitos momentos foi assustador ver crianças com o rosto ferido, às vezes

sangrando, mas se negando a sair da brincadeira. Uma frase era dita aos gritos por

eles: “Pede pra sair! Pede pra sair!”, reprodução das cenas do filme. Nessas

brincadeiras, alguns eram sempre policiais e outros sempre apanhavam. Além das

brincadeiras percebidas pelos adultos como violência, outras como pula-corda,

pique-pega e correr atrás das meninas para prendê-las no banheiro também foram

identificados. Era muita correria! Ao final do recreio, estavam sempre muito suados e

cansados.

Sarmento (2002) descreve sobre as experiências vivenciadas pelas crianças e a

relação com o jogo e a brincadeira. Para o autor, nas brincadeiras, chutando um

crânio humano ou no computador, o contexto de diferenças está representado. Seja

durante experiência de guerra ou em jogo de computador, a imaginação infantil se

estrutura nos elementos simbólicos presentes no imaginário social, construído na

história e na cultura. Essa perspectiva se assenta nos estudos da sociologia,

dissociando-se teoricamente da perspectiva da infância enquanto negatividade ou

carência. Entende-se, portanto, a infância como grupo geracional ativo, produtor de

cultura e produzido por ela.

Durante a coleta de dados, as crianças traziam relatos de assassinatos,

envolvimento de familiares com o crime, violência doméstica e abandono. Em um

desses momentos, a morte de uma ex-aluna da escola, provocou bastante

inquietação nas crianças. Eles mencionavam como havia acontecido a tortura,

descrevendo detalhes de forma naturalizada. Eles não se mostravam assustados,

mas eufóricos por contar o que ouviam e viam no cotidiano de vida. Talvez essas

experiências construídas entre sonhos de vida e violências estejam representadas

nas brincadeiras e relações entre as crianças. Era possível perceber as escolhas

dos agrupamentos como forma de experienciar suas afinidades constituídas nas

relações sociais.

57 Filme brasileiro (2007) de grande repercussão nacional sobre a violência policial no Rio de Janeiro.

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O “capitão Nascimento” quase sempre era o personagem escolhido pelos meninos

que se sobressaíam por algum atributo físico, social ou de aproveitamento escolar –

na maioria das vezes, era representado por uma criança (menino) branca.

As brincadeiras que reproduziam situações de violências eram as preferidas. Os

movimentos corporais eram intensos. As crianças corriam de um lado para outro, se

agarravam, empurravam, gritavam, riam e disputavam espaços. Após o recreio havia

sempre atendimentos “socorristas”, àqueles que se feriam nas brincadeiras ou por

agressões físicas em desentendimentos. Entre choros e explicações sobre os fatos

relatados, as crianças recebiam atenção da coordenadora, pedagoga e das

serventes que traziam gelo e também participavam do acolhimento aos feridos. Isso

acontecia diariamente.

As crianças se sentem cuidadas neste momento. O que não se percebe, porém, é o

interesse em conhecer o que realmente motivou as agressões ou o porquê das

brincadeiras tão apreciadas pelas crianças, apesar dos ferimentos que causam às

mesmas. Tenta-se proibir algumas, mas a repressão não as inibe. Elas demonstram

gostar das brincadeiras que escolhem. Após o recreio elas são atendidas e as

situações são relatadas no livro de ocorrências da escola. No entanto, os textos não

trazem muitas falas das crianças. O discurso do adulto sobre os fatos ocorridos no

recreio prevalece. Desta forma, não há muitas descrições sobre discriminações

como causas dos conflitos explicitados na voz das crianças.

A criança é um ser ativo nas relações sociais e assim, pode aprender a odiar, mas

pode também se constituir na perspectiva do reconhecimento dos direitos. Os

xingamentos e apelidos aparecem nos discursos de algumas crianças justificados

como brincadeiras. Porém, ao ouvi-las percebia algumas contradições como ocorreu

durante a entrevista com Luíza: “Ela estava brincando comigo, eu falei: Oh

descabelada!” (Luíza, n, 08 anos) Esta menina fala que não teve a intenção de

ofender a colega, afirma então, que estava brincando, porém, em outra entrevista,

ela reclama que não gostou de ter sido xingada de “cabelo de pico” e ameaçou

chamar o pai, caso o colega continuasse a xingá-la. Da mesma forma, Felipe insiste

que tudo não passa de brincadeira quando questionado sobre os apelidos

pejorativos aferidos à colega. Porém, a resposta da mesma não condiz com seu

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argumento: Quando o Felipe te chama de cabelo de pico, você acha que ele fala de

brincadeira ou é pra te deixar triste? Prá eu passar raiva! (olha fixamente por uns

segundos para Felipe)

Josué assume que xingou a colega, mas justificou que era por brincadeira. Como

era uma entrevista coletiva, a colega ofendida concorda, a princípio com o

argumento dele. Após alguns minutos de conversa, ela muda a expressão do rosto e

bem triste desabafa: “Eu fico mal” Outra criança relata: “Uma pessoa tá começando

a brincar, daqui a pouco ela está agredindo. [...] brincadeira tem limite, mas ele

ficava falando isso toda hora.”

As crianças questionadas em relação a essa questão nas entrevistas, apesar das

opiniões cercadas de dúvidas entre brincadeira e violência, relataram que não

gostam destas brincadeiras. Para elas, o brincar é um momento lúdico e prazeroso,

e desta forma, o incômodo não é considerado brincadeira.

Wieviorka (2006) alerta para a marginalização das incivilidades, que ele denomina

violência subjetiva, na medida em que perturbam aqueles que são atingidos por elas

ou que as presenciam. Estas incivilidades no contexto da escola incomodam e

agridem as crianças. Caladas ou não, elas demonstram sofrer com as expressões e

gestos preconceituosos cotidianamente. As injúrias repetitivas, sutis, ignoradas as

faz sofrer. E quanto a isto o autor complementa: “Por outro lado, a inquietação frente

às incivilidades é grande porque existe a idéia de uma continuidade entre essas

violências menores e fatos mais graves.” (p.257) Os relatos apresentados podem

demonstrar que a brincadeira se constitui de sentidos e significações que se

configuram enquanto violências, pois se constatou que as crianças que

discriminavam demonstravam entender que essas atitudes causavam sofrimento no

outro. Elas não expressavam verbalmente, porém demonstravam através de gestos,

expressões (olhares, risos), e falas de outras crianças.

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3.2.3 Recreio: o “apartheid” étnico-racial Apartheid é uma palavra de origem africana que significa separação ou segregação.

Usada como símbolo do separatismo racial na África do Sul, hoje, representa uma

triste lembrança para o povo negro em todo mundo. Nelson Mandela (Prêmio Nobel

da Paz/ 2002), líder que sobreviveu tal artimanha, representa a principal liderança do

povo negro, na luta pelos direitos humanos. A escolha deste subtítulo se deu por

entender que as crianças reproduzem muito do que elas vivenciam em seu contexto

de vida. A segregação no espaço escolar é perversa, opressora e mantêm certa

relação de sintonia com os grandes movimentos racistas na sociedade. E isso foi

perceptível durante as observações no recreio.

As aproximações, as repulsas, as separações eram mais visíveis ainda durante este

período. Foi possível identificar grupos de crianças que apresentavam

características bastante específicas que se agrupavam considerando os mesmos

critérios de segregação da sala, porém, ganhavam maior visibilidade. Isso talvez

tenha ocorrido pelo fato de estarem livres em um espaço maior, com possibilidades

de se aproximarem ou se afastarem do outro com o qual não queriam compartilhar

experiências.

Os xingamentos durante o recreio eram tão banalizados que era impossível registrar

todos. E não eram ditos em alto tom, mas eram sutis. Os esbarrões por causa da

correria acabavam desencadeando xingamentos direcionados às diferenças. No

entanto, as crianças negras eram interpeladas com muito mais frequência e

intensidade. Era possível identificar grupos de meninos que articulavam brigas na

saída, outros empurravam os meninos no banheiro das meninas e vice-versa,

atitudes estas justificadas como brincadeira, até que alguma criança reclamasse de

um empurrão mais forte ou um arranhão.

O recreio era também o momento das conversas, de compartilhar o lanche, de

dançar ou simplesmente observar os movimentos dos colegas. Alguns professores,

serventes, a pedagoga e o diretor, estavam sempre presentes entre as crianças. Os

abraços, beijos, as reclamações, as disputas pelo brinquedo, pelo espaço, pelo

braço do diretor, enfim, interações diversas emergiam neste momento. Todavia, nas

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relações entre as crianças, persistiam critérios de diferenciação perpassados por

preconceitos e estereótipos que as separavam.

Em uma das observações, Emanuele (b, 06 anos) e Isabela (b, 06 anos) estão

dançando no corredor. Betina se aproxima na tentativa de ser incluída no grupo. Ela

se mexe pra lá e pra cá, sempre tentando ficar de frente para as colegas. Ela olha e

sorri por diversas vezes. Porém, as meninas se irritam com a insistência dela, se

afastam, dão as mãos, fingem não vê-la. Betina fica ali, dançando sozinha, mas

insistindo no seu desejo de em algum momento, as duas colegas que ela queria

interagir, a recebessem. Depois de uns 10 minutos aproximadamente, chegou uma

outra colega que era bem recebida pelas duas meninas. Elas se agruparam e Betina

ficou ainda mais isolada, mas não desistiu! Neste dia, ela insistiu até o toque do

sinal. Quando as três colegas se dirigiram para a sala, ela as acompanhou, fazendo

gestos de que participava da conversa. Ao chegar frente à sala, as três colegas

ficam logo à frente da fila e Betina continua ali, ignorada, mas insistente, resistente.

O empurra-empurra é comum, principalmente ao final do recreio. Nestes

movimentos apareciam agressões físicas e não-físicas - xingamentos diversos,

porém, estas últimas eram direcionadas, geralmente, às crianças negras: ”Você me

empurrou sua bruxa! “Pára seu neguinho!” (menina negra)

Nesta escola as crianças brancas são minoria, no entanto, observaram-se

discriminações raciais nas relações destas para com as crianças negras,

principalmente na escolha dos lugares na sala, nos agrupamentos e nas

apresentações culturais da escola. Apelidos, preconceitos e risadas de deboche, em

relação às crianças negras eram comuns.

Nas brincadeiras observadas, a distribuição de papéis seguia esta mesma lógica.

Não era regra geral, mas as crianças brancas dominavam os grupos de brincadeiras

nos quais se inseriam. Isso não significa que elas não se agrupavam com as

crianças negras e indígenas, mas a postura de poder era visível e a segregação

também.

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1.1 “TODOS SÃO IGUAIS”? A POSTURA DA ESCOLA FRENTE ÀS

DISCRIMINAÇÕES

Esta escola ganhou reconhecimento no município por ter apresentado por vários

anos, uma proposta de trabalho pedagógico estruturada sobre algumas concepções

inclusivas. Mesmo não garantindo o que se constituiria uma escola democrática,

esta instituição traçou algumas diretrizes pedagógicas como ouvir as crianças,

incentivar a participação da família e comunidade e o respeito à diversidade cultural.

Os resultados do trabalho apareceram na melhoria dos índices de aprendizagem.

Neste processo, a escola conquistou parcerias para implantação de projetos extra-

classe como coral, xadrez, oficinas de meio ambiente. Foi destaque em noticiários e

apresentou relato de experiências sobre cultura de paz em congressos

internacionais realizados pela UNESCO.

Todas estas conquistas se tornaram possível graças ao trabalho comprometido da

maioria da equipe da escola deste período: direção, pedagogos, professores,

pessoal administrativo e de apoio. A comunidade escolar se mobilizava para

transformar a escola em lugar de conhecimento e de relações respeitosas. No

entanto, o grande fluxo de funcionários ocorrido ao longo dos últimos anos, vem

provocando o rompimento com a proposta de trabalho construída coletivamente nos

anos anteriores.

Atualmente, a escola ainda apregoa em sua proposta pedagógica, uma cultura

escolar transformadora, porém, a dificuldade sentida pelos profissionais que se

deslocam para bairros mais periféricos, carentes de políticas públicas mais

eficientes, acaba por afastá-los destes espaços de trabalho, e essa movimentação

constante no quadro de profissionais interfere na qualidade da educação oferecida,

esclarecendo mais uma vez que são fatores que se juntam aos sociais, econômicos

e políticos.

Deste modo, a perspectiva de constituição de uma escola democrática, fica

prejudicada, além de outros motivos, em virtude da grande rotatividade de

profissionais. Isso dificulta a construção de vínculos mais permanentes com as

crianças e com a comunidade e interrompe a construção de uma cultura escolar

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constituída nas discussões do grupo do Magistério e comunidade escolar. São

sujeitos que ficam por um tempo, fragilizando as relações e, conseqüentemente, a

construção de uma proposta pedagógica, realmente comprometida com a

transformação da realidade desta comunidade.

Não há dúvida de que a escola por si só não consegue dar conta de todas as

carências sociais a que as crianças são submetidas, mas é uma instituição com

possibilidades de constituição de novas relações e de pensar a criança como um

sujeito de direitos. Se na escola pública concentra-se a grande massa dos filhos das

classes mais empobrecidas, transformá-la em espaço público no qual os diferentes

atores ali envolvidos, se lancem em movimentos constantes de luta por nova

configuração política de direitos sociais, parece ser ela mesma, um caminho

necessário e possível, rumo à efetivação desses direitos.

Neste prisma, Telles (2006) ressalta a exigência de espaços públicos nos quais a

interlocução entre os conflitos emergentes, a justiça e os direitos sociais construam

novas formas de regulação e sociabilidades. Reside ai, a função social das

instituições públicas que se propuserem efetivamente emancipatórias.

É fato que os problemas sociais que se refletem na comunidade, vivenciados pelos

sujeitos desta escola não são monocausais. O muro não a separa do mundo. As

desigualdades, as relações de poder, os conflitos subjacentes, enfim, a vida pulsa

nos tempos e espaços da escola. Os problemas não são externos, mas se refletem

através de diferentes formas de linguagem – do corpo, gestos, modos de ser, se

vestir, nos discursos, na hierarquização de valores, mas nem sempre esses

aspectos são analisados pela instituição escolar. Para Telles (2006, p.141), os

direitos legitimados na sociedade brasileira existem e convivem ao mesmo tempo

com uma incivilidade constituída de violências, preconceitos e discriminações. Nesta

perspectiva, é lamentável perceber na escola, espaço público de direito, a

indiferença potencializadora de atitudes discriminatórias em relação às crianças.

O discurso “todos são iguais” se contrapõe aos resultados desiguais apresentados

pelas crianças. Ouvir estes sujeitos, dialogar com sua história e contexto de vida,

pode possibilitar a desconstrução do imaginário racial e social implementado pelas

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políticas econômicas capitalistas, e desta forma, levá-los a construção de outras

interações, conhecimentos e transformação dos resultados de aprendizagem.

Quando a professora Carmem58 desenvolve atividades nas quais a criança negra e

indígena se identifique com suas raízes identitárias, ela possibilitou uma discussão

aberta entre as crianças. Durante a atividade, elas buscavam reconhecer nos

materiais disponibilizados, sua história, seus modos de ser, sua cultura. Esta práxis

já é uma realidade em muitas escolas do país, que buscam implementar uma

proposta pedagógica que inclua conceitos, valores, linguagem e cultura inter-étnica,

enfim, um currículo que contemple em seu bojo, estas diferenciações humanas.

Desta forma, a expectativa é de dar visibilidade a esses grupos humanos, ainda

marginalizados pelas políticas sociais.

Para Sarmento (2007) as crianças têm sofrido um processo de ocultação quanto às

suas práticas sociais e culturais em sua existência social. Essa “(in)visibilidade

histórica” acentua a marginalização desses atores na configuração da sociedade. O

que se vê em muitas instituições de atendimento à criança são aplicações de

modelo disciplinar e tratamento universalista às crianças. Verifica-se que

concepções de infância homogeneizantes predominam nas instituições sociais e

desconsideram as variáveis de classe, gênero, etnia. Em relação a essa

proposição, Cavalleiro (2003, p. 48) descreve sobre a situação de descaso com a

questão étnico-racial no espaço escolar:

[...] a pluralidade étnica da sociedade e, principalmente, do espaço escolar constitui um tema que parece não ter importância para o desenvolvimento do trabalho escolar. Não obstante, constata-se que o respeito às diferenças étnicas não é verbalizado de maneira elaborada pelas professoras. Também no planejamento escolar, essa questão não está colocada de maneira explícita.

Diante da lacuna provocada pelo descaso para com as questões raciais no currículo

escolar, a escola acaba por negar à criança, direitos fundamentais como o de ter voz

ativa, ser reconhecida e respeitada. Além disso, a opressão fere suas singularidades

e esse sofrimento ignorado pela escola, pela/o professora/or com a qual convive no

cotidiano da escola e que assiste a tudo sem ver, ouvir ou reconhecer a situação, a

deixa vulnerável a outras desqualificações e violências. É o que essa mãe lamenta:

58 Professora de Educação Física efetiva nesta escola há seis anos. Participa efetivamente de movimentos sociais pela educação. Membro da Comissão para estudos Afro-brasileiros de Aracruz,

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Ela não reclama quando as crianças mexem com ela aqui? (pesquisadora) Ela falou que reclama, mas a tia não dá ligança nem nada, ela já falou isso comigo já, que a tia não dá ligança, nem nada, ai fica por isso mesmo!. (mãe de Carol, diário de campo, 06/10/07)

Esta criança que por várias vezes é excluída de atividades por sua condição de ter

NEE e ser negra, percebe que a professora desconsidera o que se passa com ela. A

omissão faz com que a criança não mais reclame, mas siga calada diante da postura

da professora de ignorá-la. Em outro momento de observação, a banalização do

racismo sofrida é visível. Daniela (menina negra), quando questionada sobre o que

sentiu em relação aos constantes xingamentos aferidos pelos colegas responde:

Como você se sente quando eles te chamam de carvão?(pesquisadora) Eu não ligo não! Minha professora falou que não é pra ligar [...] Ela (se refere à professora) não resolve (Daniela)

Se as crianças, oprimidas por suas especificidades não são percebidas enquanto

diferentes entre si, acabam por receberem tratamento preconceituoso, neste caso,

da própria escola que deveria garantir, na instituição o direito a ser respeitada. E

esta situação pode acontecer sob os olhos do adulto e não ser percebido ou

atendido por ele, como ocorreu com uma criança do 4º ano. No momento em que a

professora Madalena era entrevistada, dentro da sala de aula, no horário que seus

alunos estavam na Educação Física, um menino (Daniel n. 13 anos) entra na sala,

se dirige à sua carteira e começa a escrever, demonstrando ansiedade em concluir

as tarefas que estavam por fazer, motivo que o trouxe de volta à sala de aula.

Mesmo com o garoto presente na sala, a entrevista com a professora prosseguiu. A

pergunta era se ela percebia atitudes preconceituosas na sala de aula. A professora

então responde: “Não! Aqui não tem isso não! Nunca teve!” Neste instante, Daniel se

vira interrompendo a fala da professora e grita: “Ah! Tem sim professora! Já me

chamaram de macaco!”. A professora ficou surpresa com a interpelação do menino,

principalmente por ele estar contradizendo sua afirmação. Foi interessante perceber

o constrangimento que essa fala causou à professora, por sua indiferença ou

desatenção ter sido exposta pela criança. E ela bastante indignada, tenta reverter a

situação a seu favor: “Mas então porque você não reclamou comigo?” (professora).

E ele respondeu: “Você estava aqui na sala!” (Daniel) O mais intrigante é que este

menino senta bem perto da professora, na primeira carteira.

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Perguntado se isso aconteceu muitas vezes, a situação da professora piora, pois a

resposta é positiva. Daniel que está sempre frente à professora, é ofendido

constantemente e a mesma afirma nunca ter ouvido, visto ou percebido qualquer

atitude discriminatória em sua sala. Desta forma, a professora acaba por deixar seu

aluno à mercê de atitudes discriminatórias e de reprodução de violências, por

desconhecer ou ignorar o que realmente acontece à sua volta.

Nas observações, constatou-se o quanto suas aulas envolviam poucas crianças. A

grande maioria da turma não acompanhava o que lhe era proposto. As aulas

aconteciam quase sempre direcionadas pelo livro didático e em muitos momentos, a

professora estava sentada à mesa, no canto da sala, preenchendo documentos,

lendo algum livro ou revista de propaganda de cosméticos. Quando observava

algum movimento ou barulho na sala que a incomodava, ela gritava com as crianças

e se eles não seguissem sua orientação, eles eram enviados à coordenação. A

metodologia utilizada era freqüentemente a mesma: sentar e responder às questões

do livro.

Negar que na sua sala existia discriminação era natural, pois não era percebido ou

então, era ignorado. Além do fato desta professora estar alheia às relações

preconceituosas entre as crianças, ela se contradiz em outro momento de

observação, quando assume que ouviu um menino de sua sala reclamar a

discriminação sofrida. Ela então relata o que a criança disse: “Tá me chamando de

neguinho” Ai eu falei: meu filho a sua cor, quem me dera que eu tivesse a sua cor...!

Olha a professora que é branca, toda manchada! “

O argumento utilizado nesta situação demonstra o despreparo ou o descaso para

com o racismo sofrido pelo menino que a procura, esperando uma intervenção. Fugir

do assunto desviando o foco da conversa, lhe parece o caminho mais fácil do que

abordar a questão do preconceito de forma franca. A criança que discriminou o

colega não foi questionada em nenhum momento. A omissão neste caso pode

reforçar posturas preconceituosas entre as crianças, na medida em que agressor e

agredido não são ouvidos. E esta invisibilidade das atitudes racistas está presente

nos discursos dos professores:

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Eu não acho que é característica física não, acho que é mais pela empatia [...] De cor, não. (Professora Rose) Não, eu vejo que ela se retrai não que os outros discriminam ela! Ela se sente um pouco inferiorizada. (Professora Gisele) A criança que vem arrumadinha, cheirosinha e tal, o professor tem maior proximidade com ele, parece que tem mais carinho [...] (Professora Madalena)

Nestes relatos, é possível evidenciar que a responsabilização por ser discriminada é

imputada à própria criança. Ter empatia, ser retraída, se sentir inferiorizada, estar

ou não cheirosa – características concebidas nestes discursos como naturalizadas,

negando-as enquanto construção histórica e cultural. Além disso, justifica-se a

segregação por preconceito na medida em que interdita a voz do outro, que sofre a

discriminação.

Falar pela criança discriminada é reproduzir o que os discursos ideológicos instituem

na sociedade brasileira, em relação ao negro e o índio – primitivos, indolentes,

preguiçosos, passivos. O enfrentamento da realidade é pressuposto para o

conhecimento e discernimento do mundo, pois a ação descomprometida com os

sujeitos reais e históricos pode desencadear mais exclusão. Então, se os adultos

desta instituição ao perceberem as discriminações sentem-se impotentes ou

despreparados para intervir, pode-se pensar que em algum momento, eles também

discriminam. Isso ocorreu de forma bem mais sutil, vide as falas das professoras

abaixo:

Olha, o Paulo é escurinho, bem moreno e chama o Gean de neguinho [...] eu falei: meu filho, por favor! Se olha... o espelho é pequeno? (Professora Madalena) Augusto não se aceita como negro [...] Mas a mãe dele é negra e eu não sei por que ele se acha branco (risos) (Professora Gisele).

O deboche explicita um preconceito que não é verbalizado. A cor como critério de

inferioridade é apresentada em uma frase. O sentido do espelho, esse objeto de

auto-apreciação ou rejeição, é indicado para a comprovação de algo “desqualificado”

- sua cor, sua imagem. Na segunda narrativa, o gesto (sorriso) surge em contexto e

complementa o sentido, já antecipado: “se acha branco”.

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A exposição das crianças discriminadas intensifica a violência sofrida. No caso

abaixo, o pátio foi palco desta situação quando a professora do 4º ano chega à

coordenação trazendo uma criança pelo braço e a empurra em direção à

coordenadora:

Olha, eu não agüento mais isso! Vocês resolvem porque eu já cansei de falar e eles não param de xingar aquele pobre coitado ali {aponta para um menino negro} de macaco e vocês vivem falando pra gente que isso não pode mais, por causa da lei... e aquele outro coitado ali, esse aqui também xingou de bicha. Xingar negro não pode e de veado... ah! Acho que também não pode não... sei lá...vocês resolvem ai, que eu to saindo, tá na minha hora, senão vou perder o ônibus. (Professora Madalena)

A partir destas considerações observa-se que o comprometimento com estes

sujeitos reais se fragiliza provocando assim, o rompimento dos laços de

confiabilidade no adulto, sujeito este que no espaço escolar, é um agente que

deveria ser promotor de relações humanizadoras.

3.3.1 A autoridade do professor frente às discriminações

Em turma observada (4º ano), as crianças estão, como sempre, bastante agitadas.

Uns andam pela sala, outros brincam com os materiais escolares, duas meninas

desenham, um menino sobe na carteira, e o tempo vai passando. A professora

convoca a atenção da turma, mas apesar da insistência da mesma, as crianças

continuam alheias à sua chamada. Ela então fala mais alto, pega a mão de um

menino e o leva até sua carteira, pede silêncio, tenta explicar a tarefa. Percebe-se

que ela não consegue representar autoridade para as crianças. Por mais que ela

fale, mostre figuras, aponte aspectos interessantes do livro, no quadro, no texto, a

maioria das crianças continua realizando outras atividades.

Essa situação repercute nas relações entre as crianças. Eles gritam uns com os

outros, xingam e demonstram irritação com o barulho que eles mesmos provocam

na sala de aula. As crianças que apresentam “dificuldades de aprendizagem” ficam

nos cantos, aguardando uma intervenção qualquer. As mais discriminadas e

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excluídas estão isoladas em diferentes espaços da sala, passíveis de brincadeiras

preconceituosas, apelidos e xingamentos, por parte de outras crianças.

Ouvindo os professores e professoras estes explicitaram suas dificuldades em

perceber, intervir e romper com as relações preconceituosas e discriminatórias

evidenciadas em suas turmas:

[...] Eles (sua turma) xingam ela de “bruxa”, “cabelo de assolan”, “horrorosa”! Nossa! É o tempo todo assim. E ela não faz nada, não fala nada, não reclama. E eles continuam mexendo com ela {silêncio} E ela é cheirosa, tem cheirinho gostoso na pele, é limpinha, mas mesmo assim é discriminada! [...] Eu já cansei de conversar com eles. Eu não falo mais nada! Não adianta! Eles não obedecem! Eu falo: gente, ela é gente também, parem de mexer com ela, mas não adianta.” (Professora Lúcia). E eu que um dia [...] troquei os nomes de Jaíne (menina branca) e Pámela (menina negra) A Jaíne reagiu [...] disse que não era preta, feia e com cabelo de pico [...] ficou alterada com minha confusão com os nomes. Puro racismo da menina! É mole? Fiquei chocada! (Professora Keyla). Olha eu não sei mais o que fazer. Já conversei muito e não adianta. (Professora Meire)

Estas professoras demonstravam perceber as violências racistas contra as crianças,

mas assumiam não saberem o que fazer e descreveram que se sentiam

incomodadas diante da gravidade da situação. No entanto, percebeu-se também,

que a abordagem utilizada nestas situações não transformava tal realidade. Vê-se

neste contexto que a escola pode ser uma das poucas instituições a que as crianças

têm acesso durante a vida e vê-la como um espaço público ainda deficitário no

enfrentamento das discriminações, principalmente daquelas mais desafiadoras como

o racismo, é realmente angustiante.

O racismo institucional para Wieviorka (2006) ocorre sem que os preconceitos sejam

expressos. Ao ficar invisibilizado, torna-se naturalizado, como se não existisse, mas

está ali, estruturado naquele sistema (instituição), ou seja, instituído.

Em entrevista com uma professora do 3º ano ela relata perceber as discriminações

em relação às rejeições e exclusões na sala de aula, porém, justifica que a família e

a igreja é que orientam as crianças a se afastarem de alguns colegas: “Eles são

meio que panela assim com o outro sabe? Já tem um grupo formado.” Talvez essas

justificativas tenham sido usadas pela professora, como válvula de escape, pois as

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discriminações prosseguem livremente em sua sala de aula sem nenhuma

intervenção sistematizada.

Esses movimentos desarticulados de crianças e seus professore/as foram

observados em algumas turmas. Independente de serem crianças maiores ou

menores, a postura dos mesmos representava uma grande diferença nas relações

com/entre as crianças. Nas turmas em que a desorganização dos espaços, tempos

e atividades eram constantes, as violências físicas e não-físicas, o desinteresse,

apatia, silêncios e invisibilidades, eram mais freqüentes. Algumas vezes as

situações provocavam mais violência. As coordenadoras eram as que recebiam as

reclamações e expulsões dos alunos de suas turmas, por ocasião de todos os tipos

de violências. As agressões físicas recebiam mais atenção, e dependendo da

gravidade do fato, envolvia a pedagoga e diretor.

As intervenções destes profissionais se davam através de conversas seguidas de

registro no “livro de ocorrências”. Se as agressões ou indisciplinas persistissem, a

família era convocada por meio de bilhetes padronizados. As violências não-físicas

como xingamentos, ameaças, apelidos, palavrões, também eram registrados, mas

não recebiam a mesma atenção. Aliás, palavrões aleatórios foram pouco

percebidos nas observações neste espaço de pesquisa. No entanto, os

xingamentos racistas eram constantes, alguns banalizados. Estes não recebiam a

mesma atenção em relação às violências físicas.

Verificando o “livro de ocorrências” da escola, percebeu-se que eram raros os

registros de brigas ou pequenos conflitos que constavam as motivações do fato.

Caso alguém se propusesse a analisar as relações raciais entre os alunos através

destes registros, não encontraria a realidade concebida nas observações. Um

questionário também não conseguiria apresentar a realidade, dada a sutileza das

discriminações étnico-raciais, assim como, a invisibilidade destas atitudes, como

violência.

A instituição escolar é local também de possibilidades, resistências, expectativas

construção de outras formas de relações sociais. Sarmento (2002, p.16) considera a

concepção de educação enquanto possibilidades de ressignificação e resistências

quando afirma:

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Articular o imaginário com o conhecimento e incorporar as culturas das infâncias na referenciação das condições e possibilidades das aprendizagens [...] pode ser também o modo de construir novos espaços educativos que reinventem a escola pública como a casa das crianças.

Telles (2006, p. 139) ao propor a “cultura pública democrática que se abra ao

reconhecimento da legitimidade dos conflitos e dos direitos demandados como

exigência de cidadania” prescreve nesta perspectiva, o acolhimento das

contradições humanas no espaço público, ao considerar que as diferenças estejam

ali, expressas, inclusas, dialogando e construindo formas de sociabilidade. Sabe-se

que o adulto como referência de conhecimento para as crianças, representado neste

espaço na figura do professor, se configura assim, em uma possibilidade de

condução da interlocução entre os diferentes sujeitos, com suas opiniões e seus

julgamentos.

A prática pedagógica pode ser instrumento de promoção de sociabilidades, na

medida em que considerar as crianças como sujeitos capazes de opinar e julgar

assim como discutir os conflitos nos quais se envolvem e participam em movimento

de alteridade. Isso ficou evidente em algumas turmas, onde a prática pedagógica

provocava a atenção das crianças. Professores que as assediavam com o

conhecimento conseqüentemente conseguiam construir um ambiente mais salutar

de aprendizagem, observável até mesmo na limpeza do espaço e aproveitamento do

tempo. Dentro das possibilidades destes profissionais no que se refere ao espaço

físico e recursos, as aulas eram mais proveitosas, agradáveis, organizadas,

perceptíveis no envolvimento das crianças e nos resultados de aprendizagem.

Essa possibilidade foi evidenciada em muitos momentos da escola. Nas turmas

observadas, aquela em que os professores se mostravam mais organizados,

atentos ao que ocorria com as crianças e conseguiam ser autoridade para elas, o

índice de violências era bem menor. Elas aconteciam, mas sempre de forma mais

sutil, mais difícil de identificar. Contornos nem sempre precisos, mas sistematizados

sob direcionamento efetivo do professor (a).

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3.4 E A FAMÍLIA, O QUE DIZ?

Ai... eu passo esperança pra ela dentro da minha casa! Eu passo esperança! [...] Ela é minha filha, é meu orgulho! (Simone, mãe de Carol)

A mãe de uma menina do 4º ano (Carol) procura a pedagoga para fazer uma

reclamação, mas não a encontra. Ela aparenta estar muito nervosa, aparentemente

magoada pelas tentativas frustradas de conversar com a escola sobre a situação

relacionada à sua filha, que tanto a incomodava. Carol é uma menina com NEE, ex-

aluna da APAE, e é constantemente discriminada pelos colegas.

Encaminho essa mãe a uma sala e começo a ouvi-la. O relato desta senhora é

acompanhado de muita emoção e explicita todas as violências que a filha reclama e

que ela percebe em relação ao tratamento dado à criança nesta escola: “Ela não

sabe se defender e as crianças catam as coisas dela”. Em princípio ela reclama dos

constantes sumiços de materiais da filha que ela acredita serem furtados pelos

colegas, como fica evidenciado na fala acima. Simone acredita que a escola não

cuida como deveria da sua filha que é especial59. “O que acaba com ela é o medo!

Ela fica ali, mas não fala!” (mãe de Carol) Simone também percebe que a filha tem

medo de reclamar com os colegas e/ou professora. Prefere então se calar, mas não

é porque não tem capacidade de expressar o que sente o que vê e avalia sobre o

outro em relação a ela. Ela sente e explicita para sua mãe, por confiar que será

ouvida e acolhida. Carol não reclama na escola porque demonstra ainda não confiar

nesta instituição.

Outras crianças da escola que também são especiais, não são excluídas da mesma

maneira. Carol é excluída não somente por necessitar de atenção especial, mas

também por ser negra, conforme o relato de sua mãe: “As crianças falam que ela é

feia! Ela me disse: mãe, eu não quero cortar meu cabelo e nem alisar porque eu vou

ficar muito bonita e as crianças vão implicar comigo.” Esta criança reclama para sua

mãe a violência sofrida. Relata então que o cabelo é motivo de piadas por parte de

seus colegas o que a deixa constrangida. Carol não diz isso na escola, mas sua mãe

ouve, sente por ela, procura a escola e relata o sentimento de sua filha. Ela indica

59 Especial neste termo considera-se as Pessoas com Necessidades Educacionais Especiais (PNEE)

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confiar na escola, porque está ali, pedindo para ser ouvida, implorando que a escola

ouça sua filha através dela.

Tudo o que as pessoas falam ela coloca na cabeça, tudo, tudo, ela coloca na cabeça. Ah mãe, o menino me chamou de feia mãe eu não sou bonita, eu sou feia, sou isso, sou aquilo, tal e tal, ela me fala. Ela se acha feia porque as pessoas, as crianças falam que ela é feia, ela põe na cabeça. Ela chega lá em casa, cada dia é uma novidade diferente {se emociona e chora} porque a pior coisa que tem é o filho sendo discriminado [...] Quando eu corto o cabelo dela, eles xingam ela de “hominho, de “machinho” [...] Ela tem medo porque as crianças xingam e debocha da cara dela [...] e jogando até pedra nela no meio da rua [...] Porque se eu pudesse, eu ficava dentro da sala com ela pra ela não ficar passando por isso {chora bastante}.

Tal relato demonstra que ela percebe que a imagem da filha está atravessada por

expressões inferiorizadas no discurso do outro, dos seus colegas. Entende que o

que falam sobre Carol interfere na constituição de sua identidade. Ela apresenta

outra condição subjetiva para a filha quando a acolhe e produz discursos com outros

sentidos – o da possibilidade e da resistência: “Ai... eu passo esperança pra ela

dentro da minha casa! Eu passo esperança!”

Se a escola não consegue provocar sentimentos de alteridade, de respeito e

reconhecimento do outro como sujeito de direitos, fracassa no sentido de ser

realmente democrática. O espaço que deveria ser de convivência de todos, de

igualdade e de respeito às diferenças, torna-se espaço de poder atrelado à rejeição.

Mas apesar de contar com a atenção e proteção por parte da escola como um direito

legítimo, Carol tem na figura da mãe o discurso da esperança, dentro da sua casa.

Ela denuncia essa situação em alguns momentos em que a escola oferece brecha

para tal abordagem, mesmo que precise impor a discussão sobre a violência sofrida

por sua filha, ao perceber que a escola não promove tal debate.

Diante da abertura para falar em uma reunião de pais realizada na escola, essa mãe

interrompe a fala da diretora que chamava a atenção dos pais para as constantes

faltas dos filhos. Com esta interrupção, a crítica que era feita à família volta-se para

a escola:

Oh! Eu queria falar uma coisa: minha filha (Carol) não quer mais vir pra escola, porque os meninos ficam xingando ela... ficam falando do cabelo dela... que é cabelo de bombril, cabelo de pico! Ela fica triste, fica chorando

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e eu vou fazer o que? Vou deixar ela em casa? Porque não quero que fiquem xingando minha filha! (diário de campo, 13/07/07)

Essa mãe, mais uma vez, reforça a denúncia de que sua filha tem sido discriminada,

na tentativa de romper com a perpetuação dessa violência, apontando para o fato de

que a escola continua alheia a essa situação. Aproveitando o momento, outra mãe

interrompe a fala da diretora, que insiste em retomar o assunto da pauta e desabafa:

É...isso ta acontecendo com minha filha também (Júlia). Só porque ela é de cor, os meninos ficam colocando apelidos nela. Falam que ela é suja, feia, cabelo de bombril.

Outra senhora reclama que sua sobrinha também é discriminada na escola e assim,

vários pais conversam entre si, momento que, para a equipe que dirigia a reunião,

foi de tumulto. Trataram logo de retomar o assunto em pauta para aquela reunião: a

freqüência dos alunos da bolsa-família60. Foi possível observar que dentre os 18

responsáveis só havia três pais, e dentre esses participantes, somente três mulheres

(duas mães e uma tia) se propuseram a relatar abertamente sobre a questão do

racismo. Os demais cochichavam entre si, mas não explicitaram em público o que

realmente pensavam a respeito. Percebe-se, com o silêncio, a evidência da

experiência de violência na pele por estes pais (todos negros e indígenas)

O discurso dos pais nesta escola, nos momentos de observação, se divide em

formas distintas:

• A denúncia a uma situação dada: suas filhas sofrem cotidianamente a violência

da discriminação racial, que se perpetua e se reproduz, na medida em que nada é

feito para minimizá-la ou combatê-la;

• O silêncio vivenciado pela grande maioria deles, que preferiam não expor o

que sentiam em relação a tal discussão.

60 Programa do Governo Federal que destina recursos financeiros às famílias de baixa-renda, que tenham filhos menores matriculados na escola com freqüência regular.

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Nos momentos de observação-participante no portão (horário de saída) alguns pais

reclamaram de agressões e xingamentos sofridos por seus filhos. Questionados se

conseguiam identificar os motivos das brigas, eles desabafam e ameaçam: Olha, eu venho buscar meu filho todo dia, porque esses meninos brigam muito na escola e descontam na saída [...] Eles colocam muito apelido e xingam, ai... acaba dando briga! Eu não deixo meu filho apanhar de jeito nenhum. Eu prefiro vir buscar todo dia. (pai 1) Oh! Eu avisei pra uns meninos aqui, se fica xingando minha filha eu vou pegá eles aqui, heim! Ei, to avisando! (pai 2)

Em outro dia, um senhor está parado em frente à escola aguardando o filho sair.

Quando uma criança se aproxima dele e lhe diz algo que não foi possível ouvir.

Imediatamente ele sai de bicicleta xingando e gritando expressões ameaçadoras. Ao

longe, percebe-se que ele pára a bicicleta em direção a duas meninas que correm,

fugindo daquela cena. Mais tarde, a mãe de uma das meninas entra muito nervosa

na escola e reclama que esse pai ameaçou a filha dela na saída da escola. Esse

fato culminou em uma reunião com os pais das crianças envolvidas e descobriu-se

que tudo começou a partir de apelidos racistas direcionados às meninas (ambas

negras). [...] Essas crianças, a maioria delas é negra e ai a gente começa a refletir com eles: de onde vem isso? [...] Porque essa coisa aparece tão constante e incomoda tanto a aula, causa tanto conflito e a menina acaba por resistir, né? Porque às vezes ela parte pra cima deles, né? Ela não agüenta, né? Quando a gente conta com a família, como vocês, a coisa melhora, ganha um outro tamanho, vê que a ação da escola não é isolada... (Professora Carmem)

A postura profissional de diálogo da professora com esta outra família a diferencia

da maioria dos professores. A abordagem cuidadosa e ética neste encontro

possibilitou esclarecimentos aos pais de Clarice que não entenderam a atividade

solicitada sobre o racismo na sala de aula, direcionado a uma menina de sua turma.

A conversa permitiu que os pais relatassem suas dúvidas e opinassem sobre a

metodologia usada pela professora. Foi interessante observar este momento, rico e

significativo para a família e a escola que possibilitou vislumbrar brechas de um

processo instituinte. Esse lugar de poder que as escolas ainda insistem usar, na

relação com a família. Por outro lado, esse momento representou uma possibilidade

da escola como espaço público da palavra, do consenso entre os sujeitos

envolvidos: família, professora, direção, pedagoga e a criança.

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CAPÍTULO 4 4 O QUE AS CRIANÇAS FALAM, QUANDO ELAS SE CALAM

Quando olho para mim não me percebo. Tenho tanto a mania de sentir Que me extravio às vezes ao sair Das próprias sensações que eu recebo. Nem nunca, propriamente reparei, Se na verdade sinto o que sinto. Eu Serei tal qual pareço em mim? Serei Tal qual me julgo verdadeiramente? Mesmo ante as sensações sou um pouco [...] Nem sei bem se sou eu quem em mim sente. (Fernando Pessoa)

4.1 De qual silêncio estamos falando?

O silêncio na perspectiva deste trabalho está relacionado às relações étnico-raciais.

O foco são os silêncios que atravessam a questão racial envolvendo as crianças

negras e indígenas, configuradas na práxis da escola, assim pontuados:

• Da invisibilidade social do negro e do indígena na história do Brasil, enquanto

produtores de cultura e conhecimento.

• Dos professores diante das discriminações étnico-raciais;

• Da instituição através do mecanismo disciplinar, organização do tempo e

espaço da escola, no que se refere às diferenças e possíveis confrontos raciais;

• Do currículo escolar;

• Das crianças que sofrem e as que provocam a violência do racismo

Os silêncios explicitados neste trabalho assim se dividem:

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• Aquele que atravessa e divide as palavras e que é carregado de sentidos;

• O silenciamento ou apagamento dos sentidos que se quer negar e

invisibilizar.

Os silêncios e silenciamentos atravessaram quase todos os momentos de

observação em diferentes tempos e espaços da escola. Eram meninos e meninas

ignoradas/os em seus silêncios, percebidos de forma intensa por parte das crianças

discriminadas. Nos diferentes espaços como salas de aula, pátio, corredores e

refeitório, assim como na saída da escola, no recreio e em eventos, a não-fala foi

evidenciada. Nestes contextos e espaços, a invisibilidade dos silêncios chamou-me

a atenção, logo no início da pesquisa de campo.

Sendo os sujeitos pesquisados os que sofrem discriminação étnico-racial, foi

possível perceber uma relação aproximada desta problemática racial com os

silêncios. As crianças identificadas como caladas, em sua maioria, sofriam a

exclusão por suas características físicas e também sociais.

Uma pergunta atravessou os momentos de análise de dados no que se refere aos

silêncios observados: De que lugar estas crianças se negam a falar? Esse

questionamento é coerente se considerarmos o fato de que estas crianças

silenciosas sabem falar. Elas falam em algum momento e em outros se calam.

Talvez o lugar que vêm ocupando tenha sido criado, imaginado e legitimado

ideologicamente através de elementos simbólicos internalizados. Os silêncios

encontrados se dissociavam sob critérios definidos como: tempo, espaço, contexto,

aproximações com outros sujeitos.

Abordar o silêncio sob suas diferentes facetas implicou compreendê-lo enquanto

possibilidades de se tornar visível e de reconhecer sua existência como sentido.

Neste sentido, percebeu-se que muitos dos silêncios identificados, estavam

estreitamente relacionados às violências sofridas ou praticadas. Isso nos leva a

pensar o silêncio como uma possibilidade ou forma concreta de resistência. A

primeira intenção foi perceber o silêncio dos sujeitos e o contexto no qual o silêncio

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se apresentava e a partir destas observações, analisar as nuances e

desdobramentos nas relações entre os diferentes sujeitos.

Constataram-se silêncios justificados, compreensíveis nas poucas palavras ditas, ou

o silêncio quase total. Verificou-se também que, em algumas situações a tentativa

de compreensão foi mais difícil, em outras, praticamente impossível.

Vale lembrar que o silêncio para Orlandí (2007) possui valor positivo, o que não

dissocia nossa compreensão de que é positivo na medida em que pode ser

compreendido, ou simplesmente visibilizado em meio à historicidade dos sujeitos.

O silêncio que está ali tem sentidos, de resistência, ou de sentidos calados,

abafados, proibidos. Desta forma, tentou-se compreender o que atravessava as

experiências das crianças caladas, e isso exigiu retomar aspectos de sua

historicidade e cultura, assim como, as relações estabelecidas com as mesmas, no

espaço escolar, por tempo mais prolongado.

Algumas experiências metodológicas e recursos foram usados como estratégias, na

busca de captar fragmentos gestuais, sílabas, expressões que fossem pistas de

possibilidade de entendimento de diferentes sentidos dos silêncios – o uso da

fotografia durante atividades desenvolvidas na sala de aula e durante as

brincadeiras do recreio e recortes de revistas. As análises prosseguem, seguindo

diferentes contornos dos discursos das crianças. Ora silêncios entre frases, entre

palavras e nas ausências total das palavras.

Nesta transcrição de entrevista, nota-se que Luíza (menina negra) se expressava

bem sobre alguns assuntos, mas se calava quando era perguntada sobre o que a

incomodava na sua relação com os colegas e obviamente, com sua família. Ela

aponta que os colegas a xingam, que só consegue contar para a mãe e relata o

porquê: Eu conto! Ela fala pra eu ficar quieta pra eles não me xingar mais! (Luíza)

Você prefere ficar em silêncio? (pesquisadora) Melhor que ficar brigando! (Luíza).

A orientação recebida da família é de que esta menina não reaja às provocações

discriminatórias. Assim, se dispõe a calar-se na intenção de evitar o conflito com

seus colegas. Em observação na sala de Luíza, constatou-se o quanto ela é

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ofendida principalmente pelo tipo de cabelo, mas em nenhum momento da

observação, ela reclama com os colegas ou chama pela professora. Durante uma

entrevista, Luíza responde em princípio, que não é xingada, mas em outra

entrevista, agora coletiva, ao responder negativamente sobre possíveis apelidos,

dois meninos que participam da entrevista, a contradizem e relatam que a colega é

constantemente xingada de “cabelo de fogo”. No momento que é exposta à

contradição, ela concorda gestualmente com o que é dito sobre ela.

Neste caso, esta menina silencia, dentre outros motivos, pelo fato de não ser

apoiada pela família, caso resolva reclamar com a escola. A passividade é a melhor

alternativa pensada por sua família e talvez essa opção signifique não arriscar um

possível confronto entre sua filha e outras crianças. O que esta família acredita ser

direito da filha imprime nela mesma, o direito a ser discriminada, na medida em que

o não-falar não a livra do racismo vivenciado cotidianamente.

Em alguns momentos buscaram-se estratégias mais convenientes na busca de

compreender o que não era dito pelas crianças, espontaneamente. No caso de

Luíza, após várias investidas neste sentido, a máquina fotográfica foi uma das

alternativas escolhidas. Porém, Luíza se negou a posar para a foto. Disse que não

gostava de ser fotografada por ser muito feia, conforme diálogo abaixo:

Porque que você se acha feia? (pesquisadora) Porque os meninos ficam me chamando de feia e bruxa! (Luíza) De feia e de que? Bruxa. Bruxa? E porque bruxa? (Silêncio) E porque que você acha que eles te chamam de bruxa? (Silêncio) E quando eles te xingam de bruxa você faz o que? O que você fala? Nada. Você fica quietinha? (Balança a cabeça positivamente) Você não responde, não fala pra eles: eu não sou bruxa! Não fala nada? Não.

Luíza expressa em poucas palavras, o sentimento de humilhação vivenciado. Não

seria conveniente afirmar que as discriminações sofridas, por si só, influenciariam

todas as suas relações, mas o que fica bastante compreensível é verificar as

constantes investidas preconceituosas que a deixam sempre cabisbaixa, quieta, sem

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ânimo para insistir em ser respeitada. É evidente que outros aspectos de sua vida

também podem estar influenciando essa reação de isolamento e silêncio que a

acompanham. Neste caso, o silêncio pode ser entendido como uma forma de

resistência. Pode ser que esta criança silencia diante dos questionamentos que a

levariam a relembrar situações sofridas. Ela relata as atitudes dos colegas, mas se

cala diante das respostas que ela não quer dar, certamente para não rememorar.

Obviamente Luíza sabe muito bem quais os sentidos atribuídos ao ser xingada de

“bruxa”, mas o silêncio parece a proteger destes significados negativos imputados a

seu corpo, à sua imagem.

Proteger-se no isolamento é algo cotidiano para Júlia. Foi possível observá-la

isolada em diferentes momentos e espaços da escola. “O que você está fazendo

sozinha? Não vai brincar?” (pesquisadora) Júlia não responde, fica em silêncio, de

cabeça baixa, imóvel, como se tivesse sido excluída ou ofendida minutos antes.

“Vamos lá para o pátio! Cadê suas colegas? Não vai brincar?” (pesquisadora) Júlia

fica em silêncio. Ela levanta a cabeça, fixa o olhar na parede à sua frente, continua

em silêncio sozinha em um canto do corredor, entre as salas de aula que ficam

fechadas durante o recreio.

Esse isolamento no horário do recreio, quando as crianças estão livres para correr,

brincar, conversar, estar junto com os colegas, não é vivido por Júlia, com prazer.

Ela se nega a vivenciar esse espaço com tudo o que ele pode lhe proporcionar de

alegria e experiências. Porém, seu silêncio na solidão do isolamento, pode ser uma

escolha que lhe oferece proteção. Ela percebe o quanto é difícil ser acolhida nas

rodas de brincadeiras e de conversas. Pode ser que a exclusão constante desta

menina dos grupos, a faz sentir-se impotente frente ao poder que é exercido sobre

ela na medida em que suas características físicas a estigmatiza. Para Orlandí (2007)

significaria a “interdição do outro”, o que representa bloquear a subjetividade do

alter, nocauteando sua individualidade, sua ação enquanto tal. Excluir o sujeito do

seu lugar implica romper o processo de alteridade da convivência entre os

diferentes.

Em outro dia Júlia está no corredor chorando, encostada à parede. As perguntas

sobre o que aconteceu não são respondidas. Ela nada fala, mas um menino passa

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correndo e fala: “Eles xingaram ela”. E assim em apenas uma frase dita por Júlia, é

possível compreender seus sentidos:

Você reclamou com a coordenadora?(pesquisadora) Silêncio Com a supervisora? (Balança a cabeça negativamente) E o diretor?61 Deixa isso pra lá. (muito triste)

É cômodo para esta criança permanecer neste lugar de silêncio. Ao mesmo tempo

torna-se cômodo para os adultos, a deixarem neste lugar. E ela sente que não dá

pra contar com ninguém. Da mesma forma, outras crianças encontravam no silêncio,

um lugar de resistência.

Daiane (3º ano) é uma menina negra, muito discriminada pelos colegas. Após o

recreio, as crianças chegam eufóricas e a professora inicia a “luta” por atenção da

turma. Alguns minutos passam e ela inicia a correção de uma tarefa no quadro. A

professora corrige uma questão de matemática. Ela então chama as crianças à

frente para resolverem os cálculos. Algumas crianças corrigem suas tarefas, outras

caminham pela sala, outras brincam, outras fingem corrigir as questões.

Neste momento, três crianças estão indiferentes às orientações pedagógicas da

professora. Dessas três crianças, duas são negras. Daiane é uma delas. Ao

perguntar se não faria a atividade, ela se debruça sobre a mesa com a cabeça entre

os braços e fica em silêncio. Segue-se uma tentativa de diálogo com a criança:

“Aposto que você sabe fazer... por que não corrige com os outros colegas?” Ela

continua calada. Após várias tentativas, um menino se vira e fala: “Ela não faz nada

não! Não sabe fazer!”

As atividades prosseguem e esta menina continua à margem do que se passa na

aula. Novamente ela é abordada: Nossa! Você está tão linda com esse cabelo!

(Silêncio) Ela continua estática, de cabeça baixa. Depois de um tempo a

observando, a máquina fotográfica lhe é oferecida para tirar uma foto. Neste

momento, ela se levanta, dá um sorriso tímido e pega a máquina. Como é que tira?

61 A direção da escola muda durante a coleta de dados. Antes era uma diretora, agora, um diretor.

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A insistência em uma interação com ela gera um diálogo: Ela tira uma foto e pede

para ver. É sugerido tirar uma foto dela: Posso tirar uma foto sua? Você está linda

com esse cabelo afro! Ela fica séria novamente, segura o cabelo e fala: Tá horrível!

Eu odeio esse cabelo!

O silêncio desta menina pode ser compreendido como uma escolha. A opção de

Daiane por calar-se pode estar relacionada à sua condição humana naquele lugar,

com aqueles outros sujeitos. Fernando Pessoa já dizia: “Eu serei qual pareço em

mim?” Daiane está quase sempre calada e no breve diálogo traçado com ela, ela

expressa o quanto sua imagem, sua aparência a deixa triste e rancorosa. As poucas

palavras ditas se rompem a partir da referência a seu cabelo. Neste dia, ela havia

feito um penteado afro, (fato que a deixou mais bonita ainda), mas não ouviu elogios

dos colegas e complementa dizendo: “Os meninos ficam falando que tá mais feio do

que era então eu quero tirar!”

Esta menina se vê nas expressões do outro, não aceita ser desqualificada, mas não

tem forças para se impor enquanto criança, negra, mulher, sujeito. Não há ninguém

naquele espaço que a compreenda e a apóie. Enquanto ela ouve as constantes

reclamações da professora a seu respeito, os colegas riem, debocham do aparente

fracasso que lhe é imposto pela maioria deles. Abaixar a cabeça era a forma que

encontrava de esconder o rosto daqueles que a procuravam com o objetivo de

humilhá-la. Foi possível perceber a banalização das ofensivas discriminatórias

contra Daiane durante vários momentos de observação.

Além do racismo sofrido, vivenciava também expressões de descaso por parte da

professora que muitas vezes a encaminhava à coordenação por negar-se a cumprir

tarefas. A professora dizia que a achava “anti-social”, por não apresentar boa

convivência com os colegas. Continuar calada era sua estratégia cotidiana, como

relata a professora: [...] o comportamento, da Daiane é [...] “costuma cuspir, bater,

rasgar, pegar, amassar, então elas (as crianças) já se preservam.” No silêncio, ela

tumultuava a rotina da professora e ganhava visibilidade. E ao perceber que algo

estaria provocando atitudes de incivilidade nesta menina, a professora não

investigava o que a criança realmente sentia. O que provocava seu silêncio

continuava invisibilizado. A história desta criança assim como a da grande maioria

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dos meninos e meninas desta escola, está imbricada por demandas sociais:

violência, alcoolismo na família, pobreza. Neste sentido, suas subjetividades são

determinadas em grande parte, na confluência destas problemáticas. O silêncio

percorre por entre as artimanhas político-ideológicas fortemente presente nesta

comunidade e reproduz posturas alienantes, no que se refere aos direitos sociais. É

possível também evidenciar movimentos de resistências promovidos por instâncias

da sociedade civil. Nestes fluxos e contra-fluxos, as crianças vão se constituindo.

Cavalleiro (2003) afirma que o silêncio da criança discriminada sinaliza a fragilidade

e o desamparo a ela imposto. O direito a voz (sujeito político) está interditado dentro

e fora da instituição. Não é regra nem determinismo. Mas é possível perceber

nuances de dominação naturalizado na região, fenômeno presente também na

escola. Dentre as muitas crianças que se mostraram caladas diante das

discriminações sofridas, algumas deixaram escapar palavras, capturadas pelas

observações constantes. A pergunta durante as entrevistas era sobre qual o

sentimento delas em relação às incessantes agressões direcionadas a seus

atributos físicos:

Você nunca fala nada quando é agredida, por quê? (pesquisadora) Silêncio (olha para os lados, segura as mãos) (Olívia) Por que fica quieta quando agredida? (pesquisadora) Silêncio (evita olhar para a pesquisadora) Você consegue explicar? (pesquisadora) Não tem como explicar (Olívia)

O silêncio de Olívia nesta cena pode representar um escape do lugar que ela não

queria estar. Não olhar para que não seja abordada com estas questões pode deixá-

la mais distanciada das lembranças desagradáveis. O receio de encará-las pode

evidenciar a desconfiança de que sua voz faria mais sentido que seu silêncio.

Desviar o olhar e continuar em silêncio oferece um lugar para Olívia. Mesmo que

seja um lugar solitário, mas uma opção mais segura diante da insegurança, do

desamparo. Em outro momento de entrevista, agora juntamente com mais três

colegas, esta menina consegue dizer algumas palavras, mas demonstra receio em

expressá-las verbalmente. [...] Tem uma vez que eu tentei falar com a professora e parece que ela não me ouviu. (Olívia) E você tentou reclamar outras vezes? (pesquisadora)

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(Balança a cabeça negativamente) (Olívia) Você já reclamou com a professora que você não gosta que ele fique colocando apelido em você? (pesquisadora)

Crianças caladas ao serem chamadas de desleixadas foram evidenciadas em

muitos momentos da observação. Não se questionava o porquê do caderno sujo ou

rasgado, nem se pensavam justificativas sobre as tarefas de casa não realizadas.

Outras crianças se mantinham caladas, sendo expostas a constrangimentos quando

retiradas da sala, por questão de higiene pessoal. Nestes casos, a escola buscava

atender e cuidar junto à família, mas o que mais incomodava era a exposição às

quais eram submetidas. Foi o caso de Fábio, um menino negro de sete anos trazido

por sua professora que expôs sua situação para a coordenadora em pleno pátio:

“Olha, Fábio ta vindo muito sujo pra escola. Acho que não escova os dente. Olha as

pernas: de pretas estão brancas (risos) Ele está desanimado, maltratado e não

consegue aprender!”

Essa professora não ignora a situação de abandono do seu aluno. Ela percebe e

denuncia os maus tratos sofridos por esta criança. Isto a incomoda e a leva a

procurar ajuda. No entanto, a forma com que ela explicita o caso - o deboche ao rir

das pernas pretas, quase brancas, dando sentido pejorativo ao ser negro,

transforma esse momento de intervenção em sofrimento para essa criança. Fábio

fica envergonhado diante das outras crianças e dos adultos ali presentes. A

pedagoga se aproxima e complementa: “Nós já chamamos a família e conversamos

com ele... não melhorou nada? Não! Continua do mesmo jeito! (professora). Então

vamos chamar a família novamente! Vou enviar um bilhete!”

Isso leva a pensar que além desta criança sofrer o desamparo por parte da família, é

submetida também à violência da difamação pública. Ele abaixa a cabeça e evita

olhar principalmente para as outras crianças que estão à volta. Em nenhum

momento os adultos ali presentes, atentaram para o constrangimento da criança,

que encolhia a cada palavra da professora.

Impressionou também ter presenciado funcionários da escola creditar toda a

responsabilidade do desamparo desta criança, à sua família, desconsiderando que

essa família não resolveu a situação talvez por não ter condições de cuidar de Fábio

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como a escola idealizava. Isso não significa que não haja responsabilidades a serem

compartilhadas com a família, mas o que não se pode perder de vista nesse

momento, é de que família está se tratando? Quem é a família de Fábio? Como

vivem? Por que não cuidam como a escola pensa que deveriam?

Tratar de problemas sociais na escola, sem pensar essa criança no seu contexto de

vida é desconsiderá-la como sujeito. O silêncio de Fábio é intenso, carregado de

sentidos, possível de captar no olhar abatido, distanciado da realidade que aquele

momento o coloca _ as roupas, o cheiro, o abandono social visível no seu semblante

tristonho. Longe de uma exploração dramática neste texto, o que se quer afirmar diz

respeito aos direitos negados a essa criança, que não fala de suas carências, mas

exprime-as com a voz insegura e trêmula, com o corpo que se mantém encolhido

durante a exposição da professora e pedagoga.

Pode-se pensar que Fábio se cala por uma complexidade de motivos, mas o que

mais chama a atenção é o abandono. Ele tem 09 anos, foi abandonado pela mãe e o

pai é alcoólatra. Ele vive sob os “cuidados” da irmã de 10 anos. Na verdade, a

pobreza e o desamparo social intensificam o sofrimento de não poder viver a

infância, quando aos 09 anos assume junto com a irmã, a responsabilidade da casa.

A escola não o escuta e então lhe exige atitudes e perfil de criança que ele

desconhece. Pode-se pensar o seu silêncio como uma descrença de que algo possa

mudar sua vida.

Outras exclusões foram evidenciadas durante a pesquisa. Em algumas salas, as

crianças que apresentavam alguma “dificuldade” de aprendizagem, tinham lugares

específicos, ou seja, ocupavam espaços reservados a ela, quase sempre ao fundo.

Perguntadas sobre essa disposição de lugares na sala, as crianças respondiam que

estava tudo bem, ou seja, não questionavam os espaços destinados a elas e não

falavam o que realmente sentiam, mas era possível identificar algumas atitudes de

indignação quanto ao estabelecido.

O silêncio das crianças na concepção de alguns funcionários é natural, é

acomodação. A passividade também é ressaltada por estes, como uma virtude dos

bons alunos. No entanto, o diretor percebe o silêncio e aponta possíveis motivos,

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quando relata: “Eles sofrem a violência e ficam quietinhos [...] Não falam também,

pra não sofrer represália”. E acrescenta afirmando outro possível motivo dos

silêncios das crianças: “É o medo!”

A invisibilidade das crianças discriminadas para a instituição, caladas diante das

violências sofridas62, impossibilita medidas efetivas que venham transformar essa

realidade. Foi possível compreender também, que muitas agressões eram

praticadas em silêncio e ao serem questionados, também continuavam em silêncio.

1.1 “CRIANÇAS INVISÍVEIS”: (SER) NEGRO/A, (SER) INDÍGENA NA ESCOLA

4.2.1 A escola e o currículo frente à diversidade étnico-racial

O caráter uniformizador da modernidade brasileira não conseguiu incorporar à nossa formação nacional efetivamente, com justiça social, os negros, índios, mulheres e a população pobre como um todo. Costa e Pimenta

Negros, índios, mulheres e pobres – alguns dos grupos humanos expropriados de

direitos ao longo da história e que nas últimas décadas, vem travando lutas em

movimentos sociais, porém, em muitos aspectos, não-efetivados, é o que

demonstram as estatísticas de violência, pobreza e carência social destes grupos,

no Brasil.

Além de todo o conjunto de legislações nacionais e de Direitos Humanos

implementados desde a Revolução Francesa e que fundamentam os direitos

universais, cabe aqui destacar que não se trata simplesmente de pensar os grupos

humanos, como portadores de uma cidadania universal, no sentido literal. Pondera-

62 Telles (2006, p. 42) parafraseando Arendt descreve: ‘[...] Não existe uma verdade fora daquilo que aparece enquanto visibilidade e aparência: ‘ser e aparecer coincidem’ [...] e isto significa reconhecer que ‘nada do que existe’, na medida em que esta coisa aparece, pode existir no singular”. “[...] Essa pluralidade [...] constrói as referências e as evidências a partir das quais as experiências pessoais e subjetivas podem ser confirmadas na sua validade, retirando-as dessa ‘vida incerta e obscura’ [...]”.

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se sobre os direitos constituídos nas diferentes singularidades, nos modos de ser, no

pertencimento identitário e cultural63.

Na educação, leis mais específicas têm sido aprovadas, como resultado de

movimentos sociais, objetivando desestruturar práticas e relações discriminatórias. O

currículo escolar e a prática pedagógica constituem-se pilares de novas propostas

de trabalho com enfoque na cultura afro-brasileira e indígena.

A Lei 10639/ 03, que altera a Lei 9394/96 garante, no sentido legal, a inserção do

”Ensino da História da África e dos Africanos e Cultura Afro-brasileira” nos currículos

escolares. No entanto, ao observar as intervenções praticadas pela escola, na

verdade, as questões relacionadas à raça/etnia tendo em vista a implementação da

lei, parece ser um incômodo para a instituição escolar. A Lei 11.645 de 10 de março

de 2008, que altera a Lei 10.639/03, inclui no currículo escolar obrigatório, a História

de luta e Cultura dos grupos indígenas, em face à inexpressividade das abordagens

sobre essas temáticas, dominantes no currículo das escolas brasileiras.

Ao problematizar ideologia e currículo, Apple (1995) descreve a educação implicada

com a cultura, em uma relação de poder, quando a escola decide dar ênfase a uma

cultura e subestimar outras. O autor menciona os textos provocativos ao continente

africano quando se referem ao mesmo como “Idade das Trevas”. O autor

complementa: “Assim, quer gostemos ou não, um poder diferencial intromete-se no

âmago das questões de currículo e de ensino.” (p.43).

Os conteúdos curriculares priorizam uma cultura – branca, ocidental. A escola é de

branco, na medida em que impõe um conhecimento homogeneizante, enaltece

personagens e heróis brancos, valoriza a religiosidade branca. Foi preciso uma lei

(10.639/03) exigir abordagem dos conhecimentos sobre a África e Afro-brasileiros, e

uma complementação da lei, quanto à história dos indígenas do Brasil, ainda

marginalizados no currículo escolar.

63 Luciano (2006) ressalta sobre o reconhecimento das diferenças como condição de cidadania, a partir de direitos fundamentados na diversidade humana.

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4.2.2 (Ser) indígena na escola dos não-índios

Quando eu passo, ficam me chamando de índia! E eu não gosto.

(Arai, criança indígena)

Na escola pesquisada as crianças negras e indígenas são maioria. A proporção é

difícil de identificar em documentos da escola ou no censo escolar, porque a maioria

das famílias indígenas de Aracruz que residem fora da aldeia, desde os processos

de colonização e implantação de ferrovias e indústrias, não se identificam

oficialmente como tal, porém, nos relatos eles confirmam a etnia.

Estas crianças são geralmente, muito silenciosas. Durante a pesquisa, esta

característica impossibilitou uma análise, visto que os dados sobre elas foram

difíceis de coletar. Quase não expressam o que sentem e apresentam dificuldade

em reconhecer e assumir a identidade étnica a qual pertencem. A discrição e timidez

são observadas nos isolamentos de muitas delas. Isso talvez se deva ao fato do

preconceito que sentem do outro em relação a elas, na sociedade de Aracruz.

Em entrevista com o diretor (único diretor indígena de escola não-indígena do

município) ele relata o que sente e percebe sobre a situação de invisibilidade, no

contexto de preconceito e discriminação para com os índios da região:

[...] Aqui tem poucos descendentes de europeus mesmo, portanto não existe essa influência tão grande não, é mais indígena, a maioria é indígena e descendentes de negros. Então eles são iguais, não se discriminam.

Neste primeiro relato, o diretor Luis Carlos nega a existência de preconceito e

discriminação na escola. Ele explica que o fato dos indígenas e negros serem

maioria no bairro, os sujeitos são iguais, e, portanto, não se discriminam.

[...] Mas a maioria se perguntar se são descendentes de indígenas eles falam que não... funcionários até...que negam, falam: não, meu bisavô era italiano. O cara casou com a índia, tem o físico de índio, mas fala que é descendente de italiano, valoriza o italiano nele né? (risos)

Aqui ele explicita uma outra percepção – de que as pessoas negam a descendência

indígena, até mesmo funcionários da escola. O fato de não se aceitar enquanto uma

etnia pode ser concebida como preconceito, na medida em que essa negação

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histórica da expropriação de direitos e da ideologia que os inferiorizaram na região.

E isso é confirmado pelo diretor Luís Carlos, quando relata:

Por causa da briga com a Aracruz Celulose [...] A população branca de Aracruz e que depende da Aracruz Celulose diretamente, principalmente o comércio... ai há uma discriminação em relação ao índio. O índio nunca chegou a falou mal do branco do município, de Aracruz, mas constantemente quando se tem oportunidade, o branco fala mal do índio. Eu percebo que existe uma resistência, uma discriminação muito grande.

Neste trecho da entrevista, ele apresenta o cenário da questão indígena do

município, em poucas palavras. Como nativo da região, que conheceu outra

paisagem, antes da derrocada ambiental impactante com a chegada das indústrias,

que acompanhou também todo processo de transformação social do bairro, sentiu e

ainda sente na pele os reflexos de todas as mudanças. E avança ainda mais quando

questiona a política de inclusão destes sujeitos, inexistente nas instituições públicas

do município.

Já que a maioria é de índios e negros, não teria que ter pelo menos 30% de funcionários na prefeitura? Se tiver, são garis.

Diante deste relato, algo ainda ficou no silêncio – a exclusão das crianças indígenas

na instituição escolar. O fato de não se envolverem tanto em conflitos, de não

reclamarem da discriminação, do silêncio em torno de sua história, de suas

carências acaba por camuflar as sutis discriminações que sofrem. Muitas destas

crianças são defasadas na idade-série, não se vêem representadas nas imagens

espalhadas pelo espaço da escola e convivem com expressões preconceituosas

que as cercam no cotidiano de suas vidas. A exclusão de seus conhecimentos nas

práticas pedagógicas permite a continuidade deste sentimento de inferiorização

histórica.

Em reunião de planejamento na escola pesquisada, em que se discutiam propostas

de trabalho sobre a questão do racismo, evidenciou-se certo desconforto em relação

à temática étnico-racial. Isso talvez se deva ao fato de que a maioria dos

professores que ali trabalham, ainda ignora ou evita falar, por algum motivo, sobre a

questão indígena. Não seria injusto afirmar que existe certo medo de contestar o

discurso dominante na região - os interesses da fábrica no que se refere aos

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conflitos com os indígenas ou sobre o impacto ambiental e social provocado pela

mesma. E isso pode ser percebida também no espaço escolar.

Quanto a essa questão, Apple (1995) reforça que uma escola democrática, não

admite ser guardiã da cultura ocidental. Certamente, não abordar as discussões

históricas e sociais na escola, assim como, a reflexão sobre as artimanhas

econômicas e políticas impressas nestas questões, significa manter o silêncio, ou

melhor, o silenciamento das vozes silenciadas por estes processos. Sobre o poder

exercido na prática pedagógica dos professores, percebe-se que os sentidos deste

silêncio são perceptíveis nos olhares assustados frente a perguntas sobre o que

pensam da problemática racial. As respostas na maioria das vezes, não eram

verbalizadas, ou quando respondidas, os profissionais demonstravam

constrangimento. A impressão que se tem é que se sentem inseguros diante dos

questionamentos propostos. A resposta dessa funcionária da escola quanto à

questão indígena de Aracruz ilustra a hipótese anterior.

Essa questão de Aracruz! Eu se perguntar pra quem você dá razão, eu não sei! Eu acho o índio um pouco preguiçoso, porque você não vê eles trabalhando, fazendo grande coisa. Essa questão é complicada. As terras são deles, mas eles não fazem muito. (Patrícia, secretária da escola)

Pode-se pensar que mesmo afirmando saber que as terras são dos indígenas,

Patrícia prefere não opinar favorável aos mesmos. E ainda faz referência negativa,

conferindo-lhes o atributo de preguiçoso, comumente relacionado aos indígenas ao

longo da história do Brasil.

No ano de 2007, durante o conflito de terras entre indígenas e empresa, listas de

abaixo-assinados circularam por instituições públicas e privadas do município de

Aracruz, inclusive em escolas. Nestas, os comentários circulavam em forma de

“cochichos”. Evitava-se explicitar opiniões publicamente, porém duas funcionárias da

escola pesquisada dialogaram sobre a situação:

Ai meu Deus! Esses índios deveriam morrer tudo...só arrumam confusão! Imagine... O que vai ser de nós se a fábrica sair daqui? (Celina) Pois é... Eles querem é mais dinheiro. Não São bobos não! Já não chega o que a Aracruz paga pra eles? Querem sugar mais – sanguessugas! (Marcelo)

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Neste sentido, Luciano (2006, p.30) afirma:

Desde a primeira invasão de Cristóvão Colombo ao continente americano, há mais de 500 anos, a denominação de índios dada aos habitantes nativos dessas terras continua até os dias de hoje. Para muitos brasileiros brancos, a denominação tem um sentido pejorativo, resultado de todo o processo histórico de discriminação e preconceito contra os povos nativos da região. Para eles, o índio representa um ser sem civilização, sem cultura, incapaz, selvagem, preguiçoso, traiçoeiro etc.

Quando Celina diz que a questão é complicada, pode demonstrar que não é muito

conveniente explicitar sobre essa questão, então, ela admite que os indígenas sejam

os donos das terras disputadas, mas não fazem bom uso do que lhes pertencem.

Isso demonstra também, o discurso de que se os indígenas não usam suas terras

como a sociedade acha que deveriam usar, não merecem tê-la.

Outro aspecto presente nesta fala refere-se à compreensão da categoria “trabalho”.

Mesmo não sendo objeto de estudo nesta pesquisa, é possível tecer algumas

considerações sobre os discursos apresentados acerca deste tema. Os objetivos

dos grupos indígenas não são os mesmos da sociedade capitalista, que produz,

acumula, comercializa e explora o trabalhador. Assim, lutar pela terra, no discurso

dominante representa não-trabalho, a preguiça ou o desperdício. Neste prisma,

Luciano (2006, p. 36) complementa:

Os índios são taxados por esses grupos como empecilhos ao desenvolvimento econômico do país, pelo simples fato de não aceitarem se submeter à exploração injusta do mercado capitalista, uma vez que são culturas igualitárias e não cumulativas.

É possível perceber a influência do poder econômico que se sobrepõe ao exercício

dos direitos, nas instituições, neste caso na educação. A “mão invisível” do mercado

direciona as ações das pessoas quando cria e sustenta uma “verdade”: os indígenas

“atrapalham” o desenvolvimento econômico da empresa. Neste caso, a política

neoliberal age na “regulação.”do mercado.

Neste mesmo caminho, segue-se a resposta de outra secretária (Thaís) quando

perguntada se já havia sofrido alguma discriminação: “Eu já! Me chamaram de índia

quando eu era bem nova!” ( Thaís, secretária da escola)

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Thaís é neta de indígenas, e é possível identificar características fenotípicas que

confirmam sua descendência, no entanto, ser chamada de índia a faz se sentir

discriminada, desqualificada por sua condição de ser e não querer ser o que para

ela, é algo ruim. Então ela nega sua própria descendência e identidade. Exterioriza

algo que não reconhece como ethos. “Minha vó parece que é esse negócio ai, pega

a laço! E você sabe de onde? Sei lá! Num sei não! Nunca procurei saber!” (Thaís,

secretária da escola)

As crianças também demonstram desconhecer ou ignorar sua ancestralidade,

mesmo que a conheçam. Assim, preferem não assumir. Quando questionadas

respondem:

Eu não sei [...] Meu pai, ele é um índio (Manuela, indígena) De qual aldeia?(Pesquisadora) Ela fica em silêncio e olha para os colegas. Depois de alguns minutos ela responde: Daqui mesmo. (Desvia o olhar. Expressão de constrangimento) Como você se sente sendo índia? Silêncio (demonstra constrangimento e vergonha) Você gosta de ser índia? (Silêncio) Após insistência da pesquisadora, ela fala em tom de desabafo: Porque quando eu passo, ficam me chamando de índia! (Arai indígena) Não sei, ela falou (a mãe dele) que ela... (é índia), eu sei que sou filho dela! Eu acho que ela nasceu na aldeia [...] (Josué, indígena)

Como pode se verificar nos diálogos acima, estas crianças são indígenas, mas

preferem não assumir abertamente suas origens. Essa hipótese pode provocar uma

reflexão ao reconhecer os sentidos que ecoam nos silêncios destes sujeitos. Não

querer ser o que é se confronta com o que o outro sabe sobre o que é ser o que

você é. Esta confusão de palavras se resume: não quero ser o que dizem ser ruim

ou inferior. Fato que não ocorre somente com crianças indígenas, mas com adultos,

e na mesma intensidade. O relato da secretária confirma essa proposição assim

como o desabafo de um professor que atua nesta escola.

Durante observação-participante em planejamento semanal dos professores, um

professor indígena (Aldeia Pau-Brasil) relata: “Nos lugares que eu chego aqui em

Aracruz, eu não falo que sou índio, por causa do preconceito. Porque pra eles, índio

é inferior. Eu sou índio, mas só falo isso dentro da aldeia” (Hélio, professor da 2º

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ano). Neste momento inicia-se uma discussão entre Hélio e um professor não índio,

que grita: [...] “Os índios querem respeito, mas não respeitam o direito dos outros.”

(Professor Marcelo) Enquanto estes professores discutiam sobre essa questão, os

demais colegas mantiveram-se calados, conversando em pequenos grupos. Quando

se perguntou o que eles pensavam a respeito do indígena em Aracruz, ninguém se

pronunciou. Dos 34 professores presentes, somente dois dialogaram sobre a

temática, sendo que um professor não índio, afirmou não concordar com a luta dos

indígenas pelas terras: [...] “A sociedade passa a mão na cabeça dos índios de

Aracruz”.

Negar o pertencimento étnico-racial é bastante comum na região, principalmente os

descendentes de indígenas, como se evidenciou nos discursos da secretária e do

professor, ambos indígenas. Desta forma, a criança indígena acaba reproduzindo

essa concepção identitária, na medida em que não se reconhece como ser

ontológico, herdeiro de história, cultura e das tradições de seu grupo étnico. Há uma

política do silêncio bem solidificada, que cercea possibilidades de conflitos

discursivos, diante do quadro de discriminação evidenciado na região. Quanto a

essa questão Orlandí (2007, p. 73) complementa: “É o não-dito necessariamente

excluído”

Em entrevista, uma das poucas professoras que se propôs a dialogar sobre a

temática admite: “Eu falo da minha falta de conhecimento pra tomar uma posição,

pra dizer que o índio tá certo, né? Eu vou tá pecando. Não entramos no mérito de

quem é o certo e o errado”.

Essa mesma situação foi percebida durante entrevista com a bibliotecária. O

preconceito ao indígena foi explicitado pela mesma quando descreve sobre os

modos de ser das crianças indígenas na escola:

[...] a gente nota no sentido da separação deles. Eles não tem muitos amigos aqui dentro [...] Não é que eles se isolam, as crianças que não chegam, não ficam perto delas. Só ficam eles e os irmãos juntos, só eles, entre eles mesmos. [...] O povo em si, está preocupado com o tumulto (conflito com a empresa), com muito medo mesmo! Eu fiquei com medo do que eles (os alunos

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indígenas) poderiam fazer na escola, sei lá, né? Eu tinha medo que eles participassem porque eles eram índios. A gente não tem tempo na verdade, prá ta inteirado desses assuntos pra às vezes trabalhar como deveria [...] Acho que não dá pra defender nem índios, nem a Aracruz porque eu não conheço né? A história realmente. (Sueli, bibliotecária)

Os discursos descritos acima indicam a forte presença ideológica contra os povos

indígenas no município e que se refletem na prática pedagógica da escola. O

silêncio em relação à questão étnico-racial acaba por fomentar processos de

rejeição a tal debate – a problemática que envolve o negro e o indígena na

sociedade brasileira. Sobre esta concepção, Chauí (2000) analisa a obra de Silvio

Romero sobre o perfil do brasileiro na época da colonização. Nesta obra, o índio, o

negro e o mestiço são retratados e concebidos como raças inferiores o que

justificava a pobreza e desarticulava a sonhada “unidade cultural da nação”. Os

europeus poderiam salvar o espírito nacionalista por apresentar perfil “civilizado”,

para os padrões sempre desejados, os europeus.

Pensar o currículo escolar e a prática pedagógica desvinculada da real história dos

povos colonizados, escravizados e dominados pelo poder branco ocidental em uma

sociedade que em sua maioria descende destes grupos, como é o caso de Aracruz,

é contribuir para a perpetuação da lógica excludente destes grupos. É ignorar o

regime violento e exploratório imposto aos grupos indígenas e aos negros e

desconsiderar as carências políticas e econômicas submetidas a esses sujeitos

desde a colonização/invasão dos europeus. O que se vê nos dias atuais é a

exacerbação de uma exclusão de séculos, com a implantação de indústrias no

bairro, que não absorve mão-de-obra dos moradores, justificado pelo fato de não

serem qualificados.

[...] eu não sei direito se foi os índios ou alguém assim, eu ouvi falar que eu acho que foram os índios que invadiram a fábrica da Aracruz Celulose, pedindo as terras deles que a Aracruz Celulose tomou a metade das terras, me parece. (João, 10 anos)

Esse primeiro discurso proferido pelas crianças durante entrevista coletiva,

demonstrou que esta escola, mesmo estando localizada quase em frente à fábrica64,

64 Empresa Aracruz Celulose é produtora de papel celulose, localizada no bairro no qual foi realizada a pesquisa.

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próximo a aldeias indígenas, e que atende a uma comunidade que mais sofre na

pele os efeitos de diversas formas, não questiona, nem discute toda a problemática

social e ambiental que essas crianças vivenciam em seu cotidiano. É como se todo

esse impacto não estivesse atrelado ao contexto de vida destes sujeitos. Assim, as

crianças ficam à mercê das informações que chegam até elas por diferentes meios,

mas quase sempre vindos da mídia, atrelada aos interesses da empresa.

A escola ignora os conflitos entre indígenas e a fábrica, preferindo o silêncio, quando

optam por oferecer um ensino descontextualizado, deixando as crianças alheias ao

que ocorre à sua volta. Quando reproduzem também, informações explicitadas e

difundidas pela fábrica ou pela sociedade de Aracruz. Eesta forma, a instituição

deixa de cumprir sua função social.

Moreira e Silva (1995) reconhecem que o currículo está atrelado às relações de

poder. A ideologia funciona como garantia das vantagens legitimadoras dessas

relações. Pode-se identificar essa afirmação, na medida em que as temáticas que

envolvem o contexto desta comunidade não atravessam como deveria os momentos

de estudo e planejamento da escola. Os conflitos não aparecem e este vazio é

preenchido com os discursos sob o ponto de vista dos que detém o poder. Perde-se

o espaço de desvelar as contradições das redes de poder impostas aos diferentes

grupos dominados, no processo histórico das sociedades.

Ocorre que, quando as questões étnico-raciais são introduzidas minimamente, o

descaso as comprime, as transformam em meras atividades em sala de aula ou em

eventos esporádicos como as datas comemorativas. É o caso do Dia do índio e do

Dia da Consciência Negra. São datas que movimentam a escola e levantam

algumas discussões, mas que ficam no nível da escravização, no caso dos negros e

dos modos de ser indígena desvinculado do contexto cultural dos indígenas de

Aracruz. Neste prisma, Orlandí (2007) ressalta:

Quer se trate de dominação ou de resistência, é pela historicidade que se pode encontrar todo um processo discursivo marcado pela produção de sentidos que apaga o índio, processo que o colocou no silêncio. Nem por isso ele deixa de significar em nossa história. (p.58)

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Ao ouvir as crianças, é possível afirmar que elas captam o que ouvem no cotidiano

de vida, reproduzem nas relações entre pares e também na escola. Isso pressupõe

uma lógica do discurso ideológico dominante. Nota-se que esse discurso foi

estabelecido na sociedade de Aracruz e assumido pela grande maioria da

população, seja a crença de que a fábrica traz o progresso e os indígenas, o atraso.

O imaginário sobre o indígena de Aracruz, construído ao longo do processo de

colonização65, persiste e se acentua em razão dos constantes conflitos pela posse

das terras, adquiridas por grileiros, na década de 1960 e 1970, que culminaram na

posse ilegal das terras, outrora habitada por indígenas Tupinikim. E assim, a história

contada e reproduzida estão presentes nas respostas dadas por duas crianças do 5º

ano em entrevista coletiva, sobre o que pensavam sobre a disputada pelas terras

entre os indígenas e Aracruz Celulose:

Mas não tomou, eles tipo, eles tipo, eles tipo compraram as terras (Brenda) Não, eles não venderam! A fábrica celulose ela invadiu e pegou um pedaço pra fazer alguma coisa. (Fernanda).

As crianças demonstraram interesse em falar sobre a situação e argumentaram com

base nas informações que ouviam, geralmente, em casa e ou na comunidade.

Brenda é filha de funcionário do porto que pertence à fábrica, e desta forma, pode-se

pensar que o discurso da família é o dominante na região, “discurso instituído”66,

diferente da fala de Fernanda, que se contrapõe veementemente à afirmação da

colega, mesmo não sabendo explicar mais detalhadamente sobre o assunto.

Outra situação observada se refere ao preconceito contra as crianças indígenas. É o

caso de Sol, uma menina indígena. Os pais saíram de aldeia de Aracruz e se

mudaram para o bairro. Ela e mais duas irmãs estudam nesta escola e faltam

constantemente. Quando estão na escola, aprendem com facilidade. Em momento

de observação na coordenação, a professora informa:

Oh! Sol faltou de novo! Essa indiazinha não quer nada com nada. (Professora Cláudia)

65 Segundo Coutinho (2006) Aracruz foi um dos primeiros municípios no Brasil a receber imigrantes europeus, na localidade de Santa Cruz. 66 Para Chauí (2003), o discurso instituído funciona como dissimulador da realidade. São as idéias dissimuladas por determinada classe ou grupo dominante.

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É índio! Eles não querem nada com estudo mesmo... hãm. Eu vou na casa dela e a família tá tudo bebão! (risos) Não tem jeito não! (coordenadora)

Na afirmação destas profissionais, ser índio traz consigo elementos simbólicos

negativos. Essa criança, por ser índia, é vista como diferente (e quem não é?), no

entanto essa diferença abarca concepções preconceituosas sobre ser indígena: “não

quer nada”, “é índio”, “não tem jeito”. Há neste caso, critérios estabelecidos do que

seja querer, não ser índio, ter jeito. Sol não se enquadra neste padrão e então, sua

diferença torna-se um problema. Quanto a essa questão em Chauí (2000) entende-

se que as diferenças, naturalizadas, aparecem como desvio de norma ou como

perversão.

Essa análise não isenta a escola de cobrar responsabilidades das crianças e de

suas famílias no que se refere à freqüência e estudo, porém, o discurso

preconceituoso não abre espaço para se questionar, por exemplo, o que provoca a

ausência dessa criança à escola, como a família indígena percebe a escola ou como

a criança indígena se sente naquele espaço institucional.

Em observação em salas de aula, ficou evidenciado que o livro didático ainda é o

instrumento de estudo que fundamenta o currículo escolar, principalmente no que se

refere à temática étnico-racial. Esse discurso de uma professora do 4º ano, com sua

turma pode confirmar essa premissa:

E Pedro Álvares Cabral e todas as suas embarcações eram da origem branca, portuguesa. E aqui aconteceu muitas misturas. Com a chegada dos negros...e negro gostava da índia, a índia gostava de branco, né...aquele negócio todo...começou-se a ter uma nova formação do povo. Fora as outras contribuições. É por isso que hoje é importante a gente ver a linhagem, as origens... e também, a importância que hoje o negro tem na sociedade [...] (Professora Gisele)

Neste pequeno trecho de uma aula no laboratório de informática (4º ano) sobre o

povo brasileiro destacam-se graves problemas na abordagem que a professora faz

sobre a história da colonização do Brasil, dos povos indígenas e da escravização

dos negros africanos, inclusive misturando épocas e fatos, como se fosse a

paisagem de uma tela. As considerações sobre a mistura dos povos são

equivocadas, pois confirmam o imaginário racial estabelecido historicamente. E para

além do currículo explicitado nesta aula, a professora dá um sentido bastante irônico

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e sedutor “aquele negócio” em tom de promiscuidade, fato que desencadeou risadas

e insinuações gestuais por parte das crianças, no momento da aula.

Foi bastante desagradável assistir a uma cena em que as crianças foram

submetidas, utilizando um recurso tecnológico, artefato cultural importante, se

utilizado como recurso de produção de práticas sociais emancipatórias. No entanto,

o texto que as crianças acessavam no computador enfatizava o discurso ideológico

de que brancos negros e índios tiveram um encontro amigável, solícito de relações

dominadoras e de submissão passiva aos interesses da coroa, segundo Chauí

(2000) tornando a violência truculenta dos povos colonizadores, invisibilizadas na

história.

O fato dos/as professores/as ignorarem discussões pertinentes à história real dos

grupos indígenas de Aracruz é justificado pela falta de conhecimentos mais

aprofundados sobre tal questão:

A gente só lembra de trabalhar a questão indígena quando é na parte do descobrimento do Brasil e do dia do índio. Porque por falta de leitura e conhecimento... nosso. Porque o professor foi assim bitolado a livro didático. Hoje tem internet [...] mas você vai lá pega aquela informação que é conveniente, tá? E é por falta de conhecimento da história, da questão da luta deles, porque da revolta, não é trabalhado. (Professora Gisele)

No entanto, na mesma entrevista o que ela relata não condiz com o discurso

anterior, pois de maneira bem objetiva ela tece considerações coerentes com a

realidade, na medida em que reconhece os direitos dos indígenas à posse da terra.

“Eu vejo que é direito deles dentro das formas da lei, estarem reivindicando e

querendo garantir o que é direito [...] tem toda uma questão que eles vêm lutando.”

Diante da possibilidade desta professora aproveitar os recursos e informações que

dispõe inserindo em suas aulas essa discussão, o que se percebe é que, em sala de

aula, prevalece as informações do livro didático atreladas ao imaginário construído

na histórica exploração e subestimação dos grupos indígenas de Aracruz.

Neste prisma, quando as crianças indígenas ouvem a história que os destitui como

partícipes, deslocados da real herança (silenciados) discriminatória deixada pelos

colonizadores, elas vão constituindo sua identidade a partir do que ouvem sobre si

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mesmas, baseadas nos elementos simbólicos com os quais experienciam. Abstraída

de sua condição étnica enquanto sujeito histórico a criança perde também a

possibilidade de colocar em cena67 o que sente, neste espaço público.

Neste sentido, Orlandí (2007, p.29) ressalta: “Em face dessa sua dimensão política,

o silêncio pode ser considerado tanto parte da retórica da dominação (a da

opressão) como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da resistência)”. O

que se ouve sobre o indígena em Aracruz reproduz o discurso do colonizador que

ignora as contradições, as violências e atrocidades vivenciadas por este, até os dias

atuais. Neste processo de invisibilidade e silenciamento, a criança indígena é

negada no currículo escolar, assim como a ideológia dos grupos dominantes.

Eu percebo assim, o Jairo um pouco diferente, até pra se agrupar. Não se agrupa com quase ninguém. [...] ele vai pro canto dele, sempre foi assim. (Professora Madalena)

Não ser aceito nos agrupamentos não é diferente de não querer se agrupar, pois

não ser aceito por “ser diferente” o faz não querer estar no grupo por ser visto como

diferente. Seu silêncio neste sentido pode ser considerado também uma forma de

resistência. Por que Jairo não se agrupa? O que estaria provocando seu

isolamento? Como entender, se ele vai pro canto dele e permanece isolado? As

discriminações sofridas, a exclusão de atividades na sala de aula, a invisibilidade de

suas características sociais e culturais eram cotidianas. Este menino é indígena, sua

história e cultura são desconsiderados. O rótulo de incapaz por ter ficado reprovado

três anos na escola o acompanha. Ele ainda não lê e foi possível observar que este

fato também o marginaliza na sala de aula.

Durante observação, percebeu-se o isolamento freqüente desta criança. Tentativas

de diálogo com a pesquisadora foram constantes. Ele estava sempre com a cabeça

sobre os braços e o dedo na boca. As aulas prosseguiam e ele continuava em

silêncio. Em dois momentos, vi outra expressão no seu rosto: durante uma atividade

em que toda a turma estava concentrada, pois seria avaliativa, ele demonstrou estar

incomodado, pois se movimenta na carteira como se quisesse sair daquela condição

67 A cena neste caso refere-se ao direito a se pronunciar enquanto “sujeito falante” no espaço público. Em Telles (2006) significaria se fazer audível na cena política.

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e se lançar em uma possibilidade qualquer. Uma colega o observa por um tempo.

Depois o chama baixinho e faz gestos para que sentasse a seu lado. Ele puxa sua

carteira e vai ao encontro da colega que abre seu caderno, coloca o lápis na sua

mão, e começa a apontar para o livro, orientando-o na atividade proposta. Quando

ela começa a ler para ele, algumas palavras vão surgindo. Ela olha para ele e sorri.

Ele devolve o sorriso e continuam compartilhando aquela experiência incrível,

atravessada por solidariedade e alteridade. A professora não percebeu essa cena,

assim como outras: tristes e alegres, que eram invisíveis.a seu olhar.

Em outro dia, Jairo estava isolado e já havia sido alertado para o cumprimento da

tarefa (ele não sabia ler). Um colega o xingou de “burro” e a professora não ouviu.

Ele se levantou e lhe deu um soco nas costas. A professora então se virou e o

mandou sair da sala. Estes dois momentos distintos e carregados de sentidos

demonstraram atitudes de resistência no “calar” desta criança:

• Jairo aceita prontamente a ajuda da colega e consegue sair do lugar da não

produção.

• A atitude da colega é também uma ação de resistência, a favor do outro.

• O soco nas costas no momento em que é agredido acaba em uma expulsão,

mas diante da inércia da professora, Jairo resiste à condição de passividade, como

foi observada durante toda a coleta de dados na escola.

• Seu silêncio e o não cumprimento das atividades é que lhe dão visibilidade.

4.2.3 (Ser) negro(a) na escola de brancos

Um dia um menino me chamou de preto, né? Ai o copo d’água pocou no chão! Ai eu falei: vai! (Juliano)

Um aspecto passível de reflexão é o discurso da “democracia racial”, quando a

professora Gisele, na aula de História do Brasil diz não haver mais discriminação

contra os negros: “Antes era discriminado, mas hoje por termos esse espaço... eu

sou negra, né?” Sua afirmação não se sustenta no que realmente ocorre à sua

frente. Nesta mesma aula, dois meninos se negam a sentar com uma colega negra e

ela mesma presencia a cena, o que pode representar banalização dos atos racistas

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ou negação destes. Cavalleiro (2003) aponta os problemas desta ideologia da

pseudo-democracia racial no Brasil. Para a autora esta perspectiva pode produz

certo alívio para os educadores, assim como provocar a “internalização” destas

significações, na medida em que crianças e jovens convivem com os aspectos

negativistas construídos simbolicamente na sociedade sobre o grupo étnico a qual

pertencem. Nesta mesma proposição, Chauí (2003, p. 47) descreve:

[...] Há no Brasil um mito poderoso, o da nossa não-violência essencial, isto é, a imagem de um povo generoso, alegre, sensual, solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por suas escolhas sexuais, etc.

Enquanto a violência da discriminação está oculta, grupos étnicos geracionais são

vitimizados cotidianamente. Estes sofrem ainda mais os efeitos do não-

reconhecimento de suas diferenças. No caso da instituição pesquisada, uma

suposta igualdade é mencionada pela professora durante a aula, impossibilitando o

rompimento com sentidos que enaltecem padrões de beleza instituídos. A prática

pedagógica distancia-se da prática política, função da instituição escolar que se

configura em um espaço de convivência, nos quais as relações sociais podem se

constituir na pluralidade humana.

A passividade da criança frente ao racismo, na concepção de alguns profissionais

representa bom senso. A orientação é de que não reajam às violências. Assim, o

racismo passa ao largo das práticas pedagógicas planejadas pelos professores:

O Douglas, ele reclama, mas ele não é ele é muito passivo, entendeu? Ele não é de revidar [...] Ele leva na brincadeira, sabe? Eu falo: se é amigo, não tem que tratar mal [...] Algum apelido, alguma coisa assim, alguma atitude de xingamento [...] é na hora ali, depois eles estão juntos. Ai eu falo pra eles: apelido quanto mais você liga, mais o colega chama, pra você ficar com raiva. Na minha infância tinha isso também, não mudou né? Eu não vejo isso como violência não. A violência pra mim é igual as crianças, passar por uma briga. [...] É coisa do momento. (Professora Rose)

A amizade neste caso refere-se aos meninos que xingam Douglas constantemente.

A discriminação é naturalizada ou considerada brincadeira de criança, como sempre

foi. A passividade é enaltecida pela professora e o isolamento da criança

discriminada é sua única opção.

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Outra análise possível sobre tal discurso dispõe sobre os limites entre brincadeira e

violência. A professora relata o que acredita ser violência (brigas). Aponta que a

criança “leva na brincadeira” (já se presume que não é brincadeira). No entanto, ela

percebe que diante do xingamento há um conflito que os separam de alguma forma:

“É na hora ali, depois eles estão juntos.” Mas logo em seguida ela reforça o discurso

da violência quando orienta as crianças a não reagirem, entendendo que a

motivação de quem xinga é provocar a raiva.

O racismo no Código Penal Brasileiro é considerado crime inafiançável. Na escola,

estas atitudes entre os adultos levam-nos à denúncias. E entre as crianças essas

ofensas têm sido ignoradas. Neste sentido, Wieviorka (2006 p.256) alerta sobre as

incivilidades como possibilidade de eclosão de violências mais graves. O autor

complementa que as incivilidades [...] “envenenam o cotidiano daqueles que as

sofrem ou delas são testemunhas ou espectadores”.

A partir destas considerações, pode-se considerar que as atitudes preconceituosas,

discriminatórias, racistas, invisibilizadas na instituição escolar provocam sofrimento,

humilhação, raiva, medo, tristeza. Esses sentimentos nas expressões das crianças,

acontecem como práticas de violência. Neste sentido, Wieviorka (2006, p. 219)

afirma:

Admite-se cada vez mais, hoje em dia, que as vítimas não são apenas feridos ou mortos, cuja contabilidade é feita de maneira administrativa; elas são sujeitos mais ou menos atingidos em sua integridade física ou moral, privados parcial ou inteiramente, pela violência, de uma capacidade de construir sua existência.

O tipo de cabelo apareceu fortemente nos xingamentos direcionados às crianças,

assim como nos gestos de nojo e de repulsa demonstrados por muitas delas. Na

verdade, nenhuma destas problemáticas - preconceito, discriminação e racismo,

foram abordadas durante a maioria das aulas observadas. As situações, sempre

rotineiras, passavam a largo da atenção da maioria dos professores (as).

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4.2.4 “Moça preta do curuzu, beleza pura” Narrativas curtas, porém carregadas de sentido, confirmaram a violência sofrida por

muitas crianças negras, em sua maioria meninas, discriminadas no espaço escolar.

Ao questioná-las sobre como se sentem diante destas relações, respondem: “Dá

vontade de chorar”, (Manoela) “Fico triste”. (Jaqueline) Durante observações foi

possível perceber que Jaqueline é alvejada cotidianamente principalmente pelos

meninos. Apelidam-na de bruxa e horrorosa. A reação desta criança evidenciada na

pesquisa foi sempre o silêncio acompanhado de expressões gestuais de desconforto

e constrangimento.

Foi interessante perceber também que quando Manoela se sentia agredida,

procurava uma colega que sempre a acompanhava. Ambas eram constantemente

discriminadas e se apoiavam mutuamente. Quando perguntada sobre o que sentia

quando via sua colega ser agredida ela responde: “Eu fico com ela”. Foi

emocionante identificar atitudes de acolhimento por parte de algumas crianças, que,

no silêncio, amparavam o outro em situação de sofrimento.

Quanto à idealização do padrão de beleza e atitudes apresentadas pelas crianças, a

professora Madalena (4º ano) faz questão de não ser imparcial. A comparação que

faz é fria e desconsidera a saúde, a cultura, modos de ser e carências sociais de

seus aluno/as. Ela descreve e ressalta as “qualidades” inerentes às meninas mais

aceitas pelos grupos de colegas de sua turma, e justifica a exclusão daquelas que a

turma geralmente rejeita:

Ah! Inteligente, senta aqui né? É diferente, né? Mais saída, mais arrumada, sabe conversar [...] são bonitinhas, sabidinhas, cheirosinhas, são saidinhas, né? E elas não, além de serem quietinhas, elas tem esse problema, de vez em quando vir cheirando a xixi.

Ela descreve até mesmo a posição ocupada pelas meninas: “senta aqui, né?”, ou

seja, perto de sua mesa, bem à frente da sala. Os critérios de belo e feio estão

implícitos nas falas das professoras, no deboche escancarado com algo sério e que

deveria ser tratado com mais cuidado, sem especulações preconceituosas. Ao

comparar os dois grupos de meninas, além de esta professora explicitar as

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características físicas e atitudinais preferenciais, o tom de voz demonstrou sentido

de valor às meninas que apresentam características idealizadas por ela. Ser

quietinha neste caso constitui-se problema, e que no discurso da professora é

justificado como fator de exclusão. No entanto, ser mais saída, saber conversar e

ser bonitinha inclui as outras meninas.

Objetivando perceber melhor sobre a estética e a imagem na concepção das

crianças, elas foram convidadas a falar sobre o que pensavam de suas

características físicas e estéticas. Isso ocorreu durante as observações, entrevistas

individuais e mais enfaticamente nas entrevistas coletivas, realizadas em pequenos

grupos de meninos, meninas e grupos mistos. A maioria das perguntas não foi

respondida, pois, as crianças não se sentiram à vontade para falar do que pensavam

sobre si mesmas e sobre a opinião do outro sobre elas.

As perguntas abertas se referiam a cor da pele, tipo de cabelo, cor dos olhos, e

outros traços como boca, altura, rosto. O silêncio prevaleceu em quase todas as

questões, apesar de algumas insistências:

Vocês se acham bonitas? Silêncio O que tem em vocês que gostariam que fosse diferente? Silêncio Vocês gostam da cor da pele? Silêncio Do cabelo, do nariz?

Nenhuma resposta, apenas expressões negativas sobre elas mesmas ( balançar a

cabeça, franzir a testa, olhar para a colega e sorrir), mas ao perguntar qual colega

da sala elas acham bonitas, todas citam o nome da Ana Laura. Sobre o que essa

menina concebida como bonita tinha que elas gostavam, responderam:

O cabelo Como é o cabelo dela? Loiro! E os olhos? Castanhos! Não, verdes! E a cor da pele? Branca

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Diante de tantos sentidos negativos imputados às crianças, alguns discursos

chamaram a atenção por ser atípico nas falas das crianças negras naquele espaço

de pesquisa:

Eu não se acho bonito, eu sei que sou bonito! (Pedro, 08 anos) Eu tenho orgulho da minha cor (Ariana, 09 anos) Eu me acho lindo! (Lázaro, 07 anos)

Outra fala chama a atenção. Alax, (10 anos) explicitou durante uma entrevista

coletiva que era chamado de “negrinho do pastoreio” e “carvão” e que não falava

nada, mas complementa: “ Quando eu crescer, se alguém me chamar eu denuncio!”

(Alax). Por que tem que ser quando crescer? (pesquisadora) Porque ele é di menor!

(Caio) Ser “menor” para estas crianças pode significar, na concepção dos mesmos,

o não reconhecimento dos direitos, estando estes, na condição de in fant, na “idade

da não-fala”, da não-razão, da carência (devir) como insistem perspectivas teóricas

naturalizantes. A escola não os ouve, e ser discriminado neste espaço está

banalizado. O que lhes resta então, é esperar pelo futuro. Essa idéia de cidadão do

futuro está legitimada ideologicamente quando estes meninos se constituem neste

silêncio, nestas carências, enquanto crianças.

1.1 “É RAIVA”

É raiva! A gente fica com tanta raiva que dá vontade de pegar pelos cabelos e rodar, rodar, rodar... E jogar do outro lado!

Sentir que a violência sofrida não teve visibilidade pode provocar na criança, um

sentimento de autodefesa, ou seja, de resistência68. Pensar que nada será feito em

relação às situações repetidas de opressão, pode impulsionar reações a essas

investidas. Foi o que ouvi de um menino negro que disse o que fazia quando era

chamado de “macaco” em sala de aula por outro colega, também negro: “Coloco

apelido nele também”. No entanto, ao ser chamado de “macaco”, Daniel também o

faz, chama o colega do mesmo apelido. Ele reproduz essa relação discriminatória na

68 A resistência em Ianni (2004) ao discutir as relações raciais, significa a reação do discriminado - a contra-ideologia, a reivindicação, a emancipação.

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medida em que a professora, mesmo presente na sala, não percebe ou não toma

atitudes frente ao fato ocorrido. Durante a entrevista, o mesmo relata o porquê não é

xingado durante o recreio: “Na hora do recreio ninguém, eu meto cascudo” E aqui na

sala, você mete cascudo? Não! (risos) Pra mandar a gente pra lá? (ele se refere à

coordenação).

Ao escolher um espaço mais livre à resistência frente à discriminação sofrida, Daniel

percebe que na sala de aula ele pode ser advertido de alguma forma, ou algum

colega pode denunciá-lo se agredir alguém fisicamente e então, ele o faz no

momento do recreio por acreditar que não será visto. O fato deste menino não

“meter cascudo” na sala de aula, não significa que isso não ocorra naquele espaço.

Ele deixa claro que mesmo dentro da sala, frente à professora, ele devolve o

xingamento e também agride o colega.

Esta menina do 5º ano demonstra raiva por não ser ouvida na sua indignação de

sofrer a discriminação dos colegas. Quando ela fala que a professora não toma

atitude, ela alimenta o desejo de se proteger. Ela grita o direito de ser ouvida!

Tem vezes, por exemplo, assim, quando eu falo assim: professora! Estão mexendo comigo! eu falo, falo, falo, aí a professora não fala nada aí eu começo a xingar (a expressão do rosto e das mãos demonstram indignação) silêncio...dá vontade de esganar...essa professora não faz nada.” (olha para as mãos e fica uns segundos em silêncio) (Sabrina)

Sabrina é uma menina negra e está sempre envolvida em conflitos agressivos com

colegas. Ouvindo-a é possível compreender o quanto ela sofre com o preconceito e

discriminação. Por várias vezes ela reclama de xingamentos racistas direcionados

principalmente a sua cor e tipo de cabelo. Ela expressou-se de uma forma bem

intensa quando desabafou sobre se sentir abandonada diante das agressões.

Outro caso de resistência chamou a atenção pelo desfecho da situação. Gabriel é

trazido pela coordenadora pelo braço. Ele está com marcas vermelhas pelo corpo e

apresenta-se bastante nervoso. Seu semblante é de muita raiva, sua respiração está

ofegante. Ele fica sentado enquanto a coordenadora sai e retorna com Marcos. O

diálogo que se segue, demonstra mais um caso de resistência:

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Por que vocês estão brigando? (coordenadora Elisa) Ele pegou no meu pescoço e apertou! (Marcos) Eu fiz isso porque ele me xingou de macaco tia! Eu já falei pra ele parar de me xingar! Eu vou pocar ele lá fora (Gabriel)

Neste caso, além de Gabriel agredir fisicamente o colega, ele ainda o ameaça. Ele já

verbalizou a não-aceitação do apelido preconceituoso, mas não obteve sucesso em

suas tentativas de diálogo e então, entra no embate com o colega, encarando a

situação com as “armas” que possui. Ao atender os meninos, a coordenadora Elisa

pune os dois. Ambos ficam sem recreio e o mais instigante é que em nenhum

momento ela advertiu a criança que xingou, mas direcionou seu discurso punitivo a

Gabriel pela agressão física praticada, sem ao menos ouvir do mesmo o motivo que

o levou a tal ato.

No portão da escola no horário de saída Júlia é novamente agredida por três

meninos. Eles a empurram e um deles lhe dá um “tapa” na cabeça. Ela vem em

direção à pesquisadora que pergunta:

O que está acontecendo? Nada não Mas eu os vi agredindo você, porque não pediu ajuda? Silêncio Eles vivem batendo nela, tia! [...] Xingam ela de macaca e mexe com o cabelo dela! É porque o cabelo dela é desarrumado, aí eles acham ela feia e ficam mexendo com ela. E ela não fala nada? Às vezes ela bate neles também, mas a professora briga com ela

Em vários momentos de observação, os discursos e postura dos professore(a)s,

coordenadoras e pedagogas em relação à situação de Júlia tinham sempre como

foco sua “dificuldade de aprendizagem” e “dificuldade de relacionamento”. Apenas a

professora de Educação Física foi observada ouvindo essa menina por várias vezes,

cuidando até mesmo de seu cabelo, ensinando a fazer trancinhas, elogiando-a. O

fato de ser alvo de racismo por parte de tantas crianças, em nenhum momento da

coleta de dados fora discutido pela instituição.

Em outra situação, durante o recreio, duas meninas estão chorando e se agredindo

verbalmente no pátio. Uma apresenta manchas vermelhas no rosto. Questionadas

sobre o ocorrido, uma delas reclama que foi agredida no rosto da outra colega. Esta

então grita com muita raiva: “Ela me chamou de nega e cara de sapo!”. Ambas

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prosseguem chorando e discutindo sobre as agressões. A coordenadora exige que

fiquem sentadas na coordenação até o fim do recreio. Depois, elas são

encaminhadas para a sala tendo sido advertidas e assinado o livro de “ocorrências”.

Essas crianças escolhem o uso da agressão física para resolver o problema da

violência da qual são alvos constantes. Elas não reconhecem outra alternativa.

Neste sentido Telles (2006) descreve a partir das proposições de Hannah Arendt

que o uso da violência ocorre quando valores e significações não são

compartilhados, porém vivenciados na individualidade. O perigo está posto, na

medida em que cada um tome sua verdade como algo absoluto e a utilize como

forma de poder. A professora Karina reconhece que uma agressão física, por

exemplo, pode acontecer como resultado de outra violência quando afirma que com

essa criança ninguém mexe: “Não, com ele não [...] ele revida!”

Se a experiência da criança nas relações étnico-raciais construídas na escola estiver

subsumida da alteridade, a escola deixa de ser emancipatória e passa a fomentar

então, a reprodução de sentimentos individualistas e preconceituosos. Os

significados das atitudes discriminatórias, dos silêncios das crianças, da

problemática racial atravessada pela questão de gênero estão presentes na escola.

Pode-se pensar que ali se refletem e se reproduzem as relações privatistas e

excludentes da sociedade brasileira, na qual o silêncio sobre a cruel realidade das

crianças pobres, grupos indígenas, dos negros, das mulheres e dos gays, prolongam

o sofrimento de muitos destes sujeitos.

Os dados coletados nesta realidade demonstraram que a maioria das crianças se

cala. Os meninos são os que mais resistem. Eles reclamam, porém, na maioria das

situações, revidam com violência. Somente algumas meninas reclamaram com a

professora/professor ou outros funcionários da escola. Uma das perguntas da

entrevista comprova esta afirmação: O que você faz quando é xingada? O que você

faz quando é agredida fisicamente? As respostas comumente verbalizadas foram:

“Não faço nada“, Eu prefiro ficar quieta! Não falo nada! “Pra não provocar” “Pra ir

pra coordenação?” Calar-se como resposta foi recorrente em quase todas as

entrevistas. Alguns meninos disseram devolver a agressão: “Eu meto porrada!” “Eu

xingo ele também”. Porém, as diferentes formas de resistências foram observadas

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em diferentes momentos, ou seja, foram expressas em tempos e espaços

cotidianos, extra-entrevistas.

Partindo do princípio de que no silêncio os significados ecoam de outras formas,

compreende-se então as agressões físicas ou não-físicas com formas de resistência

destas crianças. Se a escola não enxerga muitas destas violências – apelidos,

xingamentos racistas ou ignora esse fenômeno, também não investe no debate

sobre essa problemática neste espaço público. Desta forma, as crianças vão se

virando como podem. Calam-se em alguns momentos ou agridem em outros. Telles

(2006) complementa que um mundo completamente humano se constrói no

encontro entre os diferentes sujeitos, na comunicação e diálogo. Não se trata aqui

de um simples diálogo, mas uma interação orientada pelos princípios dos direitos

humanos.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pesquisar esta escola, neste bairro, foi valioso para mim, pois se constituiu em uma

possibilidade de melhor compreender as relações tecidas neste espaço, ao ouvir as

crianças que pensava conhecer. Além disso, o bairro onde se insere a escola

vivencia muitas carências, uma delas é de pesquisas. São muitas as situações que

circundam e atravessam a vida da comunidade e consequentemente, da escola, que

necessitam de melhor compreensão.

Ao escolher a temática de pesquisa, não imaginava encontrar a realidade

evidenciada. Deste modo, o processo de pesquisa imprimiu uma outra concepção,

agora mais lúcida, nem por isso menos complexa e desafiadora.

De tudo ficou um pouco, ou do pouco ficou muito?

[...] Pois de tudo fica um pouco.

De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa

ficou um pouco. De teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco nos muros zangados,

nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo no pires de porcelana,

dragão partido, flor branca, ficou um pouco

de ruga na vossa testa, retrato.

(Carlos Drumond de Andrade)

Os discursos percebidos sobre/nas relações étnico-raciais apresentaram conteúdo

racistas, contra negros e indígenas. Sendo a maioria da comunidade escolar

estudantes pertencente/descendentes destas etnias, conclui-se que, além da

discriminação das crianças brancas para com as negras e indígenas, o racismo

ocorre também entre os sujeitos da mesma etnia. Muitas das violências físicas

ocorridas na escola têm o preconceito como fator desencadeador. As crianças

negras são as mais discriminadas e de diferentes formas – concretizadas, visíveis

(aos olhos de quem se propusesse ver) ou sutis e silenciosas. Independente de ser

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negra ou branca, as crianças discriminam mais as negras, porém, as crianças

brancas, minoria neste espaço de pesquisa, impõem certo poder às crianças negras

e indígenas – nas brincadeiras, agrupamentos e nas violências cotidianas.

A reação das crianças negras na relação com as brancas, geralmente, é de

indignação com a discriminação, mas elas não as agridem tanto quanto às crianças

negras. Isso demonstra a existência de uma dificuldade de sair do lugar da opressão

a elas imposta. Foram observadas raras atitudes de acolhimento das crianças

negras ao outro negro discriminado.

A discriminação às crianças indígenas ocorre de forma sutil e institucionalizada: no

descrédito à cultura, na desconfiança da capacidade intelectual das mesmas, nos

resultados de aprendizagem, nos baixos índices de freqüência. Entre as crianças, a

discriminação também acontece, mas depende da aparência das crianças

indígenas. Nos poucos relatos das crianças indígenas evidenciaram-se

constrangimentos das mesmas quando se tocava na questão da etnia. Em silêncio,

na timidez e discrição peculiares a estes sujeitos, a discriminação se fazia sentir –

na exclusão, na desvalorização de sua cultura e dos movimentos de luta contra o

capital industrial da região, no tocante à disputa de terras.

As crianças pesquisadas vivem as contradições de uma comunidade inserida e um

complexo industrial. Neste contexto, a tecnologia industrial, a exportação e o

movimento intenso se contrapõe à pobreza, alto índice de analfabetismo e ineficácia

do poder público. No espaço escolar, o currículo e discursos se direcionam sob

referencial etnocêntrico, vide os resultados de aprendizagem que incide sobre os

estudantes e a exclusão a que são submetidos na vida social. E assim, as violências

geradas na/pela discriminação racial tem sua gênese na própria história da

sociedade brasileira. A comunidade local se constitui nesta história e as crianças

também. Obviamente as resistências existem, mas ainda precedem a movimentos

sociais nos quais haveria intenso engajamento participativo.

O que ficou dos discursos das crianças em relação à discriminação?

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Quanto aos critérios de beleza - As crianças se sentem inferiorizadas por serem

negras ou indígenas. Os xingamentos e apelidos preconceituosos são recorrentes e

direcionados quase sempre às meninas negras. Nas falas das crianças, ser bonita/o

é ter cabelo liso e claro. Desse modo, mesmo as crianças negras que se

apresentavam com roupas, acessórios e materiais escolares tidos como bonitos,

também eram discriminadas.

As crianças indígenas não são discriminadas em relação a traços físicos, isso talvez

seja pelo fato dos cabelos serem lisos. Porém, no caso delas, os xingamentos e

apelidos se direcionavam à aparência apresentada nas roupas e higiene.

Apelidos e xingamentos eram direcionados às crianças negras, e quanto mais

escura fosse a cor da pele, a discriminação ocorria com mais freqüencia. No

entanto, observou-se que o fato da maioria ter a cor escura, os xingamentos

relacionados a tal característica ocorriam, mas com menos intensidade. Comumente,

o tipo de cabelo era o critério mais usado para discriminar e segregar. Não se

identificou xingamentos às crianças indígenas relacionadas à cor.

O que ficou dos discursos/postura da instituição na relação com as crianças?

A violência, na concepção dos professores ouvidos, tem como fator, a família

desestruturada que não consegue impor limites. Culpabilizam as próprias crianças

por não obedecerem às regras escolares e pelo fato de ficarem muito nas ruas do

bairro, como se todos estes aspectos representassem uma escolha dos próprios

sujeitos. Os profissionais, em sua maioria, apontam as punições como alternativas

nos casos de violências na escola.

Não se observou agressões físicas por parte dos funcionários da escola. No geral,

há um respeito e cuidado para com as crianças e suas famílias em relação às

situações de saúde, por exemplo. Neste caso, elas são acolhidas com carinho pela

coordenadora, pedagoga e diretor. Os casos mais agravados são encaminhados

diretamente Unidade de Saúde ou às próprias famílias. Comumente estes

profissionais realizam visitas às famílias das crianças que faltam à escola. Nas

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reuniões de pais, é possível perceber também este acolhimento. No entanto, os

dados demonstraram que a forma como os professores abordavam a temática racial

nos conteúdos e no silêncio diante das atitudes discriminatórias não provocavam

transformações nas relações existentes. Assim, as práticas pedagógicas

distanciadas da realidade social/cultural das crianças, associada a não intervenção

nas situações de discriminação racial, davam espaço a este tipo de violência nos

diferentes tempos e espaços da escola.

As crianças indígenas são praticamente invisíveis como tais no espaço escolar. Por

não serem aldeadas, em sua maioria, suas histórias e cultura na qual se constituem,

são ignoradas. Não há uma preocupação em observá-las enquanto produzidas em

outra cultura.

Algumas crianças indígenas desta escola vivem entre a aldeia e a residência no

bairro. Durante as observações em sala de aula e eventos, não se identificou

nenhuma relação dos conhecimentos destas crianças com a prática pedagógica.

Pelo contrário, dentre as muitas atividades desenvolvidas, uma chamou bastante a

atenção: As crianças de 3º ano, dentre elas várias indígenas e Brisa, uma menina

que vive parte dos dias da semana na aldeia estavam pintando um desenho que

indicava: “Pinte esta cena que mostra a vida em uma aldeia indígena”. O desenho

era de índios despidos pescando e caçando – cenas equivocadas, em se tratando

da aldeia, na qual aquela menina indígena nasceu e ainda vive, mesmo que

esporadicamente.

Esta cena confirma que, na verdade, aspectos que não são discutidos como: a

histórica expropriação destes grupos no município, a realidade de vida após os

processos de transformação econômica, as resistências, a memória que resiste ao

tempo – existem, mas são silenciados. Isso significa que este silêncio toma o espaço

do sujeito histórico. Nas entrevistas e observações, foi possível perceber uma

hesitação e/ou certo constrangimento ao se falar sobre o racismo, seja entre as

crianças ou adultos que ali convivem. Deste modo, algumas narrativas foram

capturadas no processo de escuta sistematizado, em diferentes momentos. Durante

as conversas e entrevistas, só o tempo de investigação e o vínculo de confiança,

possibilitou o falar das crianças sobre as discriminações raciais.

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As crianças que se expressaram com discriminação justificavam tais atitudes como

brincadeira. Quando questionadas sobre a dor física e emocional causada, na

maioria dos casos, estas se mantiveram caladas.

O que ficou dos silêncios das discriminações da instituição?

Quem vê é só o que vê, quem sente não é quem é, Atento ao que sou e vejo, torno-me eles e não eu. [...] sou minha própria paisagem; Assisto a minha passagem, diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou. Por isso, vou lendo como páginas, meu ser. O que segue não prevendo, O que passou a esquecer [...]

(Fernando Pessoa)

O primeiro silêncio evidenciado diz respeito a não falar sobre racismo. A maioria dos

professores se cala mesmo quando o tema é inserido nas discussões pedagógicas.

Os demais funcionários também relutaram em refletir sobre o tema. As pedagogas

da escola não compareceram aos momentos de entrevista previamente marcados, o

que também pode ser evidenciado como o não querer falar sobre a questão.

Em relação à questão indígena, o silêncio é ainda maior. Há receio em se falar sobre

o assunto, a não ser que o argumento seja contra os indígenas. O silêncio está

estampado também, na invisibilidade das contradições raciais no currículo escolar.

Falar sobre o índio ou o negro é relegado à História do Brasil, sobre o suposto

“encontro” das raças.

Outro silêncio identificado é o da invisibilidade do racismo na sala de aula. Enquanto

crianças são discriminadas sob os olhos do professor (a), o discurso “todos são

iguais” prossegue, em silêncio.

Ao atender as situações de violências entre as crianças, os responsáveis por tal

intervenção não davam atenção aos preconceitos que impulsionavam os

desentendimentos. E assim, a agressão física ganhava visibilidade, mas o racismo,

não era percebido, ficava no silêncio, acompanhando a criança ofendida.

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O que ficou das famílias?

As famílias das crianças discriminadas, em sua maioria, não procuravam a escola

para denunciar tais fatos. Apenas duas mães relataram as discriminações sofridas

por suas filhas. Isso nos leva a pensar que estes sujeitos também vivenciam

situações de violências em silêncio. Em algumas entrevistas, a solicitação da família

era de que seus filhos não reclamassem das discriminações sofridas.

Os filhos do silêncio

A compreensão de que as crianças silenciosas se constituem em silêncio (histórico,

cultural, resistência) justifica o título. O que ficou dos silêncios das crianças

discriminadas por racismo foi percebido durante as observações e entrevistas. Estes

momentos possibilitaram contato direto e bem próximo com as crianças mais

caladas. Assim, o investimento no tempo, na atenção aos sinais e postura das

crianças durante os encontros foi indicando pistas em direção à compreensão dos

mesmos.

A análise destes indícios possibilitou a compreensão de algumas significações

elucidadas com as devidas precauções, sendo elas:

• Se a comunidade não dispõe de espaços de discussão as crianças podem

também apreender esse não lugar;

• As crianças que se calam, falam em momentos que se sentem seguras com o

outro;

• O medo de ameaças dos colegas oprimem os sujeitos discriminados;

• A vergonha da exposição pública, principalmente na frente de outras crianças;

• A desconfiança da postura interventiva do professor ou da instituição escolar;

• A raiva frente à banalização do racismo;

• A orientação da família para que se evite qualquer conflito.

Os significados dos silêncios podem ser entendidos como positivo, negativo ou

indiferente. Independente destes valores, os silêncios representavam uma forma de

resistência – Não falar ou não poder falar. No primeiro caso o entendimento é de

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que o lugar do silêncio é mais confortável em dada situação. Face às violências, ao

racismo, constrangimento, insegurança, medo ou frente às indiferenças, se manter

calado é uma opção mais fácil e segura. No segundo caso, há uma imposição do

silêncio. Não poder falar não é mais optativo, todavia, única alternativa. Isto era

percebido nos olhares que demonstravam que aquilo era censurado, quando, por

exemplo, as crianças diziam que a professora não fazia nada quando presenciava

alguma discriminação ou quando demonstrava que a família não seria parceira em

uma denúncia à escola.

O silêncio representou um valor positivo e pode ser indicativo de que os sujeitos

buscavam esse lugar como refúgio. Percebia-se que para eles, aquele momento de

silêncio era apaziguador.

O lado negativo dos silêncios neste cenário demonstrou que há uma banalização

das discriminações. Não falar acaba por naturalizar o lugar do sujeito, além de

provocar uma possível acomodação diante das discriminações. Isso vale para todos

os silêncios: o institucional, das famílias, das crianças, da comunidade em geral.

Nota-se pelas análises dos silêncios a existência de sentimentos opressivos,

expressados por crianças, no espaço da educação. Silêncios passíveis de

representar alienação ou resistência. O limite deste impasse não fora evidenciado

em sua profundidade, dada à limitação desta pesquisa, mas me atrevo a dizer que

do pouco ficou muito.

O que se pode aferir é que a escola pode possibilitar saídas e entradas. Segundo

Telles (2006, p. 52) sem a narração, signos, registros, memória – a história deixa de

ser transmitida e esse silêncio pode se configurar em sofrimento. Isso nos leva a

pensar que a escola não pode tudo, porém, a primeira intervenção seria dar

visibilidade a estes silêncios, abrindo espaços para a possibilidade da palavra.

O que ficou das resistências

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No entender deste trabalho, de todos os possíveis significados, os silêncios e

silenciamentos apreendidos podem ser considerados resistências. Isso nos leva a

pensar sobre este lugar como um refúgio, uma proteção. Os silêncios observados

foram percebidos em sujeitos que falavam, em espaços e momentos em que se

sentiam seguros.

Compreende-se que dentre os vários silêncios identificados, existe um silêncio neste

local de pesquisa (instituição, bairro, famílias) que é cultural. (os indígenas da região

são muito discretos nas suas expressões) e silenciamentos (da dominação) pelo

poder político e econômico local.

Deste modo, Telles (2006, p.101)afirma: “É através do conflito que os excluídos, os

não-iguais, impõem seu reconhecimento como indivíduos e interlocutores legítimos,

dissolvendo as hierarquias nas quais estavam subsumidos em uma diferença sem

equivalência possível”. Nesse sentido, ao dar espaço e lugar à voz, as crianças

ganham status político e assim, podem aprender a olhar o outro como sujeito de

direitos.

Jesus (2003, p. 105) ao destacar a importância do ato pedagógico no cerne das

questões da diversidade, descreve:

Nesse sentido, ganham especial relevância os professores, porque são eles que, no meio de suas contradições, dúvidas, avanços, medos, disponibilidades, ansiedades, acolhimentos e possibilidades, assumem os alunos em suas salas de aula. São as práticas pedagógicas aí desenvolvidas que poderão contribuir ou não no sentido da aquisição do conhecimento por todas as crianças e jovens.

A função da escola diante deste cenário de violências e desigualdades sociais e

culturais seria possibilitar o acesso aos conhecimentos produzidos historicamente e

promover a participação ativa de seus atores neste espaço de democracia.

Certamente, esta democracia só se realizará quando o currículo escolar, a

organização dos tempos e espaços da escola e a prática pedagógica possibilitarem

aos sujeitos discriminados, empobrecidos, marginalizados, a dominação dos

artefatos culturais, em sua amplitude, e assim, desbancarem a estrutura de

dominação.

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A educação nunca deveria permitir quaisquer movimentos opressores. Ao pensar no

silêncio como lugar da opressão, consideramos também, a capacidade das crianças,

de ressignificar e sair do lugar da passividade e sujeição. Poderíamos nos atrever a

pensar em uma revolução a partir da infância? Quanto a isso, Paulo Freire (1988, p.

43) ressalta: “Por isto é que somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os

opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam.”

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6 REFERÊNCIAS

ABRAMOVAY; RUA, Maria das. G. Violências nas escolas. Brasília: UNESCO, 2003.

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APÊNDICES

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APÊNDICE I

Consentimento Livre e Esclarecimento

Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresenta-se, para o aceite como

pesquisadora junto aos sujeitos da pesquisa desta instituição, o projeto de

pesquisa para dissertação de Mestrado em Educação junto a Universidade

Federal do Espírito Santo com o tema intitulado: O que as crianças falam,

quando elas se calam: o preconceito e a discriminação como fatores de

violências no espaço escolar.

O objetivo deste estudo é investigar como a escola lida com as diferentes formas

de violências motivada por preconceito e discriminação no espaço escolar? As

crianças são percebidas em sua heterogeneidade? O que elas expressam sobre

as violências sofridas e ou praticadas?

A pesquisa será realizada no período que compreenderá o segundo semestre

letivo na Escola “Amanda da Luz” por meio de observação participante, recolha

da voz das crianças através de registro em diário de campo, análise de

documentos, entrevistas, fotografias e filmagem. É importante salientar que em

qualquer momento se alguma criança através de seu responsável ou profissional

da escola não quiser se submeter a qualquer condição desta pesquisa ficará livre

para desistir de participar e retirar o seu consentimento.

O benefício relacionado com a sua participação será de tentar conhecer as

diferentes expressões das crianças em face às discriminações sofridas,

identificando seus atores e a dinâmica de concepções sobre o outro no cotidiano

da escola, e desse modo, apontar possíveis práticas reprodutoras de segregação

cultural e perspectivas de construção de relações de alteridade.

Os dados serão divulgados de forma a não possibilitar a identificação dos

sujeitos e das escolas participantes, a não ser pelos envolvidos na pesquisa. E

cada participante da pesquisa terá acesso ao que será publicado e aos nomes

fictícios que serão utilizados para garantir o tratamento ético dos dados.

Podendo, assim, concordar ou não com a sua publicação. Sendo que se não

houver concordância à opinião do participante será excluída da dissertação.

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Você receberá uma cópia deste termo onde consta o telefone e o endereço

eletrônico do pesquisador e do seu orientador, podendo a qualquer momento tirar

dúvidas sobre o projeto ou no que se refere a sua participação.

Solicitamos, desta forma, o seu consentimento em participar desta pesquisa.

Assinatura do participante da pesquisa:

________________________________________

Pesquisadora: Marluce Leila Simões Lopes Tel.: (27) 32502184 - 98801107.

E-mail: [email protected]

Orientadora: Dra. Vânia Carvalho de Araújo

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APÊNDICE II

1. Observação-participante

O contexto da pesquisa:

O entorno da instituição pesquisada

A instituição

As crianças atendidas

As relações entre as crianças

No momento da entrada e saída das crianças

No recreio

No pátio e refeitório

Na sala de aula

Nos eventos da escola

Roteiro de observação-participante: A relação entre as crianças

• As crianças se relacionam de forma violenta?

• Os adultos tratam as crianças de forma violenta?

• Quais as formas de violência comumente utilizadas pelos adultos para com as

crianças?

• Quais são as formas de violência comumente utilizadas pelas crianças para

com seus pares?

• Como os adultos se relacionam com as crianças indígenas e negras?

• Que sentidos as crianças negras e indígenas atribuem a si mesmas?

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• Como as crianças brancas se relacionam e interagem com as crianças negras

e indígenas na escola?

• Como as crianças negras se relacionam e interagem entre si?

• Como as crianças negras se relacionam e interagem com as crianças

brancas?

• Como as crianças indígenas se relacionam e interagem com as crianças

negras e brancas?

• O que as crianças pensam sobre preconceito e discriminação?

• Quais são as discriminações mais freqüentes no espaço escolar?

• Quem são os mais discriminados? Meninos ou meninas?

• Como se dão os agrupamentos entre as crianças? Quem são os escolhidos?

Quem são os rejeitados?

• As crianças discriminadas respondem à violência sofrida? De que forma?

• As crianças discriminadas se calam diante das violências sofridas?

• Existe o preconceito manifestado por gestos, expressões, silenciamentos,

entre as crianças?

• As crianças percebem as diferentes facetas do preconceito contra elas e para

com o outro?

• Elas defendem as crianças discriminadas?

• O que as crianças expressam em relação à forma pela qual o preconceito e

discriminação são tratados na sua casa ou na comunidade e lugares que

freqüenta no bairro?

A relação entre adultos e crianças

• Como os professores se referem às crianças negras?

• Como os professores se referem às crianças indígenas?

• Como os adultos se relacionam com as crianças?

• Quais as formas de violência comumente utilizadas pelos adultos para com as

crianças?

• Como os adultos se relacionam com as crianças indígenas e negras?

• O que os pais expressam na escola, sobre o preconceito e discriminação para

com seus filhos?

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• Quais são os discursos proferidos pelos pedagogos, coordenadores e diretor

da escola, em relação às discriminações para com as crianças?

• Os pais comentam sobre a questão indígena abordada pela comunidade, em

relação aos conflitos coma empresa? O que eles falam sobre essa situação na

escola?

Atitudes da instituição frente às situações de preconceito e discriminação na

escola

• Como a escola encaminha os casos de violências?

• Como a escola intervém nas violências de discriminação?Qual a concepção

da escola sobre o racismo?

• Como a criança indígena é representada pelos professores desta instituição?

• As crianças são ouvidas nos momentos de intervenção da escola sobre as

situações preconceituosas?

O discurso dos professores sobre a discriminação étnico-racial

• Os professores comentam sobre os conflitos pela posse da terra pelos

indígenas da região? Falam sobre as imagens difundidas pela Aracruz Celulose

em relação aos indígenas? Qual o discurso dominante?

• Como os professores abordam a questão das violências nas reuniões?

• O que os professores comentam sobre o preconceito étnico-racial?

• Como os professores percebem as leis contra o racismo? Eles conhecem a

Lei 10.639? O que pensam a respeito?

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APÊNDICE III

1. Análise documental

O entorno da instituição pesquisada

• Caracterização do bairro onde se localiza a escola, a comunidade e aspectos

gerais do entorno da escola.

A instituição

• Dados gerais: Histórico da instituição, número de alunos atendidos, fluxo

escolar, freqüência, aprovação, proposta pedagógica, número de funcionários,

etnias representadas, outras informações.

As crianças atendidas

• Quem são as crianças?

• De onde vieram?

• Qual o contexto social em que vivem?

Os registros das discriminações entre/para com as crianças

• Há registro dos casos de violências na escola? Como isto é feito?

• Nos registros de situações conflituosas entre as crianças, há informações

sobre o que motivou esses desentendimentos?

• Identificam-se nos registros, os casos atitudes preconceituosas como fator

motivador da violência no espaço escolar?

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APENDICE III

Roteiro de entrevista A - Com as crianças

• O que é violência?

• O que você entende por preconceito e discriminação?

• Você já se sentiu discriminado? De que forma? O que você fez? Pediu ajuda

a alguém? Quem?

• Você acha que colocar apelido é violência?

• O que você faria se fosse discriminado?

• O que é racismo?

• Você já observou alguma cena de racismo aqui na escola?

• Você se acha preconceituoso?

• Já discriminou algum colega?

• Xingar e colocar apelido é violência ou brincadeira?

B – Com os adultos

• O que você entende por violência?

• Você percebe situações de violências aqui na escola?

• Quais são as atitudes evidenciadas que denotam uma situação de violência?

• Você acha o bairro violento?

• As crianças reproduzem na escola as situações de violências vivenciadas em

seu contexto de vida?

• O que é preconceito e discriminação?

• Você percebe atitudes preconceituosas e discriminatórias na escola?

• Já se deparou com situações discriminatórias na sua sala de aula? O que

você fez?

• As crianças discriminadas reagem? De que forma?

• Quem são os mais discriminados? Meninos ou meninas?

• Quem são os mais discriminadores?

• Você identifica crianças indígenas na escola?

• O que você pensa sobre a questão indígena em Aracruz?

• Existe racismo nesta escola? O que você pensa sobre essa questão?

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ANEXOS

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ANEXO A

Presidência da República Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.

Mensagem de veto

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

§ 3o (VETADO)"

"Art. 79-A. (VETADO)"

"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’."

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque

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ANEXO B

Presidência da República Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir nocurrículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Fernando Haddad

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ANEXO C

FOTOGRAFIA 1: Outdoor espalhado pelo setor de divulgação Empresa Aracruz Celulose durantes a fase de conflito pela posse de terras com as Indígenas na região de Aracruz.ES. Brasil. Disponível em: http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2006/10/361987.shtml

FOTOGRAFIA 2: Outdoor espalhado pelo setor de divulgação Empresa Aracruz Celulose durantes a fase de conflito pela posse de terras com as Indígenas na região de Aracruz. ES. Brasil. Disponível em: http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2006/10/361987.

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FOTOGRAFIA 3: Outdoor espalhado pelo setor de divulgação Empresa Aracruz Celulose durante a fase de conflito pela posse de terras com as Indígenas na região de Aracruz. ES. Brasil. Disponível em: http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2006/10/361987.shtml

FOTOGRAFIA 4: Outdoor espalhado pelo setor de divulgação Empresa Aracruz Celulose durantes a fase de conflito pela posse de terras com as Indígenas na região de Aracruz. ES. Brasil. Disponível em: http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2006/10/361987.shtml.