O que a vida de Cartola tem a dizer sobre o Brasil: uma história de samba, desigualdade e...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS LUCIANA LANDGRAF CASTELO BRANCO O que a vida de Cartola tem a dizer sobre o Brasil: uma história de samba, desigualdade e resistência

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Artigo - Pensamento Social Brasileiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASCURSO DE CINCIAS SOCIAIS

LUCIANA LANDGRAF CASTELO BRANCO

O que a vida de Cartola tem a dizer sobre o Brasil: uma histria de samba, desigualdade e resistncia

Florianpolis, julho de 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASCURSO DE CINCIAS SOCIAIS

O que a vida de Cartola tem a dizer sobre o Brasil: uma histria de samba, desigualdade e resistnciaTrabalho final apresentado na disciplina de Pensamento Social Brasileiro sob orientao do professor Jacques Mick. Acadmica: Luciana Landgraf Castelo Branco

Florianpolis, julho de 2014INTRODUO No presente ensaio pretendo contar um pouco da vida de Cartola mostrando, ao mesmo tempo, como seus tempos de moleque levado, filho de um carpinteiro que teve dez ou onze filhos, suas noites de sambista bomio e seus dias sofridos de trabalhador proletrio no falam somente de suas experincias prprias, mas tambm de um Brasil dos excludos, sua expressiva maioria (SOUZA, 1978, p.259-260). Aciono autores como Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes para por em evidncia detalhes da estrutura poltica e social que Cartola atravessou. Assim, opto por traar uma linha do tempo de sua vida, que comea num perodo inicial da Repblica, atravessa as mudanas do Estado Novo de Getlio e termina no perodo inicial de redemocratizao aps o golpe de 1964. Sero destacados momentos histricos importantes do pas, analisada a conjuntura poltico-econmica desses momentos, e, por fim, estes sero relacionados experincia e potica do sambista. A BELLE POQUE E A CRIMINALIZAO DOS SAMBAAngenor de Oliveira, que mais tarde seria conhecido atravs do apelido Cartola, nasceu em 11 de outubro de 1908, poca em que o Rio de Janeiro sofria transformaes significativas. Neste ano, comemorava-se o centenrio da chegada de D. Joo na cidade e foi organizada uma Exposio Nacional, que ressaltava a abertura do Brasil ao capital estrangeiro. Um pouco antes, em 1903 haviam sido lanadas pelo prefeito Pereira Passos as campanhas Bota abaixo! e Rio, civiliza-se!, visando modernizar e higienizar a capital para criar as condies necessrias a que ela fosse o centro financeiro do pas. A poca da reforma, inspirada no padro urbano francs, ficou conhecida como Belle poque. Nela, foram derrubadas casas, quiosques e cortios que no combinavam com o novo padro, o que empurrou essa populao para os morros e lugares mais afastados, tornando mais ntida e desigual a diviso de classes. As favelas cresciam, e nelas viviam trabalhadores, malandros, macumbeiros, pedreiros, tipgrafos, msicos, pais de santo, lavadeiras e cozinheiras (NOGUEIRA, 2005, p.9-10).Segundo o historiador Sidney Chalhoub em Trabalho, lar e botequim, a Belle poque foi um momento histrico crucial da transio para o capitalismo no Rio de Janeiro. Nesse momento, a cidade era a nica do Brasil com mais de quinhentos mil habitantes. Sua demografia havia crescido de maneira significativa em pouco mais de trs dcadas: de cerca de 247 habitantes por km2 em 1872 para 722 em 1906. Esse crescimento acelerado est ligado migrao de escravos libertos da zona rural para a urbana, o que explica a concentrao, no Rio de Janeiro, da maior populao de negros e mulatos de todo o Sudoeste. Nesse momento, consolidava-se a transio das relaes sociais do tipo senhorial-escravista para relaes sociais do tipo burgus-capitalista. A emancipao dos escravos junto com a imigrao europeia foram dois processos que geraram mo-de-obra e criaram condies para o desenvolvimento do capitalismo (CHALHOUB, 1986, p.24-27). Caio Prado Jr. mostra que a importncia do negro no trabalho assalariado bastante bvia, dado que eles eram, tambm, a massa trabalhadora do perodo colonial. E assim essas populaes fixaram-se no litoral, onde havia suficientes vagas de trabalho e pagava-se relativamente bem se comparado ao interior (PRADO JR, 2011, p.103). Porm, aps a primeira Guerra Mundial (1914- 1918), a situao econmica piorou, e as condies de vida da parcela mais pobre da populao, que j havia sofrido com a higienizao e a derrubada dos cortios, tornaram-se ainda piores. A famlia de Cartola, que at ento vivia no Catete (seu av era cozinheiro do senador Nilo Peanha) foi obrigada a mudar-se em 1916 para a Rua das Laranjeiras, numa vila construda para abrigar os operrios da fbrica de tecidos Aliana. Nessa vila, sua famlia comeou a fazer parte de um rancho de carnaval chamado Arrepiados, que adotava as cores verde e rosa. Foi nessa poca que Cartola aprendeu a tocar cavaquinho, somente olhando o pai e imitando seus movimentos quando ele deixava o instrumento em casa pra ir trabalhar. Quando o av morreu em 1919, a situao financeira da famlia piorou ainda mais, e eles mudaram-se para o morro da Mangueira. Nesta poca, segundo o prprio Cartola, no havia mais que cinquenta barracos. As ms condies de vida obrigavam os moradores a coletivizar-se e instituir regras prprias de sobrevivncia e conduta. (NOGUEIRA, 2005, p. 12). Fig. 1. Cartola menino. Fonte: MOURA apud OLIVEIRA GUSMO, 2005, p.33.

Empurrados para as periferias da cidade em consequncia das polticas de branqueamento, que no s os expulsaram, mas tambm aumentaram o custo de vida para que no pudessem voltar, essas populaes eram mantidas margem do centro branco ao mesmo tempo em que esse centro dependia de sua mo-de-obra. Segundo Caio Prado Jr., o peso de relaes sociais praticadas no sistema escravista refletia-se na subproletarizao do novo modelo econmico, o capitalismo. Segundo o autor, sobre a atividade colonial: o crculo desta atividade se encerra quase exclusivamente com os dois termos fundamentais da organizao econmica e social da colnia: senhores e escravos; os primeiros, promotores e dirigentes da colonizao; os outros, seus agentes (PRADO JR, 2011, p. 350). A subproletarizao tambm atingia imigrantes brancos, mas Caio Prado pioneiro em mostrar como a combinao dos preconceitos de raa e classe na ideologia dominante tinha efeitos ainda mais negativos sobre a populao negra. Para ele, o paralelismo das escalas cromticas e social faz do branco e da pureza de raa um ideal que exerce importante funo na evoluo tnica brasileira; [...] ele tem um grande papel na orientao dos cruzamentos, reforando a posio preponderante e o prestgio de procriador do branco (PRADO JR., 2011, p.101)Ainda segundo o autor, mesmo que alguns indivduos negros conseguissem alcanar posies de destaque, o preconceito continuava a operar. Esses indivduos eram considerados socialmente brancos, mestios particularmente bem dotados, e negros ou mulatos escuros no poderiam ter esperanas, por melhores que fossem suas aptides, de ascender econmica ou socialmente. (PRADO JR, 2011, p.263)Essa mesma ideologia refletia-se na viso dominante sobre o samba. O samba era sinnimo de baderna para a polcia e para a classe mdia de ento, justamente por ser o entretenimento preferido dos moradores dos morros. O preconceito, que mais uma vez mesclava raa e classe, pode ser entendido nas suas razes coloniais, pois foi na escravido que se consolidou a oposio, que envolve os dois fatores, entre senhores brancos e escravos negros, entre senhores-de-engenho/ fazendeiros e ps-descalos / mulatos. Segundo Caio Prado, asoposies todas [...] com igual justeza podem ser vistas pelo lado inverso: o branco que se formou na convico, incutida desde o nascimento e oficialmente reconhecida, da superioridade de sua raa; o senhor de escravos que precisa de mo-de-obra, e no faz mais que se conformar com o que est nas leis, nos costumes, na moral, em toda ordem estabelecida e reconhecida. (PRADO JR, 2011, p.356)Mais que entretenimento, as escolas de samba foram, para a populao do morro, elementos de grande influncia para a construo de uma identidade e conscincia coletivas. E foi nessa poca que Cartola se encantou pelo samba, o que no combinava com as exigncias de seu pai, que lhe obrigou a trabalhar desde cedo, e exigia-lhe a entrega do salrio inteiro, causa de seus primeiros atritos. Cartola comeou a trabalhar como tipgrafo, mas quando tinha quinze anos, o trabalho de pedreiro lhe pareceu mais interessante. De seus tempos de pedreiro, vem seu apelido. Ele usava uma cartola para ir ao trabalho e proteger a cabea do cimento, e passou a us-la sempre: Isso porque, quando eu era garoto ainda, eu usava, no era bem uma cartola, era um chapu coco, pra livrar da poeira, massa na cabea, e, noite, eu passava uma escovinha nele e p, fazia a minha farrinha no morro com aquele chapeuzinho. E a, comearam a me chamar de Cartola, Cartola, Cartola, e pegou o apelido. (CARTOLA apud OLIVEIRA GUSMO, 2005, p. 35).O aprendiz de malandro (NOGUEIRA, 2005, p.19) era seduzido pela vida da Mangueira, que se opunha to fortemente oficialidade do cotidiano das tipografias. O samba se firmava, misturando religio, liberdade, integrao comunitria, canto e dana. Da Bahia veio o batuque, que no Rio de Janeiro ganhou o acompanhamento de outros instrumentos musicais.Enquanto o samba se fortalecia nos morros, no ano de 1922, foi inaugurada a Exposio Internacional comemorativa do Centenrio da Independncia, que trouxe o rdio para o Brasil. Em So Paulo, acontecia a Semana da Arte Moderna, que enfatizava a busca por uma cultura nacional, abrindo precedentes para uma maior aceitao da msica popular brasileira. A situao politica e social era tensa. O crescimento das cidades e a migrao formaram uma classe trabalhadora, que buscava proteo formando sindicatos. (NOGUEIRA, 2005, p.15) No mesmo ano foi criado o Partido Comunista Brasileiro (PCB). No incio da dcada de 20, jovens oficiais descontentes com o governo oligrquico se revoltavam, defendendo um governo capaz de praticar as normas da Constituio, desencadeando o movimento tenentista, que para Florestan Fernandes, faz parte da consolidao da revoluo burguesa no Brasil (FERNANDES, 1976, p.208). A principal expresso do movimento no Rio foi a revolta do Forte de Copacabana, em 1922. Mais tarde, em 1925, os revoltosos do Rio se juntariam aos de outros estados, percorrendo o pas para divulgar suas ideias e formando a Coluna Prestes (NOGUEIRA, 2005, p.16).Cartola, alheio a todas essas transformaes, foi expulso de casa em 1926. Ganhava a vida fazendo biscates como pedreiro, levando encomendas ou preparando despachos. Segundo ele:Aos 15 anos minha me morreu e me aborreci com o meu pai e ele me botou para fora. Eu continuei no morro de Mangueira. Agora, o que o meu pai fez comigo, eu julgava que fosse uma ingratido, mas hoje eu agradeo a ele o que ele fez. Eu fiquei, mas guardei em mim uma palavra que ele me disse quando mudou-se do morro, a mim no, disse a uma vizinha l, que ele saa do morro e deixava um Oliveira para fazer a vergonha da famlia. Ento, guardei bem esta frase e disse: no farei vergonha. Quando a vizinha me disse: , o seu pai disse que voc ia ficar pra fazer a vergonha da famlia, que voc tornou-se um vagabundo, coisa e tal. Eu levei aquilo ao capricho e at hoje moro em Mangueira, h 54 anos, nunca fui preso, enfim, nunca incomodei meu pai em nada, pelo contrrio, dei-lhe muito prazer. (CARTOLA apud OLIVEIRA GUSMO, 2005, p. 34).Nunca quis emprego fixo nas fbricas e olarias, pois as rodas de samba e a boemia ocupavam sua vida. Segundo suas prprias palavras, porm, nunca se considerou malandro, pois nunca foi preso e sempre trabalhou, ao menos o mnimo necessrio, mas tampouco era otrio (SOUZA, 1978, p.260). Aos 17 anos, alimentando-se mal e vivendo na noite, adoeceu gravemente em consequncia de doenas venreas. Nesse momento, apenada, passou a cuidar dele Deolinda da Conceio, casada e com uma filha. Logo o marido descobriu e ela se separou, e Cartola ganhou, de uma hora pra outra, mulher, filha e um sogro ex-escravo. Deolinda ganhava o sustento da casa (NOGUEIRA, 2005, p.18).Os blocos de carnaval, medida que cresciam despertavam maior ateno da polcia e do preconceito da classe mdia. Para Caio Prado, aps a Independncia, a oposio brutal entre a elite branca e populao predominantemente negra marginalizada, que se manteve apesar das transformaes das relaes de trabalho, gerava tal violncia que era perigoso transitar no Rio de Janeiro em pleno dia. Ainda segundo o autor, nas cidades, os vadios so mais perigosos e nocivos, pois no encontram, como no campo, a larga hospitalidade que l se pratica, nem chefes sertanejos prontos a engajarem sua belicosidade (PRADO JR, 2011, p. 273). Caio Prado d o exemplo do assassinato dos capoeiras como medida enrgica de conteno de violncia, que tem tambm seus correspondente, mais tarde, no samba. O samba foi proibido, e muitas vezes apenas um pandeiro ou violo eram justificativa para priso (NOGUEIRA, 2005, p.19). Nesse contexto, em 1928 foi fundada a Estao Primeira de Mangueira, com a participao de Cartola e batizada por ele: Eu resolvi chamar de Estao Primeira, porque era a primeira estao de trem, a partir da Central do Brasil, onde havia samba (Cartola apud NOGUEIRA, 2005, p. 20). O primeiro samba composto por Cartola, Chega de demanda (anexo cano I), do mesmo ano, foi o primeiro samba de desfile da Mangueira no ano seguinte. Segundo Cartola, nessa poca, havia um desinteresse recproco entre a populao do morro e da cidade:no havia mesmo um interesse pelo pessoal do morro, e ns tambm no nos interessvamos pelo pessoal da cidade [...] fazamos nossa vida separada l em cima. [...] s vinha cidade quando tinha que comprar uma cala, um chapu de palha, um chinelo. (MOURA apud NOGUEIRA, 2005, p.20)Em 1923, iniciativa do antroplogo Roquete Pinto e do cientista Henrique Morize, foi inaugurada a primeira emissora de rdio brasileira e, em 1928, iniciou-se o mercado de discos com a Casa Edison de propriedade da gravadora Odeon(CABRAL apud NOGUEIRA, 2005, p. 20). O rdio precisava de mais repertrio, e estimulava as gravadoras a buscar novas tendncias musicais, sendo o samba a principal delas naquele momento. Muitas vezes o samba era comprado sem ao menos levar o nome de seu compositor, convertendo valor de uso em valor de troca (NOGUEIRA, 2005, p.22). Cartola fez parte da primeira leva de vendedores de samba, apesar de nunca ter aberto mo da autoria, vendendo somente o direito de gravao.VARGAS E A ASCENSO DO SAMBASe na poca de seu surgimento, nas palavras de Nicolau Sevcenko, o rdio era somente uma espcie de teatro burgus irradiado (apud FENERICK, 2002, p.41), na dcada de 30 seu conceito foi transformado. O ento presidente Getlio Vargas autorizou a veiculao de anncios comerciais, e a concesso de canais foi distribuda como uma propriedade privada. Assim, as principais emissoras introduziram o hbito do pagamento regular de cachs aos artistas que se apresentavam (FENERICK, 2002, p.41). Esse fato pe em evidncia duas faces do governo Vargas: a aliana com o setor burgus articulada a uma atitude populista, que se expressa na valorizao da msica popular brasileira. A revoluo de 30 e suas consequncias tm muito a ver com a ascenso posterior do samba. Houve uma mudana no tratamento da questo social, pois Getlio intencionava trazer a classe trabalhadora para seu lado. Partidos e organizaes de esquerda foram reprimidos, e os sindicatos foram absorvidos pelo Estado. Foram regulamentados o trabalho das mulheres e dos menores, as frias e a jornada de trabalho de oito horas (NOGUEIRA, 2005, p.24).Assim como os sindicatos, a propriedade das estaes de rdio passou a depender do governo. Elas transformaram-se, ento, num instrumento fundamental para divulgar sua ideologia, mas tambm funcionavam como elemento irradiador do samba. A exaltao desse estilo musical popular configurava-se como uma estratgia de aproximao das massas, de forma a valorizar sua cultura, mostrando uma preocupao com as mudanas sociais. Alm do mais, isso servia a objetivos nacionalistas e criao e fortalecimento de uma identidade nacional nica, que pretensamente reunia todo Brasil em torno de uma mesma simbologia (NOGUEIRA, 2005, p.24).Ao mesmo tempo, Florestan Fernandes demonstra que na poca do Estado Novo de Vargas, a burguesia foi impulsionada de trs formas. Primeiro, o capitalismo monopolista crescia mundialmente, e cobrava do Brasil desenvolvimento com segurana, ou seja, com determinadas garantias ao capital estrangeiro. Segundo, internamente, a burguesia tinha de aceitar o novo pacto social e as polticas populistas do presidente, ainda que essas no fossem incompatveis com a continuidade estrutural do sistema. Por fim, o novo carter intervencionista do Estado, ainda que criado com ideias de continuidade e que buscava proteger um capitalismo subdesenvolvido. As burguesias agrria e moderna uniram-se, portanto, para conquistar uma aliana com o governo que acabou por garantir-lhes uma maior concentrao de capital e condies muito vantajosas: associao com o capital internacional, controle da represso de ameaas proletrias e a transformao do Estado em instrumento de seu poder, tanto no sentido econmico quanto no social e poltico. (FERNANDES, 1976, pps.216-217). Assim, para Fernandes, na era Vargas, o poder burgus revitalizou-se e unificou-se (FERNANDES, 1976, p.219). O samba tambm foi lanado exteriormente, e em 1940 ancorou no Rio de Janeiro o navio Uruguai, trazendo o maestro Leopoldo Stokowski, que visitava o Brasil e queria manter contatos com os expoentes da msica popular brasileira. Foram gravados, dentro do navio, dois discos de 78 rpm, lanados mais tarde pela Columbia nos Estados Unidos e batizado Native Brazilian. Nessasgravaes havia canes de Cartola, Villa-Lobos, Donga, Pixinguinha, Joo da Baiana, Heitor dos Prazeres e Z Espinguela. (NOGUEIRA, 2005, p.26). No mesmo ano, Cartola criou, com Paulo da Portela, na rdio Cruzeiro do Sul, o programa A voz do morro. Porm, em 1946 sua mulher Deolinda, com quem havia vivido mais de vinte e trs anos, faleceu, o que causou seu desaparecimento temporrio. Entre 50 e 60, Cartola passou por uma poca difcil, em que teve vrios empregos que garantiam somente sua sobrevivncia. Em 1952, comeou seu romance com Euzbia Silva de Oliveira, mais conhecida como Dona Zica, com quem viveu at o fim de seus dias. Cartola expressa toda a dificuldade dessa poca na cano Preciso me encontrar (anexo - cano II), e na cano Samba do operrio (anexo cano III), de 1955, queixa-se dos salrios mal pagos e da explorao sofrida, falando em opresso e usurrios. Barraco de Cartola e D. Zica venda. Fonte: MOURA apud OLIVEIRA GUSMO, 2005, p. 39.

Ao voltar Mangueira, a escola de samba tinha mudado de tal modo que ele no a reconheceu. A importncia turstica do carnaval havia crescido, e sua absoro pelo Estado e pela indstria cultural transformaram-no em um artifcio burocrtico (NOGUEIRA, 2005, p.27). Cartola mostra todo o seu descontentamento com esse processo sofrido pelo samba na cano Assim no d (anexo cano IV). O sambista viveu de biscates at que, em 1956, quando lavava carros numa garagem de Ipanema, o cronista Sergio Porto descobriu-o e convidou-o para cantar na rdio. Como j bem notado por Srgio Buarque de Holanda, a valorizao do talento, qualidade inata, quase ddiva divina, se ope desvalorizao do esforo do trabalho (HOLANDA, 2004, p.82). E foi assim que o talento de Cartola, negro e pobre, configurou-se como sua nica esperana de ascenso social, possibilitando-o garantir condies mnimas para sua sobrevivncia e alguma paz para a continuao de seu trabalho como artista. Logo Cartola foi chamado para trabalhar no Dirio Carioca, e depois se tornou funcionrio pblico na COFAP. Quando esta foi extinta, passou a trabalhar no Ministrio da Indstria e Comrcio servindo cafs (NOGUEIRA, 2005, p.28). Cartola e Z Kti no Zicartola. Fonte: MOURA apud GUSMO OLIVEIRA, 2005, p. 42

Em 1963, Cartola e Zica, ao lado de outros quatro scios, fundaram o restaurante Zicartola. O lugar passou a ser frequentado por gente do morro e da zona sul carioca. Alm da boa comida de dona Zica, oferecia msica feita pelos melhores sambistas. Alguns estudantes, como Carlos Lira, buscavam contrapor o movimento burgus da Bossa Nova com msicas de raiz, verdadeiras representantes da realidade brasileira, e eram assduos frequentadores (NOGUEIRA, 2005, p.29). O espao do Zicartola proporcionou o encontro entre o samba e a Bossa Nova e o os sambistas assimilaram as informaes crticas espalhadas pela classe mdia, enriquecendo suas produes musicais. Nessa poca, Z Kti e Carlos Lira compuseram o Samba da Legalidade (anexo cano V), que apoiava a sada da clandestinidade do Partido Comunista. Os autores da Bossa Nova, por sua vez, aprenderam a incluir em seu lema o amor, o sorriso e a flor as lgrimas, o suor e as pedras trazidas pelos sambistas do morro, contrariando a utopia dos anos dourados de Juscelino Kubitscheck. (OLIVEIRA GUSMO, 2005, p. 41).ZICARTOLA E A DITADURA MILITARNesta poca, o governo militar derrubou o ento presidente Joo Goulart e sua promessa de reformas de base. Para Florestan Fernandes, foi nesse momento que se consolidou a transio do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista. Se depois da segunda guerra houve uma preocupao mundial do capitalismo monopolista por conquistar as periferias, inclusive para evitar que elas se tornassem socialistas, foi na dcada de 50 e na ditadura militar que este se configurou como realidade histrica propriamente irreversvel (FERNANDES, 1976, p.255). O setor conservador da burguesia nacional e as Foras Armadas aliaram-se, e, juntos, tinham boas relaes com o capital estrangeiro. Assim, o Brasil se abriu definitivamente ao imperialismo, numa transio poltica negociada pela elite, e a classe trabalhadora continuou sendo sacrificada para viabilizar tal modelo econmico.As manifestaes estudantis eram fortemente reprimidas, bem como qualquer outra que representasse ameaa ao grupo dominante, e os estudantes da UNE encontravam no Zicartola um lugar alternativo de lazer e entretenimento. Mas, infelizmente, seus donos no tinham grande talento administrativo, sendo obrigados a pass-lo, dois anos aps sua abertura, para Jackson do Pandeiro.Entre 70 e 80, Cartola foi finalmente reconhecido pela indstria fonogrfica, e encontrou vrios parceiros de composio, que logo foram desfeitas porque algumas pessoas colocavam em dvida a autoria de suas canes, atribuindo-a a seus colegas de classe mdia. Aos 66 anos, em 1974, Cartola lanou seu primeiro LP, que foi sucesso absoluto de crtica e colocado entre os melhores do ano pela crtica. Em 1976, comps O mundo um moinho (anexo cano VI), em que expressa sua sofrida trajetria e sua persistncia, que, afinal, resultou em seu reconhecimento, ainda que em seus ltimos anos de vida. Aos 70 anos, aposentou-se aps um princpio de derrame com o mesmo salrio mnimo que ganhava no seu ltimo emprego. Pode, por um breve momento, dedicar-se somente s composies, mas em 1979, poca de seu quarto Lp, descobriu que estava com cncer, vindo a falecer em 30 de novembro de 1980.

CONCLUSO A simplicidade serena de Cartola inspiradora, tanto pelas potencialidades que evidencia como pelo exemplo de existncia consciente e potica que ele proporcionou. Como denunciado por Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes, o perodo da histria que Cartola atravessou possui caractersticas estruturais e aqui me refiro estrutura social, poltica e econmica - muito semelhantes. Mudanas superficiais podem ser notadas, como uma maquiada valorizao do povo na era de Getlio e sua posterior demaquilhagem aps o golpe de 64, j que se governava atravs da fora e no era mais preciso provar nada para a massa dos excludos. Essa massa, desde os primrdios da colonizao, de imensa maioria negra, ainda que a sede do desenvolvimento capitalista tenha agregado elementos brancos provindos da imigrao a essa multido em nome de sua expanso. Seja como for, ela continuou sendo a sustentao do sistema poltico econmico que depende dela, mas obriga-a a estar sempre margem, sempre na periferia, sempre com os empregos mais pesados e mais mal pagos e, o que no menos importante, mantendo sempre sua voz abafada. Cartola , mais que tudo, um exemplo de resistncia. Uma resistncia mansa e conformada, de trabalhador sofrido e cansado, que, se muito no pode fazer, ao menos no se rende em pensamento. No aceitou a chatice burguesa do trabalho nas tipografias e fbricas, no aceitou a industrializao de sua escola de samba, preferiu lavar carros a no poder ter seu nome em suas prprias composies, no aceitou que educao fosse privilgio da elite e leu, sozinho, grandes como Castro Alves e Olavo Bilac, aliviando com msica e poesia a dureza de sua existncia e inspirando o povo a aliviar a sua prpria.

Anexo

Cano I - Chega de demandaCartolaChega de demanda, chega!Com este time temos que ganharSomos da Estao PrimeiraSalve o Morro de Mangueira

Cano II - Preciso me encontrarCartolaDeixe-me ir preciso andar, vou por a a procurar,rir pra no chorar,quero assistir o sol nascer,ver as guas dos rios correr,ouvir o pssaros cantar,eu quero nascer quero viver...Deixe-me ir preciso andar,vou por a a procurar, rir pra no chorar,se algum for vir perguntardiga que eu s vou voltardepois que eu me encontrar...Quero assistir o sol nascer,Ver as guas dos rios correr,ouvir o pssaros cantar, eu queronascer quero viver...Deixe-me ir preciso andar, vou por a a procurar,rir pra no chorar.

Cano III - O Samba do OperrioCartola, Nelson Sargento e Alfredo PortugusSe o operrio soubesseReconhecer o valor que tem seu diaPor certo que valeriaDuas vezes mais o seu salrio

Mas como no quer reconhecer ele escravo sem serDe qualquer usurrio

Abafa-se a voz do oprimidoCom a dor e o gemidoNo se pode desabafar

Trabalho feito por minha moS encontrei exploraoEm todo lugar(Fonte: http://letras.mus.br/cartola/1102471/)

Cano IV Assim no dCartolaAssim no d, no d noNo vai dar meu irmo doutor presidenteDoutor secretrio

Doutor tesoureiroS quem no seu doutor aquele pretinhoQue varre o terreiroQuem manda na bateria uma madamaFilha de magistradoVai dirigir a harmoniaMe disse o compadreQue j est combinadoJ houve l um concursoPra quem bate surdoTamborim e pandeiroEu fiz tanto esforoMas acabei perdendoPra um engenheiroFiz um samba lindoBotei no concursoFui desclassificadoPor unanimidadeDisseram que os versosEram de p quebrado. (Cartola apud OLIVEIRA GUSMO, 2005, p. 37)

Cano V - Samba da legalidadeCartola e Carlos LiraDentro da legalidadeDentro da honestidadeNingum tira o meu direitoQuando querem anarquiaElimino a teimosiaMostrando todo o defeitoSe o samba est erradoEu no vou ficar caladoConsertando a melodia

Sou poeta popularDentro da honestidadeNingum pode me calar

Lai, lai, lai, laiLai, lai, lal, lai, lai

Eu no sou politiqueiroMeu negcio um pandeiroDentro da legalidadeSou poeta popularDentro da legalidadeNingum pode me calar

Lai, lai, lai, laiLai, lai, lal, lai, lai(Fonte: http://letras.mus.br/carlos-lyra/709876/)

Cano VI- O Mundo um moinhoCartolaAinda cedo, amorMal comeaste a conhecer a vidaJ anuncias a hora de partidaSem saber mesmo o rumo que irs tomar

Preste ateno, queridaEmbora eu saiba que ests resolvidaEm cada esquina cai um pouco a tua vidaEm pouco tempo no sers mais o que s

Oua-me bem, amorPreste ateno, o mundo um moinhoVai triturar teus sonhos, to mesquinhoVai reduzir as iluses a p

Preste ateno, queridaDe cada amor tu herdars s o cinismoQuando notares ests beira do abismoAbismo que cavaste com os teus ps(Fonte: http://letras.mus.br/cartola/44901/)

REFERNCIAS BIBLIOGRFICASCHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle poque. Editora brasiliense: So Paulo, 1986. FENERICK, Jos Adriano. Nem no morro, nem na cidade: as transformaes do samba e a Indstria Cultural. 1920-1945. Tese de doutorado. USP: So Paulo, 2002. Disponvel em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-28052003-160547/pt-br.php . Acessado vrias vezes entre junho e julho de 2014. FERNANDES, Florestan. A revoluo burguesa no Brasil. Zahar: Rio de Janeiro, 1976.HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. Companhia das Letras: So Paulo, 2004.NOGUEIRA, Nilcemar. De dentro da cartola: a potica de Agenor de Oliveira. Dissertao de mestrado. FGV: Rio de Janeiro, 2005. Disponvel em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/4159/CPDOC2005NilcemarNogueira.pdf?sequence=1 . Acessado vrias vezes entre junho e julho de 2014. OLIVEIRA GUSMO, Cludio de; et al. Cartola como referncia de resistncia atuao da indstria cultural. Trabalho de concluso de curso. Universidade Anhembi Morumbi: So Paulo, 2005. Disponvel em: http://www.cardinaldesign.com.br/cartola/downloads/pesquisa_cartola.pdf. Acessado vrias vezes entre junho e julho de 2014. PRADO JR, Caio. Formao do Brasil contemporneo. Companhia das Letras: So Paulo, 2011. SOUZA, Tarik. As humildes e altivas lies de Cartola. 1978.Site visitado: http://letras.mus.br/carlos-lyra/709876/v - acesso em 5 de julho de 2014http://letras.mus.br/cartola/1102471/- acesso em 5 de julho de 2014http://letras.mus.br/cartola/44901/- acesso em 7 de julho de 2014