O Que a “Geleia” Gerou Na Cidade

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Página1 VII Simpósio Nacional de História Cultural HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES Universidade de São Paulo – USP São Paulo – SP 10 e 14 de Novembro de 2014 O QUE A “GELEIA” GEROU NA CIDADE? ARTISTAS ATUANTES NOS FESTIVAIS DE MÚSICA POPULAR DA CIDADE DE TERESINA (1970 E 1980) Marcelo Silva Cruz * Na cidade do Rio de Janeiro, no dia 10 de novembro de 1972, o poeta Torquato Neto, compositor e um dos articuladores principais do movimento Tropicalista, colocava fim em sua própria vida, asfixiado com gás de chuveiro do banheiro, logo no dia seguinte de seu 28º aniversario. Naquele dia as artes do Piauí lamentaram a perda de um de seus mais ilustres representantes que ficaram conhecidos fora das fronteiras do Estado. Dentre suas obras podemos destacar o LP Tropicália ou Panis et Circencis (1968), concebido em coautoria com vários outros artistas, com destaque para Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duprat, José Carlos Capinam e Tom Zé, que na época foi apelidado pela crítica de “disco-manifesto, por ser “um mosaico sonoro reunindo gêneros, tradições poéticas, alegorias, ideologias, na expressão da ‘geleia geral brasileira’” (NAPOLITANO, 2002, p.69). “Geleia Geral” aliás, é tanto o nome de uma das músicas desse disco composta por ele em parceria com Gilberto Gil, como também foi o titulo da coluna publicada por Torquato no Jornal Última Hora entre agosto de 1971 e março de 1972. Essa expressão * Mestrando do Programa de Pós-Graduação, stricto sensu em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí (PPGHB/UFPI), sobre orientação da Prof. Drª. Claudia Cristina da Silva Fontineles. É professor efetivo história da rede estadual de educação do Estado do Piauí e também da rede municipal de educação da prefeitura de Teresina. Exerce a função de diretor de planejamento e elaboração de projetos da Associação Cultural UNIARTES. Recentemente foi aprovado no processo seletivo para exercer o cargo de tutor à distância do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Federal do Piauí (EAD/UFPI).

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Pretendemos nesse breve texto refletir até que ponto a “geleia” idealizada por Torquato Neto, realmente “gerou”, ou não, frutos, analisando para isso a atuação dos artistas nos festivais de música popular teresinense nas décadas de 1970 e 1980 por meio de alguns depoimentos orais, em que a memória é matéria-prima, de artistas que vivenciaram esse momento, em particular do músico Geraldo Brito. Para isso mapearemos concisamente os principais aportes teórico-metodológicos da história oral, dialogando também com algumas produções historiográficas que trabalharam a dimensão da música produzida no Piauí, no período estudado.

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    VII Simpsio Nacional de Histria Cultural

    HISTRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAO,

    LEITURAS E RECEPES

    Universidade de So Paulo USP

    So Paulo SP

    10 e 14 de Novembro de 2014

    O QUE A GELEIA GEROU NA CIDADE? ARTISTAS ATUANTES NOS FESTIVAIS DE MSICA POPULAR DA CIDADE DE

    TERESINA (1970 E 1980)

    Marcelo Silva Cruz*

    Na cidade do Rio de Janeiro, no dia 10 de novembro de 1972, o poeta Torquato

    Neto, compositor e um dos articuladores principais do movimento Tropicalista, colocava

    fim em sua prpria vida, asfixiado com gs de chuveiro do banheiro, logo no dia seguinte

    de seu 28 aniversario. Naquele dia as artes do Piau lamentaram a perda de um de seus

    mais ilustres representantes que ficaram conhecidos fora das fronteiras do Estado. Dentre

    suas obras podemos destacar o LP Tropiclia ou Panis et Circencis (1968), concebido

    em coautoria com vrios outros artistas, com destaque para Caetano Veloso, Gilberto Gil,

    Rogrio Duprat, Jos Carlos Capinam e Tom Z, que na poca foi apelidado pela crtica

    de disco-manifesto, por ser um mosaico sonoro reunindo gneros, tradies poticas,

    alegorias, ideologias, na expresso da geleia geral brasileira (NAPOLITANO, 2002,

    p.69). Geleia Geral alis, tanto o nome de uma das msicas desse disco composta por

    ele em parceria com Gilberto Gil, como tambm foi o titulo da coluna publicada por

    Torquato no Jornal ltima Hora entre agosto de 1971 e maro de 1972. Essa expresso

    * Mestrando do Programa de Ps-Graduao, stricto sensu em Histria do Brasil da Universidade Federal

    do Piau (PPGHB/UFPI), sobre orientao da Prof. Dr. Claudia Cristina da Silva Fontineles.

    professor efetivo histria da rede estadual de educao do Estado do Piau e tambm da rede municipal

    de educao da prefeitura de Teresina. Exerce a funo de diretor de planejamento e elaborao de

    projetos da Associao Cultural UNIARTES. Recentemente foi aprovado no processo seletivo para

    exercer o cargo de tutor distncia do curso de Licenciatura Plena em Histria da Universidade Federal

    do Piau (EAD/UFPI).

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    foi na verdade cunhada em 1963 pelo poeta concretista Dcio Pignatari, em referncia ao

    trocadilho "Geleia Real, em um texto publicado na Revista Inveno.

    A msica Geleia Geral seria portanto uma espcie de sntese do tropicalismo,

    uma msica-manifesto do movimento, em cujo refro se canta bumba i i boi/Ano

    que vem, ms que foi/ bumba i i i/ a mesma dana, meu boi. (TORQUATO NETO,

    Geleia Geral, 1968). Nas estrofes da cano, o bumba meu boi da tradio provinciana

    piauiense estabelece uma bricolagem vanguardista com a moderna e cosmopolita

    musicalidade do i i i do rock dos Beatles. Desta forma ele estava justamente

    chamando a nossa ateno para o intervalo que leva da provncia aldeia global, que leva

    do local ao universal (SILVA, 2013, p.75). Em certo grau inspirados na antropofagia

    feita pelos modernistas da semana de 22, essa polissemia artstico-musical seria

    deglutida pelos tropicalistas, para que da surgisse algo inovador e prprio na msica

    brasileira. E justamente em um momento de grande violncia da ditadura civil-militar no

    Brasil, atravs da imposio do AI-5, que os desdobramentos do Maio de 68, da Art

    Pop e, da contracultura como um todo, se fundiram com elementos da cultura nacional,

    para gestar algo novo e nico. Surgia assim o movimento tropicalista.

    Treze anos depois da morte do poeta, doze canes de artistas piauienses foram

    selecionadas para comporem um LP chamado Geleia Gerou, o qual seria uma espcie de

    fruto deixado por Torquato onde seus rfos filhos apresentariam uma pequena sntese

    de seu legado, ou isso pelo menos o que pretendia seus idealizadores (GELEIA

    GEROU, 1985). Desse modo pretendemos nesse breve texto refletir at que ponto a

    geleia idealizada por Torquato Neto, realmente gerou, ou no, frutos, analisando para

    isso a atuao dos artistas nos festivais de msica popular teresinense nas dcadas de 1970

    e 1980 por meio de alguns depoimentos orais, em que a memria matria-prima, de

    artistas que vivenciaram esse momento, em particular do msico Geraldo Brito. Para isso

    mapearemos concisamente os principais aportes terico-metodolgicos da histria oral,

    dialogando tambm com algumas produes historiogrficas que trabalharam a dimenso

    da msica produzida no Piau, no perodo estudado.

    VOZES DA HISTRIA ORAL SOBRE AS ARTES MUSICAIS DE TERESINA

    A Histria Oral durante muito tempo foi vista como algo secundrio na

    elaborao do conhecimento histrico no Brasil, utilizada muita das vezes apenas como

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    preenchimento de lacunas daquilo que no se podia encontrar nos documentos escritos.

    Sendo confundida frequentemente pelo censo comum, como uma simples entrevista, a

    qual deveria ser aplicada determinadas tcnicas e, s isso bastava para utiliz-la como

    encaixe dentro do texto produzido pelo historiador naquilo, por exemplo, que no pode

    ser respondido pela documentao oficial pesquisada.

    Mas a valorizao gradativa nas ultimas dcadas da chamada Histria do

    Presente, abriu um leque de novas possibilidades, pois para essa tendncia a especialidade

    de narrar e revelar identidades construdas no passado do historiador, o gabarita para

    tambm ser convidado a lanar seu olhar problematizador sobre seu prprio tempo, sobre

    o presente. Por outro lado os crticos dessa histria argumentam que ela teria um dficit

    qualitativo, pois com historiador mergulhado em seu prprio tempo seria impossvel ele

    ter um afastamento necessrio, exigido pelo rigor do conhecimento sistemtico da histria

    (RIOUX, 1999, p.46-47).

    Para a maioria dos estudiosos da atualidade, a Histria Oral no mais vista

    apenas, de modo exclusivo, como tcnica ser utilizada para o preenchimento de eventuais

    lacunas no respondidas pela documentao escrita e, mesmo como tcnica, ela no se

    resume a uma simples entrevista. Jos Carlos Sebe Bom Meihy nos alerta nesse sentido,

    mostrando que ela antes um projeto cientifico com etapas bem definidas, que comea

    com a escolha do grupo que ser entrevistado, passando pelo questionamento do porqu

    dos escolhidos, como, onde e quando sero feitas essas entrevista, transcrio as mesmas,

    autorizao de seu uso, arquivamento e finalmente, se possvel, a publicao delas

    (MEIHY, 2013, p,15).

    Partindo desses aportes tericos, utilizamos a metodologia da Histria Oral para

    estudar um pouco da trajetria de alguns personagens emblemticos participantes dos

    festivais de msica das dcadas de 1970 e 1980 em Teresina, porque percebemos que

    ainda h um campo vasto a ser explorado na historiografia brasileira e, especificamente

    nos trabalhos acadmicos pesquisados de graduaes e ps-graduaes recentes que

    tratam das relaes entre Histria, Msica e Teresina, no encontramos a oralidade, como

    uma dimenso metodolgica central da pesquisa. Trabalhos esses que relacionamos a

    seguir: Acordes na Cidade: msica popular em Teresina nos anos de 1980 (MEDEIROS,

    2013); Cajuna e Coca-Cola: identidades e estticas juvenis em Teresina nas dcadas de

    1970 e 1980 (SILVA, 2013); Seu gosto na berlinda: um estudo do consumo musical nos

    anos 1970 (COSTA, 2012); A emergncia da msica popular em Teresina (1970 1990),

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    (VASCONCELOS JUNIOR, 2008); No tempo dos festivais: histria e msica no Piau

    (1960 1980), (RODRIGUES, 2005);

    Ricardo Santhiago argumenta, inclusive que, mesmo em nvel de Brasil, as artes

    como um todo, no esto entre os principais assuntos corriqueiros da Histria Oral (2013,

    p.155). E completa relatando uma interessante informao do historiador Alessandro

    Portelli:

    [...] se levarmos em conta que se trata de um campo que tem como uma

    de suas figuras mais populares o estudioso italiano Alessandro Portelli,

    que se iniciou na prtica da histria oral porque comeou a coletar

    canes populares1 e, ao fazer isso, percebeu que algumas vezes as histrias que as acompanhavam eram mais interessantes e quase sempre

    mais imaginativas que as prprias canes (Cincia do indivduo, 1998). Ele mesmo sugere que a histria oral seja, em si, considerada

    uma arte... [...] (SANTHIAGO, 2013, p.155)

    Portanto, existe ainda certa carncia de trabalhos que relacione os estudos

    histricos da memria com a riqueza polissmica das artes musicais. Falamos de

    memria por ser esta, a fonte principal da Historia Oral, e ser atravs dela que o

    entrevistado construir no presente, a narrativa que sustentar seu discurso sobre o

    passado. A memria instrumentalizada pelo historiador possibilita tanto se problematizar

    e correlacionar o tempo presente do relato do entrevistado, com o tempo passado sobre o

    qual o relator foca sua narrativa, em que a subjetividade do historiador se cruza e se

    influencia com a subjetividade do entrevistado (DELGADO, 2006, p.16).

    A ERA DOS FESTIVAIS PIAUIENSES NAS MEMRIAS DE GERALDO BRITO.

    A chamada Era dos festivais uma expresso que ficou popularmente conhecida

    com a publicao do livro de mesmo nome de Zuza Homem de Mello, crtico musical

    que trabalhou como engenheiro de som dos principais programas de festivais de msica

    popular da dcada de 60 (2003). A expresso, segundo o escritor, remete ao perodo que

    se inicia esses festivais no ano 1965, com o lanamento do I Festival Nacional de MPB

    feito pela extinta TV Excelsior em So Paulo e, que termina em 1969, com a exibio do

    IV Festival Internacional da Cano FIC produzido pela TV Globo no Rio de Janeiro,

    seguindo ainda pelo V Festival de MPB organizado pela TV Record em So Paulo neste

    mesmo ano. Os festivais desse perodo foram fundamentais para que se pudessem revelar

    grandes cones da msica popular brasileira, os quais se podem destacar: Edu Lobo, Elis

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    Regina, Caetano Veloso, Chico Buarque, Geraldo Vandr, Gilberto Gil, Jair Rodrigues,

    Milton Nascimento e Nara Leo (VILARINO, 1999, p.117-121).

    O reflexo artstico-musical efetivo desses eventos ocorridos no sul do pas s

    seria sentido no Piau na dcada seguinte, apesar do surgimento ainda nos anos de 1960

    dos Brasinhas, os Metralhas, Trio Guarany, Trio Yucatan, os Milionrios e Sambrasa

    esses dois ltimos chegando at gravar LPs com msicas autorais (BRITO, 2002). Isso

    pelo menos o que defende Geraldo Brito, compositor, guitarrista e violonista piauiense,

    merecedor de grande respeito entre seus pares, j que participou dos principais momentos

    da msica autoral produzida no Piau nas dcadas de 70 e 80.

    Ainda no final dos anos 60 ele participou de vrios grupos, iniciando no The

    Boys, depois Os Tangars, Samurais, Brasinhas, Grupo Calada e ainda o Grupo

    Varanda, mantendo contato com os principais artistas da cidade. Por isso se tornou uma

    referncia da preservao da memria da msica produzida no Piau tanto, que um dos

    poucos msicos que escreveram sobre as vivncias musicais da poca, por meio do texto

    intitulado Msica no Piau: anos 1960 e 1970 e que atualmente esta escrevendo um

    livro sobre o tema (2002).

    Para o presente artigo a verso memorial de Geraldo Brito ser nossa principal

    referncia do tempo estudado, sem perdermos de vista a orientao de Verena Alberti de

    que devemos combater a ideia de que a histria no pode se contentar em apenas ser mais

    uma verso, das muitas possveis, distanciada da realidade, mas ao contrrio ela seria

    em sua concepo, criadora e criatura de uma realidade (2004).

    Ele nos concedeu entrevista em de agosto de 2013, na Escola de Msica de

    Teresina, ligada Fundao Cultural do Piau FUNDAC, sediada no Centro de

    Artesanato Mestre Dezinho em Teresina, onde ministra aulas de violo e guitarra. Na

    entrevista, do tipo temticas, ele argumenta, entre outras coisas, que sua gerao foi

    aquela que efetivamente comeou no Piau a produzir seus prprios espetculos de msica

    popular apenas com msicas autorais (ALBERTI, 2007). Muito embora admita como j

    foi citado, a existncia de geraes anteriores de piauienses que tambm produziram

    prprias canes, mas segundo ele, no investiram em montagens de espetculos

    prprios. Diz tambm que os reflexos dos primeiros festivais de msica popular ocorridos

    em So Paulo e no Rio de Janeiro s foram visualizados efetivamente no Piau na dcada

    de 1970:

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    [...] ns dessa gerao que comeamos a fazer msica, nesse tempo [...]

    ainda estvamos no ginsio, [...]A quando [...] veio a gerao da

    segunda metade dos anos 60 ningum se interessou a fazer... Ento ns

    comeamos a fazer j anos 70. J estvamos com a idade de 17, 18 anos,

    a gente comeou a ter uma referncia maior, ento no eclodiu

    exatamente no momento, demorou a chegar aqui e, se chegou, no teve

    pessoas antenadas pra captar aquilo, a dcada dos anos 60 foi todinha

    assim... S muita Jovem Guarda, tanto que na poca criaram-se muitos

    conjuntos de baile, eram os Brasinhas, os Metralhas, ento nessa poca

    a ficou com pouca produo, s reproduo (BRITO, 2013, p.05).

    Sob essa perspectiva no Piau, a chamada Era dos Festivais e toda a influncia

    da chamada MPB, s se iniciaria com o surgimento em 1973 do Festival Universitrio da

    FUFPI Fundao Universidade Federal do Piau, hoje UFPI Universidade Federal do

    Piau que foi primeiramente organizado pelo Departamento de Artes, sendo, a partir de

    1979, dirigido pelo DCE - Diretrio Central dos Estudantes, passando, a partir da, a ser

    chamado de FEMP Festival Estudantil de Msica Popular. Muito embora ainda 1972 a

    jornalista Elvira Raulino, na Churrascaria Beira-Rio em festival sem grande recurso.

    Em relao explicar que em relao terminologia MPB Msica Popular

    Brasileira (com maiscula) se entende aqui como algo distinto de msica popular

    brasileira. Esta entendida como uma moderna msica popular brasileira, gnero que,

    segundo Marcos Napolitano, foi uma tradio inventada entre 1965 e 1968, que logo

    foi sucesso de crtica e pblico, pois conseguiu sintetizar elementos do samba autntico,

    do material folclrico, dos gneros convencionais de raiz e por fim da composio

    como pardia (2007, p.109-110).

    Podemos constatar ainda, com base na historiografia pesquisada, que de maneira

    geral, no incio dessa dcada, Teresina ainda era muito carente de espaos e oportunidades

    para a msica autoral. Isso se evidencia, por exemplo, no estudo de Paulo Ricardo Muniz

    Silva sobre manifestaes culturais e indenitrias da juventude nas dcadas de 1970 e

    1980 em Teresina, onde comenta artigo publicado em um jornal da poca:

    No jornal Toco Cru Pegando Fogo, um jornal produzido pelo Diretrio

    Setorial dos cursos da rea de sade da Universidade Federal do Piau,

    feito para alunos de odontologia, medicina e enfermagem lerem, em artigo intitulado As coisas, de Antnio Anchieta, este nos traz um panorama do cenrio cultural teresinense em idos de 1973, mais

    especificamente no campo musical. poca, o autor constatava que o

    Piau ficava margem das turns dos grandes artistas da poca.

    Marginalizado at mesmo em relao aos vizinhos Maranho e Cear,

    que recebiam em seus palcos os grandes nomes da msica brasileira,

    enquanto que em nosso estado apenas ouvia-se falar. Comenta-se ainda

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    da participao de artistas no que ele chama de circuito universitrio, isto , um conjunto de atividades culturais (e polticas, e sociais)

    promovidas por jovens universitrios, mas de outros lugares, uma vez

    que para ele, vivia-se aqui mais um estado de inrcia, houvera um

    curto-circuito (2013, p.88).

    Em resposta a essa inrcia e, ao mesmo tempo influenciados pela sonoridade

    musical difundidas nos festivais de repercusso nacional dos anos 60, como a MPB e o

    Tropicalismo, foi que um grupo de jovens artistas piauienses, segundo Geraldo,

    comearam a se articular no incio dos anos 70, para divulgar suas prprias produes.

    Nomes como, Ana Miranda, Antnio Quaresma, Aurlio Melo, Cruz Neto, Chagas Vale,

    Durvalino filho, Janete Dias, Jos Paulo Cunha, Gilvan Santos, Laurenice Frana, Lzaro

    do Piau, Naeno, Ruben Miranda, e o prprio Geraldo Brito, que hoje so conhecidos da

    cena cultural piauiense, naquela poca eram apenas jovens iniciando as artes musicais,

    em um tempo de ditadura civil-militar, mas que tambm fez surgir ricos movimentos de

    vanguarda de criaes artsticas que ficaram marcadas na cultura brasileira at hoje:

    Aquele era um momento de grande efervescncia musical no Brasil

    todo, principalmente depois dos grandes festivais produzidos pela TV

    Record e pela TV Excelsior, e logo depois comearam os Festivais

    Universitrios e aqui em Teresina no foi diferente. Lembro que o

    primeiro festival foi produzido pela jornalista Elvira Raulino em 72 na

    Churrascaria Beira-Rio, depois veio o primeiro festival universitrio da

    universidade federal, dentro da semana da Jornada Universitria, que

    tinha vrias outras atividades como jogos, palestras... Comeou em

    73... Em 74 j aconteceu no teatro de arena, ai eu j participei e toda a

    nosso gerao... Lzaro, Laurenice, Cruz Neto... Toda a nossa gerao

    participou... (BRITO, 2013, p.01).

    O tom nostlgico claramente percebido em toda a de fala Geraldo Brito, onde

    o passado frequentemente visto como melhor do que o presente, onde a msica era de

    melhor qualidade, onde as pessoas iam mais aos shows valorizando os artistas locais

    mesmo sem as musicas tocarem nos meios radiofnicos.

    [...] as pessoas iam para o teatro ver o que a gente estava fazendo,

    acompanhar nossa produo... e os show eram muito bom as pessoas

    participavam, elas estavam ligadas naquilo que estava acontecendo.

    Ento eu acho que as pessoas apreciavam mais a produo local, a

    maioria das msicas nem tocavam em rdios, as pessoas iam e lotavam

    o teatro para ver mesmo... No sei se era porque naquela poca as

    pessoas no tinham tanto acesso, mas as pessoas eram mais ligadas... O

    Brasil tambm vivia um momento melhor... No tinha tanta

    preocupao com essa msica maluca que toca hoje, ento era bem mais

    concentrado, tinha um pblico muito grande, lembro que um ano de 80

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    no festival da MPB aqui no Verdo foi lotado, foram trs dias lotados.

    (BRITO, 2013, p.01).

    O artista se refere ao FMPBEPI Festival da Msica Popular Brasileira do

    Estado do Piau, com edio nica em agosto de 1980, que foi uma iniciativa da TV

    Rdio Clube de Teresina em parceria com o Governo do Estado e a Prefeitura Municipal

    de Teresina. Segundo Hermano Medeiros sua importncia reside no fato de ter sido o

    primeiro registro de uma coletividade da msica popular brasileira produzida em

    Teresina (2013, p. 94).

    Esse foi um perodo onde a msica regional ganhou muita fora em que muitas

    das vezes era de interesse dos prprios governos estaduais construir uma identidade

    musical prpria, como modo de fortalecer imagens de grupos ou personalidades politicas.

    Nesse sentido, Cludia Fontineles estudando os governos de Alberto Silva (1971-1975 e

    1987-1991), mostra que no Piau, muitas das aes desse governante serviram para

    edificar sua prpria uma imagem: grande empreendedor e fomentador da autoestima do

    piauiense (2009). Tanto que nas lembranas de Geraldo no passa despercebido quem foi

    o responsvel pela reforma do teatro 4 de setembro:

    [...] a gente foi fazer msica, depois de certo tempo que comeamos a

    perceber que fomos uma gerao que comeamos a fazer e ir para o

    palco, fazer um show e mostrar. Principalmente a partir de 1975 quando

    o teatro 4 de Setembro reinaugurou, j que at 72 o teatro s era usado

    para passar filmes, cinema... ai em 72 o Alberto Silva comeou a fazer

    essa reforma e entregou o teatro em 75. Ai comeou... No momento

    justamente que estava essa efervescncia, todo mundo fazendo suas

    msicas, o teatro veio a calhar (BRITO, 2013, p.02).

    Em sua fala se observa a satisfao de Geraldo Brito de pertencer a uma gerao

    musical que comeou a fazer e ir para o palco, fazer um show e mostrar. Porm esse

    mostrar estava rigorosamente controlado pela censura previa do governo ditatorial

    vigorante no Brasil naquele momento, mesmo aqui no Piau. Geraldo lembra que todas

    as msicas dos festivais e dos shows artsticos individuais tinham que passar pelo crivo

    dos rgos de censura:

    [...] antes de entrar no festival todas elas [as msicas] passavam pela

    censura, no tinha como no passar. Os jurados s viam as msicas nos

    dias do festival e, todas elas s entravam no festival se passassem pelo

    departamento de censura. s vezes as msicas eram censuradas no s

    por uma crtica poltica, mas por causa de um palavro, algumas coisas

    que eles achavam agressivas, ai a gente se indignava (BRITO, 2013,

    p.02).

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    Nesse breve relato, acima registrado, se pode observar um pouco da riqueza que

    a utilizao da metodologia da Histria Oral no estudo da Histria da Msica,

    principalmente aqui no Piau onde a produo local pouco ganhou reconhecimento

    nacional e, as memrias desses artistas podem nos dar pistas dos motivos que levaram

    isso. Geraldo Brito, destacado memorialista da msica feita no Piau, nos faz perceber,

    por meio de suas lembranas de nomes de msicos, nomes de lugares e, de letras de

    canes hoje esquecidas na curva do tempo, que um largo campo de pesquisa pode ser

    explorado, indicando inclusive que existe um substancial grupo de artistas que merecem

    que suas memrias de um tempo chamado era dos festivais seja contadas.

    CONSIDERAES FINAIS

    Esse breve artigo uma pesquisa inicial de uma investigao maior que estudar

    a trajetria musical dos/as compositores/as e intrpretes finalistas dos festivais de msica

    popular ocorridos no Piau, sendo que para a pesquisa obter xito e viabilidade prtica,

    ser centrada espacialmente na cidade de Teresina.

    O recorte temporal, por sua vez, est localizado nas dcadas de 1970 e 1980. A

    inteno no trabalhar todos os festivais do perodo (o que seria um desafio amplo e de

    viabilidade complexa para esse tipo de pesquisa), mas estudar somente os quatro de maior

    repercusso entre os artistas e na imprensa escrita da poca, os quais esto relacionados

    a seguir: Festival Universitrio da FUFPI; FESPAPI Festival de Msica do Parque

    Piau, que comeou em 1975; FMPBEPI Festival da Msica Popular Brasileira do

    Estado do Piau, com edio nica em 1980 e; I Encontro de Compositores e Intrpretes

    do Piau, ocorrido em 1984 e que teve como fruto o LP Geleia Gerou, lanado em 1985.

    A proposio desta pesquisa maior surgiu fundamentalmente devido s

    inquietaes de tentar compreender as seguintes questes: Como foi a trajetria musical

    dos/as compositores/as e intrpretes finalistas dos festivais de msica popular ocorridos

    em Teresina nas dcadas de 1970 e 1980? Que prticas culturais vivenciaram? Como a

    memria desses artistas resinifica as representaes no presente? Que discursos foram

    formatados pela imprensa escrita sobre esses msicos? possvel identificar possveis

    identidades musicais construdas por esses artistas? Quais as caractersticas das letras e

    melodias das canes finalistas, dentro do contexto histrico em que foram produzidas?

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    Qual o grau de importncia desses msicos para a histria da msica popular produzida

    no Piau?

    importante salientar que as questes suscitadas acima partiram da ideia de que

    um dado fenmeno musical s pode ser conhecido por meio do estudo do contexto

    sciocultural no qual est inserido, sem fazer juzos baseados em preferncias musicais,

    o que vai de encontro com a opinio de Marcos Napolitano quando diz:

    Minha perspectiva aponta para a necessidade de compreendermos as

    vrias manifestaes e estilos musicais dentro da sua poca, da cena

    musical na qual est inserida, sem consagrar e reproduzir hierarquias de

    valores herdadas ou transformar o gosto pessoal em medida para a

    crtica histrica. (NAPOLITANO, 2005, p.08-09).

    Portanto, o que de fato a geleia de Torquato Neto gerou? Essa uma

    pergunta para qual no existe resposta definida e nica. Seria tambm muito pretencioso

    que um breve texto como este pudesse respond-la. O que se buscou aqui foi evidenciar

    algumas pistas, iluminar a narrativa histrica por meio da memria musical piauiense, no

    sentido de provocar novas indagaes e propor novos referenciais. Mas a priori pensamos,

    que de algum modo, o legado do anjo torto foi continuado, pois no Piau acreditamos

    que sempre existir a seguinte imagem: Um poeta desfolha a bandeira/E a manh tropical

    se inicia/Resplendente, cadente, fagueira/Num calor girassol com alegria (TORQUATO

    NETO, Geleia Geral, 1968).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Artigos em Jornais e Revistas:

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