O programa de Lima Barreto para a literatura brasileira · dos romances não sobreviveu à mudança...

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Cadeos de Lecras da UFF - unos da Pós-Graduaio 2003, n.28, p. 1 1 7- 125, 2003 O programa de Lima Barreto para a literatura brasileira 1 17 Irenfsia Torres de Ol iveira suMo Este artigo procura mostrar como os textos de Lima Barreto sobre li teratura e as cróni cas sobre livros de seus contemporâneos defi nem um programa para a literarura brasileira. O valor mais evidente desse programa é a simpl icidade. Nas crónicas, a valorização da linguagem cotidiana, da observação própria, da necessidade do ângulo crítico e uma visão do símbolo favorecem discussões que ampliam e adensam a concepção de simplicidade e mostram a consistência do programa formulado p or Lima Barreto, em permanente diálogo com o seu tempo e o seu país. N uma das anotações de seu diário, datada de 1905, Lima Barreto se queixava dos círculos literários da época. Faltava formação aos novos escritores, que tinham um lamentável pendor para a cópia de autores portugueses menores. A literatura a que se propunham era pequena, amesquinhada diante da tradição européia que o turo escritor tinha na cabeça, que o havia formado e suas expectativas: É uma literatura de concerri, de palavrinhas, de coisinha s, não há neles um grande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de epopéia, o ciclo lír ico que há neles é mal encaminhado para a literatura est reitamente pes soal, no que de pessoal há de inferior e banal: amores ricos, mortes de parentes e coisas ass im. (Barreto, 1993: 63) Em 1907, Lima Barreto apresentou a revista Floreal, como uma tentativa de furar o bloqueio das tendências dominantes da literatura na época e de criar algo diferente. Fazia a ressalva de que a revista não representava uma escola, um movimento, um conjunto determinado de idéias, porque nesse momento, segundo o autor, a crítica estava exata- mente tentando abalar as certezas, os dogmas, como acontecia até mesmo nas ciências e na matemática (Barreto, 1956b: 181). A idéia de que o começo do século era um momento mais negativo que positivo, do ponto de vista intelectual, dá o tom da análise histórica do livro A era dos impérios, de Eric Hobsbawm. A coincidência da avaliação do escritor brasileiro, em 1907, com a tese retrospectiva bem fundamentada do historiador inglês, quase oitenta anos depois, mostra que Lima Barreto tinha conhecimento dos debates importantes que se davam no mundo e discernimento para entender a sua importânci a. As vanguardas

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Cadernos de Lecras da UFF - Alunos da Pós-Graduaçiio 2003, n.28, p. 1 1 7- 125, 2003

O programa de Lima Barreto para a l iteratura brasi le ira

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Irenfsia Torres de Oliveira

REsuMo Este artigo procura mostrar como os textos de Lima Barreto sobre literatura e as crónicas sobre livros de seus contemporâneos definem um programa para a literarura brasileira. O valor mais evidente desse programa é a simpl icidade. Nas crónicas, a valorização da linguagem cotidiana, da observação própria, da necessidade do ângulo crítico e uma visão do símbolo favorecem discussões que ampliam e adensam a concepção de simplicidade e mostram a consistência do programa formulado por Lima Barreto, em permanente diálogo com o seu tempo e o seu país.

Numa das anotações de seu diário, datada de 1 905 , Lima Barreto se queixava dos círculos l iterários da época. Faltava formação aos novos escritores, que tinham um lamentável pendor para a cópia de autores portugueses menores. A literatura

a que se propunham era pequena, amesquinhada diante da tradição européia que o futuro escritor tinha na cabeça, que o havia formado e às suas expectativas:

É uma l i teratura de concerri, de palavrinhas, de coisinhas, não há neles um grande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de epopéia, o ciclo lírico que há neles é mal encaminhado para a li teratura estreitamente pessoal, no que de pessoal há de inferior e banal: amores ricos, mortes de parentes e coisas ass im. (Barreto, 1 993: 63)

Em 1 907, Lima Barreto apresentou a revista Floreal, como uma tentativa de furar o bloqueio das tendências dominantes da literatura na época e de criar algo diferente. Fazia a ressalva de que a revista não representava uma escola, um movimento, um conj unto determinado de idéias, porque nesse momento, segundo o autor, a crítica estava exata­mente tentando abalar as certezas, os dogmas, como acontecia até mesmo nas ciências e na matemática (Barreto, 1 956b: 1 8 1 ) . A idéia de que o começo do século era um momento mais negativo que positivo, do ponto de vista intelectual, dá o tom da análise histórica do livro A era dos impérios, de Eric Hobsbawm. A coincidência da avaliação do escritor brasileiro, em 1 907, com a tese retrospectiva bem fundamentada do h istoriador inglês, quase oitenta anos depois, mostra que Lima Barreto tinha conhecimento dos debates importantes que se davam no mundo e discernimento para entender a sua impo rtância. As vanguardas

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artísticas propriamente não lhe interessaram como modelo direto, mas é certo que o autor refletiu e escreveu a partir do fundamento negativo onde elas tiveram origem.

Nessa apresentação, entretanto , como também nos seus escritos posteriores, Lima rejeitou a idéia de ruptura, de descolamento da tradição. Para ele, o novo se encadeava no antigo, ambos podendo inclusive coexistir.

No período em que escreveu a sua obra de ficção e a publicou, os comentários de Lima Barreto sobre literatura restringiram-se praticamente aos seus próprios textos. Res­pondeu por carta a algumas críticas recebidas em j ornais, sempre gentil, tentando esclare­cer intenções, procedimentos, agradecendo, algumas vezes dando razão aos maus j ulga­mentos sobre esse ou aquele aspecto de seu trabalho .

Em 1 9 1 8 , começou um período intenso de crônicas sobre textos literários, que trazi­am a visão e as expectativas de Lima Barreto para a literatura brasileira. Daí até 1 922, quando morreu, o escritor lutou por uma maneira de entender e de fazer literatura. Essa é a matéria principal do presente ensaio.

A concepção contrária àquela da literatura amesquinhada de que havia falado em 1 905 mostrou-se principalmente na interpelação de Lima a Coelho Neto, que era o gran­de escritor do período e tinha dezenas de livros publicados. A literatura, para este, era um exercício estilístico. Seu gosto pelas muitas palavras, de preferência adjetivos, pelas frases de efeito e imagens raras resultaram em textos brilhantes e preciosos. Enfim, era quem melhor encarnava a atmosfera diletante e deslumbrada da alta sociedade do Rio de Janei­ro, no começo do século .

Lima Barreto formulou nas crônicas uma posição de combate a esse ambiente e à sua literatura. Tendo como modelo a tradição do romance que havia empreendido a análise e a crítica da sociedade burguesa européia, denunciava a prática literária de então , no Brasil, representada principalmente por Coelho Neto, como um empobrecimento. Uma grande literatura não podia dar as costas para as importantes questões da época, devia debatê-las, ser " um veículo de difusão das grandes idéias do tempo" . 1

E o tempo, como o escritor sabia, era de crise, de mudança de valores, de crítica aos fundamentos das instituições, o que deve ter dado à sua atuação o sentido de urgência, de militância:

Temos que rever os fundamentos da pátria, da família, do Estado, da propriedade; remos que rever os fundamentos da arre e da ciência; e que campo vasto está aí para uma grande literatura, tal e qual nos deu a Rússia, a imorral lirerarura dos Tourguêneffs, dos Tolsróis, do gigantesco Dosroiévski, igual a Shakespeare, e mesmo do Gorki! (Barreto, 1 95Gb: 1 65-6)

Para um leitor de hoje, é difícil avaliar a distância entre a literatura que se fazia na época e essa outra desestabilizadora proposta por Lima Barreto. Toda a literatura "sorriso

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da sociedade", muitos autores célebres, tornaram-se simplesmente obscuros hoj e em dia, conhecidos apenas dos estudiosos e pesquisadores interessados naquela época. Boa parte dos romances não sobreviveu à mudança de padrão de gosto e de sensibilidade que o modernismo representou e consolidou. Outra parte desses livros não chegou até nós talvez pela razão de não terem vindo ao encontro de nenhuma necessidade nossa, sequer de entreteni­mento. É bem escrita, bem articulada, prende o leitor, mesmo o de hoje, mas ao que parece esse tipo de narrativa, apenas interessante, cada época produz para o seu próprio consumo.

Lima procurava formas desestabilizadoras para uma época de abalos. Criticou Coe­lho Neto por ter como modelo os Goncourts, ou mesmo Flaubert, que queriam "pintar com a palavra escrita". E completará: "O mundo é hoje mais rico e mais complexo . . . "

(Barreto, 1 956 b: 76) , demonstrando a consciência primordial para o autor moderno, de que o século XX tinha importantes diferenças em relação ao século XIX e estas não lhe deviam escapar. Esse mundo pedia uma literatura mais ativa, militante. A distância para o que se produzia então era realmente grande.

A afirmação de que Lima estava atualizado com a atmosfera intelectual, com as ques­tões da época, como ele mesmo defendia, pode suscitar uma dúvida, considerando o de­bate literário moderno. É que essa época também tinha refo rçado a questão da autonomia da arte. A crise da representação, como parte dos abalos, tornara a relação entre arte e realidade ainda mais problemática. A autonomia da arte (a delimitação de um campo onde se podia tudo) tinha como avesso, segundo Terry Eagleton , na Ideologia da estética, o isolamento, o enfraquecimento de seu papel social , a impotência. A literatura ativa, crítica e destruidora de fundamentos desejada por Lima teria atualidade, não seria incom­patível com o seu tempo ?

Antonio Candido disse e m u m texto importante que "quem luta contra obstáculos reais fica mais sereno" (Candido, 1989: 1 56). Talvez tenha sido essa uma vantagem de Lima sobre as muitas complicações da época. Na literatura dominante e decadente que ele con­denava, estava o melhor exemplo de autonomia da arte, se isso significar simplesmente independência em relação à vida real, seus problemas e conflitos. A despeito de toda a liberdade de imaginação, seus compromissos de elite eram inegáveis. A discussão de auto­n omia aqui era de outra ordem, dizia respeito mais às possibilidades de uma literatura com veia crítica e liberada do ponto de vista dominante. Lima Barreto teve bem clara essa dosagem, soube entender onde nós éramos e o nde não éramos a Europa, ou seja , que debates europeus nos esclareciam e interessavam.

De qualquer forma, a concepção de Lima é de uma literatura forte, consistente, com um papel social dos mais importantes. Dita assim, como algo quase grandioso ou herói-

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co, poderia parecer que, respeitada a base de crítica, não faria mal que n ossa tradição de eloqüência e exaltação a consti tuísse, por assim dizer, em defesa de outros ideais. O que não aconteceria pela primeira vez. Escritores e poetas românticos, principalmente estes últimos, tinham voltado aquela forma de expressão e l inguagem para causas nobres como a abolição. Com Machado de Assis, a linguagem literária de elite atingira um auge ao mesmo tempo de elegância e crítica, façanha que devia à lógica do narrador volúvel. No tempo de Lima, ela precisava apenas de seu próprio brilho para viver. Como imaginar que estivesse, nesse ponto, j ustamente se esgotando? Um mundo mais rico e mais complexo trazia novas exigências. No caso do Brasil, o amadurecimento de uma consciência das camadas sociais baixas enriquecia e complicava o conhecimento crítico do país, motivo pelo qual a linguagem literária com longa tradição elitista ia deixando claro seu teor ideo­lógico e esgotando sua capacidade de interessar aos novos intelectuais. A identificação da linguagem literária da época com a elite é a primeira formulação ao mesmo tempo estética e ética para o escritor Lima Barreto. "O Senhor Neto quer fazer constar ao público brasi­leiro que literatura é escrever bonito, fazer brindes de sobremesa, para satisfação dos rica­ços" (Barreto, 1 956 b: 1 93) .

A simplicidade da linguagem era o valor mais evidente dessa nova literatura pela qual Lima Barreto m ilitou, para usar um termo de seu agrado. Por carta, nas resenhas de j or­nais, a apreciação dos livros, de literatura ou não, se detinha na capacidade do autor de jogar fora o estilo palavroso da época, o pedantismo, a declamação, em favor da precisão, do aproveitamento da linguagem cotidiana e da capacidade comunicativa da língua. Ana­lisando o livro O homem sem máscara ( 1 92 1 ) , de Vinício da Veiga, e depois de fazer duras críticas ao estetismo de Wilde que, segundo ele, tinha influenciado o romance, Lima se defendeu de uma eventual acusação de passadismo pelo combate sistemático que fazia às fórmulas já consagradas, ditas abaixo como o clichê grego e o português clássico dos médicos escritores:

Não julgue o senhor Vinício que eu seja um tradicionalista em literamra e em arte. Por roda a parte renho mostrado a minha insurreição contra o cliché grego e sempre que posso desanco a cacetada dos clássicos portugueses que os médicos literatos nos querem impingir como modelos de bela linguagem. (Barreto, 1 95Gb: 1 99-200)

Realmente, o combate às fórmulas de prestígio e a acolhida às manifestações de ten­dências alternativas para a literatura brasileira era constante e pontual. Em 1 9 1 8 , Lima escreveu crônicas que valorizavam a "sobriedade de dizer, a naturalidade do diálogo" , de Ranulfo Prata; a falta de " pedantismo de frase ou exibições de uma sabedoria de emprés­timo", de Teo Filho , autores em começo de carreira; e que condenavam "a mediocridade evidente (dos dramaturgos portugueses J úlio Dantas e Antero de Figueiredo) , que a dis-

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farçam com um palavreado luxuriante, um barulho de frase . . . "; bem como a pura chinoiserie de estilo e fraseado" de Coelho Neto, a despeito desses três últimos serem autores de sucesso naquele momento no Brasil. Nos anos seguintes, encontramos nas suas crônicas essa mesma dedicação de reafirmar valores, com compreensão ao mesmo tempo estética e ética.

Avaliando bem, a linguagem simples não apenas tornava acessível o texto l iterário a um número maior de pessoas e às pessoas mais pobres, mas também forçava o autor a adquirir uma visão própria e original da vida circundante, sem as escoras das convenções de sucesso já estabelecidas para a literatura. Sem a descrição elevada, idealizada, ou de qualquer forma convencionalizada da mulher, por exemplo , descrever uma mulher de­pendia de olhar as mulheres que estavam em volta e de tentar vê-las com os próprios olhos. Essa valorização de uma visão própria não significa, entretanto , determinismo vul­gar ou naturalista. Em outras crônicas, que veremos mais adiante , Lima demonstra como na "visão própria" transparecem as simpatias, as aversões, as vergonhas, enfim, os dados ideológicos da posição de quem olha.

Também cerras revelações sobre a vida só podiam transparecer se a convenção de linguagem não estivesse sobreposta à observação. Lima concluiu isso na resenha de 1 922 ao livro Tabaréus e tabaroas, de Mário Hora:

Aspectos desses de tão chocante contraste (crueldade/cavalheir ismo, banditismo/ honestidade) só podem ser colhidos por um artista de raça em que preocupações gramaticais e estilísticas não deturpem a naturalidade da linguagem dos personagens nem transformem a paisagem rala daquelas paragens em florestas da Índia. (Barreto, 1 956b: p. 1 68)

Já em 1 9 1 9 , encontramos esse tipo de preocupação no comentário ao livro Canais e lagoas, de Otávio Brandão. Trata-se de um estudo sobre uma região de Alagoas, escrito por um jovem estudioso , e não sabemos ao certo como o tal livro foi parar nas mãos de Lima Barreto. Este o abordou preferencialmente do ponto de vista da linguagem, no que o livro parece um tanto exagerado e, com isso , emblemático. A crítica é respeitosa mas engraçada, porque mostra as comparações um tanto descabidas que o texto estabelecia entre os canais de Alagoas e outras regiões famosas do mundo:

Ele os compara; irá à Holanda, com os seus canais; irá à caldéia; irá à Amazônia: e o próprio Oiticica, no prefácio, dragando, aprofundando canais e construindo muros protetores, numa obscura lagoa, até agora somente sulcada por canoas, transforma-a no papel, em instantes, num dos primeiros portos do mundo! (Barreto, 1 9 5 6b: 1 5 6-7)

Essa resenha é muito interessante porque nela se encontram as grandes qualidades do intelectual Lima Barreto. É perspicaz, crítico, irânico, e ao mesmo tempo compreensivo e solidário . À parte o "patriotismo comarquense ou distrital" do autor, Lima não esque-

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ceu de valorizar no j ovem estudioso a capacidade de produzir conhecimentos profundos com muito poucos recursos (destino que acompanha o pesquisador brasileiro até hoj e) e o aconselhou: "( . . . ) devia abandonar a visão literária de altas regiões clímicas, como o Egito e o Nilo, para unicamente ver o seu Cádiz e o seu humilíssimo Paraíba, tal qual são. "

A obra não é literária e é um exemplo importante d e como o s problemas da lingua­gem não estavam restritos às possib ilidades da literatura, mas às de todo o pensamento . Antonio Candido, endossando Mário Vieira de Mello, localiza na década de 30, na Amé­rica Latina, entre os intelectuais, a mudança de uma visão de país novo , que era ideológi­ca, para a noção de "país subdesenvolvido" , fase em que, na conclusão do crítico brasilei­ro, as literaturas latino-americanas passariam decisivamente a encarar os problemas do atraso econômico e social (Candido, 1 989: 1 40-1 62) .

Mas olhar para o seu lugar humilde num tempo como esse pode também trazer mal­entendidos. M ostrar o feio como feio pode ser tomado como ofensa e não como hones­tidade intelectual. A figura do Jeca-Tatu, personagem do livro Urupês, de M onteiro Lobato, causou polêmica. Lima Barreto entrou no assunto, defendendo o escritor paulistano, numa resenha de 1 92 1 .

Aconteceu que, de várias partes do B rasil, tinham vindo reclamações pela representa­ção pouco honrosa do homem do campo , sertanej o, roceiro, caboclo etc . , sendo as mais veementes as de Ildefonso Albano, do Ceará e Leônidas de Loiola, do Paraná. O cearense inclusive chamava para os seus conterrâneos sertanejos as qualidades de uma energia excepcional e uma capacidade de trabalho extraordinária. Lima não considerava que fosse esse o ponto , se os caboclos cearenses teriam mesmo essas miríflcas virtudes (do que ele desconfiava) ou não. M onteiro Lobato tinha, na verdade, descrito o roceiro da sua região de origem, o norte paulista. "O que o Senhor Monteiro Lobato vê e sente é o seu Taubaté, o seu Guaratinguetá; ele não tem a pretensão de encaixar no seu J eca-Ta tu, Rolandos de Uruburetama, nem Reinaldos B ororós, e mais filhos d'Aymo n das gestas Tupaicas." (Barreto, 1 956 b : 1 1 0). U m pouco antes, já t inha dito: " Ele não tem pretensões simbolistas, como nunca tiveram os grandes mestres da literatura. Tais pretensões são cabíveis nos transcendentes autores que ninguém lê." (Barreto, 1 956 b: 1 09) .

Ildefonso Albano e outros levaram a figura do J eca-Tatu a um alto nível de abstração, onde imaginavam estar todas as figuras dos livros. Foram deixadas de lado as qualidades do J eca, as que indicavam o seu contexto, para torná-lo geral, uma representação de todos os h omens que viviam na roça. Depois , o J eca seria questionado exatamente porque não era t odos os homens que viviam na roça: nem os do Ceará, nem os do Paraná e nem os de outros lugares.

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Nessa perspectiva, a representação de modos de viver específicos tornava-se impossí­vel. Como essa visão era muito disseminada, pode-se entender a dimensão teórica do vazio de qualidades históricas e sociais em grande parte da produção do período.

Arriscando um pouco mais de teorização, o problema da análise como a de Ildefonso está na compreensão parcial de que o símbolo , ou seja, a capacidade simbólica da obra literária, se realiza por uma desqualificação (no caso, o J eca sem as características ou qual idades da sua região) que o generaliza (o Jeca como homem do campo de qualquer lugar do B rasil) . J ogam-se fora as qualidades para universalizar o símbolo por um denominador comum (o de homem do campo) , acreditando em que está aí (em poder ser o homem do campo de todo o Brasil) a sua força. Se tomarmos uma obra-prima como o D. Quixote, que atravessou continentes e séculos, e reduzirmos a figura central a um símbolo do tipo que Ildefonso constrói , sem qualidades e generalizante, este poderia ser glosado por qualquer obra medíocre, sem que o aproveitamento daquele "símbolo" lhe desse a mesma capacidade de transcendência da obra de Cervantes. O que a obra medíocre não terá são as suas tensões, a impregnação das qualidades, p orque o símbolo se ativa como tensão apenas em presença de todas as qualidades que o amante da abstração despreza como resto. O símbolo é tenso.

Significa, no caso do Tabaréus e tabaroas, que um modo de ser muito específico, ao qual o escritor felizmente deu atenção, trouxe contrastes imprevistos, como Lima apontou, que podem, dependendo da atuação do escritor, estruturar a obra. Para a sobrevivência literária do Jeca, mais do que p oder identificar-se com o homem do campo de todo o Brasil (ser o denominador comum) , importa saber se aquele modo de ser específico está em tensão com as qualidades mobilizadas no texto , h istóricas, sociais, geográficas etc. Essa tensão, que não pode existir sem as qualidades, dá ao símbolo seus benefícios: alcance, generalidade, representatividade, universalidade.

Lima Barreto não se perdia nessas coisas porque tinha os pés no chão, sensibilidade e muita leitura. Os grandes mestres da literatura, como mencionou acima, foram referênci­as para questionar uns tantos limites da época.

No programa de Lima para a literatura brasileira, a busca da simplicidade trazia im­plicações essenciais para a linguagem e a representação, como vimos. Procurando esclare­cer as relações entre ética e estética, o escri to r mostrou em várias cró nicas os prejuízos causados às obras pelo elitismo dos seus autores.

A literatura brasileira, na versão "sorriso da sociedade" , além da superficialidade, dava um passo atrás em relação às conquistas da l iteratura européia, no assunto da representa­ção dos pobres. Para muitos autores da época, só existia Botafogo e só lá podiam aconte-

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OLIVEIRA, lrenísia Torres de. O programa de Lima Barrero para a liceracura brasileira

cer coisas dignas de narração. M uita idealização e abstração formam o caldo ralo dessas narrativas que não chegaram até nós.

Outros aurores procuraram obter uma visão mais próxima da sociedade, mas acaba­ram revelando seus limites ideológicos. Lima encontrou omissões significativas, como no caso do romance Mau olhado ( 1 9 1 9 ) , que pretendia ser uma descrição total da fazenda.

A impressão que se rem é magnífica; mas acabada a leitura da excelente obra do Senhor Veiga M iranda, cujas vis ras sociais , sociológicas, seria melhor dizer, se rraem no desenvolvimenro e no propósito de sua novela, o leitor menos comum procura alguma coisa que lhe falta. É o escravo. (Barrero, 1 9 56b: 142)

Mais adiante Lima completa que a amiga propriedade agrícola, que Veiga desejou descrever, não podia existir como tal sem o escravo e por isso não haveria justificativa para que este só aparecesse eventualmente, como nome ou cenário pitoresco (na cena do batuque) (Ibid.) .

Uma análise social corajosa, no Brasil, t inha de enfrentar temas difíceis como a escra­vidão. Do pomo de vista da elite, que se desejava ilustrada ou mundana, um assumo inclusive vergonhoso. Lima reclamava dos autores a disposição de examinar e representar as relações sociais mais importantes, sem fuga. Em outra resenha, sobre o romance O homem sem máscara ( 1 9 2 1 ) , de Vinício da Veiga, que narrava as perversões sexuais no high sociery, Lima aconselhou ao autor empregar sua energia em criticar a elite não no plano da sexualidade mas no dos interesses sociais, onde a mesma lesava muito mais a sociedade (Barreto, 1956 b: 203) . O problema é que a narrativa se esgotava nos aspectos ao mesmo tempo picantes e moralistas. Vinha de longe a dificuldade dos escritores brasilei­ros de centrar suas narrativas nos desacertos e conflitos cruciais da sociedade.

Lima destacou a predisposição elitista ainda em outro romance, Senhora de engenho ( 1 9 2 1 ) , do pernambucano Mario Sere:

Não há nele nenhum arroubo, nenhuma abertura para o Mistério da Vida e o Infinito do Universo; mas há em conrraposição, uma grande fidelidade na reprodução do que observa, e muita simpatia pelos lares felizes e ricos, de modo que o lendo eu, fico a pensar que, em Pernambuco, tudo é como em "Águas Claras"; tudo é feliz, mesmo a linda Maria da Betânia. ( Barrero, 19 56b: 1 06)

A reprodução conscienciosa e fiel se faz do ponto de vista do narrador, que precisa ser qualificado, justamente o que Lima faz na citação acima. A felicidade geral, a falta de conflitos é iro nizada. Esse comentário é fundamental porque acrescenta à observação - à visão própria - a necessidade do ângulo crítico.

Há nas idé ias de Lima, sem dúvida, um grande resgate do ânimo investigativo da tradição do romance europeu. Mas o escritor sabia que a atmosfera de instabilidade e crise da época abria as portas para experiências literárias diferentes. Os novos romances não

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precisavam seguir os modelos j á clássicos de Flaubert ou de Balzac, como afirmou, rese­nhando Madame Pommery, de H ilário Tácito. "Nós não temos mais tempo nem o pés­simo critério de fixar rígidos gêneros li terários." (Barreto, 1956 b: 1 1 6) . Importante é que fossem capazes de se relacionar, apesar de tudo, com as grandes questões da época.

Por fim, não é demais lembrar que foi em discussão, em diálogo com o seu tempo e o seu país, que Lima Barreto delineou esse programa e sonhou com uma literatura ao mesmo tempo relevante, comprometida, corajosa e realizada com simplicidade.

N O TA S

'A literatura devia discutir as questões da época, mas com seus próprios meios, como ficção . Lima critica o escritor Sarurnino de Brito, em uma crônica de 1 92 1 , por ser ames de tudo um ideólogo, um sociólogo que defende (e declama) ideais pela ficção: " . . . não ama as almas pelas almas, não se deleita unicamente com o choque de umas nas outras." (Barreto, 1 9 5Gb: 126) .

REFERtNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Correspondência. São Paulo: Brasiliense, 1 956'. 2v. ___ . Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1 956b. ___ . Um longo sonho do futuro: diários, canas, entrevistas e confissões dispersas. Rio de J aneiro: Graphia Editorial, 1 993. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1 989 . EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de J aneiro: Zahar, 1 993 . HOBSBAWM, Eric J . A era dos impérios: 1 875- 1 9 14 . Rio de J aneiro: Paz e Terra, 1 988. SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1 990.