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SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE DOS PARADIGMAS Programa de Estudos Pós-graduados em Direito Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2006

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SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM

O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O

PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE

DOS PARADIGMAS

Programa de Estudos Pós-graduados em Direito

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo 2006

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SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM

O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O

PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE

DOS PARADIGMAS

Programa de Estudos Pós-graduados em Direito

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTORA em Direito das Relações Sociais, sob a orientação da professora Doutora Haydeé Maria Roveratti.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo 2006

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SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM

O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O PROCESSUALISMO

CIENTÍFICO E A CRISE DOS PARADIGMAS

Tese defendida no Programa de Estudos Pós-graduados em Direito da

Pontifica Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do título de Doutora

em Direito das Relações Sociais, aprovada em ________ de ______ de

__________________, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes

professores:

____________________________________________ Profª. Drª. Haydeé Maria Roveratti.

Orientadora

____________________________________________

___________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

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Dedico

Este trabalho à vovó Norica pela

lição mais preciosa que seu exemplo de

vida ensina: o amor.

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AGRADECIMENTOS

A todos que acreditaram na

viabilidade deste projeto, oferecendo o

seu apoio incondicional, a sua

compreensão, carinho e dedicação.

Especialmente, agradeço à professora

Haydeé Maria Roveratti, à minha mãe,

Luzia Alves Carvalho, e às minhas

filhas, Sulanne e Francine.

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Esta vida é uma estranha hospedaria,

De onde se parte quase sempre às tontas,

Pois nunca as nossas malas estão prontas,

E a nossa conta nunca está em dia.

(Mário Quintana)

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RESUMO

Admitindo-se que há discussões a respeito do caráter científico do

direito, a pesquisa é iniciada com uma abordagem sobre as condições atuais do

conhecimento científico. A partir disso, procurou-se contextualizar o direito

cientificamente e no campo da teoria dos sistemas, a qual orienta

metodologicamente o trabalho.

Sob uma perspectiva sistêmica, tratou-se de demonstrar que o

conhecimento do direito está estruturalmente vinculado à Constituição Federal.

Neste aspecto, foi destacado o reconhecimento da existência de um Sistema

Constitucional, que demandou estudos sobre as teorias materiais e a

hermenêutica crítica da Constituição. O estudo dos princípios Constitucionais de

processo foi realizado com o objetivo de estabelecer uma conexão entre a

hermenêutica Constitucional e o direito processual.

Ainda quanto à teoria dos sistemas, foi explicitado o referencial teórico

adotado, apresentando-se os conceitos básicos e fundamentais da teoria

autopoiética luhmanniana, através da qual o objeto do estudo foi examinado.

A historicidade do processo foi realizada demonstrando-se que os seus

problemas, atualmente em discussão, fazem parte de sua existência ao longo do

tempo, portanto, a insatisfação com a prestação jurisdicional é um fenômeno

histórico.

Apresentada a análise sobre a instrumentalidade do processo no contexto

da modernidade, tomou-se como referencial a crise dos paradigmas como

proposto por Boaventura de Sousa Santos a fim de verificar as condições atuais

do sistema jurídico em face dos sistemas social, político e econômico.

Conclui-se por afirmar que os problemas ligados à realização prática do

direito são sistêmicos, logo, dificilmente propostas dogmáticas que enfoquem o

direito como sistema fechado terão êxito na obtenção de uma prestação

jurisdicional célere e justa.

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ABSTRACT

Admitting that there are some discussions concerning the scientific

character of law, this research begins with an approach on today’s scientific

knowledge. From this, it was tried to put the law in two contexts: first, the

scientific one and second, in the field of systems theory, which methodologically

directs the paper.

Under a systemic perspective it was aimed to demonstrate that the law

knowledge is structurally linked to the National Constitution. In this aspect, it

was highlighted the acknowledgement of the existence of a constitutional system,

which required some studies about the material theories and the Constitutional

hermeneutic criticism. The study of the principles of constitutional process was

performed aiming to establish a connection between the constitutional

hermeneutic and the processual law.

Still concerning the system theories, the adopted theoretical referential

was explained by presenting the fundamental and basic concepts of the

Luhmann´s autopoietic theory through which the study object was examined.

The process historicity was performed demonstrating that its problems that

are being discussed at present, are part of its existence throughout the time,

therefore, the dissatisfaction with the jurisdictional role is historical.

After presenting the analysis over the process instrumentality in the

modernity context, it was adopted as a referential the paradigm crisis, as

proposed by Boaventura de Souza Santos, aiming to verify the present conditions

of the juridical system concerning the social, political and economical systems.

In conclusion, it is possible to state that those problems related to the

practical performance of law are systemic, and so, it is very difficult that

dogmatic and other proposals, which focus the law as a close system, will

succeed in obtaining a fast and fair jurisdictional performance.

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SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................. 06

ABSTRACT .............................................................................................. 07

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................ 11

2 UMA PERSPECTIVA PARA A PESQUISA ........................................ 18

2.1

CONSTRUINDO A CIÊNCIA .................................................................

21

2.2 A CIÊNCIA EM THOMAS KHUN .......................................................... 24

2.3 CIÊNCIAS NATURAIS E CIÊNCIAS SOCIAIS .................................... 42

2.4 QUESTÕES A RESPEITO DO ESTUDO DO DIREITO. ....................... 51

2.5 COMO CONHECER O DIREITO? .......................................................... 52

3 O DIREITO NO CONTEXTO DA TEORIA DOS SISTEMAS............... 66

3.1

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS ........................................................

66

3.2 CIÊNCIA DOS SISTEMAS ...................................................................... 69

3.3 SISTEMAS SOCIAIS ................................................................................ 70

3.4 SISTEMA JURÍDICO ............................................................................... 73

3.4.1 Posição do Direito em relação à teoria dos sistemas jurídicos............. 76

3.4.2 A tradicional sistêmica do Direito .......................................................... 78

3.4.3 Sistemas jurídicos teleológicos ou finalísticos ....................................... 82

3.4.4 O sistema jurídico no marxismo ............................................................. 87

3.4.5 Atualidades a respeito da sistêmica jurídica.......................................... 94

3.5 SISTEMA CONSTITUCIONAL .............................................................. 102

3.5.1 Constituição formal e Constituição real ................................................ 104

3.5.2 Teorias materiais da Constituição .......................................................... 106

3.6 HERMENÊUTICA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL............ 112

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4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O PROCESSO DE EXECUÇÃO..............................................................................................

120

4.1

A TEORIA DOS PRINCÍPIOS..................................................................

124

4.2 ESTRUTURA DOS PRINCÍPIOS............................................................. 127

4.3 PRINCÍPIOS, REGRAS E POSTULADOS NORMATIVOS................... 130

5

ALGUMAS QUESTÕES DA TEORIA GERAL DO DIREITO.........

134

5.1

EPISTEMOLOGIA JURÍDICA ................................................................

135

5.2 CULTURALISMO JURÍDICO ................................................................. 143

5.3 O DIREITO PROCESSUAL NO CONTEXTO DA TEORIA DA

CIÊNCIA DO DIREITO ...........................................................................

154

5.3.1 O direito processual como objeto cultural ............................................ 158

6 O DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORANEAMENTE.............. 166

6.1 O DIREITO PROCESSUAL AUTOPOIÉTICO....................................... 169

6.1.1 A autopoiése em Niklas Luhmann .......................................................... 171

6.1.2 Complexidade, contingência e expectativa de expectativas................. 177

6.2 O DIREITO COMO ESTRUTURA DE SIMPLIFICAÇÃO DA

COMPLEXIDADE ....................................................................................

188

6.3 REFLEXIVIDADE ENTRE EXPECTATIVAS COGNITIVAS E

NORMATIVAS .........................................................................................

198

6.4 O PARADIGMA DA AUTOPOIESE NO PROCESSO DE

EXECUÇÃO ..............................................................................................

203

7

PANORÂMICA HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL...........

216

7.1

AUTODEFESA, AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO...

222

7.2 PROCESSO ROMANO ............................................................................ 228

7.2.1 Sistema da justiça privada ou da ordo judiciarum privatorum............. 232

7.2.1.1 Ações da Lei ou Legis Acciones. ............................................................... 233

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7.2.1.2 Processo formular ou per formulam .......................................................... 240

7.2.2 Sistema da justiça pública ou da extraordinaria cognitio..................... 247

7.2.2.1 A execução forçada no sistema da justiça pública em Roma.................... 257

7.3 PROCESSO ROMANO-BARBÁRICO ................................................... 262

7.4 PROCESSO JUDICIALISTA ................................................................... 266

7.4.1 Processo canônico ................................................................................... 275

7.5 PROCESSO PRAXISTA. ......................................................................... 289

7.6 PROCESSO PROCEDIMENTALISTA ................................................... 294

7.7 PROCESSO CIENTÍFICO ........................................................................ 301

8 O PROCESSO DE EXECUÇÃO INSTRUMENTAL..........................

311

8.1 A TEORIA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO.................. 314

8.2 A CRISE DOS PARADIGMAS E SEUS REFLEXOS NO DIREITO .... 318

8.3 QUESTÕES INSTRUMENTAIS E PARADIGMÁTICAS DA

ALTERAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO...................................

325

8.4 PRINCIPAIS MUDANÇAS PROMOVIDAS PELA LEI 11.232 DE

22/12/2005 .................................................................................................

330

9 CONCLUSÃO...........................................................................................

340

REFERÊNCIAS ......................................................................................

358

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1 INTRODUÇÃO

O despertar da atenção, do raciocínio ou da curiosidade é

normalmente estimulado quando algo ocorre em desacordo com uma

expectativa, quando não é possível explicar um fenômeno, ou quando as

explicações tradicionais não funcionam. Essas experiências produzem

estímulos no observador que têm o efeito de criar a problematização do

objeto observado.

Em relação a esse trabalho, a observadora pousa seu “olhar”

sob as questões que estão envolvidas com a insatisfação dos

jurisdicionados quanto à realização prática dos comandos legais através

do Estado. Nesse sentido, qual(is) poderia(m) ser a(s) causa(s) da

ineficiência do Poder Judiciário? Esse questionamento tem implicações

muito amplas e complexas, porque envolve todos os aspectos ligados ao

conhecimento jurídico, assim como: questões filosófica, sociológica,

econômica, administrativa, histórica. Enfim, percebeu-se que seria

necessário delimitar o enfoque do problema.

Opta-se por estudar aquele aspecto que se considera

fundamental quanto à realização do direito privado na modernidade,

trata-se do cumprimento forçado das obrigações legal, contratual ou

decorrente de atos ilícitos. A execução de títulos executivos judiciais ou

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extrajudiciais apresenta-se problemática. A doutrina brasileira admite

que o cumprimento forçado da obrigação privada é o ponto onde são

evidenciados os problemas das dificuldades para obter a realização

prática do direito, revelando a ineficiência do Poder Judiciário.

Poderia ser estudada a execução trabalhista ou civilista, sendo

que a escolha quanto à última se justifica porque é em seu âmbito que se

observam as maiores dificuldades, as quais estão demandando a

alteração estrutural do direito processual brasileiro.

Curiosamente, as mudanças na execução civil estão ocorrendo

no sentido de absorver algumas características do modelo trabalhista de

execução. Dentre esses, destaca-se o fato de que a execução de título

executivo judicial na justiça comum perderá sua autonomia ontológica,

tal como ocorre no processo trabalhista. No entanto, isso não significa

afirmar que haverá identidade dos procedimentos, pois a execução

trabalhista ocorre por sub-rogação legal, podendo o magistrado

determinar ex officio a realização dos atos necessários ao acertamento e à

constrição patrimonial do devedor.

Ao que tudo indica, os avanços no sentido de obter a

simplificação dos procedimentos judiciais do cumprimento forçado da

sentença proferida relativamente a obrigações civilistas não autoriza que

os procedimentos executivos sejam realizados por atos praticados de

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ofício pelo magistrado. Isso demonstra a existência de diferenças que

podem ser consideradas relevantes entre as duas formas de obtenção

forçada do cumprimento das obrigações privadas. Do mesmo modo,

permite a afirmação anterior quanto à situação problemática da

satisfação das obrigações civis através da ação do Estado.

Está se desenvolvendo entre os doutrinadores brasileiros a

idéia segundo a qual existem antagonismos entre a segurança e a

efetividade jurídica, logo, na medida em que se aumenta a segurança,

reduz-se a possibilidade da efetividade, estabelecendo-se uma relação

inversamente proporcional entre estes dois institutos jurídicos. Este

também é um importante aspecto a ser observado para se entender as

causas que justificam a ineficiência do Judiciário.

Na delimitação do problema, opta-se pelo estudo dos

procedimentos executivos adotados pela justiça comum, tendo em vista

as questões da ineficiência do Poder Judiciário, sendo abordadas a

segurança e a efetividade jurídica, bem como o atual referencial teórico

do processo. Será objeto de estudo, igualmente, os problemas extrínsecos

ao direito processual que podem agravar a morosidade para a prestação

jurisdicional.

Quanto à apresentação do tema de estudos e sua delimitação,

esta tese versa sobre os problemas da segurança, efetividade, celeridade

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e “justiça” da prestação jurisdicional, tomando como referencial os

procedimentos adotados para a obtenção da realização forçada das

obrigações civis.

Será adotado o método de abordagem hipotético-dedutivo,

pois, a partir de determinadas hipóteses proceder-se-á ao estudo dos

aspectos gerais que envolvem o conhecimento do direito para,

posteriormente, identificarem-se aqueles problemas que são

considerados relevantes para o processo e algumas questões legais

pertinentes ao tema.

Quanto ao método de procedimento, o estudo é desenvolvido

com referência a corrente jurídica sociologista e histórica. A base teórica

a qual instrumentaliza o estudo é fornecida pela teoria dos sistemas

sociais sintetizada por Niklas Luhmann.

Admite-se a priori como hipótese básica que o processo de

execução é ineficiente na realização do direito, porque as teorias a

respeito do poder de coerção estatal foram elaboradas tendo em vista

Estados autoritários, e anteriormente à consolidação dos preceitos

Constitucionais asseguradores do devido processo legal, do contraditório

e da ampla defesa. Nos Estados Democráticos de Direito, a segurança

dos jurisdicionados assume preponderância e, somente através da via

institucional do processo Constitucional, pode ser realizada a promessa

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da paz social garantida pela jurisdição. Essa situação parece exigir a

revisão e a elaboração de uma Teoria Geral pautada nos princípios

Constitucionais e adequada ao processo contemporâneo.

Secundariamente, admite-se que a Teoria do Processualismo

Científico cria uma artificialidade que compromete a validação social do

processo, porque pretende uma ordem desvinculada do contexto

sociológico intrínseco a todas as formulações humanas. Desse modo,

acredita-se que o direito processual desconheça as relações sistêmicas

que estabelece, comprometendo-se com o individualismo e com o

patrimonialismo, erigidos na modernidade e exacerbados principalmente

a partir do século XVIII.

Entende-se que a justificativa para este trabalho está vinculada

ao fato de que os referenciais teóricos e ideológicos do processo, tendo

sido formulados sob a influência do movimento burguês na França,

assimilaram a necessidade daquela classe social em permanecer no

poder. Assim, a idéia da segurança jurídico-processual estaria referida

especificamente aos ocupantes dos poderes político e econômico, os

quais, a partir do discurso da universalização dos bens emergentes

através do liberalismo econômico, efetivamente consolidaram-se no

poder, criando para as massas populacionais proletárias um saldo

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residual negativo, no sentido de que as promessas da “liberdade,

igualdade e fraternidade” restaram frustradas.

Considera-se necessário o estudo com vista à compreensão das

alterações ocorridas no campo social e jurídico, desde o século XVIII, as

quais afetaram o direito até o ponto em que, no caso brasileiro, percebe-

se um crescente descrédito na capacidade do Poder Judiciário realizar a

“justiça”. Após a consolidação da burguesia no poder, a igualdade foi

conceitualmente reduzida à idéia da igualdade formal, ou seja, igual

perante o sistema legal e político, as disparidades real, concreta foram

relegadas. E a liberdade pode ser encarada da seguinte forma: “Livres e

iguais para não serem livres e iguais”1. Desse modo, a metodologia

qualitativa aliada a teorias críticas que tratam dos sistemas autopoiéticos

justifica o estudo do processo de execução das obrigações privadas no

Brasil diante das propostas em andamento e já aprovadas quanto às

alterações no modelo processual.

O objetivo central é apresentar a descrição e possíveis

explicações para as causas da morosidade quanto à prestação

jurisdicional, para tanto, observar-se-á os procedimentos executivos.

Acredita-se que este trabalho possa contribuir para que o

processo seja estudado como uma técnica, um instrumento a serviço do

1 FACHIN, Luiz. Teoria crítica do Direito Civil, p. 35.

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direito material, mas, sobretudo, tendo em vista as transformações

sociais contemporâneas a fim de que se realize a garantia da paz social.

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2 UMA PERSPECTIVA PARA A PESQUISA

A condição humana, diante do “todo” que forma sua complexa

estrutura existencial, independentemente de como se pretenda entender

isto, pode ser aceita como de “debilidade”, aqui referida a uma situação

em face do processo de formulação do conhecimento no plano da

compreensão dos fatos que envolvem a vida e também a sua ausência.

A história do Homem na Terra, até à contemporaneidade,

produziu diversas formas de conhecimentos, mas sempre referidos a

alguma coisa, logo, circunstancial, parcial e insuficiente para lhe revelar

um conhecimento que pudesse traduzir a verdade2 sobre a natureza ou a

respeito de sua existência.

O pesquisador do Século XXI deve considerar que o

conhecimento é relativo e as verdades que produz são parciais, podendo

afirmar-se que as teorias não são válidas para sempre, sendo esta uma

das lições apresentadas pela história das realizações científicas. Ainda

que o conhecimento pareça sólido, serão possíveis novas observações e

novas idéias que modificam aquele enfoque, renovando os conceitos.

2 SANTOS, Pedro Sérgio dos. Direito Processual Penal & a insuficiência metodologia: a alternativa da mecânica quântica, p. 48 ... dos gregos ao homem contemporâneo do Ocidente, o problema da verdade vem tomando nuances diferenciadas sem deixar de ocupar um lugar de destaque no campo da filosofia e da produção científica. Todavia, é forçoso dizer que esse problema, tendo inicialmente um caráter científico, e a posteriori, de natureza filosófica, encontrou na física, particularmente na mecânica quântica e na teoria da relatividade, conceitos e (in) definições que certamente estarão a nortear qualquer modelo de pesquisa em qualquer área do saber, que se venha a desenvolver no século XXI, ...

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Isso é parte da ciência, que trabalha lentamente para decifrar o enigma

do mundo natural.

Alfred Noyes elegantemente chamou a atitude do Homem em

busca do conhecimento de “longa batalha pela luz”3. Esta perspectiva foi

destinada às ciências naturais, contudo, entende-se que possa ser

igualmente usada para as ciências sociais. É interessante lembrar que a

aplicação no campo das pesquisas voltadas para o conhecimento social

da metodologia criada no plano das ciências naturais tem sido objeto de

dissenso entre os estudiosos de metodologia. Esta problemática deve ser

superada, pois a interdisciplinaridade tem melhores possibilidades de

levar a produção de um conhecimento mais amplo e satisfatório ao

Homem. Observe-se que a compartimentação tem importância didática,

mas pode ser entendida como reducionista do conhecimento científico4.

O que se pretende é jogar novas “luzes” ao processo

jurisdicional brasileiro, sobretudo, quanto a sua função

instrumentalizadora da realização efetiva da jurisdição voltada para os

direitos privados, entendidos como tal, aqueles de natureza individual e

patrimonial.

3RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência, p. 125. 4SANTOS, Boaventura de Sousa. Um curso sobre as ciências, p. 46-47. ... É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. ... Os males desta parcelização do conhecimento e do reducionismo arbitrário que transporta consigo são hoje reconhecidos, mas as medidas propostas para os corrigir acabam em geral por os reproduzir sob outra forma.

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Acredita-se que o momento é oportuno, porque a realização da

entrega da prestação jurisdicional tem sido objeto de estudos doutrinários

e reformas legais tanto no direito processual como institucionalmente

através da reforma do Poder Judiciário brasileiro.

Destaca-se a questão de que os movimentos de reestruturação

do modelo brasileiro para a prestação jurisdicional a par da problemática

referente à segurança e efetividade que devem ser inerentes ao direito,

seja este compreendido como técnica, ciência ou arte; procuram

respostas ou soluções em “velhas” fórmulas, ou melhor, no sistema

estruturalista formalista desenhado pelo positivismo e teorizado no

direito por Kelsen em sua Teoria Pura.

É vislumbrada a possibilidade através desta pesquisa de

acrescentar-se alguns elementos teóricos ligados ao criticismo

metodológico. Desse modo, a instrumentalização do processo deve ser

superadora do estruturalismo formalista, concebido no final do século

XIX na Alemanha, que deu origem ao processualismo científico.

As referências básicas “ideológicas” que orientam este

trabalho foram proclamadas por Montoro5, quando declarou a

necessidade do direito assumir seu papel social, sobretudo, nos países em

vias de desenvolvimento, como o Brasil.

5 MONTORO ,André Franco. Introdução à Ciência do Direito, p.25-26.

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Quanto ao processo, Cândido Rangel Dinamarco6 defende seu

papel sociológico, como mecanismo para garantir a realização do direito

material, assim, o direito processual é o “caminho” que assegura a

democratização da justiça. A técnica processual deve cumprir sua função

de orientar a prestação jurisdicional segura e efetiva, assim, servindo ao

Homem e a sociedade7.

2.1 CONSTRUINDO A CIÊNCIA

Construir ciência é formular conhecimento para explicar ao

Homem a natureza e sua própria condição diante de si mesmo e de

outros indivíduos, podendo, ainda, ser mencionada a questão metafísica.

A filosofia é considerada a mãe das ciências, mas, a partir do

empirismo positivista do Círculo de Viena8, não mais se reconheceu a

6 DINAMARCO, Cândido Rangel . A Instrumentalidade do processo, p. 186. 7 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit., p. 186. ... hoje, todo estudo teleológico da jurisdição e do sistema processual há de extrapolar os lindes do direito e da sua vida, projetando-se para fora. É preciso, além do objetivo puramente jurídico da jurisdição, encarar também as tarefas que lhe cabem perante a sociedade e perante o Estado como tal. O processualista contemporâneo tem a responsabilidae de conscientizar esses três planos, recusando-se a permanecer num só, sob pena de esterilidade nas suas construções, timidez ou endereçamento destoante das diretrizes do próprio Estado social. (grifo nosso) 8 ALVES-MAZZOTTI , Alda Judith ; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 10-11. O termo positivismo vem de Comte, que considerava a ciência como o paradigma de todo conhecimento. No entanto, mais importante do que Comte para a linha anglo-americana foi a combinação de idéias empiristas (Mill, Hume, Mach & Russell) com o uso da lógica moderna (a partir dos trabalhos em matemática e lógica de Hilbert, Peano, Frege, Russell e das idéias do Tractatus Lógico-Philosophicus, de Wittgenstein). Daí o movimento ser chamado também de positivismo lógico ou empirismo lógico. O movimento foi influenciado ainda pelas novas descobertas em física, principalmente a teoria quântica e a teoria da relatividade. ... Embora tenha surgido nos anos 20, na Áustria (a partir do movimento conhecido como “Círculo de Viena”, fundado pelo filósofo Moritz Schlick), Alemanha e Polônia, muitos de seus principais filósofos, como Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, Herbert Feigl e Otto Neurath, emigraram para os Estados Unidos ou Inglaterra com o surgimento do nazismo, ... Para o positivismo, a Lógica e a Matemática seriam válidas porque estabelecem as regras da linguagem, constituindo-se em um conhecimento a priori, ou seja, independente da experiência. ... A indução, portanto, é o processo pelo qual podemos obter e confirmar hipóteses e enunciados gerais a partir da observação. (grifos nossos).

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22

filosofia como uma ciência, porque os conhecimentos por ela elaborados

não têm rigor metodológico, não dispondo de um objeto próprio e

específico de conhecimento e de uma linguagem adequada e auto-

referenciada para descrever e explicar o objeto de estudo.

Não se pretende adentrar na questão da natureza do

conhecimento filosófico, mas registrar que se optou em determinado

momento histórico por negar ao conhecimento integral do ser a

característica da cientificidade.

Atualmente, o conhecimento científico vincula-se a

epistemologia que se refere a uma filosofia da ciência que considera a

maneira como os saberes são organizados, partindo da lógica em seu

sentido amplo.

Desse modo, a lógica é entendida como o estudo da maneira

pela qual os saberes humanos se estruturam, o que implica averiguar

quais as suas condições de validade.

Para a epistemologia, o ato de conhecer pressupõe um objeto a

ser observado, sendo que, desse ato de observar9, surgem sínteses

descritivas que se denominam leis. Estas são submetidas a verificações

9 FOUREZ, Gerard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências, p. 40. ... a observação não é puramente passiva: trata-se antes de uma certa organização da visão. ... para observar, é preciso relacionar aquilo que se vê com noções que já se possuía anteriormente. Uma observação é uma interpretação: é integrar uma certa visão na representação teórica que fazemos da realidade.

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23

experimentais que, se confirmarem as leis, são inseridas em teorias que

visam a uma descrição e explicação da realidade.

A observação construtora do conhecimento pressupõe uma

linguagem para sua expressão. Toda forma de expressão de linguagem é

cultural, o que permite afirmar que a ciência não é indiferente à cultura.

Assim, os cientistas são vinculados a um ponto de partida prévio, são

integrantes de um universo cultural e lingüístico. A observação neutra do

objeto é uma ficção.

As proposições empíricas indiscutíveis apenas o são no sentido

de uma convenção prática ligada ao trabalho científico, quando assim

são declaradas com referências a fatos que, momentaneamente, não serão

discutidos.

Toda observação é realizada por alguém, que é o indivíduo, o

sujeito10 que observa. A esse respeito, para a construção do

conhecimento, é interessante pensar sobre o referencial, ou seja, os

objetos existem em si mesmos, ou é o observador que os configura e,

portanto, atribui-lhes existência. Assim, observar é meramente descrever

o objeto ou o observador efetivamente cria o objeto através de um

processo de interpretação dos dados sensitivos. Essas questões não

10 Ibidem, p.50. O termo “sujeito” designa então o conjunto das atividades estruturantes necessárias a observação.

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24

desafiam uma resposta específica tendo sido discutidas ao longo da

história da ciência.

A partir da revolução copernicana, a observação é entendida

como uma construção que tem, no sujeito, seu ponto de partida. Isto

legitimou a visão da ciência como uma construção humana, tendo o

conhecimento assumido uma subjetividade relacionada com a linguagem

e com pressupostos culturais. Dessa forma, a objetividade da ciência é

ligada à instituição social do mundo.

O conhecimento científico é verificado em um contexto

coletivo, em que, a partir de proposições teóricas (leis não testadas), é

realizada a verificação empírica que poderá produzir as proposições

empíricas, que são um conjunto lingüístico convencionado pela

comunidade científica como portador da verdade em relação a

determinado objeto em face de determinado método e circunstâncias. A

ciência não produz um conhecimento atemporal e absoluto, mas

convencional.

2.2 A CIÊNCIA EM THOMAS KUHN

Este estudioso de física na Universidade de Harvard acabou se

interessando pela história da ciência e pela filosofia, escrevendo um dos

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importantes trabalhos a respeito das transformações científicas11. Para

tanto ele formula os conceitos de “ciência normal”, “paradigma”,

identifica as características das revoluções científicas e as questões

referentes ao progresso científico.

O objetivo desse estudo não é o aprofundamento na obra de

Thomas Kuhn, mas identificar alguns pontos fundamentais em seu

trabalho, graças a sua indiscutível relevância no campo do conhecimento

científico, por ter acrescentado elementos que reordenaram a história da

ciência.

Tendo como ponto de partida sua posição no quadro da

história da ciência, Kuhn aponta duas tarefas que são consideras

fundamentais para o historiador da ciência; a identificação de quando e

de por quem cada fato, teoria ou lei científica contemporânea foi

descoberta ou inventada, e a descrição e explicação do amontoado de

erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos

elementos constituintes do moderno texto científico. A construção da

idéia de que o progresso da ciência vincula-se mais a invenções e

descobertas individuais em detrimento da idéia de que ocorra por

movimentos de acumulação de conhecimentos foi possível em

decorrência da mudança de postura dos historiadores que passaram a

abordar novas espécies de questões e a traçar linhas diferentes de

11 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas, p. 22.

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pesquisa, freqüentemente não-cumulativos, de desenvolvimento para as

ciências.

Essa nova postura dos historiadores da ciência está voltada

para uma abordagem da ciência e do cientista em seu tempo, assim a

história da ciência passou a ter o máximo de coerência interna e a maior

adequação possível à natureza. Esta nova imagem da ciência foi

constituída, sobretudo, após o trabalho de Alexandre Kayré12.

A partir das colocações básicas a respeito da história e dos

historiadores da ciência, Kuhn apresenta seu conceito de paradigma13

como sendo “as realizações científicas universalmente reconhecidas que,

durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para

uma comunidade de praticantes de uma ciência”14. Podem ser

identificadas duas características fundamentais nos paradigmas; a

realização apresentada no paradigma deve ser sem precedentes, a fim de

atrair um grupo duradouro de partidários, e deve ser suficientemente

aberta para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos

pelo grupo redefinido de praticantes da ciência.

As revoluções e o progresso científico são relacionados a

alteração do paradigma, logo, os problemas e as soluções modelares são

12 Op cit., p. 22. 13 Ibidem, p.43-44. ... um paradigma é um modelo ou padrão aceitos. ... Os paradigmas adquirem seu status porque são mais bem sucedidos que seus competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece como grave. 14 Ibidem, p. 13.

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27

substituídos por novos problemas e respostas, o que provoca a

transformação do mundo.

A ciência em Kuhn pode ser identificada como uma reunião de

fatos, teorias e métodos organizados em textos atuais. Esse autor refere-

se a “ciência normal”15, como a pesquisa baseada em uma ou mais

realizações científicas passadas, ou seja, realizada dentro de paradigmas.

Para contrapô-la, a ciência produzida nos momentos de ruptura

do paradigma. Dessa forma, as pesquisas produzidas com base em

paradigmas compartilhados estão comprometidas com as mesmas regras

e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o consenso

aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para

a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada.

Sob uma perspectiva de desenvolvimento da ciência, um

campo de estudos pode cruzar a divisa entre o que o historiador poderia

chamar de sua pré-história como ciência, e sua história propriamente

dita. Os movimentos de transição não são repentinos ou inequívocos;

assim como não são historicamente graduais, isto é, coextensivos com o

desenvolvimento total dos campos de estudos em que ocorreram.

15 Ibidem, p. 45. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são visto. ... a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma.

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28

Dessa forma, sem a possibilidade de considerar os eventos do

passado, torna-se difícil encontrar outro critério que revele claramente

que um campo de estudos tornou-se uma ciência.

No enfoque sobre a natureza da ciência normal, destaca-se sua

função de atualização obtida através da ampliação do conhecimento

daqueles fatos que o paradigma apresenta como particularmente

relevantes, aumentando a correlação entre esses fatos e as predições do

paradigma e articulando ainda mais o paradigma. Esse trabalho é

denominado operação de limpeza.

A operação de limpeza, conquanto seja redutora do espaço da

pesquisa, porque fica limitada ao paradigma, é essencial para o

desenvolvimento da ciência, uma vez que tem um caráter de

verticalização da investigação16.

A pesquisa baseada em paradigmas, desenvolvida, portanto,

no contexto da ciência normal17, inicia-se com a coleta de fatos que visa

às experiências e observações descritivas. Três focos normais são

identificados para a investigação científica dos fatos, os quais não são

sempre ou permanentemente distintos. Quanto à classe dos fatos que o

16 Ibidem, p. 45. A ciência normal possui um mecanismo interno que assegura o relaxamento das restrições que limitam a pesquisa toda vez que o paradigma do qual derivam deixa de funcionar efetivamente. Nessa altura os cientistas começam a comportar-se de maneira diferente e a natureza dos problemas de pesquisa muda. 16 Ibidem, p. 51. Uma parte (embora pequena) do trabalho teórico normal consiste simplesmente em usar a teoria existente para prever informações fatuais dotadas de valor intrínseco. 17 Ibidem, p. 51. Uma parte (embora pequena) do trabalho teórico normal consiste simplesmente em usar a teoria existente para prever informações fatuais dotadas de valor intrínseco.

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29

paradigma mostrou ser particularmente reveladora da natureza das

coisas, ao empregá-lo na resolução de problemas, o paradigma tornou-os

merecedores de uma determinação mais precisa, numa variedade maior

de situações. Quanto aos fenômenos determinados pelos fatos, a partir de

uma observação intrínseca, há a verificação se podem ser diretamente

comparados com as predições da teoria do paradigma. Finalmente, o

trabalho empírico empreendido para articular a teoria do paradigma,

resolvendo algumas de suas ambigüidades residuais e permitindo a

solução de problemas para os quais ela anteriormente só tinha chamado a

atenção, esgota as atividades de coleta de fatos na ciência normal18.

A articulação de um paradigma não se restringe a

determinação de constantes universais, podendo visar a leis

quantitativas. Assim, a relação entre paradigma qualitativo e lei

quantitativa é tão geral e tão estreita que, desde Galileo, essas leis, com

freqüência, têm sido corretamente adivinhadas com o auxílio de um

paradigma, anos antes que um aparelho possa ser projetado para sua

determinação experimental19.

18 Ibidem, p. 48. ... a obra de Newton indicava que a força entre duas unidades de massa a uma unidade de distância seria a mesma para todos os tipos de matéria, em todas as posições do universo. Mas os problemas que Newton examinava podiam ser resolvidos sem nem mesmo estimar o tamanho dessa atração, a constante da gravitação universal. E durante o século que se seguiu ao aparecimento dos Principia, ninguém imaginou um aparelho capaz de determinar essa constante. A famosa determinação de Cavendish, na última década do século XVIII, tampouco foi a última. Desde então, em vista de sua posição central na teoria física, a busca de valores mais precisos para a constante gravitacional tem sido objeto de repetidos esforços de numerosos experimentadores de primeira qualidade. ... Poucos desses complexos esforços teriam sido concebidos e nenhum teria sido realizado sem uma teoria do paradigma para definir o problema e garantir a existência de uma solução. 19 Ibidem, p. 49.

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30

Pode concluir-se afirmando que para Thomas Kuhn a ciência

normal é pautada em três classes de problemas: determinação do fato

significativo, harmonização dos fatos com a teoria e articulação da

teoria. Fora desse esquema, podem ser encontrados problemas

extraordinários, emergidos em ocasiões especiais geradas pelo avanço da

ciência normal. Esses problemas levam ao abandono do paradigma e são

os pontos de apoio em torno dos quais giram as revoluções científicas20.

Os modos de aplicação do paradigma podem levar a pequenas

ou grandes revoluções científicas. Isto deriva do fato de que o mesmo

paradigma pode ser empregado em diversas linhas da pesquisa, sem que

todos apliquem as mesmas leis que o integram. Ressalta-se que, por

intermédio da ciência normal, podem ocorrer alterações internas no

paradigma, situação em que alguma de suas leis poderia ser modificada,

o que não significa o seu desaparecimento. Esse fato afeta somente os

estudos pautados naquela lei, permanecendo inalteradas as demais linhas

de pesquisas fundamentadas em outras leis do paradigma que não

tenham sido modificadas. Nesses casos, caracterizam-se as pequenas

revoluções científicas.

Antes de falar especificamente do que pode ser considerado

20 Ibidem, p. 77. ... fenômenos novos e insuspeitados são periodicamente descobertos pela pesquisa científica; cientistas têm constantemente inventado teorias radicalmente novas. O exame histórico nos sugere que o empreendimento científico desenvolveu uma técnica particularmente eficiente na produção de surpresas dessa natureza.

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como uma grande revolução científica, é pertinente tratar do que se

entende como uma descoberta e uma invenção.A descoberta é um

processo que exige tempo para a observação e formulação conceitual de

um novo tipo de fenômeno, sendo um acontecimento complexo que

envolve o reconhecimento tanto da existência de algo, como de sua

natureza.

Sobressai igualmente a questão da teoria em relação ao

paradigma, sendo certo que para Thomas Kuhn nem todas as teorias são

teorias paradigmáticas21.

Nos momentos de “crise do paradigma”22, os cientistas

desenvolvem teorias especulativas e desarticuladas, que, entretanto,

podem indicar o caminho para uma nova descoberta, que nem sempre

está vinculada à hipótese especulativa e experimental proposta pelas

teorias de referência. Conclui, então, que somente após a articulação

da experiência e da teoria experimental, pode surgir a descoberta e a

teoria converte-se em paradigma23.

21 Idem, p. 87. 22 Idem, p. 95 a 99. A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras. ... Essa proliferação de versões de uma teoria é um sintoma muito usual de crise. 23 Idem, p. 88.

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As descobertas das quais surgem novos fenômenos apresentam

as seguintes características: a consciência prévia da anomalia24 25, a

emergência gradual e simultânea de um reconhecimento, tanto no plano

conceitual como no plano da observação, e a conseqüente mudança das

categorias e procedimentos paradigmáticos. O procedimento da

descoberta se completa quando o que era considerado anômalo se

converte no previsto. A constatação desse processo justifica as razões

pelas quais a ciência normal é eficaz para provocar as descobertas.

Observa-se que uma nova teoria surge somente após um

fracasso caracterizado na atividade normal de resolução de problemas.

Esse fracasso é prenunciado, pois a ciência normal26 considerava o

problema relacionado com a crise total ou parcialmente solucionado.

Desse modo, o fracasso com um novo tipo de problema pode ser

decepcionante, no entanto, não pode ser surpreendente.

A importância da crise para a constituição de novas teorias e

paradigmas caracteriza-se pelo fato de que a solução para cada um dos

problemas foi antecipada, pelo menos parcialmente, em um período no

24 Idem, p. 92. A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma. 25 Idem, p. 113. ... para uma anomalia originar uma crise, deve ser algo mais do que uma simples anomalia. Sempre existem dificuldades em qualquer parte da adequação entre o paradigma e a natureza; a maioria, cedo ou tarde, acaba sendo resolvida, freqüentemente através de processos que não poderiam ter sido previstos. maioria, cedo ou tarde, acaba sendo resolvida, freqüentemente através de processos que não poderiam ter sido previstos. 26 Idem, p. 111. A ciência normal esforça-se (e deve fazê-lo constantemente) para aproximar sempre mais a teoria e os fatos.

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qual a ciência correspondente não estava em crise. Tendo sido essas

antecipações ignoradas exatamente porque não havia uma crise27.

Podem ser identificados dois efeitos gerais para as crises; todas

elas iniciam com o obscurecimento de um paradigma e o conseqüente

relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal. Assim, ocorre

uma proliferação de articulações divergentes, pois as regras da ciência

normal tornam-se indistintas.

Os cientistas perdem o referencial claro a respeito do

paradigma, não mais sendo possível identificá-lo com exatidão e mesmo

soluções-padrão de problemas anteriormente aceitas passam a ser

questionadas.

Os cientistas28, contudo, mesmo em face de anomalias

prolongadas e graves, têm uma postura de resistência, na medida em que

defendem o paradigma vigente, e somente no caso de suspeitas quanto às

soluções apresentadas aos problemas é que são criadas as alternativas.

As novas teorias surgem quando um fenômeno portador de anomalia se

recusa, obstinadamente, a ser assimilado aos paradigmas existentes, isso

se verifica quando ele não fornece um lugar no campo visual do cientista

27 Idem, p. 105. O significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos. 28 Idem, p. 109. ... indubitavelmente alguns homens foram levados a abandonar a ciência devido a sua inabilidade para tolerar crises. Tal como os artistas, os cientistas criadores precisam, em determinadas ocasiões, ser capazes de viver em um mundo desordenado - ... “a tensão essencial” implícita na pesquisa científica. (grifo nosso)

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capaz de abranger a anomalia.

A rejeição de um paradigma implica invariavelmente na

aceitação de outro que o substitua29, sendo que o juízo que conduz a essa

decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza,

bem como sua comparação mútua30.

Diante da crise, emergem as novas teorias científicas as quais

somente alcançarão o status do paradigma se puderem substituí-lo, ou

seja, quando puderem oferecer respostas aos problemas de modo mais

satisfatório do que aquelas até então apresentadas.

Podem ser apontadas três maneiras em que se resolvem as

crises. O paradigma vigente reordena o quebra-cabeça da anomalia e

resolve o problema. Em outros casos, o problema revela-se insolúvel e é

abandonado, a fim de quê, em outro momento, seja retomado, quando se

dispor de novos instrumentos para sua abordagem. E, finalmente, os

casos em que ocorrem as revoluções científicas, entendidas como

aquelas em que a crise termina com a emergência de um novo candidato

a paradigma e com uma subseqüente batalha por sua aceitação.

Esta transição de um paradigma a outro promove a

reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, alterando-se

29 Idem, p. 110. Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência. 30 Idem, p. 108.

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algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma,

bem como muitos de seus métodos e aplicações31. Sobreleva o modo

como são modificadas as formas de solução dos problemas. Completada

a transição, os cientistas terão modificado a sua concepção sobre suas

pesquisas, seus métodos e seus objetivos.

Ao final, os cientistas terão, diante de si, o mesmo conjunto de

dados que, anteriormente, mas estabelecendo entre eles um novo sistema

de relações, organizado a partir de um quadro de referência diferente.

Nos momentos de crise, ocorre o retorno do cientista a análise

filosófica que tem sido fundamental para a ciência contemporânea,

ocorrendo uma mudança na natureza de suas pesquisas, proliferando as

articulações concorrentes, a disposição de tentar qualquer coisa, a

expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao

debate sobre os fundamentos, são reveladores da pesquisa extraordinária.

A ciência extraordinária ou não-normal é produzida nos

momentos de crise dos paradigmas, até que se estabeleçam as condições

para a reestruturação de uma nova ciência normal. Nessas circunstâncias,

verifica-se a grande revolução científica.

Do ponto de vista histórico, não é plausível que a inclusão

31 Idem, p. 119. ... nenhuma experiência pode ser concebida sem o apoio de alguma espécie de teoria, o cientista em crise tentará constantemente gerar teorias especulativas que, se bem sucedidas, possam abrir o caminho para um novo paradigma e, se mal sucedidas, possam ser abandonadas com relativa facilidade.

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lógica seja uma concepção admissível na relação existente entre teorias

científicas sucessivas32. Portanto, as diferenças entre paradigmas

sucessivos são, ao mesmo tempo, necessárias e irreconciliáveis33;

conseqüentemente, sua mudança requer uma redefinição da ciência

correspondente.

Sob o ponto de vista dos paradigmas como parte constitutiva

da ciência, os cientistas têm neste uma teoria34, um método e padrões

científicos, que compõem uma mistura inextrincável.35

As mudanças de paradigmas levam os cientistas a ver36 o

32 Idem, p. 137. Precisamente por não envolver a introdução de objetos ou conceitos adicionais, a transição da mecânica newtoniana para a einsteiniana ilustra com particular clareza a revolução científica como sendo um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas vêem o mundo. 33 Idem, p. 138. A tradição científica normal que emerge de uma revolução científica é não somente incompatível, mas muitas vezes verdadeiramente incomensurável com aquela que a precedeu. 34 Idem, p. 143. Por meio das teorias que encarnam, os paradigmas demonstram ser constitutivos da atividade científica. 35 Idem, p. 142-143. Não é de surpreender que alguns historiadores tenham argumentado que a história da ciência registra um crescimento constante da maturidade e do refinamento da concepção que o homem possui a respeito da natureza da ciência. Todavia é ainda mais difícil defender o desenvolvimento cumulativo dos problemas e padrões científicos do que a acumulação de teorias. A tentativa de explicar a gravidade, embora proveitosamente abandonada pela maioria dos cientistas do século XVIII, não estava orientada para um problema intrinsecamente ilegítimo; as objeções às forças inatas não eram nem inerentemente acientíficas, nem metafísicas em algum sentido pejorativo. Não existem padrões exteriores que permitam um julgamento científico dessa espécie. O que ocorreu não foi nem uma queda, nem uma elevação de padrões, mas simplesmente uma mudança exigida pela adoção de um novo paradigma. 36 Idem, p. 165. Após revoluções científicas, muitas manipulações e medições antigas tornam-se irrelevantes e são substituídas por outras. ... Mas mudanças dessa espécie nunca são totais. Não importa o que o cientista possa então ver, após a revolução o cientista ainda está olhando pra o mesmo mundo. Além disso, grande parte de sua linguagem e a maior parte de seus instrumentos de laboratório continuam sendo os mesmos de antes , embora anteriormente ele os possa ter empregado de maneira diferente. Em conseqüência disso, a ciência pós-revolucionária invariavelmente inclui muitas das mesmas manipulações, realizadas com os mesmo instrumentos e descritas nos mesmos termos empregados por sua predecessora pré-revolucionária.

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mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira

diferente. Na medida em que seu único acesso a esse mundo ocorre

através do que vêem e fazem, podendo ser afirmado que, após uma

revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente37. O que ocorre

durante uma grande revolução científica não é totalmente redutível a

uma reinterpretação38 de dados estáveis e individuais. Isto não quer dizer

que os cientistas não interpretem observações e dados, o que, contudo,

vincula-se a um paradigma e, portanto, ocorre no quadro da ciência

normal, a qual tem por objetivo refinar, ampliar e articular um paradigma

que já existe, apenas possibilitando o reconhecimento de anomalias e

crises.

A interpretação limita-se a articular um paradigma, não

podendo corrigi-lo, pois isso não é papel desempenhado pela ciência

normal.

Questão fundamental quanto ao conhecimento científico se

refere ao fato de atribuir à experiência um caráter neutro e às teorias a

condição de simples interpretações humanas. Quanto a isto, Thomas

37 Idem, p. 171. O autor se refere a um mundo diferente no sentido de que o novo paradigma fornecerá ao cientista uma nova percepção do objeto. Assim, “mesmo após a aceitação da teoria, eles ainda tinham que forçar a natureza e conformar-se a ela, ...”. 38 Idem, p. 157. Em vez de ser um intérprete, o cientista que abraça um novo paradigma é como o homem que usa lentes inversoras. Defrontado com a mesma constelação de objetos que antes e tendo consciência disso, ele os encontra, não obstante, totalmente transformados em muitos de seus detalhes.

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38

Kuhn, trata do assunto afirmando que “a perspectiva epistemológica que

mais freqüentemente guiou a filosofia ocidental durante três séculos

impõe um ‘sim!’ imediato e inequívoco. Na ausência de uma alternativa

já desdobrada, considero impossível abandonar inteiramente essa

perspectiva”39. Dando continuidade a sua posição quanto ao assunto, o

autor afirma que: “Todavia ela já não funciona efetivamente e as

tentativas para fazê-la funcionar por meio da introdução de uma

linguagem de observação neutra parecem-me agora sem esperança”40.

Quanto à linguagem, a tentativa de criar um modelo que

permitisse aproximá-la dos objetos de percepção e expressá-los de forma

pura e geral, como referido anteriormente, tem se revelado insatisfatório.

Isto se deve a que o cientista não realiza operações e medições de um

dado objeto da experiência, mas coleta, com dificuldade, índices

concretos para os conteúdos das percepções mais elementares41 42.

A propósito de evidenciar como a ciência progride através de

revoluções, atribui-se aos historiadores o equívoco de escrever a história

passada a partir do presente. Os manuais são os meios de divulgação da

39 Idem, p. 161. 40 Idem, p. 161. 41 Idem, p. 162. As operações e medições, de maneira muito mais clara do que a experiência imediata da qual em parte derivam, são determinadas por um paradigma. A ciência não se ocupa com todas as manifestações possíveis no laboratório. Ao invés disso, seleciona aquelas que são relevantes para a justaposição de um paradigma com a experiência imediata, a qual, por sua vez, foi parcialmente determinada por esse mesmo paradigma. 42 Idem, p. 165. Os paradigmas determinam ao mesmo tempo grandes áreas da experiência. ... Após uma revolução científica, muitas manipulações e medições antigas tornam-se irrelevantes e são substituídas por outras.

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ciência normal, tendo um caráter pedagógico. Diante das alterações na

ciência normal, esses manuais são reescritos, e este procedimento tem

sido realizado de modo a ocultar as revoluções (grandes ou pequenas)

científicas. Isto se deve ao fato de que os relatos históricos apresentados

nesses manuais são fragmetários e parciais, relatando feitos com

referência a fatos presentes, o que leva a uma impressão equivocada de

que os cientistas e estudantes do presente são partícipes de um processo

cumulativo de conhecimentos. Isso é agravado pelo fato de que,

normalmente, são apresentadas apenas as partes do trabalho de antigos

cientistas que possam contribuir com o enunciado e a solução do

problema apresentado pelo paradigma do manual. Contribui também,

para o equívoco referente ao processo cumulativo, o fato dos cientistas

de épocas anteriores serem representados como se tivessem trabalhado

sobre o mesmo conjunto de problemas fixos, e utilizado o mesmo

conjunto de cânones estáveis que a revolução mais recente, em teoria e

metodologia científica, fez parecerem científicos43.

A ciência contemporânea está assentada num complexo de

teorias, métodos e se realiza com base em instrumentos que não existiam

antes da revolução científica que lhes reconheceu a validade. Os

problemas pesquisados e as soluções propostas no passado eram

43 Idem, p. 177-178. ... a tendência dos manuais a tornarem linear o desenvolvimento da ciência acaba escondendo o processo que está na raiz dos episódios mais significativos do desenvolvimento científico.

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40

completamente diferentes dos que atualmente movimentam o quebra-

cabeça da ciência contemporânea. A passagem de uma coisa a outra não

se deve a evolução gradual das teorias, mas resulta de uma reformulação

revolucionária da tradição científica anterior, na qual a relação entre o

cientista e a natureza mediada pelo conhecimento era particular ao seu

tempo.

Após a descrição histórica e analítica dos fatos que envolvem a

estrutura constitutiva do conhecimento científico, é possível identificar

alguns pontos que levam a substituição de um paradigma que embasa

uma ciência normal, através de teorias especulativas até a constituição de

um novo paradigma, que orientará a percepção do cientista em relação

ao seu campo visual do mundo.

Todo procedimento científico está fundamentado na relação

entre o objeto captado pela percepção sensorial do cientista e o modo

como este interpreta essa percepção, seja para descrevê-la ou explicá-la.

Assim, a ciência se realiza sempre com o objetivo de compreender o

mundo. Nesse ambiente, pode ocorrer que um ou vários cientistas façam

uma nova interpretação da natureza (objeto), verificando, então, uma

descoberta ou formulando uma teoria. Esse fato decorre da ação criadora

do cientista, nessa situação, normalmente vinculada a uma atenção

concentrada sobre problemas que provocam crises. Observa-se, ainda,

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41

que os cientistas mais jovens ou menos comprometidos com o paradigma

vigente têm melhores resultados nesse processo.

A partir do quadro acima descrito, são formuladas as teorias de

verificação probabilística, que indicam as novas direções pelas quais

deverão avançar as futuras discussões sobre o problema da verificação,

fazendo-o através da adoção de uma das linguagens de observação. Aqui

se retorna ao fato de que os sistemas de linguagem ou os conceitos não

são portadores de neutralidade científica ou empírica, o que torna

necessária a realização de testes e teorias alternativas à vinculação a

algum paradigma tradicional. Durante esse período, haverá intensa

discussão e as formulações teóricas especulativas lutarão entre si a fim

de demonstrar sua melhor condição para apresentar respostas factíveis

aos problemas.

Ao final desse processo, surge um candidato a paradigma que

assumirá esse papel de referência para a ciência na medida em que a

comunidade científica se convencer a respeito de sua capacidade para

solucionar os problemas que estão ligados à melhor adequação possível

entre a formulação teórica e a descrição ou explicação do objeto.

Uma questão elementar e fundamental é aquela de

perceber o progresso da ciência no contexto de suas

alterações.

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42

Admitindo que a revolução científica leva a novas formas de

resolução de problemas a partir de teorias, métodos e instrumentos

inovadores em relação àqueles utilizados pela ciência normal,

é possível afirmar que isto assegura o progresso da ciência44.

O ponto de referência adotado por Thomas Kuhn não parte da questão

vinculada à ciência enquanto instrumento capaz de levar à verdade. O

progresso da ciência, então, é um “progresso de evolução a partir de um

início primitivo – processo cujos estágios sucessivos caracterizam-se,

por uma compreensão sempre mais refinada e detalhada da natureza” 45.

Para efeito desta tese, será admitido a priori que as ciências

sociais podem ser operacionalizadas através das referências constituídas

para as ciências naturais quanto aos aspectos relativos ao

desenvolvimento histórico, à conceituação de paradigma, à constituição

de seus momentos de crises e ao seu progresso.

2.3 CIÊNCIAS NATURAIS E CIÊNCIAS SOCIAIS

Esta introdução não objetiva resolver os problemas inerentes

ao conhecimento científico, mas posicionar o leitor a respeito de alguns

44 Idem, p. 209. As revoluções terminam com a vitória total de uma dos dois campos rivais. Alguma vez o grupo vencedor afirmará que o resultado de sua vitória não corresponde a um progresso autêntico? Isso equivaleria a admitir que o grupo vencedor estava errado e seus oponentes certos. Pelo menos para a afacção vitoriosa, o resultado de uma revolução deve ser o progresso. 45 Idem, p. 213.

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43

pontos que foram considerados relevantes para a pesquisa. Embora tenha

sido mencionado que a questão metodológica que envolve as ciências

naturais e as ciências sociais não seja importante para este trabalho, esta

posição não tem a pretensão de levar a conclusão de que não há

diferenças entre esse dois ramos de estudos. Aquela consideração limita-

se à questão referente ao fato de que nem sempre as ciências sociais têm

sido consideradas como produtoras de um conhecimento que se

caracterize pela objetividade científica, que fundamenta as ciências

naturais. Sendo sabido que houve e em certa medida ainda há reservas a

aceitação do caráter científico inerente e próprio ao conhecimento

vinculado aos fatos sociais ou decorrentes das relações humanas46.

Atualmente, fala-se na pesquisa quantitativa referindo-se às

características dos trabalhos realizados nas ciências naturais e em

pesquisa qualitativa como sendo aquela forma de abordagem mais

indicada para as ciências sociais. Os critérios que envolvem a

diferenciação entre essas duas formas de desenvolvimento da pesquisa

são interessantes, pois desloca a questão do método47 para um enfoque

relativo aos objetivos que se pretende alcançar com a realização do

46 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, p. 113. Se tivesse que destacar um elemento constante no desenvolvimento da “ciência social”, desde o momento e que, em meados do século XIX, Comte fundou a Sociologia, esse elemento seria o debate epistemológico ou metodológico permanente e, concomitantemente, polêmico, acerca do status científico das Ciências Sociais. 47 VIEGAS, Waldyr. Fundamentos de metodologia científica, p. 123. A palavra método – do grego antigo µετά, no meio de + όδόζ, caminho – significa, etimologicamente, “atalho”, mas na linguagem corrente passou a significar “andar em busca de”.

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44

trabalho científico, afastando-se do critério que considera como

fundamental no processo de conhecimento a posição do observador em

relação ao objeto pesquisado48. Isto vincula o estudo à construção de um

conhecimento que tem uma forte referência prática ligada ao modo de

desenvolvimento e objetivos da pesquisa.

A pesquisa quantitativa ou positivista adota uma metodologia

que produz um conhecimento de caráter descritivo, formalista, não-

analisador e acrítico. O trabalho de caráter quantitativo procura a

explicação dos fenômenos ou objetos estudados através de uma

descrição da realidade social sem julgamento de valores e preocupações

críticas, tomando como ponto de partida a verificação de hipóteses

escolhidas a priori.

O valor científico de uma sociologia explicativa-quantitativa

está vinculado a uma pretensa objetividade do conhecimento, o que

poderia possibilitar a formulação de leis gerais aplicáveis aos fatos

sociais e capazes tanto de explicá-los como de prevê-los.

Os procedimentos próprios a uma metodologia do tipo

quantitativa se fundamentam em dados estatísticos, objetiváveis,

quantificáveis e descontextualizados. Criam uma perspectiva

48 LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica, p. 47-80. Tratando a respeito dos Métodos Científicos são apresentados de forma didática os métodos de abordagem indutivo, dedutivo, hipotético-dedutivo e dialético. Podendo afirmar-se que estes métodos ilustram de que maneira têm sido considerados os referenciais metodológicos básicos para a construção de um conhecimento com caráter científico.

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45

macrossociológica, na medida em que os sistemas sociais são

considerados em sua totalidade. Nessa situação, o objeto das ciências

sociais é equiparado ao objeto das ciências naturais.

As pesquisas voltadas para o estudo dos fenômenos sociais que

adotam uma metodologia do tipo quantitativa consideram o referencial

próprio das ciências naturais para determinar um tipo de conhecimento

que se baseie nos critérios de cientificidade modelados pelo positivismo.

A atitude científica, então, é pautada em procedimentos objetivos,

quantitativos, homogêneos, generalizadores, diferenciadores; as relações

causais são ligadas à investigação da natureza ou a estrutura do fato

estudado, o extraordinário é um caso particular do que é regular, normal

e freqüente49.

A metodologia qualitativa visa a uma pesquisa que propõe a

descrição compreensiva do sentido das ações humanas. A realidade

social é considerada como algo em diálogo, em interação, em

comunicação contínua com o pesquisador.

A ação social é tomada quanto à sua intencionalidade e o

momento subjetivo passa para o primeiro plano na realização dos

estudos. O objeto de estudo não é transcendente ao sujeito cognoscente,

sendo que este, necessariamente, fica implicado no objetivo do

49 CHAUI, Marilena Convite à filosofia, p. 249-250.

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conhecimento50. As pesquisas qualitativas operam com o pluralismo

metodológico.

Sob uma perspectiva qualitativa há uma abordagem

microssociológica, o que consiste em estudar os processos concretos de

comunicação e de interação da ação social. Acredita-se que essas

pesquisas permitam dar um sentido interpretativo aos dados da análise

empírico-quantitativa. A pesquisa desenvolvida com base em uma metodologia

qualitativa se caracteriza por ser construtivista e compreensiva. Sua base filosófica está

principalmente ligada à dialética51 e à fenomenologia52.

Pode-se entender a dialética como um método de enfoque da

realidade sob o prisma de sua dinâmica, portanto, sendo

constitutivamente mutável e contraditória. Através da análise dialética

50 A interdependência e a indissociabilidade são as marcas entre o sujeito e o objeto, ou seja, o sujeito observador é parte integrante do processo cognoscente, dando aos fenômenos significado. O objeto não é inerte, é portador de significados oriundos das relações com os sujeitos. 51 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, p. 185-187. Com efeito, dialética significa em Hegel, em primeiro lugar, o momento negativo de toda realidade. Dir-se-á que, por ser a realidade total de caráter dialético – em virtude da identidade prévia entre a realidade e a razão, identidade que faz do método dialético a própria forma em que a realidade se desenvolve – em virtude da identidade prévia entre a realidade e a razão, identidade que faz do método dialético a própria forma em que a realidade se desenvolve – esse caráter afeta o que ela tem de mais positivo. ... A noção de dialética, o método dialético e, por vezes, a chamada “lógica dialética” são centrais no marxismo ... . Um caráter comum a quase todos os pensadores marxistas é fazer da dialética um método para descrever e entender não, como em Hegel, o autodesenvolvimento de “a Idéia”, mas a realidade enquanto realidade “empírica”. ... Em sua Crítica da Razão Dialética, Sartre apresenta a atividade dialética como “totalizante”. A razão dialética constitui um todo que deve fundar-se a si mesmo. 52 A fenomenologia foi criada pelo filósofo Edmund Husserl, que propõe um método baseado na “redução fenomenológica” que em síntese consiste no seguinte; por meio da análise de como o entendimento intervém no conhecimento das realidades da experiência, permitindo definir o campo da consciência interior e chegar assim aos próprios fenômenos na forma como se apresentam a essa consciência, isto é, atingir a essência real das coisas. Na prática, esse método consiste numa descrição da gênese dos conceitos, o que possibilitaria delimitar os elementos objetivos e subjetivos que intervêm no ato de conhecer.

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47

seria possível descobrir o significado das ações e das relações que se

ocultam nas estruturas sociais.

A fenomenologia consiste em uma abordagem do objeto em

que deve ser ultrapassada sua aparência para alcançar a essência de sua

realidade fenomênica, para tanto usa-se o interacionismo e a

etnometodologia. O interacionismo, pautado na teoria do ator, funda-se

na idéia básica segundo a qual os indivíduos forjam comportamentos

antecipados de outrem e agem em razão de comportamentos esperados

dos outros. Assim, o indivíduo é entendido como um intérprete do

mundo que o rodeia. A etnometodologia investiga o cotidiano dos

pesquisados e o significado que eles atribuem aos acontecimentos diários

e triviais. A análise fenomenológica tem como referência, ou ponto de

partida, o indivíduo.

A respeito do conhecimento formulado no campo das ciências

sociais ou das ciências naturais, no que tange à sua natureza científica,

reporta-se a Boaventura de Souza Santos que, ao inspirar-se em Jacques

Rousseau (1750) a propósito de alguns questionamentos elementares a

respeito da ciência e do senso comum, indaga “pelo papel de todo o

conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no

empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo

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positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade”53. Até que ponto

a ciência melhorou ou poderá melhorar a vida humana?

A complexidade desta pergunta parece irredutível, porque na

cultura ocidental foi incorporada à idéia da ciência a crença quanto ao

avanço tecnológico e progresso, sendo decorrência disso os benefícios

materiais aos quais as pessoas passaram a ter acesso54 a partir da

elaboração de um conhecimento marcado por especificidades que lhe

confere o caráter de científico. Contudo, não se pode negar que referido

“progresso científico” trouxe conseqüências dramáticas para a vida

humana individual e coletiva. A devastação dos ecossistemas (fauna e

flora), o que ameaça a qualidade de vida em período de tempo muito

próximo; a violência globalizada através das organizações de caráter

ideológico-religioso (terrorismo islâmico e de Estado)55 e criminosa

(tráfico internacional de drogas e armas)56; a solidão e o sedentarismo

das pessoas, levando as mesmas ao uso cada vez mais

disseminado de antidepressivos e drogas lícitas do

53 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências, p. 8-9. 54 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, p. 258. Por que, então, temos a ilusão do progresso e de evolução? Por dois motivos principais: ... 1 ... Do lado do cientista, o progresso é uma vivência subjetiva; ... 2. do lado dos não cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução do “novo” e do “fantástico”. Além disso, vemos os resultados tecnológicos das ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fornos de microondas, telefones celulares, cura de doenças julgadas incuráveis, objetos plásticos descartáveis, e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos, pelas empresas e pela propaganda como “signos do progresso” e não da diferença temporal. Do lado dos não cientistas, o progresso é uma crença ideológica. (grifo nosso) 55 BARELA, José Eduardo. O massacre dos inocentes. Revista Veja, p. 106-109. 56TOWNSEND, Mark; HARRIS, Paul. O apocalipse está aí. Revista Carta Capital, p. 46-53

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49

comportamento57, bem como as doenças (como a obesidade)

exigindo tratamentos cada vez mais agressivos à fisiologia humana;

exemplificam os múltiplos aspectos que envolvem a questão de afirmar-

se acriticamente as maravilhas produzidas pelo conhecimento científico

na contemporaneidade.

Duas observações são pertinentes, a posição apresentada a

respeito da ilusão quanto à melhoria da qualidade de vida a partir do

conhecimento científico e, sobretudo, de seu progresso não tem o

objetivo de desconsiderar as conquistas das ciências natural e social, mas

de contextualizar o Homem, pois não se usufrui esses benefícios sem

contrapartida. Vários problemas inerentes à vida humana foram

resolvidos, no entanto, vive-se em um mundo repleto de outros tantos

problemas à espera de solução. O que se pretende é afirmar as diferenças

nos modos de vida em cada tempo, sempre repletos de expectativas.

Ressalta-se, ainda, que é irrenunciável o papel da ciência na condução do

conhecimento em busca de uma melhoria geral na condição de existência

do Homem.

A partir das considerações anteriores, é reafirmada a posição

segundo a qual é possível especular que, no paradigma emergente, “a

distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais deixou de

57 LOZNEANU, Bronie. Prisioneiros das pílulas. Revista Época, p.

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50

ter sentido e utilidade”58. Isto se deve a quê, segundo Boaventura de

Sousa Santos;

a concepção mecanicista da matéria e da natureza a que

contrapõe, com pressuposta evidência, os conceitos de ser

humano, cultura e sociedade. Os avanços recentes da física

e da biologia põem em causa a distinção entre orgânico e

inorgânico, entre seres vivos e matéria inerte e mesmo

entre o humano e o não-humano59.

Há uma convergência entre as diferentes formas de

conhecimento, haja vista uma ontologia renascida na contemporaneidade

em decorrência das frustrações que as restrições cientificistas60 criaram

através das especialidades e compartimentação do conhecimento. A

prometida redução da complexidade proposta através da subordinação do

conhecimento ao método de análise do objeto revelou-se inconsistente,

pois o Homem continua sem resposta para problemas fundamentais

relativos à sua existência.

58 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências, p. 37. 59 Idem, p. 37. 59 CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 280. O cientificismo é a crença infundada de que a ciência pode e deve conhecer tudo, que, de fato, conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como esta é em si mesma. .

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51

2.4 QUESTÕES A RESPEITO DO ESTUDO DO DIREITO.

Abordados alguns temas a respeito da produção do

conhecimento e suas implicações para a condição da vida humana,

considera-se oportuno tratar dessas questões no âmbito do direito. Neste

sentido, há problemas que devem ser demarcados e, na medida do

possível, estudados com vistas à contextualização do direito no quadro

geral dos saberes.

O direito, como objeto de estudo, atende aos pressupostos

necessários para identificação como um conhecimento que tenha a

natureza de científico?

Qual é o objeto de estudo do direito?

Se os estudos a respeito do Direito têm o caráter científico, a

qual ramo da ciência o direito estaria afeito?

Esses problemas são pertinentes ao método, como instrumento

que encaminha o processo de análise do objeto, a partir de sua

fragmentação, classificação e conceituação, basicamente. Portanto, não

se trata de resolver o problema, mas de contextualizá-lo, considerando

um vetor que orienta o desenvolvimento deste trabalho, o qual assenta

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suas pilastras na finalidade do direito, a qual se identificada como sendo

a “de ordenar a convivência e o desenvolvimento dos povos”61.

2.5 COMO CONHECER O DIREITO?

O conhecimento do direito no Brasil até o final da década de

80 do século XX, teve, como referência fundamental, o estudo da norma

jurídica enquanto fenômeno ordenador da sociedade brasileira. Como tal,

as escolas de direito formavam os estudantes a partir de uma visão

positivista estruturalista, logo, os profissionais trabalhavam com o direito

em uma perspectiva da sua validade, vigência e eficácia. Verificadas

estas condições no sistema jurídico, outras discussões a respeito do

direito deveriam ser reservadas à sociologia jurídica, à filosofia jurídica,

enfim, esteve-se por um longo período estudando o direito a partir de um

referencial kelseniano de sistema fechado62.

É perceptível como está se transformando rapidamente o modo

de vida da faixa economicamente ativa da população no Brasil, o que

pode ser atribuído a absorção de novas tecnologias e práticas sociais

61 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito, p. 25. 62 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à Filosofia e à Epistemologia Jurídica. Do formalismo advém a disposição em deduzir o direito a partir de um sistema de conceitos e princípios, com a crença de que a correção material decorre do acerto formal dessa operação. Como conseqüência, tem-se que: (1º) A ordem jurídica passa a ser vista como um sistema fechado e pleno, com autonomia e independência frente à realidade social. (grifo nosso)

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53

decorrentes, entre outros fatores, aos novos padrões de comunicação

estabelecidos globalmente.

No campo do direito, a elaboração da Constituição de 1988

teve um papel importante porque toda a ordem jurídica foi revisitada.

Esta movimentação provocada pela Assembléia Nacional Constituinte

levou a discussões políticas e ideológicas que resultaram na absorção de

determinados valores relevantes, os quais foram incorporados ao sistema

jurídico brasileiro.

Foram selecionados alguns pontos que são identificados como

referenciais para as alterações provocadas no ordenamento jurídico com

a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de

1988.

Assim, destaca-se a adoção do primado do devido processo

legal no artigo 5º, LIV da CF/88, no qual se entende que se asseguram

todas as garantias processuais, desde o acesso irrestrito à jurisdição

estatal até o duplo grau de jurisdição.

O princípio do contraditório e da ampla defesa, previsto no

artigo 5º, LV, são tidos como fundamentais para o Estado Democrático

de Direito; o artigo 1º, inciso III63; o artigo 3º, inciso I64; o artigo 170

63 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 1º. A República Federativa do Brasil ... tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana; 64 Idem, artigo 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

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54

caput e inciso VII65; o artigo 173, § 1º, inciso I66; todos da Constituição

Federal de 1988, entre outros dispositivos que preceituam a respeito da

construção da sociedade brasileira pautada em valores que são

suprajurídicos, no sentido de que se expressam lingüisticamente por

termos que têm uma significação ampla, vinculada à sociologia e à

filosofia.

Acredita-se que a introdução no ordenamento legal desses

termos que apresentam conceitos abertos possibilitou novas formas de

estudo do direito e, portanto, novas formas de conhecê-lo. Igualmente se

têm pensado que as estruturas que o Estado organiza para cumprir seu

papel67 obrigatoriamente devem voltar suas ações para a realização

daqueles ideais Constitucionais.

Procura-se o apoio no texto da Constituição Federal de 1988, a

fim de evidenciar o caráter jurídico das preocupações desta proposta de

estudos. A abordagem específica visa à compreensão sistêmica das

questões inerentes à segurança e à efetividade da prestação jurisdicional.

65 Idem, artigo 170, caput. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VII – redução das desigualdades regionais e sociais; 66 Idem, artigo 173, caput. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividades econômicas de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; 67 O Estado deve ser o responsável pela criação, organização e implementação das políticas de desenvolvimento dos bens eleitos pela nação como fundamentais para o crescimento nacional.

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55

Quer se propor uma forma de conhecer o direito a partir de

uma referência teórica crítica68 da hermenêutica Constitucional. O que se

pretende dizer com isso? O enfoque dos estudos deve ser realizado,

tendo como ponto de partida a Constituição Federal, como preceito

jurídico fundamental, sendo portadora dos dispositivos legais que

asseguram a coerência e a existência do sistema jurídico brasileiro, como

sistema autopoiético. Estes dispositivos legais dependem para sua

aplicação de passarem pelo processo de interpretação, a qual deve ser

realizada criticamente, ou seja, o direito deve ser estudado a partir de

suas interações com outros sistemas, interessando, sobretudo, suas

relações lingüísticas e finalísticas com o ambiente social.

Ressalta-se que a oportunidade dessa proposta de estudos

caminha no sentido indicado pelas recentes constatações realizadas no

campo teórico e doutrinário, tanto nas ciências naturais como nas

ciências sociais, a indicação é a da crise do paradigma dominante69 70.

68 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente, p. 23. Por teoria crítica entendo toda a teoria que não reduz a ‘realidade’ ao que existe. A realidade qualquer que seja o modo como é concebida é considerada pela teoria crítica como um campo de possibilidades e a tarefa da teoria consiste precisamente em definir e avaliar a natureza e o âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado. 69 Ibidem, p. 60-63.O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. ... é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. ... Esta nova visão do mundo e da vida conduz a duas distinções fundamentais, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro. 70 Ibidem, p. 71. Depois da euforia cientista do século XIX e da conseqüente aversão à reflexão filosófica,bem sinalizada pelo positivismo, chegamos a finais do século XX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas com o conhecimento do nosso conhecimento das coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios. (grifos nossos)

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Localiza-se a crise dos paradigmas no direito na observação do

processo de desestruturação dos princípios erigidos pela Revolução

Francesa, quanto ao monismo jurídico, a efetividade e segurança da

jurisdição, a liberdade, a igualdade e a fraternidade; os quais têm

determinado as discussões em torno da criação, organização e aplicação

do direito através dos instrumentos postos à disposição dos indivíduos

pelo Estado.

Retomando a idéia a respeito da qual as ciências naturais e as

ciências sociais se integram para formar uma modalidade de

conhecimento que tem a finalidade de proporcionar melhores condições

para a vida humana. Deve-se mencionar que durante 14 séculos, desde o

Século II até o Século XVI, a teoria de Cláudio Ptolomeu 71, a respeito

do geocentrismo, tratou a Terra como o centro do Universo, o quê, de

certa forma, localizava o Homem como o ser central, criado à imagem e

semelhança de Deus. Os escritos de Nicolau Copérnico foram

desenvolvidos no sentido de negar o geocentrismo e propor um estudo

baseado no heliocentrismo, o que acabou se confirmando com o trabalho

de Galileo Galilei.

71 NOVA Enciclopédia Barsa, v.12, p. 105-106. O compêndio de astronomia elaborado por Ptolomeu no século II foi adotado pela igreja durante toda a Idade Média. ... Personalidade das mais célebres da época do Imperador Marco Aurélio, Ptolomeu foi o último dos grandes sábios gregos e procurou sintetizar o trabalho de seus predecessores. Por meio de suas obras de astronomia, matemática, geometria, física e geografia, a civilização medieval teve seu primeiro contato com a ciência grega. ... Baseado nas idéias de Hiparco, Ptolomeu adotou o sistema geocêntrico, que situa a Terra no centro do universo e, ...

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Essa alteração completa no paradigma reconhecida como

“Revolução Copernicana” ou “Revolução de Copérnico”72 produziu

efeitos durante vários séculos, sabendo-se que o heliocentrismo passou a

ser o referencial para os estudos realizados no campo da astronomia,

permanecendo assim até o presente. Efetivamente, a Revolução

Copernicana representa uma grande revolução científica, onde se

observa uma completa ruptura e mudança no paradigma até então

adotado. Posteriormente, ocorreram pequenas revoluções científicas, as

quais alteraram parcialmente alguns referenciais teóricos e leis a respeito

dos trabalhos desenvolvidos por Copérnico e Galileo, contudo, nenhum

estudo chegou a demonstrar que o heliocentrismo não tenha relação com

a representação do movimento da terra em relação ao sol.

Contemporaneamente à Revolução Copernicana, inicia-se o

ciclo das grandes navegações com a descoberta de regiões desconhecidas

da terra pelos europeus. Podem ser acrescentados inúmeros fatos que

ocorreram a partir do Século XVI aos anteriormente mencionados, mas

não sendo o objetivo deste trabalho tratar exaustivamente da descrição

histórica a respeito do que ocorreu por ocasião da elaboração e

divulgação da teoria heliocêntrica, pretende-se apenas observar que, a

72 SIMMONS, John,.Os 100 maiores cientistas da história, 2002. A “Revolução de Copérnico” é um termo extremamente válido, apesar de seu conteúdo real ter sido muito discutido e disputado por dois séculos, desde que foi empregado pela primeira vez por Immanuel Kant. O termo deve ser entendido como se referindo ao abandono, por Copérnico, da astronomia ptolomaica e sua prioridade em desenvolver um modelo heliocêntrico.

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partir de Galileo, tem início uma completa mudança na maneira de viver

do Homem.

Acredita-se que no campo das ciências humanas73 74 e das

ciências sociais, esse processo levou a posturas que, em última análise,

deslocam os dogmas de uma perspectiva transcendental75 e permite uma

visão imanente do Homem em relação ao mundo e a si mesmo.

Estava preparado o terreno para que René Descartes

escrevesse, em 1637, o Discurso do Método e propusesse uma forma de

conhecimento embasado na decomposição do objeto em partes, o que

asseguraria seu melhor conhecimento. Esta forma de abordagem do

objeto constituiria um tipo de conhecimento rigoroso e que seria

caracterizado como sendo científico.

Desde então e até o final da 2ª Guerra Mundial, quando o

holocausto, Hiroxima e Nagasaki chocaram o mundo, parecia não haver

um modo melhor ou mais eficiente de constituir o conhecimento. Todos

os movimentos científicos parecem ter sido orientados no sentido da

formação de uma ciência caracterizada pela sua especialidade, na medida

73 CHAUI, Marilena, Op. Cit., p. 271. ... a expressão ciências humanas refere-se àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto. ... para ganhar respeitabilidade científica, as disciplinas conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e técnicas propostos pelas ciências da Natureza. 74 Ibidem, p. 273. A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidou-se a partir das contribuições de três correntes de pensamento, que, entre os anos 20 e 50 de nosso século (XX), provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução científica no campo das humanidades. A contribuição da fenomenologia, a contribuição do estruturalismo e a contribuição do marxismo. 75 AULETE, F. Caldas.Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, v. 5, p. 3.625. Transcendental, o mesmo que transcendente. Transcendente, adj., sublime, superior. Metafísico.

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em que se exigia a fragmentação do objeto para o seu efetivo

conhecimento.

Grandes juristas envolveram-se com o nazismo76 e o fascismo,

por reduzirem o direito e a idéia de justiça a alguma coisa menor,

desvinculada do Homem, algo institucional, contextualizado no tempo e

pautado na idéia de que “os fins justificam os meios”77. Acredita-se que

tais fatos criaram as condições para que se questionassem os paradigmas

segundo os quais o conhecimento científico poderia ser formulado de

modo desvinculado de valores éticos.

O conhecimento do direito deve se pautar por meios que

assegurem uma análise mais ampla do fenômeno jurídico como

expressão do poder estatal a que todos vincula. Sua realização no campo

do direito processual tem caráter instrumental, ressalta-se que isto não

pode ser entendido como uma forma de subordinação e perda da

autonomia do processo em relação ao direito material. Este caráter

instrumentalizador do processo precisa ser entendido como um

mecanismo que possibilite não apenas a aplicação das regras de direito

material, mas, sobretudo, a garantia da realização dos fins primordiais

que orientam e dão sustentação ao direito no corpo social. O processo

76 BERCOVICI, Gilberto. Carl Schimtt e a constituição de Weimar: breves considerações. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais., p. 366. 77MACHIAVELLI, Niccolò. O príncipe.

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deve ocupar seu espaço no mundo jurídico como um filtro, onde se

produzirá a norma a ser aplicada a cada caso concreto levado a

apreciação do Poder Judiciário.

Reduzir o direito processual à ferramenta cega do direito

material é negar uma trajetória histórica que se iniciou em Roma, com a

acción real e desenvolveu-se até à formulação da Teoria Geral do

Processo na Alemanha em 1868. Qualquer proposta nesse sentido deve

ser tratada com cautela. O processo, ainda que seja uma técnica não deve

estar em descompasso com os interesses e necessidades da sociedade

onde incide suas regras. Portanto, não se pretende negar que o

direito pode ser conhecido como ciência e igualmente que o processo

tem elementos que permitem afirmar sua cientificidade. A atividade

científica em torno do direito tem por objetivo dar uma representação do

fenômeno jurídico de acordo com o paradigma científico adotado78.

78 ARNAUD, André-Jean et al. Dicionário enciclopédico de teoria e de Sociologia do Direito, p. 91- 96. A ciência do Direito como corpus teórico e como prática social. ... A ciência do direito é suscetível, na base da definição muito geral que acabamos de apresentar, de se realizar a níveis bastante diversos com respeito aos diversos paradigmas admitidos e aos critérios de cientificidade que a eles estão associados. Esse ponto é entretanto obscurecido pelo fato de que, no pensamento jurídico, o monismo epistemológico dominante conduz a exclusões e a condenações recíprocas. Se adotarmos, ao contrário, uma forma de pluralismo epistemológico, deverá ser reconhecido que a cientificidade pode ter graus e que as diversas versões da ciência do direito podem assumir seu lugar em um espectro com múltiplas gradações, correspondentes aos diversos empregos da expressão “ciência do direito”, empregos esses a que uma definição léxica precisa referir-se. ... Acrescentamos, à guisa de conclusão, que nesse modelo complexo de ciência interdisciplinar do direito a teoria do direito é chamada a desempenhar um papel determinante que consiste em operar a aproximação ou a tradução dos dois jogos de linguaagem em presença: o da dogmática, de um lado, e o das ciências sociais, do outro. Sem que isto conduza a subestimar as especificidades e as funções distintas que esses dois tipos de saber apresentam, esse papel de intermediário deveria incitar a teoria do direito a adotar uma forma de pluralismo epistemológico (supra), que poderia predispô-la a liberar as virtualidades científicas inscritas na dogmática, da mesma forma que as virtualidades práticas alternativas que as ciências sociais veiculam. (grifo nosso)

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Contudo, torna-se imprescindível compreender as limitações

das teorias originalmente criadas de modo hermético, buscando a um

conhecimento baseado em métodos que antes isolavam o fenômeno de

estudos em relação ao Homem, ao qual está ligada toda construção

realizada, seja de caráter científico ou não. Com isso, quer-se afirmar

que não deve ser convalidada a figura do conhecimento desvinculado do

sujeito que o produz.

É adequado que se estude o direito como parte de um todo

maior, que é o sistema social. Não se trata de submeter o direito à

sociologia, mas de compreendê-lo como um elo entre o Estado,

considerado sob o ponto de vista dos fins que deve promover para a

organização e transformação sociais e o próprio corpo social, nas

múltiplas relações que estabelece intrínseca e extrinsecamente.

É através do direito processual que se realiza o procedimento

de aplicação dos dispositivos de direito material. Tendo em vista a

proposta da realização de uma pesquisa pautada em uma teoria crítica da

hermenêutica Constitucional, focada, sobretudo, no sistema de

interpretação e aplicação dos princípios cunhados na Constituição

Federal de 1988 a respeito do direito processual, considera-se que o

processo de execução das obrigações de natureza privada se localiza

entre os eixos principais de sustentação das políticas brasileiras em busca

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do ingresso entre os países desenvolvidos, de um lado a estruturação de

uma sociedade politicamente democrática e pautada pelos valores do

Estado Democrático e Social de Direito, e de outro, o imperium referente

às políticas econômicas liberais, que exigem garantias de retorno dos

capitais investidos nos países cujas economias estão mais susceptíveis

aos movimentos dos capitais voláteis, descompromissados com os

setores produtivos e com os interesses locais.

Nessa encruzilhada entre garantias individuais Constitucionais

e garantias de sustentação das políticas econômicas, são criados os

“seguros” que socorrem os bancos que misteriosamente quebram, os

“fundos de emergência” para as corporações que “sofrem prejuízos” por

participarem dos processos de privatização e não arcarem com os riscos

do empreendimento. Tudo sob o manto do Estado.

O indivíduo que ainda consegue participar do sistema de

crédito, contudo, submete-se à remuneração exorbitante cobrada pelas

instituições financeiras pelo capital; o regime da correção de

investimentos para o poupador é ínfimo se comparado com as taxas de

juros praticas. Esse desequilíbrio tem como um de seus efeitos o seguinte

resultado: a pessoa é levada ao sistema de consumo a crédito, arcando

com o ônus de uma macropolítica econômica que ela sequer suspeita que

existe, mas que, em última análise, alimenta.

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Nesse quadro, qual deve ser o papel do direito?

O indivíduo não pode ser objeto da espoliação imposta por

macropolíticas econômicas que não são do interesse local, mas não deve

também tutelar a inadimplência irresponsável. Acredita-se que o

processo represente uma possibilidade concreta para conduzir esses

problemas a um tipo de solução que atenda às necessidades das partes

envolvidas na execução.

Propostas que visem ao comprometimento das estruturas que o

direito processual edificou a partir de uma longa experiência histórica

devem ser tratadas com cautela. A referência é ao comprometimento da

autonomia do processo de execução em relação ao processo de

conhecimento. Esta posição decorre da convicção de que não é

justificável comprometer a ordem do processo, que ainda representa uma

das garantias das liberdades democráticas para a sociedade, e da suspeita

de que, sob o pálio da apregoada busca pela efetividade da jurisdição,

pretenda-se colocar o direito processual a serviço dos interesses nem

sempre claros do sistema financeiro que opera com a rotatividade de

crédito e que alimenta a custos incalculáveis políticas econômicas de

alcance internacional.

O processo de execução deve ser modelado de acordo com os

princípios da Constituição Federal de 1988, sem com isto desconsiderar-

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se sua autonomia em relação ao processo de conhecimento. Esta nova

execução ao atender aos preceitos instrutores da justiça em seu sentido

amplo deve antes viabilizar a solvência da obrigação que inviabilizar as

atividades econômicas do devedor, sobretudo, quando o débito tiver sido

contraído com o objetivo de financiar meios de produção formais ou

informais.

É possível afirmar que as propostas de reforma do processo de

execução no Brasil não serão capazes de oferecer respostas satisfatórias

ao problema da baixa efetividade jurisdicional quanto à entrega do bem

da vida pela via da coação jurisdicional, pois o quebra-cabeça desse

problema está situado em um descompasso ligado a fatores extrínsecos

ao direito processual, como a questão dos juros elevadíssimos cobrados

pelo crédito, bem como pelas altas taxas referentes aos juros moratórios

quando o indivíduo eventualmente torna-se inadimplente, sendo-lhe

quase sempre impossível arcar com as despesas adicionais decorrentes

da demora. O direito processual como sistema fechado desconsidera

estas questões, que, contudo, são relevantes para a compreensão e

superação do problema da efetividade e segurança jurisdicional.

Estudar o direito processual de forma crítica exige uma postura

mais aberta e flexível quanto ao seu papel no contexto da realização dos

objetivos do Direito enquanto ciência e mecanismo de organização e

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desenvolvimento da sociedade. É nesse sentido que este trabalho será

encaminhado.

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3 O DIREITO NO CONTEXTO DA TEORIA DOS SISTEMAS

3.1 TEORIA GERAL DOS SISTEMAS

A elaboração de uma rede de conceitos a respeito da idéia da

existência e funcionamento dos sistemas ocorreu primeiramente no

campo das ciências biológicas em 1951, tendo sido o seu organizador

Von Bertalanffy, que escreveu a Teoria Geral dos Sistemas.

Contemporaneamente Wiener, desenvolve um conjunto de

conhecimentos análogos no campo da cibernética.

A questão relativa à Teoria dos Sistemas está centrada nos

mecanismos operacionais ou funcionais dos seus elementos integrantes,

sendo admissível a idéia que concebe sob o ponto de vista de sua

natureza, o sistema como aberto ou como fechado. Quanto à sua

constituição, os sistemas podem ser: físico/concreto/hardware ou

abstrato/software. Há teorias intermediárias, as quais concebem o

sistema como fechado relativamente a certos aspectos de seu

funcionamento e aberto em relação a necessidade de interação com o

meio79.

79 A teoria dos sistemas autopoiéticos foi desenvolvida inicialmente no Chile no campo da biologia por Francisco Javier Varela e Humberto Maturana, que eram biólogos moleculares.

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A Teoria Geral dos Sistemas como foi proposta está

fundamentada na formação de modelos abertos com funções que

dependem da estrutura do sistema. Os sistemas são abertos porque são

caracterizados por um processo de intercâmbio infinito com seu

ambiente, que são outros sistemas. Cessando o intercâmbio, o sistema se

desintegra por perder sua fonte de energia. Como esta teoria foi

elaborada no campo da biologia, ela apresenta um aspecto organicista.

Bertalanffy não visou a solução de problemas de ordem

prática, mas a partir da crítica da visão do conhecimento produzido de

forma compartimentada através da divisão em diversas áreas do saber, a

qual considerava arbitrária, afirmou que as propriedades dos sistemas

não podem ser descritas significativamente em termos de seus elementos

separados. Assim, a compreensão dos sistemas ocorre quando estudados

globalmente, envolvendo todas as interdependências de suas partes.

O funcionamento dos sistemas na Teoria Geral de Bertalanffy

ocorre dentro dos parâmetros em que se verifica a

entrada/insumo/impulso (input)80 e a saída/produto/resultado (output)81.

Considerando a necessidade de estabelecer-se um referencial conceitual

quanto ao que é entendido como sistema, o mesmo deve ser

compreendido como um conjunto de elementos interdependentes e

80 Input é a força de arranque ou de partida do sistema que fornece o material ou energia para a operação do sistema.

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interagentes que se formam por um grupo de unidades combinadas que

compõem um todo organizado que gera um resultado maior do que seria

criado pelas unidades, funcionando separadas e independentemente.

No modelo cibernético de Wiener, são estudadas as relações

entre os fatores de controle e comunicação dos seres vivos, das máquinas

e das relações sociais.

Pode ser mencionada igualmente a idéia expressa por sistema

na filosofia, onde autores como Kant, Leibniz, Wolff, Fichte, utilizaram-

na para referir-se a diversas coisas, contudo, sempre tendo em vista uma

totalidade dedutiva de discurso, sendo usada para indicar, sobretudo, um

discurso organizado dedutivamente constituindo um todo cujas partes

derivam umas das outras.

Outro aspecto correlato a sistema na filosofia refere-se a

qualquer teoria científica ou filosófica quando se pretenda ressaltar suas

características teóricas e, portanto, afastar-se dos problemas empíricos82.

Quanto ao conhecimento expresso pela teoria geral

dos sistemas, em ciências sociais é pertinente observar que ela representa

uma retomada de estudos, através de novas vias, em busca de um fio

condutor para a unidade da ciência. Nesse sentido, esta teoria se

81 Output é a finalidade para a qual se reuniram elementos e relações do sistema. 82 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 908-909.

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caracteriza pela interdisciplinaridade com um sentido unificador e

globalizante, em busca de uma totalidade do conhecimento científico.

3.2 CIÊNCIA DOS SISTEMAS

Nos anos setenta, formulou-se a sistêmica ou ciência dos

sistemas em geral como disciplina científica autônoma, visando

desenvolver os métodos de modelização para fins de intervenção dos

fenômenos compreendidos como complexos, entendidos, assim, aqueles

que são portadores de um certo grau de imprevisibilidade essencial.

A ciência dos sistemas visa a uma conceituação do sistema

geral como um “conceito abstrato, construído de modo a servir de matriz

para modelos de fenômenos complexos, dotados de um certo número de

traços ou propriedades cuja coerência mútua é estabelecida no seio da

teoria do sistema geral” 83.

Dois aspectos são fundamentais, lastreando a ciência dos

sistemas, quais sejam: o que se refere à sua conjunção cibernética

(aspecto funcional), ou seja, todo fenômeno pode ser entendido pelas

suas finalidades em um determinado meio; e a conjunção estruturante

(aspecto estrutural) dos sistemas em geral, segundo a qual, os fenômenos

83 ARNAUD, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 736.

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podem ser entendidos através de seu funcionamento e de suas

transformações.

O método sistêmico é proposto pela teoria dos sistemas como

uma alternativa que rompe com o racionalismo clássico analítico.

Em ciências sociais, o método sistêmico foi questionado

porque utiliza os modelos construídos em outras áreas da ciência, como a

biologia. Esta aplicação se justifica em virtude do poder explicativo

apresentado pelos métodos sistêmicos. A sociologia e, principalmente, a

sociologia jurídica desenvolveram, através de métodos sistêmicos,

formas excepcionais de análise do fenômeno social, seja sob seu enfoque

geral, ou específico, no campo do direito.

3.3 SISTEMAS SOCIAIS

O enfoque do direito sob uma perspectiva crítica forçosamente

leva à questão do sistema social, pois, em uma concepção sistêmica de análise do

fenômeno jurídico, este é estudado a partir das interações que estabelece com o meio

social84 quê, por sua vez, existe em um contexto o qual forma o sistema social.

84 MIRANDA, Pontes de Francisco Cavalcanti. Introdução à Sociologia Geral, p.17. A adaptação não se opera entre parte do ser e o meio, mas entre todo o ser e todo o meio. Por isso, a sociedade humana difere da animal: os processos adaptativos não se efetuam somente entre atos, e sim também entre pensamentos, porque os homens são serem pensantes. Por outro lado, o meio não é só a família, o grupo profissional, é também a escola filosófica ou científica, a nação, a humanidade; e não é só o grupo social, - é também o Universo, o mundo físico. (grifo nosso)

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71

Pode ser afirmado que o sistema social consiste na intersecção

entre indivíduos num determinado espaço de tempo e lugar, sendo

estabelecidas relações de interdependência. Isto pressupõe um conjunto

de relações estabelecidas entre indivíduos a partir de inúmeras situações

que podem ser naturais, como a filiação e convencionais, como a relação

de emprego. Sobressalta, entretanto, que as relações no sistema social

são normatizadas. As regras que regulam o sistema social podem ter

diversas origens, sendo normas de conduta social, religiosa, de etiqueta e

de direito.

O sistema social permeia tudo quanto diga respeito ao

Homem, uma vez que o paradigma da existência em sociedade não foi

rompido. O Homem é um ser eminentemente social e aquilo que lhe diz

respeito se concretiza na conjuntura do sistema social.

A sociologia é um ramo do conhecimento que objetiva

compreender o sistema social em sua totalidade, o que significa que seu

objeto de trabalho é a análise do conjunto das relações interdependentes

que são estabelecidas no meio social.

A ciência dos sistemas, erigida a partir da teoria geral dos

sistemas, desenvolveu-se com base na idéia fundamental a

respeito da existência de estruturas constituídas por partes

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interligadas por vínculos de dependência que interagem formando o

todo que possibilita a identificação de um sistema.

As partes integrantes do sistema são denominadas subsistemas.

Em ciências sociais, a pesquisa qualitativa é predominante e o

método sistêmico tem sido utilizado com bons resultados na análise

sociológica.

Uma análise sistêmica é considerada crítica porque aborda os

aspectos inerentes ao subsistema em relação ao sistema social no que

tange às conseqüências decorrentes dessas relações para os indivíduos.

O subsistema jurídico pode ser conhecido através de diferentes

maneiras. A sociologia jurídica é a área da sociologia que pretende

compreender esse subsistema sob sua ótica social.

O Direito é a área do subsistema jurídico que visa ao

estudo dos dispositivos legais, considerando-se sua inserção

social quanto à ordenação e transformação do sistema social.

No que se refere à função regulamentadora das condutas, o

direito desempenha um importante papel na solução dos

conflitos de interesses, uma vez que o Estado tem poderes

para intervir junto às partes para garantir a ordem, impondo

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73

uma determinada conduta a qual elas ficam obrigadas a obedecer85.

3.4 SISTEMA JURÍDICO

Ao referir-se a sistema86, tem-se a noção de um conjunto de

partes unidas por relação de dependência com vista a determinados fins.

Historicamente, houve uma variação considerável quanto ao que se pode

identificar como sendo o sistema jurídico87.

85 ARNALD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos., p. 11. O sistema jurídico possui diferentes significados, de acordo com que, como objeto de conhecimento, se o considera numa perspectiva jurídico-dogmática ou numa perspectiva sociojurídica. Do ponto de vista da dogmática, o sistema jurídico surge como um conjunto lógico-formal de regras jurídicas, cujas características fundamentais são a sistematização, a generalidade, a completude, a unidade e a coerência. Do ponto de vista propriamente sociojurídico, no entanto, o sistema jurídico é polissêmico. Por um lado, é concebido como lugar de interação, isto é, como um sistema de comunicação, formado por símbolos normativos com função persuasiva; por outro lado, esse sistema de símbolos normativos age como elemento causal dos comportamentos sociais. A sociologia do direito, conseqüentemente, também toma o sistema jurídico como objeto de conhecimento, sem limitar-se aos comportamentos sociais que têm uma relação com o direito - , e isto com base nas duas perspectivas acima assinaladas, ao mesmo tempo em que se consideram interpretações jurídico-dogmáticas que dão aos juristas das normas jurídicas, porquanto estas também são elementos determinantes da conduta social dos indivíduos. (grifo nosso) 86 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à Filosofia e à Epistemologia Jurídica, p. 110. Uma noção muito cara para a moderna metodologia das ciências é a de ‘sistema’. Em Direito, o termo aparece já no século XVIII, com o Movimento do Direito Racional Jusnaturalista, surgido sob o influxo das meditações cartesianas, fundantes da concepção de ciência vigente nos temos modernos. ‘Sistema’, conforme se entendia à época, coincidia com a idéia geral que se tem de um todo funcional composto por partes relacionadas entre si e articuladas de acordo com um princípio comum. 87 ARNAUD, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 728. Até o século dezoito, designava-se o conjunto de normas jurídicas de uma sociedade pelo nome de ‘leis’. ... O termo mais preciso ‘sistema jurídico’ aparece na filosofia política e na teoria jurídica no século XVIII. Encontramos a expressão ‘systems of law’ com Bentham em 1782 ... e a expressão ‘os diversos sistemas de legislação’ no Contrato social de Rousseau de 1762... . Vinte anos antes, Hume já utilizava a expressão ‘system of morality’ para designar uma moral particular ... . O termo ‘sistema jurídico’ se difundiu no século XIX através de escritos históricos, assim como o termo de origem alemã ‘ordem jurídica’. ... Mesmo que as expressões ‘sistema jurídico’ e ‘ordem jurídica’ sejam muitas vezes utilizadas uma pela outra, elas têm conotações diferentes. O termo ‘sistema jurídico’ dá, de um direito positivo, essencialmente a imagem de um conjunto de normas, e insiste no aspecto de sistematização de coerência lógica: ele agrada àqueles que atribuem à doutrina um papel importante na elaboração de um direito positivo. Por outro lado, o termo ‘ordem jurídica’ tem um sabor sociologizante e evoca algo mais forte que um conjunto de normas seja a sociedade, a cultura ou o Volksgeist que criam as normas, ou as relações sociais e o conjunto da ordem social que resultam das normas jurídicas.

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A respeito desse assunto, é importante considerar o sistema

informal de direito, de modo que o sistema jurídico formal convive com

um conjunto de regras complementares de caráter flexível, e destituídas

de poderes de coerção segundo o modelo estatal. Os sistemas informais

criam uma regulamentação constituída de regras identificáveis que,

embora sejam flexíveis, operam através de meios que produzem as

condutas esperadas.

Não há uma linha divisória que separe de modo absoluto os

sistemas informais dos formais, pois em inúmeras situações regras de

conduta informais se transformam em regras obrigatórias absorvidas

pelo sistema formal, havendo casos em que regras informais podem

existir dentro do sistema formal, interferindo em seu funcionamento.

Desta forma, os sistemas informais constituem uma realidade que

engloba o sistema formal e, muitas vezes, penetra-o. Suas formas de agir,

suas áreas de influência e suas relações com o sistema formal são

indispensáveis para o seu conhecimento.

O sistema jurídico desdobra-se em algumas questões que lhe

são inerentes e, portanto, fundamentais, as quais se referem a sua

existência, sua identidade, sua estrutura e seu conteúdo. O critério para

determinar-se a existência, a identidade, a estrutura e o conteúdo do

sistema jurídico é que representa o principal problema que deve ser

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enfrentado, sendo que, até o presente momento, não foi possível

estabelecer, de modo definitivo, uma forma que permita precisar com

segurança os limites ou contornos dos sistemas jurídicos.

A questão da existência vincula-se a efetividade do sistema. A

identidade se refere aos limites do sistema, para tanto tem sido adotado o

critério da origem, assim as normas originadas do mesmo modo integram

o mesmo sistema. Quanto à identidade, também é admitido o critério do

reconhecimento pelos órgãos que aplicam o direito, como é o caso dos

tribunais. Quanto à estrutura, várias são as posições doutrinárias sobre o

modo de organização dos dispositivos que constituem o sistema jurídico,

podendo ser mencionadas as normas de conduta, normas imperativas,

normas de competência, entre outras, de modo a formar o modelo do

sistema. Há ainda as normas sancionadoras88, que têm sido entendidas

como as diferenciadoras do sistema jurídico, pois somente este disporia

de mecanismos que impõem sanções aos indivíduos que se recusem a

cumprir os preceitos que compõem o sistema.

Ainda no que tange à estrutura do sistema jurídico, observa-se

a grave problemática da existência de lacunas e de conflitos dentro do

sistema. Atualmente, as teses que admitem as lacunas e os conflitos têm

88 Ibidem, p.. 731. É quase universalmente aceito que todo sistema jurídico contém normas que impõem sanções ... . A maior parte dos autores afirma que todo o sistema jurídico contém, além das normas de conduta, normas outras que impõem sanções àqueles que desobedecem às primeiras: essas duas categorias de normas são muitas vezes chamadas `primárias` e `secundárias`.

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melhor aceitação na comunidade jurídica, em detrimento do pensamento

kelseniano que, até a década de 60, defendia a idéia da ausência de

lacunas e de conflitos. Após 1960, Kelsen aceitou a possibilidade da

existência de conflitos internos no sistema jurídico.

Quanto ao conteúdo dos dispositivos que compõem o sistema

jurídico, duas questões são suscitadas, uma que se refere à identificação

de conteúdos comuns em todos os sistemas jurídicos e outra, em saber se

é necessária a presença de determinados conteúdos para que um conjunto

de dispositivos sejam considerados como parte do sistema jurídico.

A par de alguns dos problemas que envolvem a questão

referente à identificação e à conceituação do sistema jurídico, considera-

se interessante, tendo em vista que esta pesquisa é desenvolvida sob um

viés sistêmico, tratar de alguns aspectos a respeito da formação da teoria

dos sistemas jurídicos a fim de que seja determinado um conceito de

sistema jurídico, bem como referido o atual estágio de desenvolvimento

dessa teoria.

3.4.1 Posição do Direito em relação à teoria dos sistemas jurídicos

Tratar do direito sob uma perspectiva sistêmica dentro de uma

proposta hermenêutica reporta a uma concepção de acordo com a qual o

Direito se configura como realidade cultural o que não deve

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comprometer seu caráter científico. Assim, como um modo de solução

de conflitos concretamente entabulados o direito adere à realidade, toda a

sua história está vinculada a isto. A cientificidade do direito é

reconhecida na medida em que ele se constitui como um conjunto de

regras capazes de garantir soluções pré-determinadas ou pré-

determináveis aos problemas que surgem em decorrência das relações

existentes no meio social. Estas soluções devem ser formuladas através

de um modelo lingüístico que lhe assegure a “eqüidade” das respostas

apresentadas aos problemas.

A concepção sistemática do Direito não é inovadora,

representando, contudo, uma retomada quanto à intenção de reformular-

se um modo de estudo que dê um sentido unificador ao conhecimento

jurídico, podendo ser afirmada uma tendência à totalidade quanto ao

Direito89. A unidade e a totalidade devem ser assimiladas através da

identificação de um conjunto de princípios que norteie toda a

compreensão do fenômeno objeto do estudo.

Há duas acepções tradicionais relativas ao sistema jurídico,

uma externa ou extrínseca e outra interna ou intrínseca. Sob o ponto de

89 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 107. A idéia-força de nosso tempo – e aqui nos valemos daquela imagem verbal produzida por Fouilée há tanto tempo – parece ser, no campo das Ciências Sociais e de sua metodologia, a concepção sistêmica, qual se acha de último concebida na teoria dos sistemas. Importa a orientação sistêmica, no significado mais profundo que talvez se lhe possa atribuir, a retomada de um sonho frustrado desde o século XIX, de que foi exemplo e modelo a filosofia positivista de Augusto Comte: o da unidade da Ciência, agora investigada e perquirida por novas vias.

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vista extrínseco, o sistema se refere ao trabalho intelectual que produz

uma totalidade de conhecimentos logicamente classificados, com base

em um princípio unificador. Seus requisitos são: a coerência, a perfeição

e a independência. No campo do Direito, o conhecimento de seu objeto

está vinculado a coaticidade do dispositivo legal. Esse mesmo objeto,

quando abordado em si mesmo como um conjunto de elementos

materiais (coisas ou processos) ou imateriais (conceitos), ligados entre si

por relações de mútua dependência, constituindo um todo organizado

caracterizado pela simetria acerca da matéria, está ligado à concepção

intrínseca do sistema.

3.4.2 A tradicional sistêmica do Direito

Sem preocupações conceituais, desde Roma, podem ser

identificadas menções a sistemas de Direito. Entretanto, isto não

apresentava um nível de abstração teórica comparável ao que mais tarde

veio a ser concebido, assim será tomada como ponto de partida a

pandectística alemã

A Escola Histórica, que foi encabeçada por Savigny90, representa

90 MARTINS FILHO, Ives Gandra. Manual Esquemático de história da filosofia, p. 353. FRIEDRICH VON SAVIGNY (1799-1861). Professor em Berlim e ministro da Prússia, é o fundador da escola histórica do Direito, que combateu a teoria do Direito Natural, substituindo-a pelo estudo da evolução histórica do Direito Positivo. (grifo nosso)

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um momento crucial após um período em que o direito romano havia

sido estudado pela Escola dos glosadores que foi sucedida pela Escola

dos Pós-glosadores, que teve como um de seus ilustres representantes

Bártolo de Sassoferrato91.

Tradicionalmente, a Escola histórica possibilitou uma

perspectiva de conhecimento do direito que culmina com a pandectística

sintetizada na dogmática jurídica também denominada de jurisprudência

dos conceitos, pautada no formalismo jurídico através de uma via

sistemática fundamentadora de dois modelos para a ciência do direito92.

Em um caso, a idéia do sistema é formada de maneira

externa, ou seja, as normas jurídicas não apresentam pontos de ligação

91 PRATA, Edson. História do processo civil e sua projeção no direito moderno, p. 100-107. Irnérius, fundador da Universidade de Bolonha, em 1088, ... assumiu a cátedra de direito romano, criando escola, fazendo recrudescer o seu prestígio que mais salientava pela interpretação dada aos textos romanos acomodada à prática das instituições vigentes. Era a escola dos glosadores, assim chamados porque os que a constituem (Búlgaro, Placentino, Giovani Bassiano e outros) se notabilizaram pelas glosas, ou notas, feitas à margem ou nas entrelinhas dos textos, em comentários às instituições a que se referiam. ... Houve um intervalo entre a projeção da Escola dos Glosadores e a dos Pós-Glosadores, ocupada pela chamada Escola dos Ultramontanos, cujos alicerces foram lançados por Jacques Révigny (1.200-1.296) e João Faber. ... Surgiu no século XIV a chamada Escola dos Pós-Glosadores, também denominada Escola dos Comentadores, porque seus integrantes se valeram dos comentários aos textos romanos estudados, assim como os glosadores da glosa se utilizaram. ... Dois grandes juristas se projetaram nesta Escola: Bártolo de Sassoferrato (1.314 – 1.357) e Pedro Baldo de Ubaldis (1.327 – 1.406). ... Bártolo, professor da Escola de Bolonha, era considerado pelos seus coevos como a maior figura jurídica de todos os tempos, trazendo consigo, os cognomes “a luza do Direito”, “o príncipe dos legisladores”, “o milagre da natureza”. Sua fama chegou a tal ponto que fez surgir o aforismo: “nemo bonus jurista nisi bonos bartholista”. Daí porque a Escola dos Pós-glosadores ficou conhecida também como Escola Bartolista. (grifo nosso) 92 CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro. P. XXV e seguintes. Designadamente com SAVIGNY e a escola histórica, procedeu-se à confecção de um método puramente jurídico. Esse método, que era suposto corresponder a um discurso sobre o processo de realização do direito vai, ele próprio, tornar-se objecto de novos discursos. Ou seja, num fenômeno que a moderna Filosofia da Linguagem bem permite isolar, pode considerar-se que a autonomização metodológica do Direito comportou um preço: o aparecimento dum metadiscurso que, por objecto, tem não já o Direito. Surge, então uma metalinguagem, com metaconceitos e toda uma seqüência abstracta que acaba por não ter já qualquer contacto com a resolução dos casos concretos.

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específicos entre si, sendo que os juristas realizavam seus trabalhos

tendo por finalidade elaborar uma estrutura para o direito. Assim, os

teóricos constroem, dogmatizam e impõem a lógica ao Direito. Dessa

forma, o sistema é identificado em uma síntese interpretativa entre a

histórica, o doutrinador e o dispositivo legal. Portanto, a idéia do sistema

seria exterior ao objeto específico de estudo, sendo constituída pelos

doutrinadores com base na história.

A Escola histórica, com as suas mesmas bases formalistas e

estruturalistas, permitiu a formulação de um modelo de sistema

intrínseco93. Nessa concepção, a estrutura lógica está no próprio direito,

assim o ordenamento jurídico seria dotado de uma racionalidade interior

à espera de revelação pelo jurista. A sistematicidade lógica e racional é

pré-existente em relação à intervenção do sujeito cognoscente, estando

intrinsecamente ligada ao objeto.

A partir das colocações anteriores, pode afirmar-se que a teoria

dos sistemas jurídicos tem suas bases tradicionais vinculadas à Escola

histórica que formulou a jurisprudência dos conceitos que é formalista e

estruturalista. Por sua vez, a jurisprudência dos conceitos produziu duas

correntes teóricas distintas para o direito, uma que considera o sistema

93 BONAVIDES, Paulo Op. cit., p. 112. A determinação do sistema interno do Direito, pelo formalismo, inspira-se na filosofia kantista, graças à qual floresceram posteriormente várias posições doutrinárias, cujo objetivo era estabelecer com exação e rigor científico a especificidade do nexo que vincula as várias partes da construção jurídica positiva.

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jurídico como uma formulação extrínseca ao ordenamento jurídico,

sendo constituído pelo sujeito cognoscente, ou seja, o sistema é

identificado no objeto (ordenamento jurídico) através da elaboração

doutrinária. O conteúdo sistêmico do direito se encontraria na

formulação teórico-doutrinária produzida pelo sujeito e não

propriamente no objeto estudado, sendo sua finalidade criar uma

estrutura para o direito.

A mesma jurisprudência dos conceitos, através da teoria dos

sistemas intrínsecos, inverte a posição da formulação do conhecimento

sistêmico do direito e desloca essa característica para o objeto estudado,

sendo que ao sujeito cognoscente cabe unicamente descrever as

características que são intrínsecas ao ordenamento jurídico. Os sistemas

intrínsecos representam um alto grau de sofisticação teórica, sendo o

formalismo jurídico kelseniano da Teoria Pura do Direito, o modelo de

elaboração mais primorosa dentre aqueles identificados como integrantes

da tradição sistêmica do direito94.

94 Paulo BONAVIDES. Op. cit. p., , 112. Fora, contudo, da órbita formalista, numa esfera puramente material, vingaram também sistemas jurídicos internos com base nos valores e sua relatividade (Radbruch) ou em critérios de manifesto cunho teleológico, com os sistemas formados à sombra da chamada jurisprudência dos interesses, da Escola do Direito Livre e da Teoria marxista.

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3.4.3 Sistemas jurídicos teleológicos ou finalísticos

Não é possível, com absoluto grau de precisão, determinar

uma linha no tempo ou mesmo no desenvolvimento epistemológico,

onde teria arrefecido a jurisprudência dos conceitos para ascender a

jurisprudência dos interesses. Acredita-se que as mudanças no ocidente

durante a Idade Moderna os quais decorreram da desagregação dos

meios de produção organizados durante a Idade Antiga enquanto vigorou

o feudalismo foram fatores determinantes que permitiram a rediscussão

sobre a questão dos valores e dos fins a ser buscados através dos

sistemas ordenadores das condutas humanas que mais tarde foi

delimitado por algumas características específicas e denominado de

sistema jurídico95 96 97.

A jurisprudência dos interesses representa uma reação ao

95 ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional, v. 11, p. 5.937. Idade Média. 1. Conceituação e limites. A apresentação organizada dos fatos no fluxo do processo histórico impõe a sua distribuição por amplas fases, e a isso se chama periodização. ... No século XVII é que se nota a tendênica a aplicar essa divisão no processo histórico em geral. ... Foi somente em 1685-1696 que Christoph Keller (Cellarius) consagrou a tripartição da história universal em seus compêndios, ... . ... A partir daí, apesar das objeções levantadas no séc. XVIII, o termo idade Média acabou por ser aceito na França, na Inglaterra, e em toda a Europa. Nunca houve, entretanto,, unanimidade quanto aos seus limites no tempo. 96 VICENTINO, Cláudio. História Geral., p. 111. ... utilizaremos a expressão Idade Média desprovida de qualquer conteúdo pejorativo, indicando unicamente o período histórico compreendido entre os séculos V e XV, que tem início com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e que se estendeu até a tomada de Constantinopla, em 1453. 97 Ibidem, p.176. Entre os séculos V e XVIII, estruturou-se uma nova ordem socieconômica, denominada capitalismo comercial. ...Apenas no final da Idade Moderna, a classe burguesa reuniu meios para edificar um ordem social, política e econômica à sua própria imagem, embora somente os acontecimentos da segunda metade do século XVIII, como a Revolução Industrial, a independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, consolidassem definitivamente a posição da burguesia, inaugurando a idade Contemporânea.

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que se pode denominar por irrealismo metodológico da jurisprudência

dos conceitos, é operacionalizada por metadiscursos inacessíveis e sem

preocupações juspositivas.

O direito desvinculado da realidade torna-se inflexível e

incapaz de resolver os problemas que lhe são apresentados. O meio

social produz uma infinidade de situações que obrigam o direito a

admitir uma maleabilidade que dificilmente poderia ser totalmente

expressa através de um sistema modelado com base em conceitos

previamente estabelecidos de forma rígida98.

É interessante mencionar que o idealismo filosófico de Kant

faz referência a questões inerentes à jurisprudência dos interesses, como

é o caso do enfoque quanto ao objeto a partir de uma sua função.

Von Ihering ao propor uma teoria sistêmica em que o direito

estaria vinculado a questões exteriores ao ordenamento jurídico, tendo

em vista a finalidade que os dispositivos ordenadores das condutas

devem cumprir ou satisfazer, teria se inspirado em uma visão organicista

em que o sistema funciona como um organismo vivo que existe a partir

98 CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro. P. XXVIII. Tal o dilema da Ciência do Direito no final do século vinte: perante problemas novos, ou se intensifica um metadiscurso metodológico irreal, inaplicável a questões concretas e logo indiferente ao Direito, ou se pratica um formalismo ou um positivismo de recurso. Em qualquer dos casos, as soluções são ora inadequadas ora assentes em fundamentações aparentes, escapando ao controlo da Ciência do Direito.

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de uma orientação básica que se refere ao cumprimento de suas

finalidades99 100.

A concepção orgânica da Ciência do Direito desenvolvida por

Von Ihering introduz no sistema jurídico as idéias de interesse e de fim,

desviando a pesquisa do direito embasada em questões formais e

estruturais e atribuindo-lhe uma dimensão material eminentemente

valorativa. Ressalta-se que a jurisprudência dos conceitos não negou ao

direito uma dimensão axiológica, mas restringiu este aspecto ao próprio

ordenamento jurídico, como algo que se lhe apresentasse interiormente.

A jurisprudência dos interesses vai buscar o reconhecimento dos fins em

um contexto mais amplo, ou seja, no meio social onde o direito realiza-

se como reordenador das condutas em descompasso diante dos

problemas inerentes às relações sociais. Surgiram críticas no sentido de

que a jurisprudência dos interesses se pautava em um simplismo

reducionista, na medida em que abandonava as macroteorias que

asseguravam uma visão mais ampla dos fenômenos jurídicos para focar a

realidade cotidiana da vida.

99 MARTINS FILHO, Ives Gandra. Op.cit., p. 209. Sob a ótica do juízo reflexivo, vê-se que o objetivo da natureza é a realização do fim moral do homem (todos os seres organizados estão ordenados para o homem): “Duas coisas enchem-me o espírito de admiração e reverência: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim” (natureza, liberdade e Deus) – sublime que provoca o êxtase. 100BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 113. A imagem organicista de Kant continha já uma poderosa e implícita sugestão finalística, potencialmente precursora do modelo teleológico que von Ihering e os juristas posteriores da jurisprudência dos interesses e das correntes sociológicas do Direito acabaram depois por consagrar.

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A jurisprudência dos valores surge após a 2ª Guerra Mundial

como uma teoria que enfoca os interesses, os quais se vinculam à figura

do legislador e dos valores sob um ponto de vista em que ocorre a

ponderação entre a realidade observada no meio social, seus valores e os

interesses do Estado quanto à forma de regulamentação desta mesma

realidade. Considerando-se que há uma natural intersecção entre as

teorias, a jurisprudência dos valores, em virtude de não ter tido seus

estudos aprofundados e melhor desenvolvidos, acabou por ser assimilada

pelo formalismo estruturalista.

Na mesma esteira epistemológica, surgiu a jurisprudência ética

construída a partir das novas possibilidades em relação a problemas

como o da verdade e da moral. A atribuição a moral de um caráter

cultural e o entendimento de que as regras jurídicas se distinguem de

outros regramentos pelo fato de que somente aquelas integram o

processo de decisão, estando adstritas à Ciência do Direito, possibilitou a

afirmação de que o sistema de aplicação do direito deve ser conduzido

pela ética.

Como se percebe, há uma dificuldade considerável em operar

no campo axiológico, porque há o risco de se comprometer elementos

como a segurança jurídica, e ainda, a possibilidade de se criar situações

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em que os problemas quanto à sua solução não obedeçam a um padrão

de regularidade prevista previamente.

Podem ser mencionadas outras teorias sistêmicas do direito,

como a teoria analítica do direito ou jurisprudência analítica, a

jurisprudência problemática, reelaborada por Theodor Viehweg em

1953, as sínteses hermenêuticas, que se originaram do pensamento de

Hegel e se desenvolveram através de Heidegger até Gadamer101. Não

será abordada pontualmente cada uma dessas formulações teóricas,

porque sua repercussão é mais importante e direta para o continente

europeu, sobretudo para a Alemanha, em que pese seus reflexos se

fazerem sentir na América, por outro lado, a apresentação das teorias

sistêmicas neste trabalho não tem uma finalidade em si mesma, mas

objetiva a melhor compreensão possível a respeito de como se formaram

e se encontram essas teorias atualmente no direito.

101 CANARIS, Claus–Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução à edição portuguesa. António Menezes Cordeiro, p. XL- LXI.

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3.4.4 O sistema jurídico marxista

Karl Marx102 é reconhecido como o ideólogo do modelo

econômico e político denominado marxismo ou comunismo, não se

atribuindo inicialmente maior importância às suas idéias no campo do

sistema jurídico. Atualmente, contudo, os autores críticos do direito103

reconhecem, nos primeiros trabalhos de Marx, o embrião das teorias

críticas do direito, considerando-se este como um sistema teleológico ou

finalístico.

A teoria marxista representa o contraponto ao modelo

econômico capitalista e globalizante como método para a análise dos

sistemas social, econômico e político. No século XX, e, sobretudo, após

a década de 80, pode ser observado um acirramento no processo de

acumulação financeira baseada na especulação em detrimento da

economia de produção de bens e serviços. Esse fato é decorrência de

102 NOVA Enciclopédia Barsa, v..9, p. 341. Marx, Karl. Karl Heinrich Marx nasceu em Trier, na Renânia, então província da Prússia, em 5 de maio de 1818. ... Em 1841 apresentou sua tese de doutorado na Universidade de Berlim, em que analisava, na perspectiva hegelina, as diferenças entre os sistemas filosóficos de Demócrito e de Epicuro. Nesse mesmo ano concebeu a idéia de um sistema que combinasse o materialismo de Ludwig Feuerbach com o idealismo de Hegel. ... Depois de participar do movimento revolucionário de 1848 na Alemanha, Marx regressou definitivamente a Londres, onde durante o resto da vida contou com a generosa ajuda econômica de Engels para manter a família. ... em 1867 publicou o primeiro volume de O Capital, monumental análise do sistema socioeconômico capitalista, sua mais importante obra. ... morreu em 14 de março de 1883 em Londres. 103 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à filosofia e à epistemologia jurídica, p. 121.Talvez a maior contribuição da atualidade no campo da ciência jurídica ou, mais especificamente, na teoria (da ciência) do direito, seja aquela portada pela teoria crítica do direito. Esta última tem suas raízes históricas assentadas no século XIX, precisamente na concepção jurídica do jovem Marx, forjada em contraposição crítica ao pensamento da Escola Histórica e à filosofia do Direito e do Estado hegeliana, ambas igualmente idealistas e ingenuamente românticas.

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inúmeros acontecimentos históricos que contribuíram para que a

sociedade ocidental vinculasse o abastamento econômico das pessoas

(naturais ou jurídicas) a competência, eficiência, enfim, o êxito no

sentido mais amplo que se possa entender isto, passa a ser mensurado

como conseqüência da capacidade de acumulação financeira e de

participação do mercado consumidor. Em última análise, isto justifica

tudo, inclusive o que não se enquadra neste sistema econômico, pois, no

mundo democrático da livre iniciativa e das oportunidades, se a

prosperidade econômica não se realizou o problema é das pessoas que

não tiveram competência, capacidade, e sob uma perspectiva metafísica,

não foram “abençoadas por Deus”.

Essa forma de compreensão da realidade compromete dois

valores fundamentais, de um lado, a percepção da vida sob o prisma da

responsabilidade social é reduzida ao assistencialismo estatal e a um

solidarismo da sociedade mal interpretado. Neste contexto a grande

maioria das pessoas não é considerada como sujeito ativo no processo de

formação histórica e cultural, mas sujeito passivo de um modelo em que

são submetidas à condição de legitimadores do poder político e

consumidores de bens e serviços. Soma-se a isto o conceito de alienação

econômica, filosófica e religiosa, porque as identidades locais e regionais

são desagregadas em favor de ideologias e interesses que não são

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revelados, tendo como conseqüência um elevado grau de inconsistência

e instabilidade social. Por sua vez, isto é informado às comunidades

como ausência de capacidade para sua estruturação sócio-política-

econômica, o que justifica as intervenções, e mais sutilmente ainda, a

reelaboração do conceito de soberania e subordinação legal, no plano

interno; e de coordenação, no cenário internacional.

Esse quadro mostra um quebra-cabeça para o qual o marximo

pode apresentar subsídios para uma análise sob uma perspectiva mais

crítica no sentido de encontrar-se desvinculada dos “fios invisíveis” que

orientam aquele sistema.

Ressalta-se que a teoria marxista, desde sua formulação até à

atualidade. passou por estudos de diferentes áreas do conhecimento

humano, sendo que economistas, historiadores, antropólogos, sociólogos

e outros estudiosos incorporaram a metodologia marxista sem aderir à

sua filosofia política e à práxis revolucionária.

Para a teoria dos sistemas jurídicos, a crítica marxista importa

na medida em que como o conjunto das idéias filosófica, econômica,

política e social que interpretam a vida conforme a dinâmica das relações

entre a infra-estrutura e as superestruturas que são alicerçadas pelo modo

de produção, o direito enquanto sistema formalista e estruturalista é um

mecanismo de controle das forças que, se encetado em uma direção

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ordenadora, termina por garantir a manutenção de um modelo que

subjuga e explora as forças produtivas a fim de assegurar o máximo de

resultado econômico com o mínimo de risco financeiro.

De outro modo, em uma abordagem metodológica segundo a

teoria marxista ou crítica do sistema jurídico, ao direito pode atribuir-se

um papel mais amplo, na medida em que não seja um simples ordenador

de forças, mas verdadeiro instrumento de transformação social, como

resultado de uma construção histórica em que a idéia de mudança seja a

constante e o papel do direito seja o de equacionamento desse

movimento no sentido da recomposição e reorientação da composição

das forças produtivas.

Tem sido afirmado que, quando o direito nega a realidade, a

realidade nega o direito, o quê, apesar da simplicidade, evidencia a

necessidade de um sistema jurídico que seja consentâneo com as

transformações sociais.

Não deve ser esquecido o fato de que Marx tratou o direito

como uma superestrutura legitimante da infra-estrutura. O pensamento

original marxista é revolucionário, o que tornaria o direito incapaz de

promover transformações no campo institucional, pois somente durante

as “eras revolucionárias”, quando as forças produtivas da sociedade

entrassem em contradição com as relações de produção existentes,

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convertendo-se estas em obstáculos à continuidade do processo

produtivo, a estrutura ideológica vigente seria rompida, permitindo ao

Homem a tomada da consciência do conflito entre o capital e o trabalho,

o que conduziria à revolução proletária, com a implantação da ditadura

do proletariado, a qual evoluiria para um modelo de sociedade sem

classes ou comunista.

A referência feita ao sistema jurídico marxista toma como

ponto de partida não-exatamente o aspecto revolucionário da mudança,

mas a análise baseada na dialética materialista. Dessa forma, o “devir”

do plano ideal hegeliano foi substituído pela noção da percepção da

realidade no progresso material e econômico. Na percepção da realidade

imanente, teriam sido admitidas as relações estabelecidas entre a infra-

estrutura e as superestruturas. A existência dessas relações seria uma

constante de interação e interdependência, onde pode ser localizado o

papel crítico transformador do Direito em uma perspectiva sistêmica e

dialética.

Acredita-se que somente após a 2ª Guerra Mundial, com o

desenvolvimento de estudos não-dogmáticos do marxismo, sobretudo,

elaborados por Edmund Husserl e Martin Heidegger, desenvolveram-se

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as teorias sistêmicas críticas do direito, pautadas na dialética materialista

de Marx104.

A crítica sistêmica no marxismo necessariamente não rompe

com um certo grau do dogmatismo, mas estabelece uma diferença

fundamental entre as teorias que enfocam o direito sob um ponto de vista

dogmático-formalista-estruturalista fundamentado nos dispositivos legais

e aquelas que o estudam enquanto fenômeno social. No primeiro caso, o

modelo proposto é “integrante ou de equilíbrio” e no segundo caso, o

“modelo é de conflito”. Isto significa que o positivismo jurídico, do qual

Kelsen é seu representante máximo, propõe um direito que pré-

determina uma solução “artificial” porque não considera a realidade

conflituosa sobre a qual incidirá a solução do problema. Por outro lado,

no modelo de conflito, a solução dos problemas será sempre referida à

realidade histórica materialista que gerou seu surgimento, ainda que,

igualmente relacionada com um conjunto de dispositivos legais que pré-

estabeleçam formas para a sua composição. A grande distinção está em

que num caso a solução é idealizada previamente e, no outro, ela é

construída com referência ao conflito.

104 BONAVIDES, Paulo. Op. cit. ,p. 114. A noção teleológica de sistema interno, expendida por Von Jhering, caracteriza tam’bem a jurisprudência dos interesses, bem como a Escola Livre do Direito. Mas foi a Teoria Marxista que fez o pensamento teleológico e sistêmico alcançar pontos extremos de oposição ao dedutivismo formalista, com os preceitos jurídicos conduzidos então às últimas conseqüências em termos de teorização material; algo comparável, em profundidade e extensão, ao que fizera Kelsen, do lado oposto, com o formalismo. (grifo nosso)

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Aprofundando a questão da crítica marxista para a análise dos

sistemas jurídicos, convém, ainda, destacar que esta difere das teorias

decorrentes da jurisprudência dos interesses, porque a conexão com a

realidade sob a qual incidirá o direito não é restrita ao fato em si mesmo,

mas se refere às relações que levaram à necessária intervenção do Estado

para o reequacionamento da situação. Nesse contexto, a aplicação do

dispositivo legal se afasta dos particularismos nas decisões jurídicas, que

tantas observações renderam às escolas que se desenvolveram com base

na jurisprudência dos interesses, como foi o caso da Escola Brasileira do

Direito Alternativo. Os fatos que demandam a aplicação do direito, de

acordo com a dialética materialista marxista, devem ser observados sob o

prisma dos movimentos, das mudanças, das transformações social,

econômica e política que determinaram a sua ocorrência.

É possível afirmar que a proposta teórica de se estudar o

direito a fim de assegurar sua aplicação com base em parâmetro de

“justiça”, levando em consideração todos aqueles aspectos, ou seja, as

determinantes histórica, social, econômica e política que resultaram no

fato a ser objeto da decisão jurídica, tornaria inviável a jurisdição, tendo

em vista a complexidade e dificuldades que resultariam para a formação

do aplicador do direito. Considera-se esta afirmação procedente, mas, ou

se aceita o desafio, ou se convive com a insegurança e a não-efetividade

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da jurisdição, objeto de infinitas reformas e insatisfações na práxis do

direito, sem que se chegue a uma solução do problema da “justiça”.

3.4.5 Atualidades a respeito da sistêmica jurídica

Desde a proposição da teoria geral dos sistemas no campo da

biologia, passando pela concepção sistêmica em ciências sociais até a

atualidade, há uma infinidade de teorias que foram elaboradas. No

campo do direito, as formulações a esse respeito se encontram em fase

de desenvolvimento, pois durante um considerável período de tempo,

que pode ser delimitado aproximadamente até o término da 2ª Guerra

mundial, foi conservada uma visão do direito formalista-estruturalista

baseada em um idealismo altamente abstrato, o quê, posteriormente,

identificou-se como sendo um sistema fechado, ou seja, onde as trocas

de energia ou relações com outros sistemas eram desconsideradas quanto

à sua operacionalidade, entendida como aplicabilidade prática dos

dispositivos legais.

Houve uma tentativa de aplicação da teoria geral dos sistemas

de Bertalanffy ao direito, o que lhe atribuiu um caráter interdisciplinar

porque a compreensão dessa teoria é a de que os sistemas são abertos,

logo, o conhecimento do direito e sua aplicação ocorreria de uma forma

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mais ampla, não se restringindo à norma jurídica, podendo, inclusive,

mencionar-se a possibilidade da pluralidade quanto às fontes do direito.

Esta forma de compreensão dos sistemas foi considerada inadequada por

entender-se que a visão da teoria geral apresentava um caráter descritivo

das relações de troca de energia, sendo os sistemas analisados através de

sua forma e organização, ou seja, pelo aspecto formal e estrutural em

detrimento da investigação quanto ao conteúdo dos sistemas e das

relações que estabelecem.

Podem ser mencionadas a teoria cibernética105 de Norbert

Wiener106 e a teoria de David Easton107 108 como importantes propostas

para a sistêmica jurídica, contudo, estas teorias têm sofrido um certo

grau de restrição por considerar-se que permanecem vinculadas à idéia

da forma e da organização.

105 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 117. A Cibernética em sua acepção mais larga vem definida no Fischer-Lexikon como “a Ciência da descrição matemática e da valorização construtiva de estruturas, relações, funções e sistemas gerais que são comuns a distintos campos da realidade”. 106 BONAVIDES. Op. cit., p. 117. Importantes e fundamentais estudos trouxeram de imediato a aplicação daquela ciência ou arte (arte, segundo o entendimento de Louis Couffignal) ao domínio das Ciências Sociais. As contribuições mais relevantes ocorreram no campo da Ciência Política, com as obras de Karl W. Dutsch e Eberthard Lang, instituladas respectivamente The Nerves of Government (Os Nervos do Governo) e Staat um Kybernetik (O Estado e a Cibernética). 107 BONAVIDES. Op. cit., p.118. Parte Easton da compreensão da vida política como um conjunto de atividades relacionadas entre si (“a system of interrelated actividies”), isto é, como um sistema, em que a idéia mesma de sistema já induz a possibilidade de separar, pelo menos para efeitos analíticos, o campo da atividade política do campo da atividade social. 108 BONAVIDES. Op.cit., p.120. Afirma Easton que, num universo sujeito a flutuações tão violentas quanto o nosso, é exatamente o fluxo desses efeitos e informações entre o sistema e o meio que, em última análise, permite ao sistema político sobreviver. Sem o feedback, poderá ele, “nenhum sistema, afinal, sobreviveria, salvo por acidente.”

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A Teoria da Ação Social de Talcott Parsons109 110 é

particularmente interessante, estando localizada no campo da sociologia

jurídica. O trabalho de Parsons tem seus contornos demarcados pelo

sistema da personalidade e sistema cultural, através da interação entre os

atores individuais, o que coloca o conceito de interação como sendo

fundamental para a sua análise sistêmica ao lado dos conceitos de

“‘papel’, ‘posição’, consenso, integração, funcionalidade e

estabilidade”111.

Contemporaneamente, é de destacada a importância do trabalho de Niklas

Luhmann112 que foi aluno de Parsons, na Universidade de Harvard, na década de 60.

109 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 158. A versão mais importante da teoria funcionalista foi a dada por Talcott Parsons, com o que, mais tarde, see chamou de paradigma do estruturalismo funcionalista. ... Para se definir o coneito de sistema social, parte-se da “ metáfora organicista”, segundo a quual a sociedade se constitui em sistema (de ação social), cujo funcionamento se assemelha ao de um organismo vivo, a exemplo do corpo humano. ... , segundo Parsons, o sistema social é comporto de quatro subsistemas (político, jurídico, econômico e cultural), cada um deles constituído por várias instituições (as instituições penitenciárias, a família, o casamento, a religião etc.). Todos esses elementos trabalham para a manutenção da coesão, da ordem e do equilíbrio social do sistema. 110 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 159-160. ... todo sistema social requer quatro funções: 1. função de adaptação, executada pelo sistema adaptativo ou pelo subsistema econômico, que consiste na obtenção, na produção e na distribuição de recursos e de meios instrumentais, para, se adaptar ao meio externo e para realizar os objetivos do sistema; 2. a função “instrumental”ou de ataque dos objetivos, executada pelo subsistema político, e que consiste na realização dos objetivos do sistema; 3. a função de “integração social ou de controle social”, própria do subsistema jurídico, na medida em que este é um dos elementos mais importantes do sistema de integração social. É a função a que Parsons e outros autores funcionalistas deram maior importância, pois ela consiste, basicamente, em arrefecer os conflitos sociais e em manter o equilíbrio das relações sociais; 4. a função de “socialização”, própria do subsistema cultural, q eu consiste na manutenção do modelo, isto é, na transmissão e na salvaguarda da cultura e dos valores institucionalizados. 111 BONAVIDES. Op. cit., p. 121. 112 ESTEVES, João Pissarra. Niklas Luhmann: uma apresentação. Disponível em:< ... http://Ubista.ubi.pt/~comum/esteves-pissarra-luhmann.htm> foi, sobretudo, em termos intelectuais que a passagem por Harvard marcou o percurso de Luhmann. NO início da década de 60, a Universidade local era um dos mais importantes centros das Ciências Sociais norte americanas, em particular da Sociologia, muito por influência de um autor então consagrado, Talcott Parsons. Os seus seminários eram seguidos com enorme interesse por estudantes de todo o mundo, e Luhmann não fugiu à regra. Aí nasceu uma afinidade intelectual que podemos hoje considerar a mais consistente do seu pensamento. Se quisermos arriscar uma caracterização geral da proposta teórica de Luhmann, podemos considerá-la na directa continuidade da Sociologia estrutural e funcional de Parsons; isto significa que ele toma essa proposta com potnto de partida, e apenas isso, para desenvolver um modelo intelectual próprio que, em múltiplos aspectos, se afasta da referência original. (grifo nosso)

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Nesta mesma época, Luhmann conheceu Jürgen Habermas,

tornando-se amigos apesar de suas divergências no campo teórico-

acadêmico113.

As concepções teóricas de Luhmann tiveram a influência do

funcionalismo parsoniano, contudo, a metodologia personalista européia

e o modelo interdisciplinar da Universidade de Munster em Bielefeld,

onde Luhmann deu aulas a partir de 1968, levaram suas pesquisas a um

determinado grau de abstração que durante os últimos anos tem

orientado formulações teóricas tanto no campo do direito como da

sociologia.

O aspecto mais particular do pensamento luhmaniano se refere

ao modo segundo o qual este autor entende a forma através da qual são

estabelecidas as relações entre o sistema e o meio. A sociedade

operacionaliza suas relações nestes termos (sistema-meio) a partir do

modelo weberiano que reconhece a existência de uma racionalidade

113 ESTEVES. Op. cit. O pensamento de Habermas representou, nos anos que se seguiram e até hoje, a referência negativa, por assim dizer, da teoria de Luhmann: a versão contemporânea da tradição progressista do pensamento europeu, que Luhmann desde sempre refutou, com uma crítica radical à tradição emancipatória herdeira do humanismo da Luzes, que ele considera totalmente desajustada à realidade complexa das sociedades desenvolvidas. No ambiente muito particular do pensamento alemão, os dois jovens acadêmicos decidiram dar expressão a tão interessante conflito intelectual com a publicação de um livro conjunto e, assim, em 1971 saiu à estampa Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. O trabalho mereceu diversas reedições nos anos seguintes e a editora (Suhrkamp) ampliou as suas repercussões dando início à publicação de uma ‘seie de volumes complementares, numa série intitulada Theorie-Diskussion, onde foram chamados a participar no debate muitos outros destacados cientistas sociais. A polémica estava lançada e ficará, por certo, para a história como uma das mais importantes deste século. Ao longo dos últimos vinte anos, o confronto intelectual entre os dois autores radicalizou-se ainda mais, mas nem por isso as suas relações pessoais deixaram de ser as melhores ...

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ideal, típica, normativa e optimal, onde seriam instauradas relações

harmoniosas entre o sistema e o meio. Também quanto ao

reconhecimento do dualismo sistêmico de Weber, onde pode ser

identificada uma racionalidade formal e uma racionalidade material

ocorre a assimilação pela teoria de Luhmann. Assim, o meio ambiente é

entendido como o equivalente da racionalidade material, tendo a função

de abastecer e definir os limites do sistema.

Ao atribuir ao meio a capacidade para delimitar o sistema,

ocorre uma redefinição da racionalidade sistêmica que perde o caráter

hegemônico que Weber reconhecia à racionalidade formal. Com isto, em

Luhmann, a racionalidade é defensiva do sistema, visando neutralizar as

ameaças provenientes do meio. Surge a idéia da contingência, uma vez

que a racionalidade passa a funcionar como uma espécie de rede

pluridimensional e polimórfica.

Percebe-se que a constituição da teoria sistêmica de Niklas

Luhmann é inspirada no trabalho de Parsons e também na obra de Max

Weber; não menos importantes foram as contribuições da teoria

autopoiética elaborada no campo da biologia por Maturana e Varela114.

114 BERNARDES, Márcio de Souza. A compreensão do direito nas matrizes neopositivista e pragmático-sistêmica. Disponível em:<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5624>. A compreensão do direito nas matrizes neopositivista e pragmático-sistêmica. ... sistema social, esboço de uma teoria geral, publicada em 1984. Nesta obra Luhmann introduziu uma nova concepção de sistema social, tendo por referência a mudança de paradigma na teoria geral dos sistemas, produzida por dois biólogos chilenos: Humberto R. Maturana e Francisco Varela (1994a, 1994b e 1995). Essa mundaça significou a substituição dos sistemas abertos, caracterizada pela diferença entre sistema e ambiente, pela teoria dos sistemas autopoiéticos.

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Contudo, estes teóricos foram referências ou pontos de partida para a

abordagem problematizante da comunicação sob o ponto de vista

sistêmico na teoria luhmaniana.

A propósito do estudo sobre os enfoques atuais dos sistemas

jurídicos, a teoria dialógica do direito115 elaborada Rolf Peter Calliess foi

concebida com base no pensamento de Luhmann116, sendo que o direito

é abordado sob o prisma da estrutura do sistema social como construção

social da realidade. Nesse contexto, o Homem aparece no direito, a

sociedade passa a ser encarada como elemento constitutivo do jurídico e

o direito como constitutivo do social. O jurista é parte ou ator da

realidade jurídica. Em Callies, o direito é reduzido a um processo verbal

conciliatório de interação, informação e comunicação (estrutura

dialógica dos sistemas sociais). Assim, o direito é um instrumento

destinado a garantir e proteger a participação do indivíduo nos papéis de

comunicação social e tem por finalidade proporcionar e planejar a

participação e as oportunidades tanto de informação como de

comunicação em uma sociedade em permanente processo de

estruturação.

115 BONAVIDES. Op.cit., p. 127. A teoria da estrutura dialógica do Direito é teoria que politiza sobremodo a formação do Direito, compreendendo unitariamente o processo de sua produção e finalmente fornecendo “a moldura categorial para um entendimento necessariamente mais largo da Ciência do Direito como ciência também da planificação do Direito”. 116 BONAVIDES. . Op.cit., p. 125. Inspirado, pois, na sociologia de Luhmann (a sociologia enquanto teoria dos sistemas sociais), intenta aquele jurista (Callies) explicar o Direito como estrutura dialógica dos sistemas sociais, isto é, como “algo” situado entre as categorias sujeito e objeto, ou seja, uma espécie de esfera autônoma e conciliatória em relação a ambos.

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Observa-se quê, com referência ao momento presente, podem

ser encontrados ao longo da história do direito diferentes enfoques

quanto à idéia de sistema. Partindo da compreensão de Tomas Khun

quanto aos modos de criação e desenvolvimento do conhecimento

científico e da descrição desses fatos pelos historiadores, é prudente

advertir que a análise sistêmica conforme é realizada atualmente somente

se tornou possível após sua elaboração por Bertalanffy (1951), e,

havendo a pretensão de contextualização com maior rigor cronológico e

epistemológico quanto à sua inserção no direito seria adequado lembrar

que a “ciência dos sistemas” foi sintetizada na década de 70.

Com isso, pretende-se afirmar quê, embora existam estudos

tratando de uma análise sistêmica do direito antes da apresentação da

Teoria Geral dos Sistemas por Bertalanffy, isto decorre do equívoco,

denunciado por Kuhn, praticado pelos pesquisadores de pretender

descrever a ciência no passado com base nos dados e instrumentos do

presente, o que altera a descrição dos fatos por criar a imagem distorcida,

segundo a qual a ciência no passado teria tido contato com elementos

existentes apenas no presente.

Advirta-se, portanto, que as abordagens quanto ao pensamento

sistêmico que foram realizados neste trabalho, de acordo com os estudos

desenvolvidos por Claus-Wilhelm Canaris, tem sua relevância ligada à

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opção da autora quanto ao estudo de um determinado objeto (direito) a

partir de uma metodologia, no caso, o método sistêmico, que foi criado

posteriormente em relação ao fenômeno/fato pesquisado.

Sob uma perspectiva histórica, considerando um seu enfoque

descritivo é necessária a prudência sob pena de ser criada a crença

equivocada de que a análise atual corresponde a fatos pretéritos, quê, na

verdade, jamais ocorreram.

É reiterada a afirmação de que o direito está iniciando seus

estudos no campo sistêmico, podendo ser apresentado o seguinte

conceito de sistema jurídico: “o conjunto das normas jurídicas válidas

para um certo território ou um certo grupo de pessoas, e que não obtém

sua validade de nenhuma norma jurídica externa a ele”117.

Estes estudos que a princípio estão sendo desenvolvidos no

campo da teoria geral do direito passaram por um processo de

verticalização, pois, como se verá adiante, já é possível identificar a

existência de trabalhos no âmbito do direito Constitucional a partir de

uma metodologia sistêmica.

Acredita-se na necessidade de estender essas pesquisas para os

diversos ramos do direito, sendo que esta tese é uma proposta de trabalho

no campo do direito processual, considerando este como instrumento

117 Arnaud, André-Jean. Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, p. 729.

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para a realização do direito material e, especificamente, das obrigações

privadas de caráter individual.

3.5 SISTEMA CONSTITUCIONAL

A abordagem a respeito da configuração de um sistema

Constitucional pode ser considerada uma novidade, porque embora a

idéia de sistema tenha sido bem refletida em uma perspectiva jurídica,

entendende-se, neste caso, o fenômeno como um todo; a verticalização

para uma compreensão dessa mesma idéia no campo do Direito

Constitucional tem sido raramente proposta.

Este tema é enfocado neste trabalho a partir da compreensão

de que o estudo dos princípios Constitucionais deve pautar-se por uma

orientação teórica a priori que permita a contextualização do Direito

Constitucional relativamente aos demais ramos do direito, pois pretende-

se produzir uma pesquisa que permita visualizar o direito processual sob

o prisma do sistema jurídico, mas, sobretudo, tendo como liame

orientador uma estrutura sistêmica, fundamentada nos princípios

processuais insertos na Constituição Federal de 1988. Ressalta que esta

elaboração é desenvolvida no sentido de identificar um modelo de

interpretação que produza argumentos que assegurem a segurança e a

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efetividade do processo de execução sem o comprometimento das

garantias Constitucionais de processo. É curioso pensar na possibilidade

de falar-se em segurança e efetividade crítico-materiais do processo de

execução.

O sistema Constitucional pode ser conhecido sob um ângulo

interno estruturalista, como o faz José Joaquim Gomes Canotilho118, de

forma rigorosa.

Levando-se em consideração a opção teórica crítica da

hermenêutica Constitucional, aquela forma de estudos do sistema

Constitucional assume uma relevância parcial, cedendo espaço para a

referência sistêmica adotada por Paulo Bonavides. O critério desta opção

não guarda uma relação de preferência quanto a excelência dos trabalhos

produzidos por esses juristas, mas com os caminhos que se desejou

trilhar para a realização desse estudo. Identifica-se nesse sistema uma

Constituição formal e uma real, bastante distanciadas uma da outra por

haver diferenças consideráveis entre os preceitos contidos em seu texto

formalmente constituído119 e os modos como sua aplicação se verifica

cotidianamente.

118 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 119 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Op. cit., p. 112. Do formalismo advém a disposição em deduzir o direito a partir de um sistema de conceitos e princípios com a crença de que a correção material decorre do acerto formal dessa operação. Como conseqüência, tem-se que: (1º) A ordem jurídica passa a ser vista como um sistema fechado e pleno, com autonomia e independência frente à realidade social, uma realidade a se,

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3.5.1 Constituição formal e Constituição real

Ao fazer alusão a uma Constituição formal, quer-se identificar

o texto escrito revestido por um idealismo ligado ao grau de abstração do

legislador constituinte no momento de cristalizar os bens escolhidos para

serem tutelados pelo mais elevado corpo de dispositivos legais do país.

A Constituição formal encontra-se fundamentada na jurisprudência dos

conceitos que levaram à construção lógica e normativa do sistema

jurídico de Hans Kelsen. É correto afirmar quê, formalmente, a

Constituição não se reveste de valores materiais da sociedade, mas

apenas ideais. Isto justifica o surgimento das Teorias materiais da

Constituição120.

Pelo seu caráter ideal, a Constituição formal não consegue

resolver questões de ordem pragmática corriqueiras, contudo, tal fato não

lhe retira a obrigatoriedade e nem tampouco a vinculação quanto à

hierarquia do sistema jurídico. Os processos de adequação entre o

idealismo da Constituição formal e a necessidade de sua aplicação

intensificam a criação de métodos de interpretação que garantam a

120 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 96. A conferência proferida por Ferdinando Lassalle, a 16 de abril de 1862, não representou uma novidade de crítica constitucional antiliberal, porquanto essa crítica já fora feita, com todo o rigor, pelos filósofos da Reação em princípios do século XIX, mas em verdade veio sistematizar todo um estado de idéias, que se insurgia contra o formalismo abstrato das Constituições, buscando assim explicar cientificamente, de modo deveras precursor, o fracasso da Constituição inspirada em dogmas meramente jurídicos e normativistas. A crítica lassaliana fixou em definitivo a importância da Constituição real, reconhecida por decisiva.

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aproximação entre o ideal Constitucional e as exigências materiais da

sociedade.

As Teorias materiais da Constituição foram desenvolvidas com

o objetivo de criar métodos de interpretação da Constituição formal que

possibilitem o reconhecimento de uma Constituição Real, ou seja, aquela

que é aplicada tendo efetividade concreta. Assim, quando o artigo 5º,

LIV da CF/88, prevê o devido processo legal como um pressuposto

imprescindível para a aplicação do direito, qual a extensão disso no

direito processual?

O Sistema Constitucional121 existe em virtude desse

descompasso entre a Constituição formal idealista e abstrata e a

necessidade da incorporação de valores relativos aos fatos concretos

ocorridos no seio da sociedade. Trata-se de um sistema que se

caracteriza por ser material e orgânico, o que o afasta da posição

kelseniana e dos sociologismos embasados em realidades inarredáveis.

121 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 97. ... o sistema constitucional, quer dizer, aquele que abrange todas as forças excluídas pelo constitucionalismo clássico ou por este ignoradas, em virtude de visualizar nas Constituições apenas o seu aspecto formal, o seu lado meramente normativo, a juridicidade pura. (grifo nosso)

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3.5.2 Teorias materiais da Constituição

As teorias materiais da Constituição têm uma conotação

crítica do direito, o que significa a adoção de uma postura nascida no

século XIX, a partir das concepções jurídicas de Carl Marx que criou um

contraponto ao pensamento da Escola Histórica e à filosofia do Direito,

idealistas e românticas, segundo sua concepção122.

O estudo que procura atribuir ao direito uma vinculação com a

realização de bens sociais, ao que já se referiu como sendo sua finalidade

de ordenação e também de transformações sociais mais voltados para

aspectos concretos ou materiais somente teve maior repercussão entre os

teóricos do direito após a década de 40, principalmente depois do

término da 2ª Guerra Mundial, pois as experiências do nazismo e do

fascismo foram reveladoras dos riscos que o discurso formalista e

positivista do direito criou para a humanidade, uma vez que atendidos os

pressupostos rigorosos da linguagem, hierarquia, vigência e validade da

lei, o sistema fechado concebido por Kelsen, colocava o Direito a salvo

122 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Op. cit., p. 121. Valendo-se do método dialético, Marx faz inicialmente a negação antitética da tese historicista, ao propugnar que esta sofre de uma petição de princípios e é radicalmente falsa, quando pretende conhecer o direito como história dos conceitos, princípios, normas e instituições jurídicas, pois essa história simplesmente não existe. Em seguida, conclui, com a negação da negação, síntese superadora da oposição, afirmando que o direito não tem uma história própria, autônoma, distinta do conjunto dos fenômenos sociais em que se inclui, todos voltados, em última instância, para a organização, a um só tempo política e econômica, dos meios materiais de garantir a existência em sociedade.

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107

da discussão a respeito de outras questões como a social, política e

econômica.

O purismo metodológico kelseniano construído com base em

um sistema fechado negou a importância da questão valorativa e

ideológica, tornando o direito susceptível da apropriação por modelos

políticos totalitários e desvinculados dos interesses do Homem. Esta

situação conduziu a uma reavaliação dos teóricos do direito quanto à sua

concepção formalista e positivista, estabelecendo o ambiente necessário

para o referencial crítico materialista referido por Marx.

O fundamento da crítica materialista está em que o direito

como sistema é aberto, constituindo uma superestrutura lingüística

legitimadora das estruturas de poder político e econômico, onde

repousariam suas bases ideológicas e valorativas. Logo, somente através

da elaboração de uma metodologia de interpretação dos dispositivos

legais que permitisse levar em consideração os aspectos sociológicos nos

quais assenta o direito sua base, poderia ter assegurada uma ordem na

qual pudesse haver a transformação includente, socialmente falando, no

sentido de garantir a todos os indivíduos iguais oportunidades de acesso

à justiça.

Ao se referir às teorias materiais da Constituição, pretende-se

mencionar os possíveis métodos de interpretação que

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possibilitem a aplicação do direito levando-se em

consideração suas repercussões sociológicas, considerando-se seus

aspectos político e econômico.

É importante ressaltar que a opção sociologizante,

quanto ao estudo do direito123 e da Constituição, exige cuidado, sob

pena de incidir-se no equívoco de afastando questões técnico-jurídicas

inerentes ao direito, criar-se um outro modelo ideológico e injusto124.

Ainda quanto às teorias materiais da Constituição, deve ser

destacada a questão relativa aos seus antecedentes que, estando voltados

para a sociedade, nasceram no campo do direito privado, porquanto as

elaborações inerentes ao direito público são mais recentes, e ocorrem de

123 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito, p. 364-365.”Fascinante – dissemos – o sonho de colocar, por cima do justo por convenção, por cima do justo segundo a lei, o soberano justo por natureza. Num primeiro impulso, na pura esfera de um sonho, não há quem não se sinta irmanado com os juízes do chamado Direito Alternativo. Mas, no momento em que despertamos, e saímos do sonho, e pomos os pés na terra, e o pensamento na simples realidade, que é que vemos? Vemos que precisamos nos abraçar às leis, para ser livres. Para assegurar o respeito a nossos Direitos. Para usufruir e defender o que é nosso. Para que existem as lei? ... Elas existem para evitar o arbítrio do Executivo, par evitar o arbítrio do Jucidiário, para evitar o arbítrio dos mais fortes. ... O que pedimos ao juiz é, somente, que ele interprete a lei aplicável ao caso concreto, e julgue de acordo com o que essa lei manda. O que queremos é nos submeter à lei, não ao arbítrio do juiz, não às teorias ou crenças subjetivas do juiz, à revelia da lei.” Nesse texto, ao tratar do aspecto filosófico inerente à questão da Justiça é abordada a vertente brasileira que proclamou a adoção da Teoria Crítica miscigenada com a jurisprudência dos interesses sob a ótica da escola norte-americana da livre aplicação do direito para a criação da escola orgânica do Direito Alternativo. Sua manifestação é uma advertência inequívoca quanto aos riscos do descuido quanto a questões jurídicas na aplicação do direito. (grifo nosso) 124 BONAVIDES, Paulo. Op. cit.,p.100. A concepção material da Constituição representa no século XX uma corrente de pensamento crítico e revisor, a cujo leito confluem todas aquelas direções inconformadas com o exclusivismo normativo e formalista do positivismo lógico. Desde Laband e Kelsen, esse positivismo levara a teoria do Estado a um ‘nihilismo científico-espiritual’, conforme advertira Smend, numa admoestação severa dirigida sem dúvida aos juristas esvaziadores do Estado e do Direito. Aquelas direções estavam volvidas para o conteúdo e a matéria dos preceitos normativos, de preferência à forma e às categorias. ... Disso também poderia advir o dano oposto, ou seja, uma visão puramente ideológica e política da Constituição, dissolvendo ou debilitando-lhe as bases jurídicas. Se o excesso de formalismo pusera em perigo as Constituições, reduzindo-as a desprezíveis folhas de papel, a alternativa material, exagerada ao extremo, conduzida às suas últimas conseqüências, não se forrava a menores riscos.

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forma mais lenta e gradual. Advirta-se, contudo, que o desenvolvimento

dessas teorias se encaminha na direção de uma organicidade

sociologicamente construída no processo dialético-historicista e pautado

nos princípios e conceitos constituídos na esfera do direito público.

No século XX, nos Estados Unidos da América, o juiz

Marshall e outros membros da Suprema Corte propuseram a aplicação

dos dispositivos legais de forma embasada em um direito vivo, de modo

que a Constituição Americana seria revelada no processo de

interpretação através do método hermenêutico, tratava-se da Escola da

Jurisprudência sociológica125.

Carl Schimitt desenvolveu uma teoria de aplicação da

Constituição em que os conceitos de Constituição e Lei constitucional

são diferentes. O conceito de Constituição está imbuído de um sentido

político que lhe confere uma unidade, atribuindo-lhe um profundo valor

existencial. Em Schimitt, o político prepondera sobre o jurídico. O

existencial compõe a essência da Constituição, o reino da decisão

fundamental, a esfera política que se sobrepõe ao normativo, às leis

Constitucionais e ao domínio jurídico propriamente dito. As leis

125 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, p. 72-73. ... Ainda que não se trate de uma corrente doutrinária unitária, pode-se assinalar os nomes de alguns autores que estiveram envolvidos nessa corrente ‘crítica’. O austríaco Eugen Ehrlich (1862-1922), considerado o fundador – ou, pelo menos, aquele que lhe deu o nome. Durante uma conferência que ele fez em Viena, em 1903, cujo título era Freie rechtsfindung und freie Rechtswissenschaft, Ehrlich afirmava que o direito era um ‘realidade sociológica que o jurista deve pesquisar’. Ele definiu, por conseguinte, a existência de um ‘direito social’, ‘vivo ou real’, ‘fora do estado’, que vive completamente à margem do direito do estado. (grifo nosso)

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Constitucionais qualificam-se pelo formalismo ou rigidez, que dificulta

sua mudança, logo, seu valor é assegurado em função da existência da

Constituição, o que, em última análise, leva a uma conseqüente

relativização daquelas.

Há uma unidade essencial de existência, integridade e

segurança relacionada com os valores existenciais da Constituição, que

exprime fundamentalmente uma decisão política126.

Na Suíça, a partir de 1930, alguns autores desenvolveram

teorias a respeito da Constituição, tomando em consideração sua

interpretação crítico-material, destacaram-se Schindler com sua tese

dialética, valorizando o ambiente, o meio e o extrajurídico; Werner

Kaegi destacou a crise dos valores, apregoando o crepúsculo do Estado

Constitucional devido ao desprestígio da ordem jurídica e a queda geral

das crenças. Hans Haug enfocou os valores dentro de uma idéia de

justiça, tendo em vista um teor idealista inspirado na filosofia dos

valores de Hartmann e Sheller. Assim, a Constituição e o direito

referem-se a valores materiais explicáveis pelos valores que incorporam.

Esses autores se destacaram na formação do ideário teórico que ficou

126 BONAVIDES, Paulo. Op. cit.,p. 105. Kelsen sustentando, conforme observa Wimmer, que ‘algo vale, quando vale e porque vale’ e Schmitt, com seu sentido de existencialidade, professando que ‘algo vale, quando existe e porque existe’.

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conhecido como Escola de Zurique, a qual representa uma das

importantes construções dentre as teorias materiais da Constituição127.

O Direito, como ciência embasada em um objeto ideal que

teria suas regras fundamentais expressas através da Constituição Federal,

exige do seu pesquisador um exercício acadêmico grandioso, pois, como

já referido, este plano ideal do dever-ser não se sustenta em si mesmo.

Modernamente, estão em processo de superação as concepções

doutrinárias que buscam a justificação do direito em seu próprio

contexto.

As teorias materiais da Constituição voltam-se, cada uma de

acordo com a compreensão de seu sintetizador, ao desenvolvimento de

mecanismos que possibilitem a realização efetiva dos valores expressos

em seus dispositivos.

Com referência a isso, é relevante lembrar que o sistema

Constitucional sob um prisma material se aproxima consideravelmente

do sistema político128, o que, contudo, pode ser resolvido a partir da

127 Ibidem, p. 107. É cedo talvez para medir os efeitos doutrinários da produção constitucional da Escola de Zurique. Fica porém fora de toda a controvérsia que ela representa um importantíssimo passo adiante no sentido de estabelecer as bases sólidas de uma teoria material da Constituição. Teve já o inquestionável merecimento de levar a cabo uma tarefa que ainda prossegue de sistematização de certos aspectos relevantes para a técnica de interpretação constitucional e já teoricamente aflorados por predecessores do tomo de Heller, Schmitt e sobretudo Smend. 128 BONAVIDES. Op. cit., p. 128. ... Nisso porém reside o mais grave defeito de todas as concepções sistêmicas do Direito ou da Constituição, caso venham efetivamente a esboçar-se: é que elas podem conduzir a uma desintegração do “jurídico”pelo “político”, afrouxando os laços da juridicidade e da constitucionalidade ou ampliando estes conceitos a um grau de politização tão intolerável, de efeitos tão irreparavelmente negativos e funestos, que importariam o sacrifício do homem ao sistema, da liberdade ao ordenamento, inaugurando assim em última análise, uma versão mais aperfeiçoada de totalitarismo jurídico e político, dissimulado na legitimidade tecnocrática, perante a qual sucumbiriam, enfim, os valores da pessoa humana, aqueles que a tradição Ocidental em vão intentaria amparar.

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112

adoção de novos métodos para interpretação dos dispositivos contidos no

texto da Constituição, daí a adequação da proposta de uma nova

hermenêutica.

3.6 HERMENÊUTICA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A ruptura entre a religião e a ciência teve como um de seus

efeitos a viabilização de uma compreensão do Homem como sujeito

ativo do processo constitutivo de sua história. A realização dos meios

para a garantia da qualidade de vida humana torna-se responsabilidade

do Homem. Observa-se, contudo, que não há entre todos os povos e em

todas as camadas das populações uma plena sensibilização quanto a essa

responsabilidade social.

O direito nesse contexto inicialmente assumiu uma função de

organização e controle a fim de assegurar ao Estado a operacionalização

da ordem no sentido de que, dentro de uma concepção positivista, o

Estado garantiria um nível satisfatório de segurança que levaria ao

desenvolvimento e progresso dos povos.

A frustração dessa promessa forçou a repensar o direito. O

momento é de crise do paradigma positivista, assim o que tem sido

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produzido apresenta um caráter marcadamente especulativo, de acordo

com o entendimento da história da ciência em Tomas Khun.

A partir dos estudos de Von Ihering há uma crescente

expectativa em relação às possibilidades concretas ou reais do direito em

produzir “justiça”, no sentido de assegurar a cada um o que seja seu

dentro de uma equação em que os bens individuais se enquadrem

harmoniosamente com os interesses coletivos129. Esta colocação deve ser

entendida dentro de um conjunto de fatos que compõem a história do

direito, sobretudo, tomando-se como referência cronológica os ideais

iluministas da Revolução Francesa (1789).

Gradativamente está sendo reconhecida a função ordenadora

do direito tendo em vista uma finalidade transformadora, no sentido de

regulamentar os fatos em favor do desenvolvimento individual e da

nação. O papel sancionador e coercitivo do direito tem se revelado

ineficiente, o que justifica as discussões a respeito dos problemas da

baixa efetividade na prestação jurisdicional. Um sistema que não produz

a realização de suas funções e finalidades pode ter comprometida sua

129 MONTORO. Op.. cit., p. 138-139. Grande número de opiniões pode ser encontrado a respeito das espécies de justiça. Deixando de lado discussões intermináveis, que, freqüentemente, se fundam em aspectos secundários do problema, podemos dizer que há: a) uma justiça particular, cujo objeto é o bem do particular; b) uma justiça geral, também chamada legal ou social, cujo objeto é o bem comum. A justiça particular, por sua vez, pode se realizar de duas formas: a) um particular dá a outro particular o bem que lê h é devido; b) a sociedade dá a cada particular o bem que lhe devido; chama-se, nesse caso, justiça distributiva. Na justiça geral, social ou legal são as partes da sociedade – isto é, governantes e governados, indivíduos e grupos – que dão à comunidade o bem que lhe é devido.

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segurança. Com isto, a estrutura institucional que forma o Estado fica

abalada.

Diante de uma crise que pode assumir essas proporções,

acredita-se que a proposta de se interpretar a Constituição com o objetivo

de produzir sua concretização material, ou melhor, a consecução dos

bens jurídicos previstos em seu texto em sentido real é significativa, uma

vez que quanto maior a dissonância entre o ideal, ou o dever-ser e o real,

menor a efetividade do direito e crescente a insegurança institucional.

A hermenêutica desenvolvida segundo a interpretação

sistemática com bases racionais e lógicas, em um modelo em que a

norma deve ser aplicada tendo em vista suas conexões com o

ordenamento jurídico, ou seja, com todas as demais normas integrantes

do sistema jurídico, é uma concepção clássica e que teve importância

como método de interpretação e aplicação do direito de acordo com sua

concepção dogmático-positivista. Sob esse ponto de vista, é discutível a

juridicidade da norma Constitucional, considerando-se sua índole

política130.

130 BONAVIDES. Op. cit., p. 129-130. Rigorosamente, não deve existir distinção de natureza entre a interpretação das normas constitucionais e a interpretação das demais normas do ordenamento jurídico, posto que haja distinções decorrentes da peculiaridade das regras básicas, de seu conteúdo ou aspecto material, mas que não devem afetar a essência jurídica da norma. Dizemos “não devem afetar” porquanto o conteúdo da norma constitucional há sido desde muito objeto de incisivas controvérsias na esfera teórica. Posições há claramente antagônicas ao reconhecimento da plena juridicidade daquela norma, uma vez que a matéria sobre a qual versa é também de índole política, determinando assim o tratamento excepcional atribuído pela doutrina ao seu exame e a sua precisa caracterização no quadro da normatividade.

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115

Esse modelo de interpretação aplica o método axiomático-

dedutivo sendo caracterizado pela objetividade e pela certeza da norma

através de regras puras e abstratas previstas nas constituições rígidas. As

verdades para o formalismo constitucional se apresentam como lógicas e

reivindicam a cientificidade pautada na ausência de subjetivismos de

natureza axiológica.

A aplicação do direito pelo método objetivo ou axiomático-

dedutivo vincula o processo decisório integralmente à lei, que é

considerada o elemento central do “sistema”. Assim, os problemas que

não encontram uma solução ou resposta no ordenamento jurídico são

entendidos como pseudo-problemas. Qualquer questão extralegal deve

ser rejeitada no procedimento de aplicação do direito. A fundamentação

da decisão será sempre de caráter legal, nisso consistindo

fundamentalmente sua racionalidade131 132.

A questão mais pungente para a hermenêutica clássica ou

tradicional se encontra na ausência de lei em face do fato ensejador da

131 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 93, IX. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes. (grifo nosso) 132 WAMBIER, Luiz Rodrigues, ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de processo civil, v. 1. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. P. 552. Na fundamentação, exporá o magistrado as razões de seu convencimento, de forma clara e de molde a que tantos quantos a lerem tendam a chegar à mesma conclusão a que chegou. Trata-se de dispositivo legal em que se manifesta e se concretiza de forma inequívoca o princípio do livre convencimento motivado, da mesma forma que ocorre no art. 131. Ato de inteligência e de vontade, não se pode confundir a sentença com u mato de imposição pura e imotivada de vontade. Daí a necessidade de que venha expressa sua fundamentação (art. 93, IX, da CF). (grifo nosso)

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116

situação jurídica sob a apreciação do Poder Judiciário, ou seja, como

resolver o problema da lacuna da lei no ordenamento jurídico. O próprio

Kelsen que a princípio negou a existência de lacunas, posteriormente

admitiu sua existência, sem, contudo, apresentar uma resposta

satisfatória à questão. De fato as teorias positivistas de Carlos Cossio,

Goffredo Teles Júnior e Lourival Vilanova propuseram-se a enfrentar

este problema, admitindo a abertura do “sistema legal”. Ressalta-se que

seus trabalhos são posteriores à elaboração da Teoria Geral dos Sistemas.

A conseqüência mais drástica do positivismo pautado na

hermenêutica clássica é o desligamento entre o ideal Constitucional e as

necessidades reais da comunidade. Este distanciamento criou

contradições entre o dedutivismo idealista e abstrato da Constituição

formal e as exigências fundamentais da Constituição real.

Diante dos problemas que não foram resolvidos

satisfatoriamente pelo positivismo formalista, surgiu uma hermenêutica a

qual denominamos crítica. Sua gênese pode ser identificada na

jurisprudência dos interesses, pauta-se em um sistema Constitucional

axiológico-teleológico tendo um caráter funcional. Seu ponto culminante

ocorre com a Escola Livre do Direito.

Adota uma metodologia pluridimensional o que significa

afirmar que interpreta e aplica o direito tendo em vista valores, fins,

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razões históricas, considerando os interesses, o conteúdo e o pressuposto

da lei. Seu aspecto mais fundamental é reconhecer que o sistema jurídico

e, sobretudo, o sistema Constitucional são integrados por um complexo

de forças, relações e valores em uma dinâmica dialética permanente e

insuperável.

Poder-se-ia afirmar que ao trazer para o direito e,

principalmente para o campo Constitucional, a dinâmica própria do

sistema social levaria ao risco de desequilibrar o sistema Constitucional

no caso de preponderar o conteúdo material de seus dispositivos sobre a

forma. Nesse caso, o sistema Constitucional se desagregaria, pois a

certeza e a segurança da jurisdição ficariam abaladas.

O problema aqui residiria em que o intérprete da Constituição

correria o risco de realizar seu trabalho com referência às suas

ideologias, o que levaria a uma excessiva politização do direito.

Neste ponto é importante lembrar que as teorias a respeito do

direito Constitucional relegam a um plano secundário os aspectos do

direito público o que resulta na fragilização em maior ou menor grau de

seu conteúdo.

O trabalho desenvolvido no sentido de formular uma

hermenêutica historicista baseada no direito público, considerando o

texto Constitucional a partir de um critério evolutivo das transformações

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do sistema com base nas variações de sentido quanto à aplicação de seus

dispositivos e de sua realidade Constitucional parece razoavelmente

satisfatório quanto às possibilidades de resolver o problema da

ideologização e politização do jurídico.

Assim, ao intérprete não caberia o mal-entendido papel de

criador da norma, mas de contextualizador do direito em sua dimensão

histórica tendo em vista a evolução ocorrida no sistema Constitucional,

considerando-se os dispositivos codificados no texto da Constituição e a

realidade que lhe imprime eficácia, vida e conteúdo.

Poderia argumentar-se quanto às dificuldades práticas

decorrentes de uma proposta de interpretação e aplicação do direito

embasada em uma teia complexa de informações como seria o caso da

hermenêutica crítica historicista da Constituição. Não parece, contudo,

que sejam intransponíveis tais dificuldades, uma vez que os intérpretes

da lei poderiam ser selecionados e receber uma formação que lhes

permitisse ter uma compreensão do direito com referência ao método

axiológico-teleológico, diferentemente do que ocorre atualmente em que

a sociedade e a ciência do Direito clamam pela superação do positivismo

formalista e pela democratização do Poder Judiciário, tendo, no entanto,

que conviver com um sistema jurídico que ainda atua através da

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aplicação da lei sob uma perspectiva metodológica axiomática-

dedutivista.133

133 Considerando o objetivo de estudar o processo de execução no Brasil tendo como referência a Constituição Federal de 1988 e as obrigações de natureza privatísticas, opta-se pela abordagem a respeito dos princípios133 que podem ser identificados no texto Constitucional, buscando compreender sua inserção na execução levando em consideração uma metodologia axiológica-teleológica.

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4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O PROCESSO DE EXECUÇÃO

O processo de execução no Brasil tem sido objeto de muito

estudo, sobretudo tendo em vista uma perspectiva pragmática, no sentido

de elucidar a forma mais satisfatória de se garantir a realização do direito

objeto da obrigação inadimplida. No entanto, os trabalhos realizados não

estão conseguindo tornar mais eficientes os mecanismos estatais de

coerção através da execução processual134, o que é revelado pelas

inquietações que permeiam seus estudos e o conjunto de dispositivos

legais a seu respeito.

Acredita-se na necessidade de compreender o processo de

execução de forma mais ampla, principalmente em relação à

Constituição de 1988 e ao modelo econômico liberal adotado pelo Brasil,

em que o custo de fomento da economia de produção de bens e serviços

é elevadíssimo.

Nesse aspecto é situado o problema do estudo do processo de

execução como integrante da teoria da ciência do direito, cujo objeto é

cultural. Assim considerado, o processo de execução, será abordado

134 O Código de Processo Civil está sendo reformado, e o Projeto de Lei 3.253 de 2004, aprovado em junho, ao remeter a liquidação de sentença e o processo de execução para o Livro 1 rompe com o paradigma da estruturação compartimentada do Código de Processo Civil brasileiro e com a autonomia do processo de execução segundo suas funções. Assim pode-se falar em rompimento do direito processual civil brasileiro com o processualismo científico.

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criticamente em face do contexto e das relações sócio-econômico-

culturais em que se coloca. Sob a ótica da dogmática, o texto da

Constituição Federal de 1988, ao determinar os princípios norteadores do

direito processual afetou drasticamente o Código de Processo Civil de

1973, sendo especialmente relevantes os efeitos produzidos no Livro II,

artigos 566 a 795; igualmente a Consolidação das Leis do Trabalho, nos

artigos 876 a 892 que tratam do processo de execução trabalhista está

comprometida, pois, há um descompasso entre o texto da Lei ordinária e

os preceitos da Constituição Federal.

O direito quando é assimilado como um sistema de controle e

implementação das políticas do Estado, na esfera do processo de

execução apresenta-se como o meio de constrangimento da vontade

individual contra o interesse geral na conservação do sistema de crédito

econômico-financeiro, pois, o inadimplemento é um fator de restrição e

de elevação dos custos do crédito, na medida em que o risco é

compensado com a elevação das taxas de juros no sistema financeiro.

Com isso, o custo humano, a dignidade do devedor, que em uma

sociedade de consumo, está inevitavelmente ligada à sua capacidade de

participar do mercado consumidor, é transplantada do direito para a

economia, onde sob um referencial liberal ou neoliberal como preferido,

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122

a dignidade está em solver ao credor, ainda que ao custo do

aniquilamento econômico e pessoal do devedor.

Mas “aquele que deve tem que pagar”. Não se pretende negar

esta afirmação, mas compreendê-la para além do direito, ou melhor, o

direito sob a imagem da deusa greco-romana Themis135 que significa o

equilíbrio imparcial de forças e não a subordinação do direito à

economia.

A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, introduziu

alguns preceitos de natureza processual a propósito de garantir a todos os

indivíduos o respeito a alguns bens inerentes ao Estado Democrático de

Direito proclamado no artigo 1º daquela Carta136. Tem sido discutido o

alcance e forma de aplicação desses dispositivos Constitucionais ao

processo de execução, pois, originariamente, esta é iniciada a partir da

certeza da obrigação e do inadimplemento, prescindindo do

contraditório.

Esta pesquisa é desenvolvida no sentido de que os preceitos

inerentes ao processo proclamado nos incisos LIV, LV, do artigo 5º, da

CF/88, são aplicáveis à execução, o que representa uma mudança

135 A deusa Themis classicamente vendada não se contrapõe aos ideais de justiça real, porque a justiça deve ser entendida como medida de forças pautada por parâmetros históricos, culturais e sociais, uma vez que a palavra justiça só tem significado quando referida ao humano, seja sob uma perspectiva materialista ou metafísica. 136 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (grifo nosso)

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123

significativa, pois os artigos 652, do Código de Processo Civil, e o artigo

880, da CLT, restringem drasticamente as noções próprias ao devido

processo legal, ao contraditório e a ampla defesa.

O artigo 586, do CPC, ao determinar os requisitos para a

realização da execução para cobrança de créditos estabelece que o título

executivo deverá ser líquido, certo e exigível, fazendo pressupor que o

processo de execução deve partir de uma situação concretamente

determinada, o que poderia justificar a não-incidência das normas

orientadoras do processo estabelecidas na Constituição Federal.

A Constituição demarca o regime político e o sistema jurídico

garantindo a unidade do ordenamento jurídico, expressando

mandamentos que não podem ser contrariados por serem subordinantes

de todo o ordenamento jurídico. Desse modo, o professor Goffredo

Telles Júnior refere-se à existência de um pluralismo de ordenações,

harmonizados hierarquicamente, formando um conjunto estruturado

submetido a uma só ordem nacional137.

Retomadas as idéias a respeito da teoria dos sistemas, da teoria

da ciência do direito e admitindo-se o axioma da hierarquia das normas

jurídicas ao texto da Constituição Federal, entende-se pela

necessidade e oportunidade de estudar o direito processual e, mais

137 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do Direito, p. 123.

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124

especificamente, o processo de execução das obrigações de pagamento

de quantia certa de natureza privada sob a ótica da teoria constitucional

dos princípios jurídicos.

4.1 A TEORIA DOS PRINCÍPIOS

Após 21 anos sob um regime político em que as liberdades e

garantias individuais estiveram sob exceção, redescobriu-se a

importância de compreender os fatos além da superficialidade138. A

sociedade brasileira tem adotado novas posturas em relação a

acontecimentos pautados em velhos comportamentos. O mundo do

direito assimilou esse momento, sendo prova disso o surgimento de uma

escola crítica do direito no Estado do Rio Grande do Sul, sob a

denominação de escola do direito alternativo.

Nesse contexto, todos os ramos do direito tenderam em maior

ou menor grau a revizitação de seus institutos, orientando-se por critérios

oferecidos pela “Constituição cidadã” e pelas teorias de cunho

sociológico.

138 O primeiro presidente da República eleito diretamente após o período militar (Fernando Collor de Melo) sofreu um processo de impeachment e renunciou. Esse momento histórico foi corroborado pela participação popular, através de manifestações públicas pacíficas. Aparentemente esse presidente representava uma irrenunciável conquista democrática e a garantia de modernização do país, o que não evitou ou impediu que a população compreendesse a necessidade de superar a superficialidade das aparências e exigisse seu afastamento por gravíssimas suspeitas de corrupção estruturalmente organizada.

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125

A teoria dos princípios é uma formulação que pretende

oferecer ao direito um referencial para o reconhecimento de um princípio

jurídico, pois a sua consideração como fonte do direito em detrimento de

seu reconhecimento, no campo da interpretação legal, precisa ser

compreendida. Para tanto se considera que o direito pressupõe uma

reconstrução de significados139 a partir da interpretação dos dispositivos

legais que possibilita a identificação das normas140 jurídicas que serão

aplicadas. Isto permite afirmar que os dispositivos não contêm os

princípios e as regras que dependem da interpretação e, portanto,

encontram-se no âmbito das normas141.

Assim, surgem as questões quanto ao modo de investigação

dos princípios e sua aplicação, bem como a distinção entre estes e as

regras. A relevância destas questões levou ao surgimento de vários

critérios, podendo ser mencionados os seguintes: o critério do caráter

hipotético-condicional das regras, o critério do modo final de aplicação,

o critério do relacionamento normativo e o critério do fundamento

axiológico. Cada um desses critérios apresenta-se comprometido pela

139 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 25. ..., pode-se afirmar, que o intérprete não só constrói, mas reconstrói sentido, tendo em vista a existência de significados incorporados ao uso lingüístico e construídos na comunidade do discurso. 140 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 22.Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. 141 ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, passim.

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126

complexidade inerente a aplicação do direito, o que não reduz a

importância de cada um.

Para efeito deste trabalho, considerou-se que tanto regras como

princípios possuem igual conteúdo de dever-ser, uma vez que deverão

ser realizados totalmente. A diferença deve ser localizada na

determinação da prescrição da conduta que resulta da sua

interpretação142.

Há duas maneiras de se estudar os princípios, uma sob o

enfoque acrítico de sua importância, destacando os valores por eles

tutelados, qualificando-os como alicerces ou pilares do ordenamento

jurídico. Podem também ser examinados a partir de sua estrutura,

objetivando a um procedimento racional de fundamentação que

possibilite especificar as condutas necessárias para a realização dos

valores por eles prestigiados e controlar sua aplicação através da

reconstrução racional dos enunciados doutrinários e das decisões

judiciais143.

Sob uma perspectiva sistêmica e dialética que norteia esta

proposta de estudos, opta-se pela abordagem estrutural dos princípios.

142 ÁVILA. Op. cit., p.55. ... os princípios não determinam diretamente (por isso prima-facie) a conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, cuja concretização depende mais intensamente de um ato institucional de aplicação que deverá encontrar o comportamento necessário à promoção do fim; regras dependem de modo menos intenso de um ato institucional de aplicação nos casos normais, pois o comportamento já está previsto frontalmente pela norma. 143 ÁVILA. Op. cit. p., , 56.

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127

4.2 ESTRUTURA DOS PRINCÍPIOS

A estrutura dos princípios passa por sua contextualização

geral, no que é realizada a opção por algumas referências de caráter

doutrinário quanto a interpretação e aplicação do direito.

O direito como uma forma de expressão de linguagem permite

afirmar que como tal ele se concretiza com o uso, e que demanda para

sua aplicação da atividade do intérprete. Nestes termos, o intérprete

assume um papel preponderante para uma adequada aplicação do direito,

na medida em que sua atividade constitui os significados dos

dispositivos.

É importante observar que existe um conteúdo de significados

pré-estabelecidos, incorporado pelo uso corriqueiro da linguagem, seja

em seu sentido ordinário ou técnico. Isto estabelece para o intérprete um

referencial mínimo de significação prévia e de vinculação com o sistema

social.

Basicamente o intérprete realiza duas operações, inicialmente

identifica o texto legal (dispositivo) sob o qual foca sua observação

(objeto da investigação) a partir disso utiliza-se da linguagem,

atribuindo-lhe sentidos com o objetivo de encontrar o modo mais

consentâneo de aplicação do preceito legal expresso através da lei,

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128

devendo ter como pontos de referência de um lado o conjunto de

dispositivos que integram o ordenamento jurídico, considerado sob o

prisma de seus valores demarcados Constitucionalmente, e de outro lado

deve-se observar a constituição do fato jurídico objeto da apreciação

pelo órgão julgador, tomando em consideração o contexto que

determinou aquela realidade. Desse quadro, deve surgir a norma como

comando concreto externado pelo aplicador do direito.

Ressalta-se que ora a norma jurídica se apresenta como regra,

ora como princípio e, ainda em alguns casos, como postulados

normativos.

Pode ser afirmado que o dispositivo legal é o ponto de partida

da interpretação, sendo que a norma é o resultado do trabalho do

intérprete, de onde resulta a inadequação de atribuir aos dispositivos um

conteúdo de regra ou princípio, pois a qualificação das normas depende

da colaboração do intérprete.

O processo para a obtenção do conhecimento é sempre

complexo, pressupondo pelo menos um objeto a ser conhecido tendo em

vista alguma coisa que é seu referencial e a forma como o sujeito

cognoscente interage com este objeto para revelar ou descrever sua

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129

existência ao mundo. A esse respeito têm sido desenvolvidas ao longo da

história da humanidade inúmeras escolas144.

O reconhecimento de um princípio é, sobretudo, um meio para

estabelecer um referencial para o direito, norteado por fins a serem

alcançados e objetivos que devem ser realizados através da interpretação

do dispositivo e aplicação da norma. A questão está centrada na

legitimação de critérios que permitam aplicar racionalmente os valores

expressos através dos fins identificados nos princípios. Nisto, encontra-

se o objeto da teoria dos princípios.

144 VIEGAS, Wadyr, Fundamentos de metodologia científica, p.17-52. Nesse trabalho há uma abordagem a respeito do processo de conhecer a qual parece satisfatória para demonstrar o quanto isto é fundamental e complexo. Desse modo o processo de conhecer é entendido como uma abstração que cria imagens a respeito de objetos. Para a filosofia o conhecer ocorre através das ciências físicas e naturais, as quais observam o objeto pelas suas qualidades individuais; através das ciências matemáticas, que analisam seu objeto pela ótica da quantidade; e por meio das abstrações metafísicas. Na elaboração de referenciais para a construção do conhecimento podem ser identificados os escolásticos (adequação especulativa entre a mente e a coisa); Descartes (a idéia cria o conhecimento); Kant (síntese a priori); Fichte (O indivíduo cria a realidade); Hegel (dialética); Marx (aplicação da dialética) e Schiller, Dewey e William James (pragmatismo americano – verdade é o que funciona). A abstração que leva ao conhecimento é realizada através do intelecto humano que opera com pelo menos dois sistemas a razão e o sentimento, tendo por finalidade descrever e se possível explicar o mundo. Esse processo tem como referencial a verdade, entendida como a aproximação máxima entre o que o objeto do conhecimento efetivamente é o modo como é assimilado pelo humano. Compreender esse processo de interação entre a razão e os sentimento para a formulação do conhecimento dentro de um sistema aberto, permite o seguinte modelo; entradas → inputs → sensações, processamento → thruput → idéias, saída → output → conhecimento. O insight não tem sido negado, contudo não pode ser explicado. Nesse modelo a formação do conhecimento (imagens abstratas de um objeto) é produzido pelo intelecto através da interação entre razão e sentimento. O processamento se verifica através dos graus de relação produzidos entre sentimentos e razão que levam a diversos tipos de conhecimento, assim o ideológico, o religioso, o filosófico e o científico, cada qual com características próprias. O interesse nesse momento volta-se à elaboração de um tipo de conhecimento científico, pois o que se pretende é descrever e possivelmente explicar uma realidade de forma contingencial e factual ou realística tendo em vista a utilização de métodos que sejam adequados e possibilitem a diferenciação, como meio progressivo de substituição de padrões globais e difusos por funções especializadas das formas de conhecer adequados e possibilitem a diferenciação, como meio progressivo de substituição de padrões globais e difusos por funções especializadas das formas de conhecer.como meio progressivo de substituição de padrões globais e difusos por funções especializadas das formas de conhecer.

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130

Sob uma perspectiva frontalmente pragmática e positivista,

pode parecer sem importância esta investigação, no entanto, acredita-se

que os paradigmas críticos-sociologistas do direito nos conduzem,

necessariamente, à compreensão dos fenômenos em um contexto mais

abrangente, ou seja, o direito deve ser estudado como um sistema que

interage com outros sistemas, podendo ser destacadas as relações que se

formam como o sistema social.

4.3 PRINCÍPIOS, REGRAS E POSTULADOS NORMATIVOS

Os princípios devem ser investigados como fins a serem

alcançados através de comportamentos necessários para a realização de

um estado de coisas que se referem a situação qualificada por

determinadas qualidades as quais se aspira conseguir, gozar ou possuir; e

como o modo pelo qual esse estado de coisas será realizado, tendo em

vista a aplicação do direito.

Considerando uma teoria geral dos princípios, pode afirmar-se

que estes apresentam uma dimensão imediatamente finalística,

primariamente prospectiva, com pretensão de complementariedade e de

parcialidade, para cuja aplicação demanda uma avaliação da correlação

entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da

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131

conduta havida como necessária à sua promoção. Os princípios se

voltam para a realização de um fim relevante juridicamente.

As regras são imediatamente descritivas, primariamente

retrospectivas com pretensão de decidibilidade e abrangência para cuja

aplicação é exigida a avaliação da correspondência centrada na

finalidade que lhe dá suporte. Sob uma perspectiva pragmática

prescrevem comportamentos. A interpretação e a aplicação das regras

exigem uma avaliação da correspondência entre a construção conceitual

dos fatos e a construção conceitual da norma e de sua finalidade.

As regras têm uma dimensão imediatamente comportamental.

Os postulados normativos aplicativos são imediatamente

metódicos, estruturando a interpretação e aplicação de princípios e de

regras mediante a exigência, mais ou menos específica de relações entre

elementos com base em critérios que são a ponderação de bens, a

concordância prática, a proibição de excessos que será assegurada

através da igualdade, da razoabilidade e a proporcionalidade a qual

representa a utilização dos meios que devem ser adequados, necessários

e proporcionais em sentido estrito. Os postulados têm uma dimensão

imediatamente metódica.

O direito como estrutura de linguagem deve ser aplicado

através da interpretação realizada de acordo com critérios devidamente

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132

explicitados. Tomando essa afirmação como um referencial, é possível

estabelecer um conjunto de intrincadas relações entre os postulados

normativos aplicativos, os princípios e as regras, as quais, como

proposto, são identificados a partir da estrutura lingüística do dispositivo

legal, tendo em consideração questões metodológica, finalística e

prescritiva de comportamentos.145

Através deste trabalho propõe-se à realização de uma pesquisa

que possa levar a identificação de elementos que possibilitem à

formulação de uma síntese teórica que oriente o processo de execução no

Brasil.

A hermenêutica crítica historicista verticalizada na

principiologia pode constituir um instrumento teórico que assegure

melhores índices de efetivação na prestação jurisdicional executiva.

Atribuída uma relevância significativa ao papel da

interpretação é razoável que o processo de execução seja

estudado a partir de seus aspectos próprios, procurando

adequar métodos que viabilizem a solvência do devedor, porque,

assim, a conseqüência natural será a quitação do crédito, o que traduz a

efetividade e segurança da jurisdição.

145 O processo de execução tem sido estudado a partir das suas características pragmáticas, por visar, em última análise à realização concreta do comando previsto no título executivo.

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133

Talvez se possa questionar que o problema da solvência do

devedor não diz respeito ao processo de execução. Mas, então, há que se

perguntar: Qual é o problema do processo de execução? Qual é a função

jurisdicional a ser realizada através da execução?

Durante um considerável período de tempo, pretendeu-se

resolver o problema da efetividade processual, desconsiderando a

realidade.

As experiências permitem afirmar que é pouco provável que se

obtenha a entrega do bem jurídico através do processo quando as

circunstâncias que determinaram os fatos são enfocadas pela ótica

legalista. A compreensão de que o Direito, formulado enquanto

conhecimento científico é uno, remete este estudo a averiguações na

esfera da teoria do direito, fim de contextualizar -se o processo em um

quadro geral, o e será realizado com referência a uma reflexão

hermenêutica crítica146 e a uma teoria da praxis da aplicação do direito.

146 GRAU, Eros Roberto. ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 100-101. A reflexão hermenêutica instala a verificação de que a interpretação se desenvolve a partir de pressuposições. ... A compreensão é, então, experiência. ... É necessário dizer, ainda, que a hermenêutica está ancorada na facticidade e na historicidade, de modo que entre a linguagem, instrumento necessário de que nos utilizamos para apreender o objeto a ser compreendido – os textos normativos, no caso da interpretação jurídica - ,e esse objeto interpõem-se os mundos da cultura e da história. Por isso o saber jurídico há de ser concebido como um processo de diálogo, de troca entre o ser e o mundo.

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134

5 ALGUMAS QUESTÕES DA TEORIA DO DIREITO

Pensar o direito criticamente remete a aspectos empíricos e

pragmáticos do cotidiano da vida contemporânea. Boaventura de Sousa

Santos, considerando as dificuldades para uma crítica, lembra que esta

postura exige a disponibilidade e o compromisso com a transformação,

tendo em vista aspectos de desajustamento social que justificam esta

postura. Então, é necessária a percepção do que existe, e a avaliação da

natureza e do âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado147.

Voltando à Teoria Geral do Direito, o professor André Franco

Montoro, ao apresentar seu plano de trabalho, menciona cinco

significados lingüísticos expressos pela palavra direito; o direito como

ciência (epistemologia jurídica), o direito como justo (axiologia

jurídica), o direito como norma (teoria da norma jurídica), o direito como

faculdade (teoria dos direitos subjetivos) e o direito como fato social

147 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente.:contra o desperdício da experiência,. p..23 e segs. Não parece que faltem no mundo de hoje situações ou condições que suscitem desconforto ou indignação e nos produzam inconformismo. Basta rever até que ponto as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos. No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21% da população mundial controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia produzida. ... No respeita a promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos em países vivendo formalmente em paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze milhões de crianças vivem em regime de cativeiro na Índia ... No que respeita à promessa da paz perpétua ... Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da guerra fria, a paz que muitos finalmente julgaram possível tornou-se uma miragem em face do aumento nos últimos 6 anos dos conflitos entre Estados e sobretudo dos conflitos no interior dos Estados. ... Horkheimer definiu melhor que ninguém. Segundo ele, a teoria crítica moderna é, antes de mais, uma teoria fundada epistemologicamente na necessidade de superar o dualismo burguês entre o cientista individual produtor autônomo de conhecimento e totalidade da actividade social que o rodeia: “A razão não pode ser transparente para consigo mesma enquanto os homens agirem como membros de um organismo irracional.”

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135

(sociologia do direito). São mencionadas, ainda, as perspectivas de

abordagem do direito, neste aspecto filia-se ao entendimento segundo o

qual o valor fundamental que assegura ao direito seu sentido e dignidade

é a justiça, vinculada a ordenação da convivência para o

desenvolvimento dos povos e, portanto, para um processo de superação

das desigualdades de oportunidades e promoção das transformações da

sociedade148.

Assim, o direito processual e, mais especificamente, o

processo de execução, serão estudados com vista a uma análise dentro de

um contexto em que seus fins estejam norteados por um conjunto de

princípios identificados a partir da interpretação do texto Constitucional

e como instrumento para a realização do justo, tendo em vista a paz

social, em uma sociedade onde o indivíduo cidadão está paulatinamente

sendo substituído pelo indivíduo consumidor.

5.1 EPISTEMOLOGIA JURÍDICA

A epistemologia vincula-se ao problema da atitude que leva ao

conhecimento. A característica da cientificidade foi atribuída ao

conhecimento produzido a partir da epistemologia, que, como a ciência

do conhecer, tem estabelecido critérios que possibilitam a formulação de

148 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito, p. 25-26.

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136

métodos de averiguação das proposições apresentadas pelos

pesquisadores. Admitindo-se que o conhecimento científico é

convencional e temporal, seu comprometimento e razoabilidade

dependem fundamentalmente da possibilidade da sua verificação por

outros cientistas.

Em outra oportunidade, manifestou-se, neste trabalho, a

respeito da necessidade humana em conhecer o mundo que o circunda.

Esta busca representa a possibilidade de conhecer a verdade, entendendo

o que é a realidade. Ao longo da história da humanidade, formularam-se

diversas formas de conhecimento, partindo de diferentes referenciais.

Coube à epistemologia estabelecer a necessidade da escolha quanto à

metodologia para que se produza uma espécie de conhecimento que

possa ter uma validade admitida como científica. Dessa forma, afasta-se

o conhecimento científico do senso comum.

Ao longo da história, admitiu-se que o conhecimento estivesse

internalizado no objeto, emanando deste, sendo que ao sujeito

cognoscente restaria a sua descrição, afirmando-se, neste caso, a “crença

no significado autônomo da realidade”149. A superação desta idéia é

possibilitada pela epistemologia, que vincula o conhecimento através do

método à interferência do sujeito cognoscente.

149 COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito, p. 56.

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137

Curiosamente, o positivismo que é a primeira elaboração

teórica fundada na epistemologia, representa o ápice da concepção do

conhecimento autônomo da realidade, ou seja, um conhecer objetivo,

conceitual e avalorativo150. Isto é compreensível, pois a teoria do

conhecimento foi aplicada inicialmente em relação ao que se entendia

como sendo a realidade. Dessa forma, o método deveria assegurar o

isolamento do objeto através do quê este seria descrito ou conhecido da

melhor maneira possível151. A objetividade do conhecimento que deveria

ser garantida pelo princípio da verificação subordinava a verdade à

verificabilidade da proposição, a critérios idênticos àqueles aplicados

para os enunciados lógicos.

Para as ciências naturais, a epistemologia representa uma real

possibilidade de avanços, pois o processo de desenvolvimento do

conhecimento é assegurado pelo método, que deve ser enunciado

juntamente com os resultados do trabalho de investigação científica.

150 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à ciência do direito, p. 116. Cognoscível é apenas o valor legal, ou validade, que consiste na conformidade, objetivamente verificável pela razão, de uma norma com outra que lhe é superior. Por tal razão a ciência jurídica deve tão-somente procurar a base de uma ordem legal, ou seja, o fundamento objetivo e racional da sua validade legal, não num princípio metajurídico de moral ou direito natural, mas numa hipótese de trabalho lógico-técnico-jurídico, supondo aquela ordem legal validamente estabelecida. ... Kelsen chegou a um positivismo jurídico radical, que concebe o direito positivo como sistema normativo; tornou a ciência jurídica completamente alheia a aferições valorativas, a influências políticas e às forças biopsicossociais. 151 COELHO. Op. cit.., p. 57. A partir de algumas teses de Carnap e Wittgenstein, sobretudo, o paradigma epistêmico do positivismo lógico propôs-se a desenvolver um discurso que assegurasse o autocontrole do discurso teórico e, por outro lado, estivesse apto a identificar-se como representação fiel do mundo, legitimada pela verificação, seja a compreensão empírica, seja a demonstração analítica. ... o resultado a que chegaram não encerra uma proposta teórica sistemática, mas somente um pensamento fragmentário, centrado basicamente em um postulado: o “princípio da verificação”. (grifo nosso)

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138

Desse modo, o corpo integrante da comunidade tem a

oportunidade de certificar-se a respeito dos resultados apresentados e

contribuir com suas próprias observações.

No campo das ciências sociais, sendo que com referência à

epistemologia, acredita-se na relevância da sua contextualização geral

em relação às ciências naturais, e, sobretudo, quando é abordada a

questão do positivismo é possível afirmar que seus efeitos são negativos.

Esta posição decorre da compreensão de que o positivismo, ao isolar o

objeto de estudos, levou a uma equívoca idéia de que os fenômenos

sociais, notadamente, aqueles de cunho cultural, como atualmente é

assimilado o direito, são operacionalizados em sistemas fechados. A

teoria do direito como sistema fechado está em processo de superação

como já mencionado.

Cabe à teoria do conhecimento a organização de novos

mecanismos que possibilitem um saber válido sob uma perspectiva

científica, mas, igualmente voltado para a vida humana, no sentido da

construção de um mundo material e humanamente mais justo. Neste

ambiente, surgem as condições necessárias e propícias ao pensamento crítico152.

152 COELHO. Op. cit. p., , 59. ... E a consciência científica passou a exigir novas posturas a partir do momento em que se verificou ser muito mais importante construir uma sociedade justa e compatível com a dignidade humana, do que descrever neutralmente como se processam as relações sociais, assim, o saber social passou a exigir a solução dos problemas que são objeto de seus estudos, em vez de simplesmente as descrever ou mesmo compreendê-las em sua dialeticidade. ... Seria preciso então, a partir deste ponto, repensar os paradigmas, abandonar a mentalidade positivista e seus métodos, cuja repercussão na sociologia, na ciência política, na história, na antropologia e nas ciências jurídicas, havia se revelado de pouca ou nenhuma utilidade.

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139

A epistemologia assimila a crítica, o que significa trabalhar a

produção do conhecimento numa visão mais ampla. A

interdisciplinaridade pode ser admitida como o seu primeiro esboço,

contudo, o novo paradigma do conhecimento, devendo ressaltar as

ciências sociais, e, nesse contexto, o direito será estudado com base em

uma visão dinâmica e holística. A partir daí, surge uma verdadeira

epistemologia crítica que opera como o conceito de “construção

objetiva”. Isto que dizer que o conhecimento se refere à ordenação da

realidade com vistas à sua transformação. O conhecimento científico

assume seu aspecto fragmentário, assim, a realidade é construída pelo

cientista, logo, o conhecimento e a verdade não têm caráter absoluto. A

racionalidade científica é construtivista e causal, de acordo com o

paradigma da epistemologia crítica. O conhecimento científico resulta de

um “programa de ação consubstanciado na crítica permanente da

verificação empírica, a qual é sempre parcial, insuficiente e ilusória.”153

O fundamento básico do pensamento epistemológico crítico

consiste em que o conhecimento não pode estar subordinado a axiomas

ou dogmas ou ainda esteriótipos. O criticismo está ligado à criatividade

construtivista, assim, a ciência não existe para o cientista, mas para a

comunidade, logo, seu papel deixa de ser descritivo para tornar-se

analítico pautado na dialética histórico-social.

153 COELHO. Op. cit. , p. 61.

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140

Isso tem criado problemas, pois, conquanto a perspectiva da

formulação do conhecimento tenha se ampliado, não parece possível

identificar a ruptura do paradigma, de acordo com Kuhn. Retoma-se a

idéia da crise do paradigma, onde postulados menores são contestados,

mas a estrutura permanece inalterada. A referência é ao positivismo

dogmático, ainda prevalecente no estudo do direito e, sobretudo, ao

estudo das fontes criadoras da norma, tendo em vista o unitarismo

jurídico decorrente do Estado, como único criador das regras de

conduta154. Esclareça-se que os estudos jurídicos pautam-se em regras

(leis) originárias da atividade legislativa estatal, seja de caráter típico ou

residual. Quer-se com isso referir às atividades normais do Poder

legislativo em qualquer de suas esferas, ou àquelas regiões

intermediárias em que, subsidiariamente, os poderes executivo e

judiciário regulamentam suas atividades internas e excepcionalmente,

seu relacionamento com o administrado ou jurisdicionado.

As teorias sobre as normas jurídicas são vastas e o assunto é

complexo, não havendo a pretensão em tratar desse tema. O fato é que o

ordenamento jurídico não é pluralista, o que significa afirmar, o direito

brasileiro está atrelado à lei e ao Estado o que lhe atribui uma

configuração positivista. Este é o paradigma vigente em crise.

154 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 5º, inciso II.Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

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141

O problema referido é que não há uma teoria epistemológica

crítica, mas um conjunto de propostas para a crítica do direito enquanto

sistema fechado, o que no plano da norma jurídica estaria vinculado ao

unitarismo estatal e à dogmática positivista155. Portanto, é admissível o

reconhecimento de inúmeras vertentes do pensamento crítico, todos

susceptíveis de questionamentos156, uma vez que estão em fase de

concepção. Acredita-se que a criatividade, no desenvolvimento das

pesquisas relativas às ciências humanas, poderá levar ao surgimento de

um novo paradigma que, substituindo o positivismo formalista estatal

produza a ruptura que caracteriza as revoluções científicas.

Pode ser afirmado que o direito “é saber ao mesmo tempo e

que é prática social, e, a partir de sua positivação, prática social e

discursiva institucionalizada”157.

A ruptura do paradigma em crise no direito somente será

possível a partir da quebra do monopólio do Estado legislador e do

155 CLÈVE, Clèmerson Merlin O direito e os direitos: elementos para uma crítica do Direito Contemporâneo, p. 65. A dogmática jurídica é uma manifestação discursiva que, almejando a condição de cientificidade, e falando em nome dela, o faz, não por meio de enunciados informativos e imbuídos da necessidade de encontrar a verdade (sujeitando-se à refutação e falsificação conforme Popper), mas mediante um discurso persuasivo, dirigido à decidibilidade de conflitos, assegurando certeza e segurança jurídicas, exigências do direito positivado do moderno estado capitalista. Ora, isso denuncia a dogmática como atividade classificatória e sistematizadora das normas jurídicas estatais. Sua realidade está limitada pela institucinalização do câmbio do direito operacionalizada pela sua positivação, o que reduz o saber jurídico às dimensões da atividade jurisdicional. (grifo nosso) 156 CLÈVE. Op. cit., p. 79. Nem todos os novos jusfilósofos pensam do mesmo modo. Várias linhas teóricas vão se abrindo. Afinal, a crítica do direito não constituiu movimento homogêneo e integrado. Antes é ‘um conjunto de vozes dissonantes que, sem constituir-se, ainda, em sistema de categorias, propõem um conglomerado de enunciações apto a produzir um conhecimento do direito capaz de fornecer as bases para um questionamento social radical’. 157 CLÈVE. Op. cit., p. 87.

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142

reconhecimento pela comunidade jurídica de que o direito não tem um

objeto específico de estudos, podendo operar ora com conceitos da

sociologia ora com conceitos da psicologia ou da economia, ou ainda, de

outros ramos do conhecimento, o quê, sob o prisma da ciência do

conhecimento classicamente considerada é comprometedor de sua

cientificidade, no entanto, não reduz a importância de seu papel como

saber teórico e pragmático158.

Sob um enfoque da teoria geral do direito, o tema da

epistemologia está delineado, ressalta-se que há o desdobramento dessas

teorias, sendo que no campo da epistemologia jurídica159, foram

elaboradas diversas formas de estudo do direito, sendo que o

culturalismo egológico quântico de Goffredo Telles Júnior e a teoria

culturalista tridimensional do direito de Miguel Reale colocam o direito

brasileiro em destaque.

Igualmente importante no contexto da epistemologia

jurídica são os estudos do professor Lourival Vilanova que, a partir das

158 CLÈVE. Op. cit., p. 88. Tais reflexões sugerem ser irrelevante provar a cientificidade do discurso jurídico. Se terreno epistemológico o situa como disciplina não científica, embora dotada de positividade. Não é mera ideologia, ou opinião. É um saber, formalizado segundo configuração própria. 159 DINIZ, Maria Helena.. Compêndio de Introdução à ciência do direito, p. 13-164. A autora discorre a respeito das concepções epistemológico-jurídicas relativas à cientificidade do conhecimento jurídico, identificando as seguintes teorias; jusnaturalismo, empirismo exegético, historicismo casuístico, positivismo sociológico e positivismo jurídico, racionalismo dogmático ou normativismo jurídico de Hans Kelsen e culturalimo jurídico.

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143

estruturas lingüísticas do direito e da análise fundada na lógica formal,

aborda os sistemas jurídicos sob uma perspectiva autopoiética160.

A propósito da importância do culturalismo jurídico,

é considerado adequado localizá-lo no contexto histórico da formação

epistemológica do direito. Esta abordagem não visa ao aprofundamento

do assunto, mas, a uma visão panorâmica a fim de que se compreenda

sua posição e relevância para o direito brasileiro.

5.2 CULTURALISMO JURÍDICO

A partir do final do Século XIX, as transformações

decorrentes da modernidade levaram a elaboração de novas formas de

abordagem para a formulação do conhecimento161, entre elas ressalta-se

a teoria husserliana162 dos objetos segundo sua região ôntica163.

160 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 161 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia, p. 528. ... a ontologia parece ter como missão a determinação daquilo em que os entes consistem e mesmo daquilo em que consiste o ser em si. Então, é uma ciência das essências e não das existências; é, como se precisou ultimamente, uma teoria dos objetos. 162 Edmund Husserl é considerado o fundador da fenomenologia, tendo proposto um método de análise de como o entendimento intervém no conhecimento das realidades da experiência. Esse método consiste numa descrição da gênese dos conceitos, o que possibilita delimitar os elementos objetivos e subjetivos que intevêm no ato de conhecer. A fenomenologia em Husserl consiste num processo em que a existência dos conteúdos da consciência ou das vivências e do Eu é colocada entre parêntese enquanto sujeito psicofísico ou suporte existencial da consciência, assim reduzida ao eu puro, ou transcendental. A redução eidética reduz as vivências a suas essências, como objetos ideais que expressão significações, alheias ao tempo e ao espaço, o que os confere uma validade permanente. 163 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 727. Ôntico. Existente: distinto de ontológico, que se refere ao ser categorial, isto é, à essência ou à natureza do existente. P. ex. a propriedade empírica de um objeto é uma propriedade ôntica; a possibilidade ou a necessidade é uma propriedade ontológica.

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144

De acordo com a localização dos objetos164 de estudo tendo em

vista sua essência, ou seja, o ser próprio ou peculiar da coisa, o direito é

algo que tem existência real ou concreta e, portanto, identificada na

experiência ou no mundo empírico, dotado de valor, sendo a cultura o

seu objeto específico de estudo165.

Tem se entendido como cultura os processos de criação

desenvolvidos pelo Homem com referência a um sistema de valores166

constituídos historicamente, com a finalidade de atender aos seus

interesses, o que permite atribuir à cultura uma natureza aperfeiçoadora

das relações humanas167.

O direito, sob a perspectiva culturalista, revela-se como um

164 Ibidem, p. 725. ... a palavra objeto é o termo mais geral de que dispõe a linguagem filosófica. ... É óbvio que o conceito de objeto não coincide inteiramente com nenhuma de suas especificações possíveis. As coisas, os corpos físicos, as entidades lógicas e matemáticas, os valores, os estados psíquicos, etc., são todos objetos, especificados ou especificáveis por meio de modos de ser particulares ou procedimentos de verificação particular; mas nenhuma dessas classes de objeto possui uma objetividade privilegiada e nenhuma se presta a exprimir, em seu âmbito, a característica de objeto em geral. 165 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova introdução ao Direito, p. 8. Sem entrarmos na pugna dos universais ou da essência universal do homem, podemos concluir que os valores, em seu momento de abstração constituem objetos ideais que caracterizam a humanidade em todos os tempos, fora da história, ao passo que, em seu momento de concreticidade, constituem objetos culturais que caracterizam a humanidade em cada mometo, dentro da história. 166 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova Introdução ao Direito, p. 4. A língua germânica é muito precisa ao distinguir o valor (Wert) e o o valer (Gelten). O valor é ponto ideal a que a humanidade tende. O valer é aquilo que tem eficácia no momento histórico. 167 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova Introdução ao Direito. P. 4. A Cultura é História. Os objetos culturais, por isso mesmo que constituem referências a valores, são objetos históricos, vivem na História e só historicamente assumem sentido.

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145

sistema que se inter-relaciona com outros ambientes que não o jurídico,

nesse caso, referido ao conjunto de leis que forma o ordenamento

jurídico. É próprio afirmar que as teorias culturalistas assimilaram

noções da teoria geral dos sistemas, representando um movimento de

abertura do sistema jurídico que associado a questões históricas como o

acirramento das desigualdades sociais no plano interno quanto à

distribuição de riquezas e internacional através das políticas de proteção

de mercados dos países mais ricos e exportadores de bens

industrializados em detrimento dos países produtores de bens primários;

produziu a crise dos paradigmas vigentes no positivismo jurídico

formalista168.

A propósito da formação das teorias culturalistas, é

interessante lembrar a importância da Escola de Baden, à qual se filiaram

filósofos como Emil Lask e Radbruch para, a partir do kantismo, tendo

em vista a compreensão histórica do mundo, identificar o conceito de

valor. Partindo dessa referência, foi constituída a Filosofia da cultura,

que representa uma evolução da Filosofia dos valores neokantista.

168 REALE, Miguel. Teoria Tridimencional do Direito, p. XIII-XIV. A Ciência do Direito, sobretudo a partir da Segunda Grande Guerra, vem se caracterizando por uma crescente luta contra o formalismo, o que implica repúdio às soluções meramente abstratas. ... Essa tendência, no campo do Direito, não é senão expressão das diretrizes e do movimento que caracterizam, de modo geral., a cultura contemporânea . Vários fatores poderiam ser invocados nesse sentido, como, por exemplo: a) a preocupação pelos problemas da vida humana, o que se reflete em todas as formas da Filosofia existencial; b) a compreensão do indivíduo e, por conseguinte, de seus direitos e deveres, não em abstrato, mas na concreção de suas peculiaridades circunstâncias, como o demonstra a chamada Ética da Situação; c) a afirmação paralela, tanto nos domínios da Teoria do Conhecimento como os das ciências humanas, de que ‘é mister volver às coisas mesmas’, consoante fórmula amplamente divulgada pela Filosofia fenomenoógica. (grifo nosso)

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146

A Filosofia da cultura parte da idéia segundo a qual entre a

realidade e o valor há um elemento de conexão que é exatamente a

cultura. Sob esta perspectiva, o direito existe em função de um suporte

que pode ser considerado natural ou real que somente se justifica em

virtude do valor, sendo a norma jurídica o elemento cultura encontrado

entre esses dois suportes.

Considerada esta estrutura do direito baseada na Filosofia da

Cultura foram criadas diferentes teorias culturalistas169, assim

denominadas porque apresentam a mesma base teórico-filosófica.

As principais direções do culturalismo jurídico

formaram a concepção raciovitalista de Recaséns Siches170,

169 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, p. 70. Apesar de sua deficiência, representou um grande passo a idéia dos neokantistas de interpor, entre realidade e valor, um elemento de conexão: a cultura, significando o complexo das realidades valiosas, ou, como esclarece Radbruch, ‘referidas a valores’. Isto equivale a dizer que todo bem de cultura (e o direito é um deles) é tridimensional em razão de seu simples enunciado, uma vez que pressupõe sempre um suporte natural ou real, e, no meu modo de ver, também ideal, suporte esse que adquire significado e forma próprios em virtude do valor a que se refere. Foi em torno dessa problemática que se desenvolveram as diversas espécies de culturalismo jurídico, para saber-se, por exemplo, como é que tais elementos se correlacionam (através de mônadas de valor, dirá Sauer; mediante ‘categorias constitutivas’, sugerirá Lask etc) ou, então, pra negar a possibilidade de qualquer correlação entre eles (Radbruch, na primeira fase de seu pensamento, considerava-os gnoseologicamente antinômicos e irreconsiliáveis, só admitindo uma composição relativa no momento da práxis) ou, ainda, para determinar-se a ‘função” desempenhada por cada um dos referidos elementos no contexto ontognoseológico de cada momento da experiência jurídica. 170 DINIZ. Op. cit., p. 92-93. O raciovitalismo jurídico é a corrente que se liga à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset, aplicada ao direito. A concepção orteguiana repercutiu enormemente na teoria jurídica do jusfilósofo Luis Recaséns Siches. ... O comportamento humano é consciente e tem um sentido que não existe nos fenômenos físico-naturais, que só podem ser explicados, uma vez que só os fatos humanos podem ser compreendidos, segundo Dilthey. ... Só o que é do homem pode ser justificado pelo homem, em razão dos fins que ele elege. ... Siches, influenciado por Ortega y Gasset, pondera que a vida humana nada tem de feito, de concluído ou acabado, pois deve fazer-se a si mesma. ... A partir dessa concepção orteguiana de vida humana, Recaséns Siches enquadra o direito entre os objetos culturais, porque criado pelo homem com o objetivo de realizar valores, considerando-se como pedaço de vida humana objetivada.

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147

a teoria de Emil Lask171, a teoria tridimensional de Miguel Reale172 e a

teoria egológica de Carlos Cóssio173.

De acordo com o aspecto da cultura que se enfoque, serão

constituídas as teorias objetivas ou subjetivas do culturalismo jurídico.

Considerando a vida humana em seus aspectos mais concretos, ou seja,

sob a ótica das relações externas travadas no mundo do direito, são

criadas as teorias objetivas dentre as quais se destaca o

tridimensionalismo de Miguel Reale174.

Carlos Cossio aborda a cultura a partir das condutas humanas

subjetivas ou intrínsecas, tomando como ponto de partida aspectos

ligados a questões da ordem existencialista, podendo ser sua teoria

171 DINIZ. Op. cit., p. 133. A obra de Emil Lask, neokantiano da Escola de Baden (Windelband e Rickert), situa-se entre o jusnaturalismo e o positivismo, entre o historicismo e a fenomenologia, entre o empirismo jurídico e o culturalismo nascente. ... O direito é uma realidade cultural complexa, consistindo numa pluralidade de dimensões que apontam para uma estrutura aberta, e numa historicidade imanente; é, portanto, uma realidade inserida entre a realidade empírica e as próprias finalidades visadas pela ciência. A ordem jurídica é um fato cultural, uma realidade correspondente a um valor. Em suma, seria o direito ‘a realidade jurídica empírica, que se desenvolve historicamente’. (grifo nosso) 172 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, p. 65. Nas últimas quatro décadas o problema da tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que: a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada signicação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; 173 BATALHA. Op. cit., p. 144. O jusfilósofo argentino, Carlos Cóssio, fundador da Teoria Egológica do Direito, combate o normativismo de Kelsen, sustentando que o Direito não consiste em mera estrutura normativa, mas que o objeto do Direito é a conduta humana em interferência intersubjetiva , ao passo que a norma constitui esquema interpretativo dessa conduta. 174 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito., p. 132. Se o substrato do direito for um objeto físico, temos objeto cultural mundanal ou objetivo, que corresponde ao ‘espírito objetivo’de Hegel e à ‘vida humana objetivada’ de Recaséns Siches, e a corrente culturalista que o estuda será a teoria cultural objetiva, de que são representantes, dentre outros, Ortega y Gasset, Recaséns Siches e Miguel Reale. Se seu substrato for a conduta humana, será um objeto cultural egológico (de ego) ou subjetivo, estudado pela teoria egológica do direito, representada por Carlos Cossio, Aftalión e outros.

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148

identificada como de caráter subjetivo. A ciência jurídica deve ocupar-se

do estudo das condutas humanas em sua dimensão social, utilizando o

método empírico-dialético175.

No Brasil, foi elaborada pelo professor Goffredo Telles Júnior

a teoria quântica do direito a qual representa um desdobramento da teoria

egológica. De acordo com a professora Maria Helena Diniz, a teoria

quântica do direito atribui ao direito natural, ao direito legítimo, a

designação de direito quântico.176 É interessante observar que tal

afirmação não tem o caráter de vincular a teoria quântica ao

jusnaturalismo, o que seria ilógico, pois como desdobramento do

egologismo isso não seria razoável.

Direito natural para Telles Júnior “é o conjunto das normas em

que a inteligência governante da coletividade consigna os movimentos

humanos que podem ser oficialmente exigidos, e os que são oficialmente

proibidos, de acordo com o sistema ético vigente”.177

A teoria culturalista egológica quântica do direito apresenta

sutilezas e um determinado grau de abstração refinado, podendo

175 BATALHA. Op. cit., p. 278-279. Aftalión, García Olano e Vilanova (ob. cit, I, pp. 43 e segs.), eminentes expositores da teoria egológica do Direito, fundada com originalidade por Carlos Cossio, observam que há métodos distintos para o estudo dos objetos ideais, dos objetos da natureza e dos objetos culturais. ... O conhecimento dos terceiros constitui-se sobre a base de um ato de compreensão. O terceiro método é denominado empírico-dialético: empírico, porque os objetos de cultura são objetos reais, que está na experiência; dialéticos, porque o ser dos objetos de cultura não se esgota no substractum material que possam ter, mas depende do sentido espiritual que nesse substractum tem seu apoio, sentido que tem de ser vivenciado por alguém para adquirir existência. 176 DINIZ, Maria Helena . Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 48. 177 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 326.

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149

perceber-se isto a partir da apresentação de um conceito específico do

direito natural por seu formulador. As idéias a respeito da noção de juízo

de valor que exige como seu pressuposto um sistema de referências

elaborado pela inteligência humana que os constrói historicamente é

fundamental para a concepção do direito quântico como expressão da

experiência jurídica que é sempre a atualização objetiva de um estado de

consciência de uma comunidade em determinado momento histórico e

em determinado lugar.178

A partir dos elementos básicos apontados anteriormente, pode

ser afirmado que a teoria quântica do direito se desenvolve através da

constatação de que nem sempre o direito objetivo criado pelo Estado

subordinante da sociedade é o direito objetivo desejado por essa mesma

comunidade. Este direito desejado é o direito natural, porque tem uma

existência constituída historicamente que produz sistemas éticos de

referências.

A compreensão a respeito desses sistemas éticos de referência

parte da admissibilidade quanto à transmissão histórica de experiências

desde o ácido nucléico até à constituição de uma inteligência, que

relativamente ao ser humano, caracteriza-se pela solidariedade, sendo

determinada pelo que o ser humano realmente é.

178 TELLES JÚNIOR. Ética. Do mundo da célula ao mundo dos valores, p. 237.

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150

Logo, o ser humano real é histórico, formando um eu mesmo

histórico179 como produto das próprias consciências individuais,

tomando em consideração o que elas têm de comum dentro de uma

determinada circunstância histórica. Disso resulta que o permanente no

humano é a mudança, a transformação pautada na histórica comum dos

indivíduos em sociedade180.

É possível admitir, portanto, que para o humano o mundo é

portador de um sentido que é por ele atribuído dentro das perspectivas e

compreensões do eu histórico permanente, no sentido anteriormente

referido. Através desse sentido, é formatado o sistema ético de referência

a valores. Assim, “a pessoa humana passa a ser a medida de todos os

valores”181. (grifo nosso).

O bem primordial nesse contexto é a pessoa, porque é a partir

dela que serão determinados os valores de todos os outros bens.

179 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 320. O eu histórico é um eu permanente, mas um eu permanente em contínuo perfazimento. É um ser considerado na sua realidade concreta, no que ele é por natureza. E o ser humano por natureza é um ser sempre tendido para bens que o perfazem, um ser ‘intencional’, um ser imantado pelo que ele julga ser seu bem. Porque é da condição da espécie humana, perfazer-se. 180 Ibidem, p. 321. ... pode-se dizer que a história do ser humano é causa e efeito dele próprio. É efeito de determinações da inteligência. E é causa das formas culturais (da ‘paisagem materna’ de Spengler), que, em cada circunstância, determina cada homem. 181 TELLES JÚNIOR. O direito quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 321.

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151

Ressalta-se que essas idéias são desenvolvidas para identificar

os fundamentos da experiência ética de onde é desdobrada a experiência

jurídica a qual exige uma compreensão integral. Isto significa a

superação do direito como simples ordenador de fatos objetivamente

considerados, para considerá-lo também a partir de suas categorias

subjetivas. Por sua vez, essas categorias subjetivas se referem aos

sistemas de referência a valores, podendo ser também identificadas como

categorias axiológicas.

Se a pessoa é a medida elementar de valor de todas as coisas, o

sistema de referência é o eu histórico, assumindo, este, portanto, um

caráter apriorístico como condição subjetiva de compreensão das

experiências objetivas.

Como a priori o eu histórico representa a comunhão

progressiva das consciências individuais em relação às experiências

comunitárias, no processo da organização do humano para a constituição

social. Este processo forma a cultura, que se confunde com o mundo dos

valores.

O direito objetivo desejado pela comunidade é a manifestação

natural, no sentido de sua formação histórica, dos valores culturalmente

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152

constituídos através dos processos identificados anteriormente. Desse

modo, “o direito natural é o direito legítimo.”182

Em uma concepção empírico-positivista, o direito é exigível

em virtude da validade da norma, entendida sob o prisma da obediência

ao processo legislativo instituído pela Constituição Federal e à hierarquia

do sistema legal. Para o culturalismo egológico quântico, a validade por

si só não é suficiente, uma vez que nesse caso o preceito legal seria

portador de uma artificialidade que, em última análise, compromete todo

o sistema legal na medida em que leva à criação de modelos de

organização social paralelos. Nesse sentido, o direito artificial assume

um papel opressor que o torna ilegítimo porque não traduz as convicções

éticas do meio onde assenta.

Nessa situação, é importante afirmar que o direito natural

(direito objetivo desejado) há de ser válido e legítimo, conquanto

atendendo aos preceitos de ordem formal para a criação das normas

jurídicas que sejam estas também a expressão espontânea das regras de

convivência social. Dessa forma, o trabalho do legislador tem a

finalidade de modelar as forças mesológicas imperantes na comunidade,

logo, a fonte primária do direito é o povo, entendido aqui sob a ótica do

eu histórico. Os legisladores enquanto representantes da coletividade são

182 TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p. 326.

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153

entendidos como autorizados a exercer secundariamente o poder de

normatizar a respeito da organização social.

Disso é possível concluir que pode haver referência a um

direito válido e legítimo como há um direito válido e ilegítimo. O direito

quântico é a nomenclatura utilizada para expressar a realidade normativa

válida e legítima no sentido biológico, histórico, cultural e estrutural, o

que teria a potencialidade de assegurar ao direito seu papel de natural

ordenação jurídica da convivência.

Através do direito quântico, percebe-se que a aceitação quanto

à artificialidade da norma jurídica é um equívoco terrível cometido pelos

juristas e legisladores, porque por mais brilhantes que possam ser as

construções legal, doutrinária e científica há que concluir-se pelo

descompasso crescente entre a realidade estruturada formal e as práticas

sociologicamente institucionalizadas, tornando-se o direito um elemento

de constrangimento social e, simultaneamente, afastando-se de seu papel

de ordenador da convivência coletiva.

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154

5.3 O DIREITO PROCESSUAL NO CONTEXTO DA TEORIA DA CIÊNCIA DO DIREITO

O direito é antigo, estando sua história provavelmente ligada à

própria história do Homem em seu processo de formação de uma

experiência coletiva, na conquista da sociabilização, enquanto modo de

autopreservação. Nesse tocante, a teoria do direito quântico ao afirmar a

existência de mensagens genéticas emitidas pelo DNA como (ácido

desoxiribonucléico) determinantes da vocação social do gênero humano,

ou seja, o “impulso natural para a convivência”183, permite a localização

remota do direito. Há que se compreender, no entanto, que aquela

realidade histórica apresenta uma conformação distinta daquela que

atualmente é vislumbrada. Aqui é válido lembrar o trabalho de Thomas

Khun quanto a abordagem histórica dos fenômenos, principalmente,

levando em consideração que cada fato precisa ser estudado em seu

tempo e lugar. O deslocamento dos objetos da pesquisa no tempo e no

espaço tem levado a equívocos de interpretação que pouco a pouco os

historiadores da ciência estão desvelando.

O direito não foge a tais considerações, porque tem sido

estudado em qualquer tempo e lugar como se os dados disponíveis

contemporaneamente fossem presentes no passado, o que não pode ser

183 TELLES JÚNIOR, Goffredo. O direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica., p. 329.

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155

considerado real. Na Roma antiga ou entre os saxões e germânicos, a

significação da linguagem do direito e seu papel na estrutura comunitária

era distinta daquela verificada no final do século XIX e após a II guerra

mundial e durante o século XXI.

Essas considerações decorrem da importância para este

trabalho de refletir as condições presentes sem esquecer que conquanto

fossem inexistentes em um passado próximo, ali encontram os

fundamentos que possibilitam conhecer, de forma mais abrangente, o

direito. Esta maior abrangência se refere ao direito enquanto sistema

autopoiético.

A epistemologia jurídica é formatada a partir da jurisprudência

dos interesses, sendo que a alteração do modo de produção feudal para o

modo de produção industrial e a criação da indústria gráfica são fatores

preponderantes para o surgimento e desenvolvimento de métodos que

vinculassem a validade do conhecimento. Observa-se que esses fatos

históricos tiveram o efeito de propiciar a disseminação das idéias e, em

conseqüência disso, favoreceram a ampliação dos modos de conhecer, ou

seja, surgem novos modelos de interação entre o Homem e o meio.

A Teoria Geral do Direito e o processualismo científico são

significativos da cristalização dos movimentos originados pela

jurisprudência dos interesses. Pode ser afirmado, então, que a criação de

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teorias adequadas ao direito entendido como ciência vincula-se ao

surgimento de uma epistemologia positivista que, durante praticamente

todo o século XX, identifica-se com a idéia da existência e validade do

conhecimento produzido no campo do direito184. Nesse sentido, a base

do direito, como ciência é única, podendo ser localizada na filosofia

jurídica, a qual teria sido convertida na teoria geral do direito, com

conseqüências reducionistas para aquela185.

A dinâmica inerente ao conhecimento gerou novas abordagens

tendo ressurgido uma filosofia do direito então identificada como teoria

do direito186, com uma perspectiva interdisciplinar, como novo modo de

estudar o direito. Em decorrência desses processos, ocorre uma

184 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Nomos, Fortaleza,v. 9/10 p. 49-82, jan/dez. 1990/91. Material para Estudos de Teoria do Direito, p. 49-50. A origem da Teoria Geral do Direito (allgemeine Rechtslehre) estaria em fins do século passado, na fase tardia da Escola Histórica, fundada por Hugo e V. Savigny, movimento conhecido como ´pandectismo´ Seu mais famoso epígono é sem dúvida Bernanrd Windscheid, se levarmos em conta que Ihering só integrou as suas fileiras até 1877, quando publica ´Der Zweck im Recht´ (A Finalidade no Direito, trad. Em 1950 com o tít. A Evolução no Direito, Liv. Progresso, Salvador, Ba.), aderindo ao utilitarismo de Bentham, e inaugurando um novo paradigma ou método de estudo do direito: a ´jurisprudência dos interesses´. Representativa daquele movimento pandectista com significado seminal para a TGD são obras como as de Karlowa, no direito civil e v. Bülow, no direito processual. 185 Ibidem, p. 50. A ´filosofia positivista´ teve em Karl Bergbohm, com sua obra fundamental ´Jurisprudenz und Rechtsphilosophie´ ( Ciência do direito e filosofia jurídica), de 1882, um de seus primeiros expositores. Já, antes, porém, Adolf Merkel em um pequeno ensaio intitulado ´Sobre a relação da filosofia do direito com a ciência jurídica ´positiva´ e a parte geral da mesma´, havia lançado as bases daquela ´filosofia´, reduzindo a filosofia do direito á TGD, da qual ele oferecerá um elaboração acabada em sua ´Enciclopédia jurídica´, de 1885. (grifo nosso) 186 Ibidem, p. 52-53. Em 1970, por exemplo Kelsen, funda, juntamente com Karl Engisch, Hart, Ulrich, Klug e Karl Popper, uma revista intitulada ´Rechtstheorie´ (Teoria do direito), editada em Berlim, que aparentemente se dedicaria a desenvolver a proposta analítica lançada pela teoria pura. ... Isso reflete a orientação já predominate, de estabelecer um campo teórico interdisciplinar para ´pesquisa fundamental´ (Grundlagenforschung) em direito. ... Nesse processo, a TGD é ´superada´ (aufgehobene) hegelianamente, quer dizer, incorporada e dissolvida, assim como antes ela fizera com a abordagem filosófica, que agora volta a ter sua dignidade restituída, sem, é claro, a posição ´majestática´ de antes. (grifo nosso)

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157

multifacetação na produção do conhecimento do direito que passa desde

a filosofia até à arte. Nesse ponto, vale a pena mencionar o seguinte:

É o ´anarquismo metodológico´, propugnado por Paul Feyerabend,

no qual ´everything goes´, desde que resulte em melhora de nosso

conhecimento. É o signo da pós-modernidade, quando não mais

se aceita o predomínio de um discurso com a pretensão de

único verdadeiro, já que a complexidade do mundo atingiu

tamanha proporção, que só a convergência dos diversos esforços

para entendê-lo poderá ser de alguma valia. (grifo nosso)187

Com estas observações, acredita-se que tenha sido possível

notar que uma abordagem do direito enquanto ciência deve ser realizada

tendo em vista a sua posição quanto a sua história, seus aspectos

epistemológicos e metodológicos. Não há nesse campo um espaço

reservado ao direito material e ao direito processual, assim como não há

um lugar específico para o direito privado e o outro para o direito

público. Ao fracionar o direito, o que se pretende é conhecer um de seus

aspectos, o que se torna impossível fora do contexto da teoria que orienta

o estudo proposto.

187 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Material para Estudos de Teoria do Direito, p. 54.

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158

5.3.1 O direito processual como objeto cultural

O direito processual, para efeito desta pesquisa, será

considerado a partir do processualismo científico, pois as bases sobre as

quais se está trabalhando parte de uma teoria científica do direito, o que,

na esfera do processo, ocorreu a partir da publicação na Alemanha da

obra de Oscar Von Bülow em 1868. Destaca-se o trabalho de Alcalá-

Zamora que, antes da publicação do livro de Von Bülow, já havia tratado

do direito processual com fundamento teórico-científico. É adequado

mencionar que com o surgimento de uma teoria do direito, desenvolvida

a partir de uma epistemologia positivista, o processo, como parte da

ciência do direito sofre seus influxos, havendo a sintetização da teoria do

processo.

Esta análise demanda reflexões profundas porque o direito

caminha historicamente ao lado da economia e da política através de

vínculos sutis que, em determinados momentos, são exacerbados

levando à revelação desses laços, e à percepção de que há um estado de

subordinação do direito à economia e à política, na medida em que

convalida as práticas ali adotadas.

Nesse sentido, os fatos que ocorreram entre a derrocada do

feudalismo e a estruturação de uma sociedade industrial, no campo da

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159

política, da economia e da filosofia, são determinantes para a elaboração

da teoria do direito e por via de conseqüência da teoria do processo. É

importante destacar a estruturação do Estado como ente público,

representante dos interesses da nação e portador do direito enquanto

norma de regulação das condutas humanas. Cronologicamente, isto

ocorre no século XVIII, tendo sido importantíssimos os trabalhos de

Rousseau188, Descartes e Montesquieu189. Ao pontuar filósofos e

pensadores não há a intenção em desmerecer todos os estudiosos que

contribuíram para a sistematização de uma corrente teórica, mas apenas

delimitar as idéias.

A par da gravidade quanto a afirmação do estado de

subordinação do direito deve ser esclarecido ainda que esta constatação

não lhe reduz a importância como mecanismo de estruturação das

organizações societais, mas permite sua localização como objeto cultural

de pesquisa. Ganham, nesse sentido, em profundidade, os estudos a

respeito da crítica quanto às finalidades que o direito tem cumprido ao

longo de sua história.

Em conseqüência do cartesianismo que, posteriormente,

alicerçou a metodologia de Descartes e que assegurou a estruturação do

188 Jean Jacques Rousseau. (Suíça, 1712/1778). 1762 – “O Contrato Social”. Teoria política do pacto social segundo o qual todos os homens são iguais perante às leis que são criadas de acordo com a vontade do povo expressa através do soberano escolhido pelo voto direito. 189 Charles Louis de Secondat – Barão de Montesquieu. (França, 1689/1755). 1748 - “O Espírito das Leis”, onde expôs a “Teoria da separação dos poderes”.

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160

positivismo, foi incorporada entre os estudiosos do direito a idéia da

existência de uma autonomia do direito processual desvinculada da

teoria da ciência do direito. Este equívoco tem prejudicado o

desenvolvimento do direito processual porque uma vez isolado está

sendo desconsiderada sua referência como objeto cultural. Quer se

referir ao fato de que, no campo do direito processual, têm crescido as

correntes tecnicistas e, às vezes, até cientificistas em prejuízo da sua

compreensão como integrante de uma ciência social aplicada, como

atualmente tem se referido ao direito, cujo objeto central de estudos é o

Homem em suas múltiplas maneiras de interatividade com o meio social

e natural. O direito, assim, representa o elo regulador e garantidor dessas

relações.

Identificada a perspectiva teórica de abordagem do direito

como ciência através de uma pesquisa baseada em uma hermenêutica

crítica tendo em vista a crise do paradigma dominante proposto pela

Revolução Francesa com os axiomas positivistas da “liberdade,

igualdade e fraternidade”, o estudo ora realizado procura verificar no

direito público, através dos preceitos fundamentais (princípios, regras e

postulados normativos) erigidos na Constituição brasileira de 1988, as

referências teóricas para a análise do direito processual e, mais

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161

precisamente, do processo de execução em um contexto adequado à

ciência do direito.

É possível afirmar que os problemas relacionados à

insatisfação que o processo está enfrentando quanto à morosidade na

entrega da prestação jurisdicional e quanto ao questionamento a respeito

da segurança jurídica estão ligados ao fato do equívoco anteriormente

mencionado. Isto quer dizer que a linguagem do direito processual ainda

está presa ao paradigma da epistemologia positivista, enquanto a ciência

do direito está assimilando a linguagem de uma epistemologia crítica.

Sob uma ótica sistêmica em que a teoria da ciência do direito

orienta as partes integrantes do sistema jurídico e, simultaneamente,

comunica-se com o meio exterior através do conteúdo cultural da

linguagem, os sistemas de interação do direito processual não

conseguem produzir um nível satisfatório de comunicação

intrinsecamente em qualquer dos seus sentidos, criando para a estrutura

do sistema jurídico um déficit comunicacional.

A causa mais provável deste déficit deve ser pertinente à

fragmentação nos estudos do direito processual como ramo autônomo da

ciência do direito e, sobretudo, pelo fato de que ainda se estuda o direito

processual como sistema fechado.

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162

Não deve ser confundida a autonomia do direito processual em

relação ao direito material e em relação à teoria da ciência do direito.

Não se vislumbra a possibilidade da compreensão do direito processual

fora da teoria do direito, embora, no sistema jurídico, possa ser

reconhecida a autonomia do direito processual em relação ao direito

material, entendidos como partes daquela organização.

Essas colocações podem ser evidenciadas através da

observação de que as transformações nos meios de produção levaram às

mudanças nas estruturas de poder político, o que, por sua vez, produziu

condições sócio-culturais para o florescimento das filosofias iluministas

as quais refletiram o quadro do positivismo filosófico e científico e do

empirismo lógico. O direito assimila este quadro através da teoria pura

kelseniana. Há naquele momento histórico uma consonância, pois, a

teoria geral do direito produz no campo do processo a teoria “geral” do

processo. É perceptível a univocidade lingüística do sistema jurídico,

concebido como fechado. Nesse sentir as estruturas lingüísticas estavam

adequadamente organizadas e, portanto, eram capazes de realizar os fins

aos quais se destinavam. Pode ser afirmado que havia a satisfatória

entrega da prestação jurisdicional, que é onde se localiza o fim último do

direito positivo.

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163

Com isso quer se referir ao fato de que a “justiça” era

considerada elemento intrínseco ao sistema, como ingrediente integrante

da norma jurídica.

As expectativas em relação ao cumprimento das promessas

iluministas foram e, em certa medida, ainda estão sendo desencantadas.

A substituição do conhecimento produzido pelo senso comum, pelo

conhecimento científico não melhorou a vida humana sob uma

perspectiva geral.

Não parece razoável acreditar que o progresso materialista

com a invenção de métodos de tratamentos revolucionários para a saúde,

a criação de máquinas e equipamentos impensáveis em um passado

próximo, a superestruturação das instituições do Estado e tantas outras

novidades da vida contemporânea tenham sido capazes de resolver os

problemas da humanidade. Isto é justificado pelo fato de que a ciência

iluminista e moderna não previu ou sequer evitou as conseqüências

irremediáveis da postura positivista.

Na seara do direito, o holocausto para o mundo ocidental é

revelador das possíveis conseqüências de uma ciência realizada com

base em uma epistemologia positivista.

No século XX, novos eventos históricos levaram aos

questionamentos sobre o papel da ciência e do direito. Destaca-se a

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164

segunda guerra mundial, a revolução comunista soviética, a alteração

gradual do modo de produção industrial para o modelo constituído a

partir da tecnologia e da informação, onde o trabalho manual é

substituído por máquinas e não há espaço para a absorção das pessoas no

trabalho técnico e científico.

Sob todos os ângulos que se possa observar a vida

contemporânea, é possível identificar um grau considerável de

insatisfação humana quanto aos efeitos produzidos pela ação científica

moderna. Isto não se deve pela ausência de resultados significativos

quanto às conquistas que tenham melhorado setorialmente a qualidade da

vida humana, mas em decorrência de que há um excesso de resíduos

negativos produzidos por esta ciência que supervalorizou o objeto em

relação aos sujeitos do conhecimento.

No direito, isto se reproduz na medida em que este não tem

conseguido realizar a prestação jurisdicional de forma compatível com

os valores da eficiência e rapidez que orientam a modernidade. Esta

insatisfação pode ser assimilada como consectário de uma epistemologia

que desprestigiou os aspectos culturais da linguagem em favor de sua

forma estruturalmente lógica, quando seria razoável que antes se

considerasse o direito sob o enfoque de suas relações para então tratar

dos aspectos formalistas que lhes são pertinentes. A questão em relação a

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165

isto pode ser situada no fato de que mesmo após a teoria da ciência do

direito ter assimilado este problema e operar com uma epistemologia

positiva culturalista e, mais recentemente, com uma epistemologia

crítica, o direito processual permanece preso à linguagem de uma

epistemologia positivista em fase de superação.

No campo do direito processual, foi criado um apego à idéia

da autonomia, contudo, sem que se tivesse percebido que isto não

poderia estabelecer uma desvinculação da teoria da ciência do direito,

sob pena de se verificar um saldo residual deficitário nos procedimentos

comunicacionais do direito processual em relação à realização efetiva e

segura da jurisdição.

O direito processual deve ser compreendido como parte

integrante do sistema jurídico que é norteado pela teoria da ciência do

direito, portanto, devendo ser estudado como objeto cultural.

Compreendê-lo depende de reconhecer os vínculos que mantém com o

meio social, econômico e político, através da linguagem que utiliza.

A atual perspectiva do direito processual deve, ainda, observar

os princípios Constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do

devido processo legal e do juiz natural, estabelecidos no artigo 5º; tendo

como postulado fundamental a dignidade da pessoa humana, que está

expresso no artigo 1º, III.

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166

6 O DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORANEAMENTE

A proposta de estudos do direito processual sob o enfoque de

uma hermenêutica constitucional crítico-historicista, pautada na teoria

dos princípios, apresenta-se complexa, principalmente porque a

morosidade para a entrega da prestação jurisdicional está exigindo uma

resposta rápida da comunidade jurídica e dos Poderes Públicos, sendo

crescente o descrédito dos jurisdicionados quanto à possibilidade de

alcançar-se a “justiça” através dos meios institucionalizados

presentemente.

O reconhecimento dessa situação foi objeto do Pacto de

Estado em favor de um Judiciário mais rápido e Republicano,

publicado em 16 de dezembro de 2004, no Diário Oficial da União, no

241, na seção 1, p. 8, onde os Excelentíssimos Senhores Presidente da

República, Luiz Inácio Lula da Silva; Presidente do Supremo Tribunal

Federal, Nelson Jobim; Presidente do Senado Federal, José Sarney e

Presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha proclamaram os

seguintes compromissos fundamentais: implementação da reforma

constitucional do judiciário, a reforma do sistema recursal e dos

procedimentos, a estruturação das defensorias públicas e acesso à justiça,

o contínuo desenvolvimento dos juizados especiais e da justiça

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167

itinerante, a alteração da lei que regulamenta a execução fiscal, a

proposta para a solução da problemática dos precatórios, a estruturação

de mecanismos que visem ao enfrentamento do problema da violação

dos direitos humanos, o avanço no processo de informatização do poder

judiciário, a criação de meios para a produção de dados e indicadores

estatísticos a respeito da distribuição da justiça, a instituição de

orientações jurisprudenciais que visem à coerência na atuação

administrativa e o incentivo a aplicação das penas alternativas.

Ainda no sentido de obter-se melhores resultados no plano da

otimização da prestação jurisdicional, a Emenda Constitucional no 45, de

8 de dezembro de 2004, acrescentou o inciso LXXVIII, ao

artigo 5º, da CF/88, assim redigido;

Art. 5º. LXXVIII. a todos, no âmbito judicial e administrativo, são

assegurados a razoável duração do processo e os meios que

garantam a celeridade de sua tramitação.

Há, pelo menos, 18 Projetos de Leis190, em diferentes

190 PL 4.724/2004 – Altera a forma de interposição dos recursos, o saneamento de nulidades processuais, o recebimento de recursos de apelação e outras questões. PL 4.726/2004 – trata das questões relativas a incompetência relativa, os meios eletrônicos, prescrição, distribuição por dependência, exceção de incompetência, revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos. PL 4.727/2004 – trata dos agravos de instrumento e retido. PL 4.728/2004 – dispõe sobre a racionalização do julgamento de processos repetitivos. PL 4.729/2004 – regula o julgamento dos agravos. PL 4.723/2004 – trata da uniformização da jurisprudência nos Juizados Cíveis e Criminais. PL 4.725/2004 – possibilita a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual pela via administrativa. Na esfera trabalhista há os projetos: PL 4.730/2004 – altera os artigos 830 e 895 da CLT, que tratam da forma para a apresentação de documentos em juízo e do cabimento do recurso para instância superior. PL 4.735/2004 – altera o artigo 836 da CLT que dispõe sobre as decisões e sua eficácia. PL 4.731/2004 – que altera os artigos 880 e 884 da CLT. PL 4.733/2004 – altera o artigo 894 da CLT. PL 4.732/2004 – altera o artigo 896 da CLT. PL 4.734/2004 – revoga o artigo 899 e acrescenta o artigo 899A a CLT. PL 4.827/98 – trata sobre a mediação prévia e incidental.

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168

estágios de andamento, tramitando no sentido de implementar a

realização do novo inciso do artigo 5º, da CF/88, e dos 11 compromissos

contidos no Pacto do Judiciário.

Os Projetos de Leis 3.253/2004191 e 4.497/2004 que alteram a

sistemática das execuções de títulos judiciais e extrajudiciais

respectivamente, são particularmente interessantes para este trabalho.

Sua abordagem específica, entretanto, será realizada oportunamente.

Ressalta-se apenas a compreensão de que as alterações são mais de

cunho estrutural sem, aparentemente, conseguir resolver o problema da

complexidade do processo.

É de fácil percepção que o movimento reformista do direito

processual brasileiro e do Poder Judiciário é oportuno, mas sofre pelo

fato de que está equivocado ao partir do pressuposto de que o processo

muda a realidade dos jurisdicionados. Isto provoca uma inversão danosa,

pois de instrumento para a realização de um fim o processo passa a ser o

próprio fim a ser realizado na medida em que não consegue estabelecer

uma razoável comunicação com o meio. Volta-se a advertir que o

problema está situado em que o processo não deve ser encarado como

um sistema fechado, mas, como um sistema que opera através da

linguagem, portanto, através da comunicação com o meio social e

político.

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169

6.1 O DIREITO PROCESSUAL AUTOPOIÉTICO

Sendo o direito um sistema lingüístico caracterizado por sua

cientificidade, pois é admissível que seu objeto específico de estudos

seja o conjunto de regramentos comunicados através da linguagem, que

asseguram a organização, o desenvolvimento e as transformações

sociais, e, vinculando-se o direito processual à teoria da ciência do

direito, é-lhe atribuída a mesma característica.

Não há novidade quanto a afirmação anterior, contudo, as

pesquisas que melhor se desenvolveram naquele sentido abordaram o

sistema de linguagem do direito através da lógica jurídica e, portanto, o

enfoque dos estudos considerou a metalinguagem do direito como um

sistema fechado, o que significa afirmar que, como ciência positivada,

seu objeto existe e se realiza em si mesmo.

O que se pretende é observar o direito processual sob uma

perspectiva lingüística autopoiética.

A teoria dos sistemas autopoiéticos desenvolveu-se na década

de 1970, no campo da biologia molecular, sendo seus formuladores os

chilenos Humberto R. Maturana e Francisco Varela. No campo das

ciências sociais, a idéia da autopoiese foi introduzida por Niklas

191 Promulgada a Lei 11.232 de 22 de dezembro de 2005.

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170

Luhmann, quando em 1984, publicou a obra Sistema social, esboço de

uma teoria geral.

Os sistemas autopoiéticos são simultaneamente abertos e

fechados. Seu fechamento é operacional o que significa que os processos

de reprodução das informações do sistema são internos. O ambiente não

contribui para a reprodução do sistema e vice-versa. As operações de

reprodução das informações são verificadas nos limites do interior do

sistema.

A abertura do sistema ocorre através do acoplamento

estrutural, tendo em vista que estes são ambientados havendo a

irradiação e a reciprocidade da comunicação entre os sistemas. Este

processo gera influências que aparecem sob a forma de informações que

são captadas pelo sistema a partir do meio. A ligação entre o meio e o

sistema operacionalmente fechado ocorre através do acoplamento

estrutural, que designa uma forma para as interdependências regulares

entre os sistemas e as relações ambientais que não estão disponíveis

operacionalmente, devendo ser pressupostas.

As idéias de fechamento operacional e acoplamento estrutural

são elementares para a concepção autopoiética dos sistemas. O que

significa que há, no interior do sistema, a auto-organização e a auto-

produção das estruturas, sendo, portanto, auto-referenciado. Nesse

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171

contexto, o sistema se comunica e sofre a interferência do meio e de

outros sistemas através das irradiações, mas opera com tais informações

no interior do sistema de modo auto-referenciado.

O direito processual pode ser pesquisado e conhecido através

desse modelo, pois, suas estruturas lingüísticas, internas e

operacionalmente fechadas, são acopladas estruturalmente ao meio ou

ambiente social e ao sistema da ciência do direito, de onde irradiam as

informações que ao serem captadas devem produzir internamente as

operações que assegurem a realização dos fins prometidos pelo Estado

através da jurisdição.

6.1.1 A autopoiése em Niklas Luhmann

Sob o prisma sistêmico, é possível afirmar que o direito admite

duas formas básicas referenciais para seu estudo, a partir de suas

estruturas internas e tendo em vista suas conexões externas. As pesquisas

que tomam o direito em seus aspectos internos são desenvolvidas com

base em sua estrutura normativa legal. Nesse caso, são desconsideradas

as possíveis relações estabelecidas entre o direito e outros sistemas.

Através da autopoiese são pesquisadas as relações que o

direito estabelece com o ambiente social e outros sistemas, desse modo,

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172

constituindo-se como uma forma de análise das relações externas do

direito, sendo levadas em consideração questões que não se restringem

ao complexo normativo do direito.

Luhmann cursou direito em Friburgo na Alemanha, mas até o

início da década de 1960, quando foi estudar administração na

Universidade de Harvard nos Estados Unidos da América, não são

encontradas publicações de sua autoria192. Durante este curso, teve

contato direto com o trabalho de Talcott Parsons, que era professor em

Harvard, tendo se orientado inicialmente pelo paradigma do

estruturalismo funcionalista desenvolvido por aquele professor.

As teorias funcionalistas se baseiam no conceito de sistema

social193 como o meio em que diferentes elementos operam e no qual os

indivíduos interagem; e na idéia de ponto de equilíbrio do sistema,

podendo localizar-se aí as funções194 ou as contribuições de cada um dos

elementos do sistema para a manutenção do equilíbrio e da ordem social.

192 ROCHA, Leonel; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. p. 151. Os primeiros trabalhos de Luhmann (1958-1968) datam de uma parte da sua carreira administrativa e são consagrados pela ciência da administração e da organização (Erros administrativos e proteção da confiança, 1963; Indenização pública, 1965; Teoria da ciência administrativa, 1966). 193 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Introdução à análise sociológica dos Sistemas Jurídicos, p. 158. Para se definir o conceito de sistema social, parte-se da ‘metáfora organicista’, segundo a qual a sociedade se constitui em sistema (de ação social), cujo funcionamento se assemelha ao de um organismo vivo, a exemplo do corpo humano. 194 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas. Op. cit., p. 159. ... todo sistema social requer quatro funções: 1. a função de ‘adaptação’; 2. a função ‘instrumental’; 3. a função de ‘integração social ou de controle social; 4. a função de ‘socialização’

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173

Os elementos do sistema social se apresentam como

subsistemas, sendo identificados quatro por Parsons, subsistemas

político, jurídico, econômico e cultural.

O ponto de equilíbrio do sistema social que mantém sua ordem

e coesão, portanto, impedindo sua desintegração, é um consenso social

em torno de determinados valores culturais, interiorizados pelos

indivíduos no processo de sociabilização vinculado ao seu status e aos

papéis sociais.

A matriz do pensamento de Parsons quanto ao sistema social

foi admitida por Luhmann, que, no entanto, introduziu alterações nas

teorias funcionalistas, como a inversão do binômio estrutura/função195 e

a rejeição consecutiva das definições organicistas do conceito de função;

e, ainda, a substituição gradual do conceito de ação social em favor do

conceito de sistema de acordo com a sua teoria geral.

O conceito de função em Luhmann se refere a “um esquema

regulador de sentido que organiza um quadro comparativo de prestações

equivalentes”196, o qual é mais próximo da matemática que da biologia.

195 ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ. Germano; CLAM. Jean. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito, p. 62. Tendo em vista as diferenças em relação à teoria de Parsons, Luhmann inverte a lógica do paradigma estrutural funcionalista. Semanticamente, transmuda o binômimo, denominando-o de funcional estruturalista. Com esta simples mudança, traz novas idéias e outros elementos que tornam sua teoria única. Dessa forma, o sistema está orientado a partir de sua função, seu elementos essencial e fundamental, ... 196 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farinas . Op. cit., p. 164-165.

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174

Nesta perspectiva, o funcionalismo supera as idéias referentes às

dependências causais, que foram criticadas por seu caráter determinista.

Partindo da teoria geral dos sistemas, desenvolveu-se uma

concepção de dependência funcional no sentido de que uma mesma

função pode ser desenvolvida de maneira equivalente por estruturas

diferentes. Neste ponto, Luhmann propõe seu método através do qual a

determinação das equivalências funcionais é explicada a partir da teoria

dos sistemas autopoiéticos.

A questão da determinação das equivalências funcionais é

importantíssima, porque dela depende a ordem e a conservação do

sistema, o qual tem sua existência ameaçada pelo mundo exterior (meio).

Em Luhmann, esta ameaça é decorrente dos conceitos de contingência e

de complexidade.

Importante destacar que o sistema social é compreendido

como um sistema que é, simultaneamente, de interações e de

comunicação. Assim, os procedimentos desenvolvidos através do

acoplamento estrutural colocam em risco a existência do sistema porque

a troca de informações fica altamente comprometida pela contingência e

pela complexidade da comunicação estabelecida.

Dessa forma, a ordem social e a conservação do sistema

dependem da redução da complexidade e da contingência, o que,

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175

segundo Luhmann, é possível conseguir estabelecendo-se relações de

sentido entre as ações sociais quê, por sua vez, são delimitadas pelo

próprio sentido, que constitui as fronteiras do sistema.

Nesse contexto, é possível visualizar a estrutura interna

circularmente fechada do sistema a qual se reproduz mecanicamente. As

operações básicas desta estrutura são a auto-referência, a auto-

observação e a autodescrição. Este sistema, embora fechado, não se

apresenta isolado, pelo contrário, sendo aberto cognitivamente para o

meio de onde recebe as informações e os estímulos que alimentam seu

funcionamento.

Essa mesma estrutura se verifica no sistema jurídico, ou seja, o

seu funcionamento ocorre de modo operacionalmente fechado e

cognitivamente aberto.

Pode se afirmar que, internamente o sistema jurídico opera

através das relações entre as normas jurídicas de modo fechado, ou seja,

auto-regulado, auto-observado e autodescritivo. A comunicação que o

sistema jurídico mantém com o meio extrajurídico, contudo, não é uma

relação normativa, mas sim, uma relação cognitiva. Observa-se que, no

processo de acoplamento estrutural, as informações e os estímulos

externos são transformados pelo sistema através do processo auto-

referencial.

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176

Essa transformação das informações e dos estímulos externos

através da operacionalização do sistema jurídico, em seu interior, põe em

questão dois problemas da maior relevância: qual é o grau de influência

que as informações e os estímulos externos exercem sobre o

funcionamento interno do sistema? E como conhecer as conseqüências

dessa relação?

A questão pragmática que se coloca em relação ao sistema

jurídico se refere a que através de sua operacionalização interna ocorre

sempre a auto-reprodução de normas que sofrem as influências do meio

extrajurídico, embora não se possa precisar qual o grau e as

conseqüências dessa influência. No entanto, apesar do sistema jurídico se

caracterizar pela comunicação e interação, ele não consegue irradiar

informações do meio interno para o meio externo, porque a relação

interna é normativa e a relação com o meio social é cognitiva. Assim se

justifica, porque a abertura cognitiva do sistema jurídico não resulta,

necessariamente, na existência de comunicação com o meio social.

O trabalho de Luhmann no desenvolvimento de uma teoria de

grande reflexividade apresenta o estilo de uma superteoria, pois os

conceitos fundamentais que formula são refletidos na própria teoria, ou

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177

seja, sob a perspectiva das suas pesquisas chegou-se a constituição de

um “design teórico”197 completo.

6.1.2 Complexidade, contingência e expectativa de expectativas

O estudo do direito com referência aos seus aspectos

extrínsecos ou, mais particularmente, com relação a teorias sociológicas,

tendo em vista a análise do fato do dever ser sob o prisma da sua função,

leva a questionamentos198 que podem ser considerados de caráter

psicológico ou sociológico, porque as discussões que visam

contextualizar o direito como sistema autopoiético parte da análise da

experimentação e seu simbolismo. Esse problema é resolvido na teoria

luhmaniana a partir da consideração de que é inexistente a separação

total entre o meio e o sistema. É afirmado que

deve-se partir de um campo da ação e da experiência sensorial, a

partir de onde se constituem as personalidades e os sistemas

sociais, como diferentes estruturações de complexões de sentido

das mesmas experiência e ação. Tão-só diferenciação entre

diversos sistemas de referência (o que, naturalmente, é facilitado

197 ROCHA; SCHWARTZ; CLAM. Op. cit. p., , 152. 198 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I, p. 43. Se quisermos ir mais ao fundo teremos primeiro que analisar o fato do dever ser. Não é suficiente apenas aceitar o dever ser de todas as normas como um dado básico do direito, ou supô-lo como uma qualidade, não mais definida, da experiência fática. Pode-se, ainda, indagar quanto ao sentido do dever ser, ou mais precisamente: quanto à sua função. O que afirma esse símbolo do dever ser? Qual o significado de que experiências e principalmente expectativas sejam experimentadas com essa qualidade do dever ser? Sob quais circunstâncias que essa qualificação é escolhida, e para quê? Quais temas são assim reforçados? E quais os comportamentos daí decorrentes?

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178

pela existência de organismos humanos) estabelece a separação de

personalidades e sistemas sociais enquanto estruturas distintas de

assimilação da experiência, permitindo também o destaque da

psicologia e da sociologia – mas o ‘material’ que constitui esses

sistemas é o mesmo. Tão-só a indagação quanto à função de

determinadas experiências ou ações com respeito à personalidade

(ou uma determinada personalidade individual) caracteriza uma

pesquisa como psicológica, ou seja, a partir da sua indagação e de

determinadas premissas estruturais. No caso contrário, classifica-se

a experiência e a ação no campo da sociologia quando tematizadas

no contexto funcional e estrutural de sistemas sociais199. (grifo

nosso)

A formação do direito pode ser relacionada com a necessidade

de ordenamento como base de suas estruturas e processos elementares.

As questões pertinentes a esses mecanismos e sua superação estão

vinculadas ao fato de que “a relação do homem com o mundo é

constituída de forma sensitiva”200.

As construções sistêmicas são decorrências de um elevado

grau da complexidade dos problemas dos processos da experiência

sensorial e da ação. Neste contexto, Luhmann fraciona a pesquisa quanto

à formação do direito sob um prisma sociológico, fazendo a seguinte

abordagem:

199 LUHMANN. Op. cit., p. 43-44. 200 LUHMANN. Op. cit., p. 44.

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179

Inicialmente (1) tentaremos captar a problemática do convívio

humano sensorialmente orientado, através dos conceitos da

contingência e da complexidade, tentando também mostrar como

a sobrecarga aí localizada é atenuada pela formação de estruturas

de expectativas. Isso também ocorre (2) através da diferenciação

entre estruturas cognitivas e normativas de expectativas,

dependendo se no caso de desapontamento está prevista sua

assimilação ou não. Expectativas normativas são mantidas

apesar da não satisfação. Daí seus problemas e suas condições de

estabilização estarem vinculados (3) ao ajustamento de

desapontamentos, que assegura a estabilidade no tempo, no sentido

de estabelecer as condições de continuidade de expectativas. Ao

lado dessas condições temporais é necessário considerar as

condições sociais e materiais da generalização de expectativas. As

primeiras (4) são discutidas no contexto do tema da

institucionalização, e as segundas (5) no da identificação de

complexões de expectativas. Tão-só a partir dessas pesquisas

prévias será possível (6) definir e descrever a função do direito

como congruente, ou seja, com generalização de estruturas de

expectativas coerentes em todas as dimensões. Com relação a essa

função (7) pode ser esclarecido em que medida o direito depende

do poder físico sob diferentes condições sócio-estruturais...”.201

(grifo nosso)

Esta pesquisa é orientada no sentido de colocar em questão a

efetividade e segurança jurisdicional no campo do processo de execução,

considerando o processualismo científico e a crise dos paradigmas da

pós-modernidade.

201 LUHMANN. Op. cit., p. 44-45.

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180

É admitida a possibilidade do estudo daquele problema a partir

das idéias de Luhmann, partindo dos conceitos de complexidade,

contingência e expectativa de expectativas.

Assim, complexidade quer referir ao fato de que “sempre

existem mais possibilidades do que se pode realizar”202, uma vez que a

capacidade de percepção, assimilação de informação, e ação atual e

consciente do Homem é limitada. Embora o mundo para o Homem seja

dado por suas experiências sensoriais, este mesmo mundo não está

limitado pelo Homem através de suas experiências. Há, então, um espaço

entre o mundo das experiências humanas e o “todo” do mundo.

A contingência é entendida como “o fato de que as

possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser

diferentes das esperadas;”203 desse modo existem possibilidades de ação

diversas daquelas escolhidas em determinado momento diante de certas

circunstâncias.

A complexidade vincula-se à necessidade de escolhas

através de seleções e a contingência significa o perigo de

desapontamentos e a necessidade de assumir riscos.

Esta situação dá origem a estruturas que absorvem e controlam

o duplo problema que é a complexidade e a contingência visando a

202 LUHMANN. . Op. cit., p. 45. 203 Ibidem, p. 45.

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181

assimilação da experiência. Neste quadro, há premissas da

experimentação e do comportamento que são selecionadas para a

constituição de sistemas haja vista que possibilitam bons resultados no

processo seletivo, estabilizando as possibilidades de desapontamentos

por garantir certo grau de independência da experimentação diante das

instabilidades surgidas em virtude de impressões momentâneas,

impulsos instintivos, excitações e satisfações.

As premissas da experimentação facilitam o permanente

processo de seleção conseqüente da complexidade que, por sua vez, está

relacionada a um horizonte de possibilidades ampliado e mais rico em

alternativas.

O processo seletivo é desenvolvido a determinados níveis em

que ocorre a substituição das comprovações e das satisfações imediatas

por técnicas de abstração de regras úteis para a seleção de formas

adequadas de experimentação e de auto-certificação. O efeito da seleção

neste estágio é percebido por criar e estabilizar as expectativas com

relação ao mundo circundante.

Na assimilação de experiências, a complexidade e a

contingência se revelam como estruturas imobilizadas do mesmo modo

que o mundo. As formas de seleção indicam o sentido o qual pode ter

sua identidade apreendida “com coisas, homens, eventos, símbolos,

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182

palavras, conceitos, normas”204. As expectativas são fundadas nas

possibilidades decorrentes da seleção e, portanto, do sentido que seja

apreendido.

Os sentidos que podem ser atribuídos por um Homem não

esgotam todas as possibilidades, sendo que outros Homens podem ter

assimilações de experiências e ações originais205. Essas realidades se

comunicam e se integram, logo, as possibilidades de cada indivíduo

podem ser também as de todos os indivíduos. Este intercâmbio de

perspectivas, representadas pelas possibilidades de cada indivíduo se

inter-relacionando, ampliam os horizontes do Homem (eu) com uma

redução considerável de tempo. Dessa forma, é assegurado o aumento da

seletividade imediata da percepção.

O aumento da seletividade imediata da percepção, contudo,

tem, como conseqüência, a potenciação do risco através da elevação da

contingência simples206 do campo da percepção ao nível da dupla

contingência do mundo social. Isto implica diretamente no

reconhecimento do alter-ego sob o prisma da igualdade quanto a

liberdade de ação e ao mundo complexo e contingente em que se vive.

204 Ibidem, p. 46. 205 Ibidem, p. 46. Nesse mundo complexo, contingente, mas mesmo assim estruturalmente conjecturável existem, além dos demais sentidos possíveis, outros homens que se inserem no campo de minha visão como um ‘alter ego’, como fontes eu-idênticas da experimentação e da ação originais. 206 Ibidem. p. 47. Frente à contingência simples erigem-se estruturas estabilizadas de expectativas, mais ou menos imunes a desapontamentos – colocando as perspectivas de que à noite segue-se o dia, que amanhã a casa ainda estará de pé, que a colheita está garantida, que as crianças crescerão ...

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183

Nesse contexto, verifica-se o perigo dos desapontamentos. A

inconfiabilidade é o resultado extremado da absorção de perspectivas

estranhas.

A dupla contingência opera com estruturas de expectativas

complicadas e condicionadas, pois é verificada na dupla relevância da

experimentação e da ação. Dessa forma, considera-se o nível das

expectativas imediatas de comportamento na satisfação ou no

desapontamento daquilo que se espera do outro, e os termos de avaliação

do significado do comportamento próprio em relação à expectativa do

outro.

O comportamento do outro é indeterminado, somente podendo

ser expectado diante das possibilidades da seleção, logo, as expectativas

devem considerar igualmente o comportamento e as próprias

expectativas do outro, uma vez que sejam desejadas soluções integráveis

e confiáveis no controle da complexão de interações sociais.

Da integração entre os níveis das expectativas imediatas de

comportamentos (satisfação/insatisfação) e os termos de avaliação do

significado do comportamento próprio em relação à expectativa do

outro é localizada a função normativa – o direito.

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184

A questão das expectativas das expectativas ocorre em

diversos planos porque em um sistema social sempre poderá ser

identificada a expectativa de alguém em relação a outrem207.

Há duas alternativas para resolver o problema das expectativas

das expectativas decorrentes da dupla contingência, podendo ocorrer

através da adaptação social da reflexidade das expectativas208 e através

da criação de “reduções, simplificações e abrandamentos” da

complexidade.

As reduções de complexidade são adequadas e necessárias

diante da crescente complexidade e do acúmulo de situações problema

nos sistemas sociais.

É importante ressaltar que a complexidade e a referência

mútua das expectativas têm como efeitos a elevação da complexidade e

dos riscos de erros. Por isso as simplificações, através da redução da

complexidade, são imprescindíveis na busca de orientação e na

imunização contra os riscos de erros. Assim, as simplificações devem

cumprir uma função estruturalizante.

207 Ibidem. p. 50. O fato de que as expectativas se sobrepõem, formando conjuntos imperscrutáveis de rejeições, pode ter sua raiz na causalidade dos contatos humanos. A função da complexidade dessas estruturas é a de aumentar a complexidade dos sistemas físicos e sociais, aumentar o âmbito das experiências e da ação expectáveis de forma a adequar-se a um mundo complexo, com múltiplas situações e exigências instáveis. (grifos nossos) 208 Ibidem, p. 50. A adaptação social da reflexidade das expectativas ainda pode ser possível em sistemas sociais pequenos e constantes, em famílias e grupos de amigos, nas faculdades tradicionais o u em pequenas unidades militares.

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185

A redução da complexidade nos sistemas psíquicos é tratada

como uma questão interna ao sujeito, ou seja, com referência às suas

próprias condições de interação, o que significa a capacidade de interagir

com os comportamentos do outro, assim como, com as expectativas

pessoais quanto a isso, e também quanto às expectativas que o outro

sujeito pode desenvolver. Dessa forma, as esquematizações

interpretativas flexíveis são eficientes no controle dos riscos de erros em

relação a expectativa fática e ao comportamento do outro209, portanto,

criando as imunizações.

A equivalência funcional entre a autocaracterização e as

caracterizações do outro é o produto da imunização. A equivalência

funcional visa à satisfação de necessidades psíquicas. Nos sistemas

psíquicos, espera-se que as expectativas entre os sujeitos fortaleçam a

identidade do próprio sistema210.

Embora seja pertinente mencionar, ainda que de forma

suscinta, como é operacionalizado o sistema psíquico sob o prisma

autopoiético luhmaniano, a finalidade desta abordagem é restrita ao fato

209 Ibidem, p. 51. ... Tais expectativas sobre expectativas podem, com o auxílio de esquematizações altamente flexíveis, ser praticamente imunizadas contra a refutação através da expectativa fática e do comportamento do outro. ... (grifos nossos) 210 Ibidem, p. 51. ... Na medida em que essa imunização dê resultado, produz-se, para a satisfação de necessidades psíquicas, a equivalência funcional entre a auto-caracterização e as caracterizações do outro: tanto faz perceber a si mesmo ou ao outro como agressivo, por ambos os caminhos chega-se à descarga (ab-reação) das tensões psíquicas através do comportamento inamistoso. ... Evidentemente o grau de proximidade à realidade das assimilações projetivas da experimentação está fortemente relacionado à amplitude, à riqueza em alternativas, à capacidade de abstração, ou seja à complexidade do sistema psíquico correspondente. (grifos nossos)

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186

de que o mundo circundante sistemicamente observado está, segundo

esta concepção, vinculado ao sistema psíquico e ao sistema sociológico,

através dos processos de comunicação.

Os sistemas sociais estabilizam expectativas objetivas que

orientam as pessoas através de generalizações que criam sínteses

regulativas do sentido, as quais constituem a sua função. Assim,

evidencia-se a afirmação de que “Toda convivência humana é direta ou

indiretamente cunhada pelo direito”211

A função normativa do sistema social não é bem

compreendida quando é enfocada apenas na visão da expectativa

comportamental, o que leva a colocar a questão da segurança

exclusivamente na garantia do comportamento de acordo com as

expectativas.

Para Luhmann, a compreensão do direito depende da

assimilação de que sua função está centrada “no plano reflexivo da

expectativa sobre expectativas, criando aqui segurança em termos de

expectativas, à qual se segue, apenas secundariamente, a segurança sobre

o comportamento próprio e a previsibilidade do comportamento

alheio”212.

211 Ibidem, p. 7. 212 Ibidem, p.52.

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187

Nesse contexto, a diferença entre a expectativa da garantia do

comportamento e a expectativa da expectativa revela-se fundamental,

sobretudo, porque comumente realiza-se a inversão desses pólos,

enfocando-se a questão da função normativa do sistema social na

garantia de se obter os comportamentos esperados. Dessa forma, a

questão da segurança jurídica é desfocada e sua referência elementar

deixa de ser as expectativas das expectativas.

Observa-se que as regras ou sínteses comportamentais

anonimizadas funcionam como espécies de fórmulas curtas simbólicas

para a integração de expectativas concretas. Assim, são reduzidos ou

controlados os riscos de erros da expectativa, porque as divergências

entre os comportamentos e as regras ocorrem no plano da ação alheia

errônea213.

Sobressalta a situação inversa, partindo-se da experimentação

e do comportamento fático e sabendo-se que as regras nem sempre são

cumpridas. Isto está associado a fato relativo às condições para esperar

expectativas ou expectativas de expectativas, em termos fáticos.

A partir da não-realização das expectativas se torna admissível

a rediscussão da regra, retornando ao nível em que se procura a

213 Ibidem, p. 53. A orientação a partir da regra dispensa a orientação a partir das expectativas. Ela absorve, além disso, o risco de erros da expectativa, ou pelo menos o reduz, isso porque, graças à regra, pode ser suposto que aquele que diverge age erradamente, que a discrepância se origina, portanto, não da expectativa própria, mas da ação (alheia) errada. Nessa medida a regra alivia a consciência no contexto da complexidade da contingência.

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adequação concreta em termos de expectativas. Desse processo resulta

um entendimento mútuo que fornece as bases para um comportamento

que altere, modifique ou transcrida a norma, ocorrendo a flexibilidade da

estrutura normativa. A questão da mudança das estruturas normativas

está relacionada com a vigência da norma214, uma vez que sua realização

se torna impossível em todos os momentos e para todas as expectativas

de todas as pessoas.

6.2 O DIREITO COMO ESTRUTURA DE SIMPLIFICAÇÃO DA COMPLEXIDADE

É possível afirmar, com base em Luhmann, que o mundo é

constituído sensorialmente, resultando da percepção como antes

mencionado, um nível da realidade psicológica e outro sociológica. O

ato de selecionar a percepção para atribuir uma referência à realidade é

alguma coisa muito interessante, porque é revelador da função das

estruturas.

Diferentemente daquilo que se possa pressupor, as estruturas

são modeladas para cumprir uma função que está ligada à necessidade de

compreensão e explicação dos fenômenos ou objetos, como preferido.

Assim, em última análise, pode ser afirmado que as estruturas como

214 Ibidem, p. 53. ... a vigência de normas reside em última análise na complexidade e na contingência do campo da experimentação, onde as reduções exercem sua função.

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189

mecanismos de seleção cumprem uma função redutora da complexidade,

na medida em que são criadas para assegurar a descrição de uma

realidade215.

Como mecanismo que cumpre uma função de seleção quanto à

descrição da realidade, visando a uma simplificação do mundo, as

estruturas podem ser entendidas como reducionistas em relação a todas

as hipóteses e situações que desconsideram através do processo seletivo.

Ou seja, para cumprir sua função as estruturas abandonam inúmeras

possibilidades existentes em relação ao “todo”. Com isto, sedimentam

determinadas possibilidades como expectáveis, as quais são susceptíveis

de não realizár-se.

Ao cumprir sua função de seleção, as estruturas criam

expectativas comportamentais e assumem, por conseguinte, o risco do

desapontamento. Por isso, a adequação estrutural está ligada ao problema

do desapontamento. Assim, as estruturas realizam sua função quando

conseguem equilibrar a relação entre uma complexidade sustentável e a

carga suportável de desapontamentos. Pode ser afirmado que as

estruturas para se manter sólidas não podem ignorar os desapontamentos,

logo, sua manutenção fica condicionada a admissibilidade dos riscos.

215 Ibidem, p. 54. Mesmo quando as estruturas são incontestavelmente aceitas na vida cotidiana, e não são apreendidas como decisões seletivas, a análise sociológica tem que captar, em seu conceito de estrutura, a seletividade e com isso também o questionamento da auto-evidência de todas as estruturas, fornecendo assim uma descrição da realidade com um grau de complicação e de riqueza em alternatias maior que o percebido por aqueles que nela vivem.

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190

Há uma relação direta entre a complexidade e os riscos, de

modo que o aumento em um provoca o mesmo efeito no outro, podendo

levar a “um nível insustentável de tensões e problemas de orientação”216.

Essa situação é enfrentada pelo sistema social da sociedade

entendido com referência ao “todo” através da admissibilidade de

possibilidades contrárias de reação a desapontamentos. Isto significa que

a expectativa frustrada diante de uma realidade passa por transformações

para se adaptar. Nesse processo de adequação da expectativa à realidade,

pode ocorrer que ela seja sustentada ou abandonada, sendo substituída

por outra expectativa. No entanto, em qualquer desses casos, a estrutura

será conservada, porque operacionaliza com os riscos e admite aquelas

duas alternativas.

O sistema social sob essa perspectiva admite dois estilos de

expectativas, que serão cognitivas ou normativas217, conforme assimilem

o desapontamento e se adaptem à realidade frustrada, ou não realizem o

processo de absorção do desapontamento, conservando a expectativa e

criando mecanismos para exigir a sua realização218.

216 Ibidem, p. 55. 217 Ibidem, p. 56. Ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expectativas normativas ocorre o contrário: elas não são abandonadas se alguém as transgride. ... as expectativas cognitivas são caracterizadas por uma nem sempre consciente disposição de assimilação em termos de aprendizado, e as expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se pela determinação em não assimilar os desapontamentos. (grifos nossos) 218 Ibidem, p. 56. ... a diferenciação entre o cognitivo e o normativo não é definida em termos semânticos ou pragmáticos, nem referenciada aos sistemas afirmativos que as fundamentam ou à contradição entre afirmações informativas e diretivas – mas sim em termos funcionais, tendo em vista a solução de um determinado problema. Ela aponta para o tipo de antecipação da absorção de

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191

A não-ocorrência da expectativa estruturalmente selecionada

gera o desapontamento219. Esta questão se revela absolutamente

fundamental, pois o problema enfocado gravita em torno do

desapontamento do jurisdicionado em relação à segurança e efetividade

da prestação jurisdicional220.

Sob o prisma da constituição das expectativas, a sua satisfação

ou não é irrelevante, porque, como já referido, ela operacionaliza

admitindo os riscos do desapontamento, baseando-se, portanto, em

“processos de neutralização simbólica”221.

desapontamentos, sendo assim capaz de fornecer uma contribuição essencial para o esclarecimento dos mecanismos elementares de formação do direito. (grifos nossos) 219 Ibidem, p. 55. ... todas as estruturas contêm imanentemente o problema do desapontamento – e isso não só no sentido de uma insuficiência (temporária) do conhecimento, ou de uma maldade do homem (que infelizmente sempre volta a se manifestar), mas sim no sentido de uma especificação de problemas, realizada justamente pela estrutura. 220 Estas são “promessas” não cumpridas pelo processualismo científico, sendo interessante observar que no Brasil a compreensão do processo sob a ótica do praxismo e do procedimentalismo não chegou a ser abandonada. Com isto quer-se afirmar que, embora, o Código de Processo Civil de 1973 tenha adotado uma sistemática de compartimentação dos processos e um rigor característico no tratamento de cada um dos institutos do procedimento, por questões as mais diversas possíveis, podendo, mencionar-se uma em especial, qual seja, o fato de que em 1973 o Brasil passava por um momento histórico marcado pela supressão das liberdades e garantias fundamentais, não houve, por assim dizer, uma efetivação das novas práticas trazidas pelo Código então promulgado. No momento atual da história brasileira parece haver consenso quanto ao fato de que o Poder Judiciário, como outras instituições integrantes do Estado, não usufruíam de plena autonomia e liberdade durante o período da “ditadura militar iniciada em 1964”. Dessa forma, a interpretação e a aplicação do Código de Processo Civil de 1973 ficaram parcialmente prejudicadas, pois, os pressupostos fundamentais da técnica calcada na ciência são a liberdade e a autonomia, os quais, como antes mencionado, estavam em regime de contenção. Desde então, tem existido um conjunto de regras baseadas no processualismo científico e, paralelamente, têm sido adotadas práticas procedimentais incompatíveis com aquelas regras, na medida em que o “Estado” não demonstrou ao longo deste período o interesse em ver o Poder Judiciário operacionalizando com os paradigmas da ciência. Um fato mais danoso ainda pode ser verificado ao observar que no Brasil se tem lançado mão dos aspectos particulares do processualismo científico para conturbar o procedimento e tornar a prestação jurisdicional mais complexa220. Em conclusão às observações dos parágrafos anteriores, deve ser afirmado que no Brasil a situação do direito processual está comprometida por um elevado grau de desapontamento devido à existência de um evidente descompasso entre as regras procedimentais, os princípios processuais contidos na Constituição Federal e no Código de Processo Civil e as condutas adotadas pelos profissionais da área jurídica, sejam advogados, integrantes da magistratura ou membros do ministério público. 221 Ibidem, p. 57.

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192

A partir da questão do desapontamento, observa-se que “as

normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos

contrafáticos”222. Isto quer dizer que não há uma relação direta entre

fatos e normas.

O sentido da norma tem como implicação ou conseqüência que

sua vigência não é condicionada à sua satisfação fática. A vigência da

norma é institucionalizada. O símbolo do dever-ser expressa

principalmente a expectativa dessa vigência independente da realização

fática da norma. Não se discute a satisfação fática ou não da norma.

O sentido e a função do dever-ser, por conseguinte estão

vinculados à vigência da norma que, por sua vez, não está condicionada

à satisfação fática ou não das expectativas que o dever-ser expressa. O

sentido do dever-ser orientado de modo independente quanto à sua

realização fática ou não, não é menos fático que o sentido do ser223. Pode

concluir-se que o fático abrange o normativo. Por isso a contraposição

entre o fático e o normativo deve ser abandonada, porque o normativo e

o fático integram igualmente o campo das expectativas.

Não é adequado excluir o dever-ser/normativo do campo das

expectativas. O oposto adequado ao normativo é o cognitivo. A opção

coerente entre o cognitivo e o normativo se relaciona com a maneira que

222 LUHMANN, p. 57.

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193

é tratada a questão do desapontamento. Assim, a compreensão a respeito

da função da diferenciação entre o cognitivo e o normativo está no fato

de que criam duas estratégias diferentes, mas com funções equivalentes

para resolver o problema do desapontamento.

Estas estratégias são a assimilação ou não-assimilação do

desapontamento. Embora estas sejam orientações contrárias, preenchem

a mesma função, qual seja, resolver o problema do desapontamento.

A diferenciação entre o normativo e o cognitivo não deve

traduzir uma oposição à priori entre ser e dever-ser. A função dessa

diferenciação está ligada à necessidade de adaptação e continuidade após

o desapontamento.

As expectativas cognitivas e normativas interagem para

assegurar duas estratégias diferentes, mas funcionalmente equivalentes

diante do desapontamento. Dessa forma, a partir de orientações

contrárias pode ser realizada a mesma função, encontrando-se aí a

possibilidade do sucesso na superação do desapontamento.

A partir da diferenciação entre as expectativas cognitivas e

normativas, a sociedade pode resolver o problema do desapontamento

através da adaptação à realidade ou da manutenção das expectativas.

Poderão ser institucionalizadas expectativas comportamentais através da

223 Toda expectativa é um fato, seja esta satisfeita ou não. Realizado ou não o comportamento expectado, a expectativa não deixa de ser um fato.

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194

adaptação da expectativa à realidade da ação, assim como poderão ser

articuladas as expectativas ao nível normativo tendo em vista fatores

ligados à segurança e à integração social das expectativas.

Essa dupla estratégia reduz o risco dos desapontamentos em

todas as estruturas. O risco, neste caso, é localizado na forma de

encaminhamento dos problemas. Assim, a complexidade e a

contingência se tornam sustentáveis.

Com a crescente complexidade da sociedade, crescem os

riscos estruturais, que devem ser prevenidos através de uma maior

diferenciação entre as expectativas cognitivas e as normativas. A esse

respeito, observa-se que a diferenciação entre o cognitivo e o normativo

é uma decorrência do desapontamento. Por sua vez, o nível dos riscos

dos desapontamentos fica controlado através do encaminhamento do

problema para o nível cognitivo ou normativo. Estes procedimentos

ocorrem simultaneamente, através do desencadeamento que atende a

uma ordem a qual pode ser descrita da seguinte forma:

Expectativa constituída no sistema social → desapontamento

→ encaminhamento do problema → expectativa cognitiva ou

expectativa normativa → redução dos riscos estruturais em face da

assimilação ou não da frustração quanto à expectativa.

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195

O quadro ilustra as situações corriqueiras, nas quais as

estruturas são mantidas a partir de decisões a posteriori em relação às

expectativas e ao risco e problema dos desapontamentos. Luhmann

constata quê, mesmo após este procedimento, as expectativas podem

permanecer no campo do desapontamento, pois não há garantias de que

o encaminhamento do problema resulte como esperado.

Nessa situação e diante dos casos em que seja inviável

abdicar-se da expectativa pelo impacto que isto possa representar sobre

as realidades constituídas, surge o Direito como um mecanismo

simplificador da complexidade e redutor da contingência, porque, como

estrutura normativa a priori, ele estabiliza um nível de expectativas que

deverão ser realizadas, ficando os sujeitos de direitos vinculados ao seu

cumprimento, através da autorização legal224 concedida ao interessado

para exigir do Estado a intervenção naquela situação a fim de assegurar,

ainda que através da coerção, a realização daquela expectativa

assimilada pelo Direito.

Há casos em que a diferenciação entre o nível cognitivo e

normativo é inviável diante da especificidade das expectativas

comportamentais, formando-se uma unidade coesa a qual não é captada

224 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico, p. 268. A norma jurídica se define: imperativo autorizante. Ela é um imperativo por que é um mandamento. E é autorizante porque autoriza a reação contra a ação que a viola.

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196

pelo Direito225. Surgem construções alternativas para resolver o

problema dos desapontamentos em relação àquelas situações não-

evidentes. Assim é utilizado o critério da determinação a priori como

forma de diferenciar o nível cognitivo do nível normativo, decidindo de

antemão sobre a manutenção ou o abandono das expectativas

desapontadas226. Há riscos elevados nesses casos, o que exige estratégias

para sua minimização, o que é obtido através de um momento estranho

ao estilo da expectativa se introduzindo a possibilidade do

comportamento oposto. “A solução do problema reside na admissão de

uma contradição, que deve persistir como tal, de forma latente.”227

No caso das expectativas cognitivas esta contradição consiste

em que não há uma imediata e necessária adaptação ao desapontamento,

mas, pelo contrário, através da referência a hipóteses adicionais e de

explicações oficiais é mantida a expectativa e o desapontamento é

interpretado como228 uma exceção.

225 Ibidem, p. 60. Nos casos crassos de repetidas transgressões graves, opta-se tipicamente pela saída da declaração do ator desapontador como doente mental, excluindo-o assim da comunidade dos sujeitos humanos, suas experimentações, suas expectativas e suas visões mundo. Isso demonstra que transgressões às expectativas nessa esfera freqüentemente são tratadas como transgressões à verdade, como incapacidade para reconhecer o mundo – um sistema nítido de que não se diferencia os estilos cognitivo e normativo das expectativas. 226 Ibidem, p.62. É tão-somente nessa esfera das expectativas não auto-evidentes que surge uma diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas, essa diferenciação como que substitui a auto-evidência. 227 Ibidem, p.63. 228 Ibidem, p. 63. O esquema regra/exceção, a concepção de desdobramentos normais e irregulares, e ainda a construção de uma complicada visão de mundo, sustentada por hipóteses básicas abstratas e quase irrefutável, garantem um alto grau de imunização perante desapontamentos também no caso de expectativas cognitivas.

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197

Esta situação é verificada nos casos em que a expectativa

cognitiva é estruturalmente central.

As expectativas normativas por sua vez podem assimilar

aspectos da realidade quando o desapontamento for reiterado e referir-se

a aspectos periféricos da estrutura normativa.229

Admitidas essas contradições através das quais ora as

expectativas cognitivas interagem com a realidade, preservando o padrão

de comportamento expectado, através da admissibilidade de exceções;

ora as expectativas normativas flexibilizam admitindo a assimilação de

comportamentos diversos daqueles esperados, tem-se os casos atípicos

ou irregulares, que são eficazes no controle das situações de risco de

desapontamentos, assegurando, através de estratégias funcionalmente

equivalentes, o controle da complexidade.

Desta forma o padrão normal ou de regularidade dos

comportamentos em relação às expectativas cognitivas ou normativas

realizam o controle dos riscos por meio da admissibilidade da

contradição através da utilização de comportamentos contrários àqueles

expectados como normais, ou seja, a não assimilação do desapontamento

229 Ibidem, p. 63. ... a elasticidade da formulação de algumas normas permite procedimentos adaptativos – por exemplo no caso do tão discutido aperfeiçoamento da legislação através da jurisprudência. Existe, portanto, mesmo no direito, uma assimilação apócrifa, e nas sociedades muito complexas com direito positivo temos até mesmo mudanças legais do direito, assimilação legitimada. (grifos nossos)

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198

pela expectativa cognitiva e a aceitação de um comportamento diverso

daquele a priori exigido através da expectativa normativa.

Identificados os estilos cognitivo e normativo quanto aos

comportamentos expectados são aceitas contradições como um recurso

no controle dos riscos estruturais diante da alta complexidade e da

necessidade da superação dos desapontamentos para garantir e preservar

o sistema.

Pode ser afirmado que são constituídos três modos de

combinação entre as expectativas visando à minimização dos riscos

estruturais e a superação dos desapontamentos. Até aqui foi tratada da

questão do entremeamento indiferenciado e da subordinação de

possibilidades contrárias. Um terceiro modo de combinação entre as

expectativas se refere às expectativas sobre expectativas as quais foram

abordadas de forma geral no item 6.1.1, deste capítulo.

6.3 REFLEXIVIDADE ENTRE EXPECTATIVAS COGNITIVAS E NORMATIVAS

A compreensão sobre a formação e a função do direito sob a

perspectiva luhmaniana é centrada na reflexividade entre expectativas, as

quais no, campo sociológico, poderão ser cognitivas ou normativas.

Para Luhmann, é na questão da expectativa sobre expectativas que é

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199

criada a idéia de segurança, entendida como controle dos riscos

quanto aos desapontamentos.

Assim, a questão que envolve os comportamentos em relação

às expectativas normativas e cognitivas, no que se refere ao

desapontamento será abordada quanto à possibilidade de se ter

expectativas sobre expectativas. Nesse sentido, são estabelecidos elos

entre estilos opostos, “formando cadeias de expectativas, que acomodam

ao mesmo tempo possibilidades de assimilação e possibilidades de não-

assimilação”230.

O quadro ilustra como determinada expectativa pode

corresponder ou não àquela expectativa que o sujeito tem em relação ao

que se espera dele.

Cognitivo ↔ cognitivo

Cognitivo ↔ normativo

Normativo ↔ cognitivo

Normativo ↔ normativo

Neste caso, observa-se a existência de quatro possibilidades

em virtude da dupla reflexividade (cognitivo/normativo), sendo que o

número de possibilidades cresce conforme a freqüência da reflexividade.

230 Ibidem, p. 64.

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200

A reflexividade se relaciona com a reciprocidade das

expectativas dos comportamentos dos sujeitos. Assim, as expectativas,

sejam elas normativas ou cognitivas, de X em relação a Z criam

determinadas expectativas (cognitivas/normativas) de Z em relação às

próprias expectativas que X tem em relação ao seu comportamento. Diz-

se, então, que as expectativas (cognitivas/normativas) de Z em relação às

expectativas (cognitivas/normativas) que X tem em relação ao seu

comportamento são expectativas sobre expectativas.

A diferenciação entre as expectativas cognitivas e normativas

decorre de uma opção que foi objeto de uma expectativa constituída

através do convívio humano231. Esperar e diferenciar comportamentos

em nível cognitivo ou normativo está relacionado com determinadas

escolhas humanas232 a partir das quais são criadas as expectativas233. “É

só a partir dessa base que podem formar-se expectativas

especializadas no estilo normativo e na sua manutenção, mesmo no

caso de desapontamentos.”234

231 Ibidem, p. 58. A separação entre ser e dever ser, ou entre verdade e direito não é estrutura do mundo dada a priori, mas uma aquisição da evolução. 232 Há aspectos comportamentais no convívio humano que são considerados evidentes, tendo em consideração fatores de ordem história e cultural. Poderia mencionar-se o caso do cumprimento amistoso entre as pessoas conhecidas, praticamente, todos os povos têm o hábito de estabelecer saudações entre as pessoas ao se encontrarem e ao se despedirem, isto não exige um processo complexo de diferenciação. Os comportamentos diferentes desse padrão serão considerados esquisitices ou em casos graves até transtornos mentais. A estrutura de diferenciação entre os estilos cognitivo e normativo surge para resolver o problema da não-evidenciação entre expectativas. 233 Ibidem, p. 65. Uma diferenciação entre os estilos cognitivo e normativo das expectativas só se estabelece se a própria opção por um desses estilos é expectável só assim ela torna-se socialmente regulada, só assim ela pode ser prevista. (grifos nossos) 234 Ibidem, p. 65.

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201

As expectativas normativas submetem às regras normativas,

ou seja, se X tem uma expectativa normativa em relação a Z, este

(independentemente de qual seja sua expectativa sobre a expectativa de

X) será submetido à realização do comportamento expectado

normativamente. Nisto consiste a institucionalização da opção pelo estilo

normativo, não haverá a assimilação de um comportamento diferente,

ainda que o sujeito não pretenda submeter-se, serão criados meios para

exigir-lhe aquele comportamento.

A realidade social criada sociologicamente não é estática, pelo

contrário, ela está permanentemente susceptível a mudanças. Igualmente

mutável é a forma de encaminhar os problemas quanto aos estilos das

expectativas. Uma expectativa normativa pode ser encarada pela

comunidade como uma expectativa cognitiva, dependendo da situação de

tempo e lugar. Desse modo, as expectativas sobre as expectativas são

distorcidas para evitar conflitos, “é necessário, nesses casos, que se

espere cognitivamente que os outros esperem normativamente que se

tenha expectativas cognitivas”235.

A necessidade da institucionalização da opção quanto às

expectativas normativas se refere, portanto, aos efeitos em relação ao

convívio humano quanto às escolhas socialmente reguladas como

situações diferenciadas no que tange aos desapontamentos.

Page 203: O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E … · SÍLZIA ALVES CARVALHO PIETROBOM O PROCESSO DE EXECUÇÃO, O PROCESSUALISMO CIENTÍFICO E A CRISE DOS PARADIGMAS Tese

202

Relativamente às expectativas cognitivas de expectativas o

ponto central é a assimilação individual do comportamento expectado,

independentemente do aspecto da regulamentação social. Havendo uma

reformulação das expectativas pelos outros membros do grupo, o

indivíduo está em condições de adaptar-se. No caso das expectativas

cognitivas sobre expectativas o indivíduo não estabelece normas, mas

adapta-se às expectativas do grupo236.

Observa-se que através da reflexividade entre expectativas é

operacionalizada a diferenciação entre os estilos cognitivo e normativo.

Nesse processo, é localizada a formação do direito, na medida em que

através da seleção entre expectativas de expectativas vão se constituindo

os padrões possíveis de assimilação e aqueles insusceptíveis de admitir-

se a adaptação a um comportamento diferenciado daquele expectado de

onde se origina o direito.

O direito em Luhmann é o resultado de um processo de

comunicação237 que ocorre tendo como referências a necessidade da

redução da complexidade e da contingência, o que se verifica através de

235 Ibidem, p. 65. 236 Ibidem, p. 65. ... por exemplo quando é promulgada uma nova lei, uma decisão jurídica inesperada, ou quando se alteram os hábitos normatizantes da vida cotidiana, quando a moda muda, a moral se liberaliza. 237 Ibidem, p. 68. Muitas transgressões às normas são superadas, ou despidas de suas implicações simbólicas, apenas por serem ignoradas. Isso ocorre tanto nos pequenos contextos, quanto nos mais abrangentes. Esse ignorar tem em vista não os fatos, mas a norma ele a protege contra informações discrepantes que a questionam, e protege aquele que se desaponta da obrigação de reagir. Essa proteção está baseada na circunstância de que as normas se enraízam em comunicações, e não em fatos.

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203

estruturas seletivas de expectativas, as quais, por sua vez,

operacionalizam com as idéias da assimilação ou não do desapontamento

frente ao comportamento expectado. No primeiro caso, têm-se as

expectativas cognitivas, as quais se situam no plano do interesse

individual e não geram para o sujeito a possibilidade da reação do Estado

no sentido de coagi-lo a adotar o comportamento esperado. As

expectativas normativas, por sua vez, vinculam-se a regulamentação

social, não assimilando os comportamentos divergentes, os quais são

rejeitados, em determinados casos sendo ignorados e, em situações

graves, ensejando a interferência do Estado através da autorização para

que o sujeito desapontado possa exigir o comportamento normatizado.

6.4 O PARADIGMA DA AUTOPOIESE NO PROCESSO DE EXECUÇÃO

Sem explorar em profundidade a teoria autopoiética em

Luhmann, mas com fundamento em seus conceitos estruturais básicos e

principalmente após ter-se demonstrado que o direito se origina no

processo comunicacional formulado através dos comportamentos

humanos em face dos desapontamentos. Considerando, ainda, que a

função estrutural do direito é a redução da complexidade, podem se

identificados os elementos que traçam o perfil de um novo paradigma

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204

para o direito processual e, mais especificamente, para o processo de

execução.

Através do processo seletivo dado em decorrência da

experimentação, referida a análise e observação prática dos fenômenos, e

dos desapontamentos no campo do sistema social foram realizadas

opções quanto a não-assimilação de determinados comportamentos

originando-se daí a regulamentação social e o próprio direito.

Seletivamente, optou-se por um direito como mecanismo de

regulação, pois a ordem constituída impositivamente a partir da

experiência obtida com os desapontamentos gerados pela autodefesa

pode levar à constatação segundo a qual a força como instrumento básico

de organização grupal é insuficiente. Foi admitido um nível de regulação

segundo a expectativa de que alguns elementos do grupo poderiam

representar as mesmas expectativas que o grupo em sua totalidade.

Observa-se que ao longo do processo de consolidação das

relações humanas socialmente até a cristalização do Estado moderno sob

a égide da idéia da soberania nacional e ainda mais recentemente sob o

desenvolvimento da teoria dos Estados comunitários, com a formação

dos blocos de desenvolvimento como ocorre na União Européia, a

complexidade e a contingência foram crescentes e acompanhadas pelos

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205

riscos estruturais, o que teve como conseqüência, a elevação dos casos

de desapontamentos quanto às expectativas cognitiva e normativa.

Foi desvelada a expectativa da representação da comunidade

organizada politicamente. É admitida a hipótese de que a representação é

restrita aos grupos que puderam articular-se economicamente na

conquista do poder político. Logo, o poder econômico e o poder político

se tornaram indissociados. Nesse contexto, o direito passou a representar

as expectativas daquela camada da coletividade ascendente ao Poder,

que conquanto economicamente seja mais significativa, numericamente

é menor.

A expectativa da segurança e da efetividade erigida no Século

XVIII representa a opção da burguesia que ascendeu ao poder e criou

estruturas para garantir a manutenção do seu prestígio econômico e

político. O direito assimilou tais idéias, desprestigiando o caráter da

“justiça” como meio para equilibrarem-se as forças que estão em jogo no

cenário social, promovendo o desenvolvimento eqüitativo dos indivíduos

e dos povos.

O direito processual que existe acoplado estruturalmente ao

direito como sistema constituído sociologicamente, durante todas as suas

fases de desenvolvimento, recebeu informações, comunicando-se com os

demais sistemas, como o político e o econômico, aos quais está

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206

acoplado. O processo seletivo de expectativas sobre expectativas sob um

prisma cognitivo ou normativo está corrompido, porque foi desarticulado

historicamente o viés que unia os indivíduos integrantes das

coletividades as quais foram se estruturando politicamente até a

concepção dos Estados moderno e contemporâneo.

O direito representa as expectativas normativas daquela faixa da

comunidade que ascendeu ao poder político ou/e econômico. Disso

resulta uma univocidade normativa legal. Por outro lado, há uma

pluralidade de experimentações de normas as quais são consideradas

como desapontamentos causadores de insegurança entre os ascendentes

ao Poder, mas quê, no entanto, são os comportamentos expectados em

relação àquela outra camada politicamente representada de forma

deficiente, na medida em que suas experiências traduzem expectativas

diferentes daquelas constituídas entre os ocupantes dos Poderes

econômico e político.

Com isso não se pretende afirmar que não existam os riscos

estruturais e os desapontamentos. Eles existem em relação a um modelo

funcionalmente fechado, porque este não admite que o processo de

formação do direito é verificado no sistema de experimentação social,

entre expectativas cognitivas e normativas, conforme a assimilação ou

não dos desapontamentos.

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207

Através da análise da autopoiese luhmanniana, pode ser

afirmado que os desapontamentos quanto à segurança jurídica na esfera

do processo de execução se restringem às camadas específicas dos

grupos sociais ocupantes dos poderes econômicos e políticos. Esta

afirmação se refere ao fato de que, como já mencionado, a segurança

jurídica se vincula ao controle dos riscos quanto aos desapontamentos,

portanto, estando ligada a segurança econômica e política no sentido que

lhe empregou a burguesia ascendente ao poder com a revolução

industrial e com o iluminismo, ou seja, a garantia da permanência do

status quo vigente238.

Dessa forma, a segurança jurídica está relacionada com a

garantia de retorno do investimento e do capital e com a certeza da

permanência no poder. Caberia ao Pode Judiciário, nestes termos,

assegurar que os bens deslocados para quaisquer fins pudessem retornar

à sua origem ainda com rendimentos. A camada da população que não

dispõe de bens para integrar aquele grupo de investidores (detentores dos

poderes econômico e/ou político) não pode sofrer de fato o

desapontamento da insegurança jurídica, porque não tem a expectativa

quanto à manutenção de uma situação que efetivamente não chegou a

238 No Direito Civil a força vinculativa dos contratos através do pacta sunt servanda é ilustrativa da importância que foi atribuída a autonomia privada da vontade, como liberdade para contratar e obrigatoriedade em se executar o contratado.

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208

experimentar239. Ressalta-se que não há o objetivo de discutir a questão

referente ao direito quanto ao recebimento, mas, sim, os meios para a

consecução deste.

Questão completamente diversa é a da efetividade

da jurisdição. Neste caso, as expectativas estão sendo desapontadas

entre todas as camadas dos grupos sociais. Identifica-se este problema no

fato de que o direito processual não tem sido estudado como um sistema

autopoiético, levando-se em consideração a questão do acoplamento

estrutural. Tem-se um processo com um bom nível técnico, mas,

demasiadamente oneroso para um Estado endividado interna e

externamente como é o caso do Brasil. Nesse tocante, é desconsiderado o

ambiente econômico em que a técnica é aplicada.

O Estado está consolidando sua estrutura democrática, onde

deve haver a harmonia e independência entre os poderes240. Nem sempre,

contudo, essa estrutura funciona como deveria, podendo ser

identificado um determinado grau de entrelaçamento institucional

entre os Poderes241, sobretudo, do Poder Executivo em relação aos

239 Quando o setor financeiro, o comércio ou mesmo a indústria atuam assumem riscos que procuram cobrir com a aplicação de mecanismos de correção. O custo operacional em última análise acaba sendo rateado entre o consumidor (juros altos) e a sociedade (elevada carga tributária). 240 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 241 Ibidem. Art.84 . Compete privativamente ao Presidente da República: XIV – nomear após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, ...; XVII – nomear os magistrados, nos casos previstos nesta Constituição, e o Advogado-Geral da União.

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209

poderes Legislativo e Judiciário242.

Esta situação acaba se reproduzindo nas relações informais

que existem entre os Poderes da República.

Algumas ilações são possíveis a partir daquelas premissas 243

constituídas com referência ao acoplamento estrutural, o Poder Judiciário

não consegue realizar satisfatoriamente a prestação jurisdicional, porque

não há a disponibilidade de recursos econômicos suficientes para

estruturá-lo adequadamente, ampliando as vagas para os cargos de

servidores público, juiz e membro do Ministério Público, bem como

quanto ao aparelhamento físico das instalações e equipamentos

necessários para uma prestação de serviços satisfatórios. Como

mencionado, os procedimentos inerentes ao processo brasileiro são

sofisticados, com um elevado número de formalidades as quais requerem

uma organização mais complexa e, portanto, mais onerosa.

242 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal,. p. 24. No atual sistema constitucional brasileiro, temos realmente uma Corte Constitucional federal, consubstanciada no STF, ... Com efeito, em países que possuem tribunais constitucionais, como por exemplo a Alemanha, esse tribunal é órgão constitucional de todos os Poderes, situando-se no organograma do Estado ao lado do Executivo, Legislativo e Judiciário, não sendo, portanto, órgão do Poder Judiciário e nem se situando acima do Poderes Executivo e Legislativo. É formado por pessoas indicadas pelos Três Poderes, com mandato certo e transitório, vedada a contínua ou posterior recondução. O tribunal constitucional é, pois, suprapartidário. Nesse país, o Tribunal Federal Constitucional (Bundesverfassungsgericht - BVerfG), a mais alta corte do país, é composto por duas câmaras com oito juízes cada uma (§ 2º , BVerfGG). Três juízes de cada câmara, no total, portanto, de seis, devem ser eleitos dentre os magistrados que integram as mais altas cortes do país (um dos cinco tribunais superiores) e que tenham estado ativos, no mínimo, por três anos (§ 2º , BVerfGG). O mandato dos juízes da Corte Constitucional federal alemã é de doze anos. 243 A referência é a aceitação das seguintes afirmações: há uma relação direta entre a tecnicidade do processo e a sua onerosidade; o Brasil é um país endividado; a democracia brasileira está em fase de estruturação.

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210

Quanto à situação dos custos da viabilização econômica

operacional do processo, duas possíveis alternativas podem contornar o

problema. Ou constitui-se um modelo procedimental simplificado, sob a

ótica da economia, e então, reforma-se o processo, eliminando-se as

formalidades; ou, se investe recursos econômicos em quantidade

suficiente para viabilizar a aplicação eficiente dos procedimentos que

hoje integram o processo.

Pensar um modelo simplificado para o processo, considerando

os custos econômicos de sua realização para os poderes públicos implica

em admitir a alteração de alguns valores que foram prestigiados pelo

positivismo clássico e incorporados pelo processualismo científico.

Dessa forma a natureza jurídica publicística do processo poderia ser

flexibilizada se atribuindo às partes a obrigação quanto à prática de

determinados atos procedimentais. Nesse sentido, pode ser mencionada a

remessa dos atos de comunicação processual, atualmente, estes são da

responsabilidade do Poder Judiciário, através dos servidores oficiais de

justiça, por correspondência com aviso de recebimento, ou através da

publicação nos diários oficiais. Poder-se-ia pensar um sistema

procedimental em que as varas e secretarias dos juízos expedissem os

mandados de citação, intimação, penhora, etc.; cabendo a

responsabilidade quanto ao seu cumprimento às próprias partes

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211

interessadas, estabelecendo-se regras quanto a isto. No mesmo sentido,

se reduzir-se-iam as hipóteses de cabimentos dos recursos. O processo

tem uma trajetória espiralada durante a cognição, indo e vindo concluso

ao juiz a cada requerimento que exija uma decisão interlocutória. Todos

estes atos poderiam ser realizados pelos auxiliares do juízo, escrivão,

escrevente, técnico judiciário, enfim, a remessa ao juiz seria restrita para

as audiências e para a sentença. Estas considerações têm o objetivo de

demonstrar que há alternativas ao modelo vigente.

Há inúmeros aspectos procedimentais que se alterados levaria

a agilização econômica do processo. Deve, contudo, ser avaliado o grau

de riscos estruturais que tais medidas introduziriam quanto às garantias

asseguradas através do processo de natureza publicística, portanto,

realizado no âmbito do Poder Judiciário. A questão da destinação de

verbas orçamentárias em maiores quantidades a fim de investir-se na

melhoria geral quanto aos serviços prestados pelo Poder Judiciário é

extremamente complexa e foge aos propósitos deste trabalho. Deve ser

mencionado, contudo, que o Estado deve priorizar a prestação

jurisdicional porque as democracias se consolidam através das

instituições. Neste sentido, o Poder Judiciário assume uma notável

significação, uma vez que lhe compete precipuamente dar aplicabilidade

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212

às leis o que significa que no Estado Democrático de Direito244 a vontade

da lei se concretiza através do juiz245.

É possível argumentar-se que todos os setores das atividades

estatais estão penalizados pela insuficiência de recursos econômicos,

mas sobre tal alegação deve pesar o fato de que a efetividade da

prestação jurisdicional se caracteriza como um interesse público246 ou

geral247 primário na medida em que todos os atos jurídicos se submetem

a apreciação do Poder Judiciário.

O enfretamento quanto ao problema do desapontamento com a

prestação jurisdicional deve ser observada sob a ótica da adoção de

estruturas seletivas de expectativas, as quais reduzam a complexidade e a

contingência. O direito em si mesmo se constitui em uma estrutura de

244 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art.1º.. 245 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 60-61. O intérprete autêntico completa o trabalho do autor do texto normativo; a finalização desse trabalho pelo intérprete autêntico, é necessária em razão do próprio caráter da interpretação, que se expressa na produção de um novo texto sobre aquele primeiro texto. Aqui me permito lembrar que sempre foi assim independentemente de cogitarmos de ‘criação’ de direito pelo juiz tem de ser assim. ... afirmo a ‘criação’ de direito pelos juízes como conseqüência do próprio processo de interpretação. ... a interpretação é transformação de uma expressão (o texto) em outra (a norma), sustento que o juiz ‘produz’ o direito. 246 BORGES, Alice Gonzalez. Interesse Público: um conceito a determinar. p. 113. ... em uma ordem democrática, se relacionam a parte com o todo, isto é, o interesse individual dos cidadãos e o interesse público (do bem comum, ou interesse geral, ou que outro nome tenha). 247 Ibidem. p. 112. ANDRÉ DEMICHEL prefere, à denominação corrente de interesse público, a de interesse geral, justificando: ‘O vocábulo público se mostra aqui ambíguo, na medida em que poderia fazer pensar em um interesse ou uma utilidade próprias do Estado. O termo interesse geral expressa melhor a idéia, que é do Estado burguês, segundo a qual existe um interesse comum a toda a sociedade, pelo qual o Estado é o responsável. Para DEMICHEL, a noção de interesse geral – que, irreverentemente, qualifica de illusion idéologique, a servir de cobertura exata para todas as finalidades da atuação administrativa e para todas as técnicas jurídicas que ela pode utilizar para consegui-lo – admite duas concepções possíveis: ou pode ser concebida como um interesse específico da sociedade, distinto, por sua própria essência, dos interesses particulares; ou, mais modestamente, como uma arbitragem entre os diversos interesses individuais (este é, entre outros, segundo assinala, o pensamento de GEORGES VEDEL e o de JEAN RIVERO) (grifos nossos)

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simplificação, a qual, no entanto, em face da elevação da complexidade

da vida contemporânea, exige a adoção de medidas específicas no

âmbito do sistema legal248 a fim de lhe garantir a preservação da

estrutura que se encontra demasiadamente comprometida.

No processo de execução, discute-se a efetividade em termos

pragmáticos e sem maiores preocupações técnicas ou científicas.

Diferentemente em relação ao processo de conhecimento, tem havido um

elevado grau de abstração teórica, sempre com vista às garantias

processuais relacionadas com o devido processo legal.

Em relação à execução, houve aqueles que lhe negaram o

caráter jurisdicional e a autonomia, reservando-lhe um papel

complementar ao processo de conhecimento, este sempre identificado

com o mais alto nível teórico do processualismo249 250.

248 A Lei 9.307/96 (Lei de Arbitragem) representa uma tentativa de introduzir-se no sistema legal uma alternativa para a redução da sua complexidade crescente. No mesmo sentido foi promulgada a Lei 9.958/2000 a qual criou o Título VI-A da Consolidação das Leis do Trabalho estabelecendo as normas básicas para a constituição e funcionamento das Comissões de Conciliação Prévia de âmbito trabalhista. 249 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil, v. 1. p. 221-222. Uma exigência de ordem me aconselha considerar como rigorosamente distintas a função jurisdicional e a função processual. A segunda é o genus e a primeira, a species. Nem todo processo implica exercício de jurisdição, e sim tão apenas aquele cuja finalidade será explicitada no primeiro dos capítulos em que este título se divide. Especialmente, é processo, e não jurisdição, a execução forçada. ... O processo executivo e, em geral, os outros tipos de processo permaneceram até ontem mesmo na sombra, e desse modo a noção de jurisdição absorveu integralmente a noção do processo. Mas se a história impõe à ciência seus fatos, não deve lhe impor nem as idéias nem as palavras. Apenas assim pode-se avançar na ciência. A sinonímia entre função processual e função jurisdicional implica uma imperfeição da linguagem e do pensamento, que a ciência do processo deve corrigir, se a primeira exigência de seu progresso é a pureza dos conceitos e a propriedade dos vocábulos. (grifos nossos) 250 Ibidem. p. 289. ... elementares considerações para mostrar, desde já, o conteúdo diverso e, quase diríamos, a diversa matéria do processo jurisdicional e do processo executivo. Não seria temerário sublinhar esta diferença por meio da antítese entre a razão e a força: na realidade, aquela é um instrumento do processo jurisdicional e esta, o do processo executivo. Destarte, compreende-se também a subordinação normal do segundo ao primeiro até que não se tenha estabelecido a razão, não deve ser usada a força. Mas se compreende, por sua vez, a necessidade do processo executivo junto ao processo jurisdicional, para assegurar a ordem jurídica: se a razão não serve por si só, terá que usar a força. (grifos nossos)

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Apesar das construções teóricas no sentido de evidenciar que o

processo de execução é autônomo e tem caráter jurisdicional, portanto,

estando integrado à teoria geral do processo no Brasil, verifica-se uma

tendência a localizar e restringir o desapontamento com a efetividade da

prestação jurisdicional nos procedimentos inerentes à execução. Desse

modo, não são considerados nos estudos que visam às reformas

processuais os aspectos da complexidade e contingência, bem como do

acoplamento estrutural do processo em relação ao processo de

conhecimento, ou mesmo, relativamente à teoria geral do processo.

Deve ser mencionado que a crítica ao reformismo processual

não se localiza nas iniciativas em si mesmas, mas na ausência de

referências claras quanto às expectativas normativas, aqui identificadas

aos valores que devem presidir o modelo da prestação jurisdicional no

Brasil, assim como os objetivos almejados com a configuração desse

novo modelo. Sabe-se que a resposta imediata está vinculada às idéias da

efetividade sob a orientação da simplicidade e celeridade na entrega do

bem da vida ao jurisdicionado251. Não se considera, contudo, adequado

que o sistema legal seja modificado estruturalmente, sem que sejam

identificadas as causas reais dos problemas que lhe são afetos.

251 CHIOVENDA, Giuseppe.. Instituições de Direito Processual Civil., v. 1. p. 67. A vontade da lei tende a realizar-se no domínio dos fatos até as extremas conseqüências praticamente e juridicamente possíveis. Por conseguinte, o processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir. (grifos nossos)

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215

Entende-se igualmente que seja fundamental a discussão

prévia sobre os meios utilizados para controlar os riscos estruturais

decorrentes dos desapontamentos. Somente dessa forma se acredita que

possa ser produzido um resultado efetivo quanto à redução da

complexidade e contingência, com a conseqüente produção dos efeitos

esperados quanto à efetividade da prestação jurisdicional.

O funcional estruturalismo de Niklas Luhmann, sintetizado na

teoria autopoiética dos sistemas sociais oferece uma alternativa

metodológica viável para o estudo e análise dos problemas referentes à

insatisfação dos jurisdicionados quanto aos resultados obtidos através da

prestação jurisdicional. Verifica-se que, através dos sistemas

autopoiéticos, podem ser abordados os aspectos intrínsecos e extrínsecos

do objeto de estudo, no caso, é possível, sem distorções, avaliar o

processo de execução em relação às questões que não estão vinculadas

diretamente ao direito processual, mas que afetam drasticamente a

entrega da prestação jurisdicional.

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216

7 PANORÂMICA HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL

Os estudos a respeito da constituição histórica do direito

processual estão ligados a duas questões prévias que são a identificação

quanto ao momento do seu surgimento em relação ao direito material e o

reconhecimento da autodefesa como método de solução dos conflitos.

Ao afirmar-se que a história do direito se confunde com a

história do próprio Homem na terra, o que se pretende é mencionar a

existência pré-histórica das regras de conduta ou de alguma possível

técnica de pacificação de conflitos? A resposta a este questionamento

leva à tomada de posição quanto ao reconhecimento ou não da existência

de um direito primitivo entre os grupos humanos que não dominavam

nenhuma forma de escrita.

Ao associar-se a história do direito ao surgimento de uma

escrita melhor elaborada na mesopotâmia252 253,é possível admitir que as

formas de resolução dos conflitos lhe precedem, e, portanto, com

referência a este posicionamento se entende que seja adequado

252 WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. p. 35. ... o processo de invenção e consolidação da escrita possui estreita ligação com o surgimento das cidades e das modificações que a revolução urbana acabou por trazer). Isso porque, se forem desconsideradas formas muito pouco evoluídas de inscrição – como, por exemplo, puras representações pictográficas ou fichas de argila com indicações de mera quantidade -, é também na Mesopotâmia que se manifesta a primeira escrita mais complexa, com um maior número de sinais com aspectos ideográficos e fonéticos: a escrita cuneiforme. (grifos nossos) 253 Ibidem. p. 35-36. ... a escrita cuneiforme surge na região da Baixa Mesopotâmia, por volta de 3100 a. C.

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217

reconhecer que o “direito processual” surgiu antes do direito material. Se

de outro modo, a compreensão quanto ao reconhecimento da existência

do direito se der no campo da antropologia, entendendo-se que a vontade

individual que não tenha sido objeto de nenhuma regulamentação ou

registro possa ser assimilada como direito, então se torna possível

admitir a existência do “direito material” antes da autodefesa, a qual

visaria à tutela daquele.

As controvérsias a respeito do momento histórico do

surgimento das técnicas de pacificação dos conflitos está também

relacionada com a admissibilidade da autodefesa como método de

solução de conflitos. Convencionou-se, entre os processualistas, que há

três fases ou etapas de desenvolvimento do direito processual: a

autodefesa, a autocomposição e a heterocomposição.

A partir de uma ótica contemporânea pode parecer estranho

que a força pudesse ser o elemento de equilíbrio e estabilidade entre

grupos humanos primitivos, de modo que as necessidades divergentes

entre seus integrantes se resolvessem pela capacidade da imposição da

vontade individual através da força. Tal fato, contudo, tem pertinência

com um contexto histórico onde a vida humana se desenvolvia de uma

forma rudimentar e praticamente selvagem. Naquele momento não havia

sequer o mais remoto vestígio de organização institucional.

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218

Acredita-se que, durante todo o processo de constituição e

desenvolvimento da história da humanidade, houve formas de

pacificação entre os conflitos dos membros dos grupos societais. Ainda

que não houvesse sido criada uma simbologia que codificasse uma forma

de transmissão das experiências254 e, posteriormente, autênticos signos

lingüísticos255, as divergências sempre tiveram algum modo de ser

resolvidas. Somente assim tornou-se possível a agregação dos grupos e a

constituição de regras comportamentais exigíveis entre seus membros.

A utilização da palavra direito no contexto primitivo das

organizações dos grupos humanos parece inadequada, uma vez que sua

conceituação básica pressupõe a existência de um conjunto de regras de

conduta incidentes sob determinados indivíduos.

Pretende-se afirmar que não sendo possível ignorar os

antecedentes antropológicos e históricos da humanidade, a autodefesa

precede o reconhecimento de qualquer regra imposta a um grupamento

de indivíduos. Sob uma perspectiva conceitual do direito, a escrita lhe é

fundamental, e neste caso, as primeiras regras escritas tinham caráter

material, visando a ordenação das condutas dos indivíduos.

254 NOVA Enciclopédia Barsa, v. 5. p. 480. Na pré-história, o homem serviu-se de diversos meios de expressão, mas nenhum deles se destinava a representar a linguagem verbal. 255 Ibidem. p. 480. A invenção da escrita realizou-se de várias maneiras, em momentos distintos e em diversos pontos do mundo, e correspondeu sempre a necessidades da civilização urbana, em sociedades dotadas de unidades fabris relativamente desenvolvidas, comércio ativo e estado organizado.

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219

O direito como é reconhecido atualmente não existiu em

sociedades primitivas sob a forma material ou processual256. É inegável,

no entanto, que em todos os momentos históricos houve a assimilação e

a transmissão de costumes através da fala e de desenhos, assim como a

pacificação dos conflitos257. Apenas pela ausência de uma denominação

apropriada e específica estas práticas podem ser chamadas de direito,

acredita-se que melhor é considerá-las como antecedentes históricos e

antropológicos do direito258.

Considerando que, somente a partir do final do Século XIX ou

início do Século XX, foram realizadas as escavações antropológicas259

que permitiram um dimensionamento mais concreto sobre os modos de

vida das sociedades primitiva e antiga é correto afirmar que os estudos a

256 WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Cap. 1. O direito nas sociedades primitivas. Antonio Carlos Wolkmer. p. 23. Esse direito antigo, tanto no Oriente quanto no Ocidente, na explicação de H. Summer Maine, não diferenciava, na essência, a mescla de prescrições civis, religiosas e morais. Somente em tempos mais avançados da civilização é que se começa a distinguir o direito da moral e a religião do direito. Certamente, de todos os povos antigos, foi com os romanos que o direito avançou para uma autonomia diante da religião e da moral. 257 Ibidem, p. 20. ... ainda que prevaleça uma consensualidade sobre o fato de que os primeiros textos jurídicos estejam associados ao aparecimento da escrita, não se pode considerar a presença de um direito entre povos que possuíam formas organização social e política primitivas sem o conhecimento da escrita. Autores como John Gilissen questionam a própria expressão “direito primitivo”, aludindo que o “direito arcaico” tem um alcance mais abrangente para contemplar múltiplas sociedades que passaram por uma evolução social, política e jurídica bem avançada, mas que não chegaram a dominar a técnica da escrita. Assim sendo, as inúmeras investigações científicas têm apurado que as práticas legais de sociedades sem escrita assumem características, por vezes, primitivas, por outras, expressam um certo nível de desenvolvimento. (grifos nossos) 258 Ibidem. p. 24. Por último, Gilissen chama atenção par o fato de que os direitos primitivos são “direitos em nascimento”, ou seja, ainda não ocorreu uma diferenciação efetiva entre o que é jurídico do que não é jurídico. 259 Ibidem. p. 43. Há que se ponderar, de imediato, que o estudo do direito das sociedades pré-clássicas representa um campo relativamente novo na história do direito. Muitas das descobertas fundamentais, no terreno da arqueologia, são posteriores ao início do século XX. As principais expedições foram enviadas à Mesopotâmia e ao Egito nos anos 20: as célebres escavações em Ur lideradas por Wooley (1922-1929) e a descoberta e catalogação dos tesouros da tumba de Tutankhamon, efetuadas por Carter, no Vale dos Reis (1922-1924).

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220

esse respeito se pautam em parte em constatações obtidas através da

arqueologia e, em parte, decorrem do processo de abstração da

historiografia260. Pode questionar-se a precisão e cientificidade desses

dados, mas não a ocorrência de fatos que culminaram com a formação da

sociedade261 e do direito.

Sob o ponto de vista da superação da fase da pré-história, a

criação e o desenvolvimento da escrita são fundamentais para o direito.

O avanço do direito grego e, sobretudo, o período do legislador Sólon

(594-593 a.C.) representam o marco do reconhecimento da existência de

regras com caráter instrumental.

Sólon262 é considerado um dos melhores legisladores de

Atenas, sendo, ainda, reconhecido como um dos fundadores da

democracia e um dos sete sábios da Grécia. É fundamental mencionar

que foi o autor de um código de leis que alterou profundamente aspectos

institucional, social e econômico em Atenas. Destaca-se a proibição da

escravidão por dívida e a libertação dos escravos por esta mesma causa.

260 DICIONÁRIO Brasileiro da Língua Portuguesa, p. 931. Historiografia. s. f. (historio + grafo + ia). 1. Arte de escrever a História. 2. Estudos críticos acerca da História. (grifos nossos) 261 WOLKMER. Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Cap. 1. O direito nas sociedades primitivas. Antonio Carlos Wolkmer. p. 29. Não há comprovações científicas de que a legalidade acompanhou e refletiu os diversos estágios das sociedades primitivas de acordo com a premissa evolucionista. 262 NOVA Enciclopédia Barsa, v. 13. p. 346-347. Sólon nasceu em Atenas no ano 640 a.C. De família nobre empobrecida, dedicou-se na mocidade ao comércio, mas ganhou notoriedade ao liderar os atenienses, em 600 a. C., na tomada da ilha de Salamina, que se encontrava sob o domínio de Mégara. Chegou ao poder num período em que Atenas era dominada por uma aristocracia hereditária, cujos integrantes recebiam o nome de eupátridas. Estes possuíam as melhores terras e monopolizavam o poder que suscitava rivalidade entre facções, com violentas lutas políticas. ... morreu em 560 a.C.

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221

Foi eliminada a hipoteca sobre pessoas e bens. Criou quatro

classes sociais divididas de acordo com os impostos pagos, sendo que os

tetas, embora fossem isentos do pagamento dos impostos, tinham alguns

direitos, como a participação na assembléia e no tribunal populares.

O que mais chama a atenção na legislação de Sólon é o fato de

ter criado regras com conteúdo instrumental como o direito de apelo aos

tribunais e a possibilidade de reclamar em nome dos injustiçados.

Na Grécia, também pode ser identificada as origens de um

processo judicial263, com a criação da arbitragem privada264 e pública265,

e o surgimento de profissionais da área jurídica, como o advogado, o

que, no entanto, ocorreu em um período avançado de sua história. A

Grécia e, principalmente, Atenas tiveram um direito evoluído, tendo

influenciado o direito romano e alguns institutos atuais, como o júri

popular266.

O direito grego e o direito romano constituem as fontes

históricas antigas mais importantes para o direito ocidental. Os fatos

263 WOLKMER. Op. cit.,cap. 3. O direito grego antigo. Raquel de Souza. p. 78. Embora os gregos não estabelecessem diferença explícita entre direito privado e público, civil e penal, é no direito processual que se encontra uma diferenciação quanto à forma de mover uma ação: a ação pública (graphé) e a ação privada (diké ). 264 Ibidem. p. 77-78. A arbitragem privada era um meio alternativo mais simples e mais rápido, realizado fora do tribunal, de se resolver um litígio, sendo arranjada pelas partes envolvidas que escolhiam o árbitro (ou árbitros) entre pessoas conhecidas e de confiança. Nesse caso o árbitro (ou árbitros) não emitia um julgamento, mas procurava obter um acordo, ou conciliação, entre as partes. 265 Ibidem. p. 78. ... a arbitragem pública visava a reduzir a carga dos dikastas, sendo utilizada nos estágios preliminares do processo de alguns tipos de ações legais. Nesse caso, o árbitro era designado pelo magistrado e tinha como principal característica a emissão de um julgamento, correspondendo á moderna arbitragem. 266 Ibidem. p. 91.

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222

relacionados com a preferência dos gregos pela retórica da persuasão e

questões de ordens geográfica e militar, possibilitaram uma maior

influência do direito romano na formação dos institutos do direito

contemporâneo267.

7.1 AUTODEFESA, AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO

A existência humana é embasada na convivência da qual

decorrem relações que podem ser amistosas ou não. Quando as relações

entre os indivíduos são conflituosas, observa-se a necessidade de

resolver as questões que geraram a divergência. A primeira forma para

compor os interesses conflituosos entre os indivíduos ocorreu através da

autodefesa268, sendo que, neste caso, o sujeito ou o grupo mais forte

impunha sua vontade ou interesse àqueles que divergissem. Dessa forma,

era resolvido o problema e restabelecida a paz entre os elementos do

grupo.

267 WOLKMER. Op. cit. p., , 30. ... três fatores adicionais contribuíram para o direito grego não ocupar a importância que merece. Primeiro, o desenvolvimento da escrita e a publicação de textos em material durável aconteceu paralelamente à evolução da sociedade grega e do direito. Em segundo lugar, a obstinação dos gregos em não aceitar a profissionalização do direito, sendo bem apropriadas as palavras de Robert J. Bonner: “Tivessem os advogados sido livres para falar pelo litigante como o logógrafo estava, Atenas teria rapidamente desenvolvido um corpo de peritos legais comprável ao juris consulti romano ou aos modernos advogados”. 268 ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo, p. 12. Formada do prefixo auto (próprio) e do substantivo defesa, equivale a “defesa própria” ou “defesa por si mesmo”. Se fosse entendida literalmente, ficariam de fora da autodefesa na poucas manifestações que na mesma se incluem, como a legítima defesa de terceiro e o estado de necessidade.

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223

Considerando-se o objetivo fundamental do processo, qual seja

a garantia da paz no ambiente social, restabelecendo-se o equilíbrio entre

os membros do grupo, ou entre grupos distintos, o modelo da força bruta,

imposta pela autodefesa, é admitido como a primeira “técnica” de

composição de conflitos. A solução é encontrada entre os próprios

contendores, não existindo a figura do juiz, logo, o conflito se resolvia

através da imposição da vontade de uma das partes à outra269.

A formação histórica não é linear, desse modo, não é possível

estabelecer um momento cronologicamente preciso quando teria se

encerrado o predomínio da autodefesa e se constituído outras formas de

pacificação social. De fato, contemporaneamente, ainda subsistem casos

em que a autodefesa é admitida270. Este modelo é considerado imperfeito

porque a idéia de justiça está ligada a um tipo de solução imparcial, o

que faz pressupor uma solução extrapartes271.

269 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno, p. 278. No início, os primitivos romanos, como inúmeros outros povos, fazem justiça com as próprias mãos, defendendo o direito pela força. Dessa fase de vingança privada, que se dirige contra o autor do dano, passam os romanos por várias, até que, num alto estágio de progresso, o Estado toma a seu cargo a tarefa de resolver os litígios entre particulares. 270 BRASIL. Código Civil (2002). Artigo 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 1º. O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse. (grifo nosso) Lei no 7.783/1989. Dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. 271 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil, v. p. 373. A conclusão da investigação até agora levada a termo pode se resumir nesta fórmula: o processo se desenvolve para a composição justa do litígio. “Paz com justiça” poderia ser, dessa fórmula, o lema do Direito processual. Nem paz sem justiça, nem justiça sem paz. Nada de paz sem justiça porque o processo, como se viu, não tende a compor o litígio de qualquer modo, e sim segundo o Direito. Nada de justiça sem paz porque o Direito não se aplica ou não se realiza por quem está em conflito, e sim por quem está sob o conflito: supra partes, não inter partes a fim de compor um litígio e não de tutelar um interesse.

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224

A autocomposição se refere à situação em que os indivíduos

ou grupos de indivíduos interessados na celebração da paz ante um

conflito estabelecem condições em que a mesma se realiza sem o

emprego da força material. Essa situação pode decorrer de concessões

mútuas ou do reconhecimento de uma das partes quanto à inviabilidade

de sua pretensão em face da outra, seja pela ameaça da imposição da

força, ou pelo reconhecimento espontâneo do direito alheio. Dessa

forma, podem ser identificadas três formas de autocomposição, que são a

transação, a submissão ou a renúncia272.

Não há uma separação demarcada no tempo entre os períodos

em que era aplicada a autodefesa e a autocomposição, admite-se, no

entanto, que este modelo seja mais adequado à realização dos fins do

processo que aquele. Entre o “tudo” ou “nada” da autodefesa, a

autocomposição representa uma evolução considerável, pois as

expectativas se renovam e se refazem a cada momento diante dos fatos

da vida e, mais particularmente, no caso das relações entre os indivíduos.

A autodefesa pressupõe um quadro estático, enquanto a autocomposição

operacionaliza com a dinâmica da realidade.

Uma melhor assimilação, e conseqüente compreensão das

relações entre os indivíduos, levou a autocomposição e criou as

condições para a heterocomposição.

272 ALVIM. Op. cit., p.15.

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225

A constituição de um modelo em que as partes se subordinam

a uma decisão imparcial tomada por um terceiro alheio aos seus

interesses representa um importante marco no evolver histórico, o qual

se encontra ainda em fase de desenvolvimento273.

Sob a ótica da heterocomposição, o direito material

encontrava-se em um estágio de relativo desenvolvimento. É pertinente

mencionar que a arbitragem é um antecedente do modelo do processo

jurisdicional. Pode ser afirmado que a arbitragem privada converteu-se

na moderna mediação274. A arbitragem pública teria propiciado as

origens da arbitragem atual e do processo jurisdicional275.

Coube aos gregos estabelecer, primeiramente, a diferenciação

entre as leis material e processual.

Como já mencionado, Sólon estabeleceu leis com nítido

caráter instrumental276.

273 CARNELUTTI. Op. cit. p., , , 47. Se, na fase atual de evolução de nossos estudos, a teoria geral estivesse já solidariamente elaborada, e se com respeito a ela tivesse intervindo também o princípio da divisão do trabalho, que funciona de modo eficiente entre a ciência e a história, a introdução poder-se-ia limitar, em boa parte, em extrair conseqüências de premissas já estabelecidas e o professor de Direito processual, em lugar de fazer teoria geral, poderia apoiar-se nos resultados do trabalho alheio. Mas não é assim. Este trabalho da rota de nossa ciência encontra-se ainda em construção; nele trabalham pouco, e sem muita ordem, quase todos os cultores das ciências jurídicas específicas, que têm forças para elevar-se até sua altura. 274 WOLKMER. Op. cit. p., 78. 275 ALVIM. Op. cit., p. 17. De facultativa, a arbitragem, pelas vantagens que oferece, torna-se obrigatória, e, com o arbitramento obrigatório, surge o processo, como última etapa na evolução dos métodos compositivos do litígio. 276 WOLKMER. Op. cit. p., , 76-77.

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226

Considera-se que a lei das XII Tábuas foi elaborada por uma

comissão de magistrados277 278que para tanto estudaram as leis de Sólon.

Não é pacífica a doutrina quanto ao número de membros integrantes da

comissão.

A Tábua III expressamente se referia ao processo tratando da

execução em caso de confissão por dívida. Estabelecia a regra segundo a

qual, após a condenação, o devedor teria 30 dias para pagar, se não o

fizesse seria preso e levado à presença do magistrado, caso em que se

permanecesse inadimplente sofreria penalidades que iriam desde a prisão

a ferros de 15 libras aos pés até à escravização e a pena de morte279.

As primeiras manifestações no sentido de se obter a realização

da justiça se deram através de um regime privado, sendo que os

indivíduos deviam proceder de modo razoável segundo os costumes

estabelecidos entre os membros do grupo ao qual estavam integrados,

não se identificando, neste período, normas de conduta originadas de

uma organização central.

277 WOLKMER. Op. cit. p., 127. A Lei das XII Tábuas foi elaborada por uma comissão de três magistrados ...; 278 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias, p. 45. No período republicano redige-se a Lei das XII Tábuas, por volta de 450 a.C. Fruto das lutas políticas internas, resulta de uma conquista dos plebeus a lei pretende reduzir a escrito (lex, de lego, ler?) as disposições e mandamentos que antes eram guardados pelos patrícios e pontífices. ... Conta a tradição que no meio das lutas entre patrícios e plebeus foi escolhida uma comissão de dez homens (Decemviri) que foram a Atenas estudar a legislação de Sólon para aprender sua técnica. 279 WOLKMER. Op. cit. p., 128. Isto se explica porque nesse período a Realeza vivia situação precária, só depois o erário romano se enriqueceu com os saques (pilhagens de outros povos). Sérvio Túlio, sexto rei, institui a estatística: tudo era cadastrado e os censores vasculhavam cada canto do reino à procura de riqueza para pagar impostos e ampliar as receitas.

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227

Com o aumento dos contingentes populacionais, criação e

organização das cidades, estruturação de organismos centralizadores do

poder, as relações entre os indivíduos gradualmente tornaram-se

complexas e exigiram como condição para o desenvolvimento da

humanidade a constituição de regras/normas de caráter público, ou seja,

foram criadas leis que ordenavam as condutas dos grupos, as quais eram

emanadas da autoridade detentora do poder280.

Dessa forma, surgiu um regime de justiça pública em princípio

aplicada por chefes tribais e, posteriormente, por magistrados e juízes

vinculados às estruturas do poder281.

É importante destacar que não se passou do regime da justiça

privada para o regime da justiça pública. Houve um período em que estes

regimes existiam simultaneamente como foi o caso em Roma.

Embora o direito na Grécia e, sobretudo, em Atenas tenha se

desenvolvido a ponto de ser fonte inspiradora para o direito romano, os

historiadores do direito são unânimes em reconhecer que, em virtude da

280 WOLKMER. Op. cit. p., 73. À medida que as cidades aumentavam em tamanho e complexidade, reconheciam a necessidade de um conjunto oficial de leis escritas, publicamente divulgadas, para confirmar sua autoridade e impor a ordem na vida de seus cidadãos. 281 PRATA, Edson. História do Processo Civil e sua projeção no direito moderno, p. 60. Dois sistemas de direito processual vigoraram em Roma: a) – sistema da justiça privada (“ordo judiciarum privatorum”), que se inicia com a fundação da cidade, em 754, e vai até 342 d.C.. b) – sistema da justiça pública (“extraordinária cognitia” ou “cognitia extra ordinem”), que vigora entre 342 d. C. a 568 d. C. (morte de Justiniano).

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228

escassa documentação do direito grego282 e em contrapartida a existência

de boa documentação do direito romano, tornou-se freqüente reconhecer

uma maior importância a este em detrimento daquele.

No que se refere aos estudos de processo, o direito em Roma

inicia sua história com a acción real, e desenvolve modelos

procedimentais através da legis actiones, das per formulas e da cognitio

extraordinaria. Há uma seqüência cronológica entre cada um destes

sistemas procedimentais na mesma ordem em que são apresentados.

7.2 PROCESSO ROMANO

Os romanos se notabilizaram na estruturação de regras

procedimentais para assegurar a aplicação do direito, nesse sentido,

chegaram a delinear a autonomia do direito processual em relação ao

direito material, bem como a natureza jurídica publicística do processo.

O direito em Roma inicia seu processo de formação por volta

de 753 a.C., quando após os etruscos subjugarem os povos do antigo

Lácio com a derrota da Liga Setimonial e da Liga Albana, “fundaram”

282 WOLKMER. Op. cit. p., 75. Os gregos não elaboraram tratados sobre o direito, limitando-se apenas à tarefa de legislar (criação das leis) e administrar a justiça pela resolução de conflitos (direito processual). ... Com o direito grego aconteceu um processo diferente do tratamento dispensado à filosofia, literatura e história. Enquanto estes foram copiados, recopiados e constantemente citados, nada se fez com relação às leis gregas, não havendo compilações, cópias, comentários, mas pouquíssimas citações.

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229

ou “dominaram” a cidade de Roma283. Embora não haja consenso quanto

ao papel dos etruscos em relação à cidade de Roma, a história do

Império Romano se inicia sob a dominação daquele povo284.

São identificadas quatro fases históricas de organização

política do Império Romano que são o período da Realeza

(aproximadamente 753 a.C. até 510 a.C.), o período da República (510

a.C. até 27 a.C), o período do Principado (27 a.C. até 285 d. C.) e o

período do Baixo Império (285 até 585 d. C.). A divisão dessas fases ou

períodos está vinculada à forma de organização social, jurídica e política

de Roma285.

Durante o período da Realeza, as regras de processo estiveram

vinculadas à vontade do Rei286 que exercia seus poderes em nome dos

Deuses.

283 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano, v. 1. p. 7-8. Vários autores defendem a tese de que foram os etruscos que a fundaram. Os povos do antigo Lácio, para melhor resistir a seus inimigos, agrupavam-se em ligas, das quais a mais importante foi a Albana. Entre as demais, figurava a Setimonial, formada por sete núcleos de população instalados nos montes Palatino, Esquilino e Célio. No meado do século VIII a. C., a liga Setimonial foi derrotada pelos etruscos, que, posteriormente, fundaram a cidade de Roma, em duas etapas. ... A opinião dominante, porém, é a de que Roma não foi fundada pelos etruscos, mas, sim, pelas próprias populações do Lácio. Isso se procura demonstrar com o fato de que as mais antigas instituições romanas têm denominações de origem latina, como, por exemplo, rex, tribus, magister, cúria. Roma, portanto, já existia quando os etruscos a subjugaram. 284 ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit. p., 7. O certo, porém, é que os etruscos – nação altamente civilizada para a época – exerceram grande influência sobre os primitivos romanos. 285 LOPES. José Reinaldo de Lima. O Direito na história. p. 43. Em grandes linhas, Roma conheceu também três grandes “regimes constitucionais”, com longas e freqüentes crises. A realeza ou monarquia vai desde a fundação (753 a..C.) até a expulsão dos Tarquínios (509 A.C.), quando a sua autonomia com relação aos etruscos fica praticamente consolidada. ... A República vai de 509 a.C. até 27 a.C., início do Império, pelo principado de Augusto. O Império divide-se em duas grandes partes: o Principado, de Augusto (27 a.C.) até Diocleciano (284 d. C.) e o Dominato, de Diocleciano até o desaparecimento do império. 286 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno, p. 278. Segundo a tradição romana, a justiça civil nos primeiros tempos era distribuída pelos reis, que julgavam as divergências entre particulares, as lides (lites), o que teria ocorrido até mais ou menos a implantação da República.

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230

Nesse contexto, podem ser identificadas regras procedimentais

na acción real que foi denominada sacramentum, porque no período da

Realeza, o Estado romano era teocrático, de modo que o rei era um

magistrado único, vitalício e suas decisões tinham caráter sagrado e

decorriam de costumes locais287 adotados segundo a interpretação dos

pontífices.

A acción real consistia em uma ação através da qual era

reivindicado o direito sobre determinada coisa. Essa reclamação sobre a

posse de um determinado bem era realizado diante do sacerdote ou

pontífice que, nesse caso, assumia os papéis de autoridade religiosa e

“jurisdicional”. Não havia um conjunto organizado de regras

procedimentais de caráter público que orientassem o sacerdote na

aplicação da “justiça”. O procedimento se baseava na condução do réu

pelo próprio autor à presença do pontífice que ouvia o juramento e

determinava o depósito da coisa ou da aposta288 até que se decidisse

sobre o direito alegado. Caso não houve por parte do réu a prova da

287 WOLKMER. Op. cit. p., 124. 288 PRATA, Edson. História do processo civil e sua projeção no direito moderno, p. 63. Consiste numa aposta, “no simulacro de um combate, após o recitativo de palavras rigorosamente ritualísticas, que o magistrado interromperá para a tomada de um juramento, ou aposta, a qual se considerará perdida em favor do culto (“ad sacra publica”) primitivamente, depois do Tesouro público, pela parte que cair em perjúrio, tal como o aure o árbitro, na fase “aud judicem” (J.M. OTHON SIDOU, em “A vocação publiscística do Procedimento Romano”. Editora Câmbio, Recife, 1955, página 70); A aposta gira em torno das quantias entre 50 e 500 asses; As quantias apostadas eram entregues ao pontífice mais tarde, apenas se prometia pagar a aposta perante ao pretor (após a Lei das XII Tábuas). Alguns romanistas afirmam eu as partes simplesmente garantiam o pagamento da aposta, mediante caução ou apresentação de fiadores, chamados então “praedes sacramenti”.

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231

inexistência do direito do autor ou a restituição do bem ou de coisa

equivalente, aquele sofreria pessoalmente a execução.

Até 450 a.C., quando foi criada a Lei das XII Tábuas,

tornando-se possível o estudo do processo com base em dados concretos.

Há dificuldades na pesquisa a respeito dos detalhamentos sobre os

procedimentos que eram aplicados para a realização da justiça.

Na primeira fase da Realeza, o Rei era a suprema autoridade e

praticava o direito dos deuses de acordo com a interpretação dos

costumes segundo os Pontífices. A partir de 450 a. C., surgem regras

mais claras, iniciando-se o sistema da ordo judiciarum privatorum289,

durante o qual foram desenvolvidos dois modelos procedimentais

distintos, quais sejam, o da legis actiones290 e o per formulam291.

Entre 342 e 585 d.C., vigorou, em Roma, o sistema da justiça

pública através dos procedimentos da cognitio extraordinária.

As datas apresentadas têm um caráter aproximado e uma

finalidade didática a fim de se organizar cronologicamente os fatos no

contexto histórico.

Ressalta-se o fato de que houve um entrelaçamento entre os

períodos que foram se sucedendo, de modo que os diferentes sistemas

289 Sistema da justiça privada. 290 Período das ações da lei. Aproximadamente 450 a.C. até 149 a.C. Fase da República. 291 Período formulário ou das Fórmulas da Lei. 123 ou 149 a.C até 342 d. C. Somente se tornou obrigatório a partir de 17 a.C. Fases da República, do Principado e na primeira fase do Baixo Império.

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232

coexistiam, havendo, contudo, o predomínio de um modelo sobre os

demais, o que imprimiu as características de cada procedimento do

processo romano.

7.2.1 Sistema da justiça privada ou da ordo judiciarum privatorum

De acordo com o modelo da justiça privada, o Estado não tinha

a obrigação de realizar a “justiça”, cabendo aos particulares interessados

em resolver suas divergências e providenciar os meios a fim de assegurar

o resultado pretendido. Nessa situação, havia apenas a idéia da

manifestação do direito por parte do magistrado, sendo que a produção

dos efeitos práticos decorrentes de sua decisão ficava a cargo do autor.

No sistema da justiça privada o procedimento se divide em

duas fases, que são, in iure e in iudicio. A fase in iure se desenvolve

diante de um magistrado que representa o Estado romano e ao qual

competia receber a ação, a qual sendo aceita levava à segunda fase; ius,

nesse caso significa tribunal. A fase in iudicio ou apud iudicem se

processa diante de um iudex que é o juiz ou árbitro o qual não mantinha

vínculos com o Estado, ou seja, tratava-se de um particular que recebia

as provas e proferia a decisão.

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233

Foram constituídos dois sistemas jurídicos distintos, mas que

se processavam de acordo com o modelo privado, assim houve o período

das legis actiones (ações da lei) e o período das per formulas

(formulário).

Durante o sistema privado do direito romano o direito não tem

uma função social, sendo eminentemente individualista e a concepção a

respeito da “justiça” está associada à satisfação do sentimento de

vingança.

7.2.1.1 Ações da Lei ou Legis actiones

Como mencionado anteriormente não é possível estabelecer

com precisão o momento do surgimento do processo das ações da lei,

contudo, após a Lei das XII Tábuas pode ser identificado um conjunto de

procedimentos que modelam o primeiro sistema de processo em Roma.

Com exceção da actio per pignoris capionem292, as ações da

lei eram processadas em duas fases, como ocorria no sistema privado.

Todo o procedimento era oral e extremamente rígido, sendo obrigatória a

292 ALVES, Moreira José Carlos. Op. cit. p., 204. A pignoris capio se distingue das demais legis actiones, porque ela não se desenrola diante do magistrado (in iure). Por isso, e ainda porque não era necessária a presença do adversário, e poderia a pignoris capio realizar-se em dias nefastos, alguns jurisconsultos romanos não viam nela uma legis actio, com o que, porém, outra corrente – seguida por Gaio – não concorda, porquanto, e isso bastava para caracterizar a pignoris capio como a ação da lei, eram pronunciadas palavras solenes.

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234

observância das palavras e dos gestos solenemente previstos para cada

tipo de ação.

O processo se iniciava com a condução do réu à presença do

magistrado pelo próprio autor que, para tanto, ao lhe encontrar, proferia

os termos solenes de chamamento do réu a juízo293. Havendo a recusa do

réu em acompanhar o autor poderia ser usada a força desde que uma

testemunha acompanhasse a tudo. O réu tinha a faculdade de não

comparecer à presença do magistrado se encontrasse um vindex294.

Diante do magistrado, iniciava-se a fase in iure, onde eram

recitadas as fórmulas solenes e os gestos ritualísticos específicos para

cada ação. Admitida a ação, e confessado pelo réu o direito do autor, ou

não havendo uma defesa adequada, o que deveria obedecer ao mesmo

sistema formal, concretizava-se o direito com a entrega da coisa ao autor,

ou caso se tratasse de direito pessoal ficava resguardado o direito à

proposição da ação de executória295.

Não havendo a confissão do réu, e sendo sua defesa

conveniente, as partes solicitavam ao magistrado que nomeasse um juiz

popular (iudex), que era uma pessoa do povo não representando o

293 ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 194. uerba certa. 294 ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 94. uindex, ..., alguém que o substituísse, ligando em seu lugar. 295 ALVES. Moreira José Carlos. Op. cit. p., 195. actio per manus iniectionem.

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governo ou o Estado ao praticar a jurisdição296,. sendo, contudo, eleito

pelo senado297.

Diante do iudex, desenvolvia-se a fase apud iudicem, que era

iniciada alguns dias após a nomeação pelo magistrado do juiz popular.

Nesta fase, o procedimento é informal e a presença das partes,

fundamental, sendo que se o réu não comparecesse, seria condenado.

Uma vez presentes as partes, era apresentada a ação (causae coniectio) e,

posteriormente, as razões do pedido e da defesa (causae peroratio). O

procedimento seguia com a apresentação das provas, que não sofriam

restrições uma vez que o juiz não necessitaria de apresentar uma

fundamentação para justificar o seu convencimento.

Superadas essas etapas do procedimento que deveriam se

desenvolver sem solução de continuidade, o juiz proferia uma decisão

que tinha um conteúdo condenatório, determinando o pagamento de uma

quantia ou a restituição de uma coisa ou a realização de uma obrigação

de fazer. Poderia ocorrer o indeferimento da ação quando o réu era

absolvido.

296 ALVES, Moreira José Carlos. Op. cit. p., 186. No direito romano, o conceito de iurisdictio é muito controvertido, e constitui um problema até hoje não resolvido satisfatoriamente. ... A palavra iurisdictio deriva de ius dicere, que significa dizer o direito, isto é, declarar, com relação a um caso concreto e com efeito vinculante para as partes, a vontade da norma jurídica. Ocorre, no entanto, que esse significado somente se ajusta ao processo extraordinário (cognitio extraordinária), em que o magistrado – como ocorre atualmente – não apenas conhece do litígio, como também o decide na sentença, onde declara a vontade da lei. ... 297 PRATA. Edson. Op. cit. p., 61. ... o juiz (“iudex”) ou árbitro (“arbiter”), eleito entre os senadores, mas pessoa do povo, que não dependia do governo e não o representava quando praticava a jurisdição. Esses juízes poderiam ser singulares ou coletivos, sendo os mais importantes, dentre estes últimos os “tres arbitri”, os recuperadores, os decênviros, os centúviros, os “tresviri Capitales”.

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236

Após a sentença, terminava a função do juiz, pois este, como

particular escolhido pelas partes, não dispunha de poderes para obrigar

ao cumprimento de sua decisão. Não havendo concordância quanto à

realização da obrigação estabelecida na sentença, caberia ao credor

propor uma nova ação com a finalidade de obter a concretização da

sentença, a qual era irrecorrível.

As ações da lei poderiam ter funções cognitivas, objetivando

uma declaração ou funções executivas. As primeiras eram a Legis actio

per sacramentum, a Judicis postulatio e a Condictio.

As ações executivas eram a Manus injectio e a Pignoris capio.

As ações de execução visavam a assegurar a concretização da situação

jurídica já reconhecida pela lei, pelo costume ou por um juramento,

sendo dirigida contra a pessoa do obrigado, ou seja, a execução era

pessoal e não patrimonial.

Tem sido considerada a mais antiga das ações romanas, a

Legis actio per sacramentum298 que, no início, era a única forma de pedir

perante o magistrado, e que, após a Lei das XII Tábuas, já no sistema

identificado como das Legis actiones, tornou-se uma espécie de ação

comum, no sentido de que poderia ser empregada em qualquer caso que

298 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 283. As formalidades que cercam a actio per sacramentum são o símbolo da intervenção da autoridade religiosa e dos magistrados da cidade nas controvérsias entre particulares.

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237

não houvesse uma ação específica. As Legis actio per sacramentum

poderiam ter caráter pessoal (sacramentum in personam) ou real

(sacramentum in rem). O perdedor pagava uma multa ao Estado.

Através da iudicis postulatio, era promovida a divisão da

herança e a cobrança de créditos decorrentes da sponsio. Foi considerada

uma ação especial porque sua finalidade era bastante restrita. Há

divergências quanto ao dever do perdedor de pagar uma pena/multa, pois

autores como José Carlos Moreira Alves299 afirmam que esta não era

devida; enquanto José Cretella Júnior300 menciona o contrário, ou seja,

haveria para o litigante perdedor o dever de indenizar à parte vencedora,

o que seria proporcional ao valor atribuído à ação.

A condictio301 ou per conditionem era mais simplificada e

tinha por finalidade a cobrança de dívidas em dinheiro ou de prestações

de coisa certa. Foi considerada uma ação abstrata, porque o autor não

precisaria fundamentar a origem da obrigação exigida. Pode ser

entendida como uma derivação da Legis actio per sacramentum visando

a fins específicos.

A manus injectio era uma ação de caráter executivo, aplicada

inicialmente para dar efetividade às sentenças proferidas na actio

299 MOREIRA ALVES. Op. cit. p., 200. 300 Ibidem, p. 285. 301 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 285. Define-se a condictio como uma intimação em termos solenes que o demandante dirige ao demandado para que este compareça diante do magistrado, dentro de 30 dias, para tomar conhecimento da demanda.

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sacramenti, na iudicis postulatio ou na condictio, quando se tratasse de

condenação a pagamento de quantia certa302. Era igualmente cabível

contra aquele que, na fase in iure, confessasse o direito do autor. Esta

ação sofreu consideráveis modificações ao longo da história do processo

romano, passando de uma fase rudimentar por ocasião da Lei das XII

Tábuas a um bom nível de elaboração posteriormente.

No sistema primitivo da manus injectio, o devedor deveria

pagar ou apresentar um uindex303 que se obrigaria “conjuntamente” com

aquele, e ainda, seria obrigado ao pagamento em dobro da dívida

primitiva caso fossem alegados fatos inverídicos quanto à sua obrigação.

Se nenhuma dessas situações ocorresse, o devedor responderia

corporalmente pela obrigação, quando seria aprisionado pelo credor, que

após conduzi-lo por três feiras sucessivas perante o magistrado, no

comitium, e não havendo acordo ou o pagamento, aquele seria morto ou

vendido como escravo no estrangeiro304.

302 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 202. A manus iniectio somente podia ser utilizada para a execução de quantia certa. Portanto, quando alguém condenado a restituir alguma coisa, ou a fazer algo, ou a pagar importância incerta, era preciso que se reduzisse a condenação a quantia certa para que fosse possível a execução pela manus iniectio. Para isso, parece, utilizava-se de um processo sobre o qual, em verdade, quase nada sabemos o arbitruim liti aestimandae. 303 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 202. Para livrar-se da execução, ou o devedor pagava a dívida, ou apresentava um uindex, isto é, um parente ou um amigo que, em seu lugar, contestasse a legitimidade do pedido do autor, salientando, por exemplo, eu a sentença condenatória era nula, ou, então, que a dívida já fora paga. 304 PRATA. Op. cit. p., 64. Não conseguindo fiador, o pretor entregava o devedor ao credor e este o prendia em casa, até por sessenta (60) dias neste período, o credor levava o devedor ao mercado por três vezes se não achasse quem lhe pagasse a dívida (amigo ou parente do devedor), podia vendê-lo como escravo fora de Roma (“Trans Tiberim”), ou matá-lo neste caso, sendo vários os credores, distribuía-se o corpo do devedor entre os credores.

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239

Em uma fase transitória entre o período das Legis actiones e o

período das per formulas praticamente na era clássica do direito romano,

a manus injectio ampliou suas hipóteses de admissibilidade para casos

em que se pretendia a cobrança de crédito a que se referiam

determinadas leis, como a Lei Publilia305 e a Lei Fúria de sponsu306. A

Lei Márcia permitia o emprego da manus iniectio pelo devedor para a

cobrança de juros usuários, sendo interessante mencionar que esta lei em

alguns casos exigia que o devedor declarasse o fundamento do direito

pleiteado307.

Também nessa fase foram se tornando mais brandos os efeitos

corporais da execução, sendo que após a Lei Poetelia Papira de nexix,

datada de aproximadamente 326 a.C., ficou proibida a venda como

escravo e a morte do devedor, porém, poderia o credor conduzi-lo até

sua casa para que pagasse o débito através de seu trabalho.

A Pignoris capio é uma ação de natureza executiva que

apresenta algumas particularidades que a diferenciam das demais Legis

acciones, entre aquelas pode ser mencionado o fato de que seu

procedimento se desenvolve em uma única fase, exclusivamente in

305 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 203. ... a Lei Publilia concedia ao sponsor (fiador) que tivesse pago a dívida, manus iniectio contra o devedor principal que não o reembolsasse dentro de seis meses. 306 Ibidem. p. 203. ... a lei Furia de sponsu – na hipótese de haver vários fiadores garantindo o pagamento de uma dívida, e de o credor cobrar de um deles mais do que a parte a que estava obrigado – dava ao fiador manus iniectio contra o credor. 307 Dizia-se manus iniectio pura quando o devedor não precisasse fundamentar a origem da obrigação. Na manus iniectio pro iudicato não havia a necessidade de fundamentação da dívida.

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240

iudicio, diante do juiz, a não-obrigatoriedade da presença do executado

durante o processo e sua tramitação em dias nefastos.

Essa ação308 era cabível relativamente aos débitos decorrentes

do soldo, pelo soldado contra o tribunus aierarii; pelo soldado de

cavalaria contra as partes que estavam obrigadas a contribuir para a

compra e a manutenção do cavalo; pelo vendedor de animal destinado a

sacrifício religioso contra o comprador, com relação ao preço; pelo

locador de um animal de carga contra o locatário, desde que este se

destinasse a ser aplicado em sacrifício religioso; e, pelo publicano contra

o contribuinte, com relação ao imposto (uectigal) devido.

Consistia a picnoris capio, basicamente na apreensão de uma

coisa móvel do devedor pelo credor, o qual a mantinha em sua posse, até

o término da ação, com o pagamento do débito ou com o reconhecimento

da inexistência do crédito pelo juiz através de uma sentença.

7.2.1.2 Processo formular ou per formulam

Como mencionado, não houve uma ruptura abrupta entre as

fases de desenvolvimento do processo romano, sendo que o período em

308 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 286. Pignoris capio (“opero-me do penhor”) é a ação da lei pela qual o credor, empregando formas especiais (certis verbis), mas sem autorização preliminar do magistrado, faz a apreensão de objeto pertencente ao devedor e o conserva, como garantia, até que a dívida seja paga.

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241

que vigorou o processo formular se constitui como uma seqüência em

relação ao período das Legis acciones, sendo alterados alguns aspectos

do procedimento a partir da Lex Aebutia que data de aproximadamente

149-126 a.C., a qual foi modificada pela Lex Iulia, em 17 a.C, durante o

principado de Augusto, que tornou o processo formular obrigatório.

Durante o período compreendido entre a promulgação da Lex Aebutia e a

Lex Iulia o processo formular era facultativo, coexistindo

simultaneamente com as ações da lei.

A predominância do processo formular vai até aproximadamente 342

d.C..

O procedimento das ações ocorria em duas fases, tal como se

verificava no período anterior, logo, a instrução e a sentença

permaneceram como ato de um juiz privado309.

A citação do réu é uma obrigação do autor, que, no entanto,

não mais poderia praticar arbitrariamente atos de violência na condução

do réu. Caso este se recusasse, o autor pedia ao magistrado uma actio in

factum que culminava ao réu uma multa caso não atendesse à citação. Se

ainda assim o réu permanecesse relutante em comparecer à presença do

magistrado, sua recusa seria considerada um delito e punida como tal.

309 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 207. ... o processo formulário se distingue nitidamente do sistema das ações da lei pelas seguintes características principais: a) é menos formalista e mais rápido; b) a fórmula – documento escrito – tira-lhe o caráter estritamente oral de que se revestiam as ações da lei; c) maior atuação do magistrado no processo; e d) a condenação se torna exclusivamente pecuniária.

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242

Fundamentalmente, o que se modifica é o fato de que o

magistrado não mais se limitava a aceitar ou não a ação da lei

proclamada pelo autor310. No processo formular, o autor expunha suas

pretensões de forma simples, dispensando-se as palavras solenes e os

gestos simbólicos, o magistrado poderia criar a ação, ou melhor, a

fórmula311 para entregá-la às partes. Esta criação das fórmulas ocorria

através dos editos dos pretores. Na fase in iure, o magistrado, ao receber

o pedido do autor, verificava se aquele caso poderia ser convertido em

um conflito susceptível de ser julgado pelo juiz312 na fase in iudicio.

Definida a fórmula, as partes firmavam um compromisso

diante de testemunhas: estava caracterizada a lide, portanto, a litis cum

testatio313. A aceitação da fórmula pelos litigantes tinha a natureza de um

contrato judiciário, o qual estabelecia um vínculo entre as partes no

momento em que o autor, diante de testemunhas, lia a fórmula em voz

alta para o réu que concordava e recebia uma cópia.

310 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 288. O processo formular assinala um momento culminante na história da vida judiciária romana, porque só agora a figura do pretor se impõe, para resolver com auxílio da eqüidade os casos concretos, antes submetidos ao frio e desumano rigorismo da formalidades. 311 LOPES. Op. cit. p., 48-49. A fórmula consistia na designação do juiz (iudex) e no “quesito”. Ela era, porém, negociada pelas partes perante o pretor: ou seja, as partes discutiam até que se esclarecesse qual era efetivamente o ponto a ser decidido (uma questão à qual o árbitro/juiz pudesse responder sim ou não) e o pretor se convencesse de que o ponto era compatível com a proteção anunciada no edito. 312 LOPES. Op. cit. p., 49. O serviço de juiz ou árbitro (iudex) era um encargo próprio dos cidadãos, ao qual muitos procuravam escapar, mas que se considerava em geral um ônus compatível com a honra e o respeito devidos aos cidadãos superiores. 313 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 290. Litis contestatio define-se, por tanto, como o ato mediante o qual as partes concordam em submeter a controvérsia, nos termos da fórmula, ao julgamento de um terceiro.

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243

No momento em que se formava a litis contestatio, extinguia-

se o direito do autor que havia determinado o processo, surgindo um

novo direito que era o de receber em dinheiro, através de uma espécie de

indenização, a reparação pelos danos causados pelo réu, caso este fosse

condenado. Dessa forma, pode afirmar-se que com a litis contestatio

ocorria simultaneamente a extinção e a novação de direitos.

Ao que tudo indica, as fórmulas eram compostas por duas

partes; uma que seria considerada principal ou essencial, sendo idêntica

para todos os casos, por isso considerada rígida, era o caso da institutio

judicis, da intentio314, da demonstratio, da condenatio e da adjudicatio,

em algumas ações315. A parte acessória ou acidental é variável e redigida

de acordo com cada caso, é integrada pela exceptio, praescriptio,

replicatio, duplicatio e da triplicatio. É correto afirmar que a fórmula

equivalia à petição inicial na sistemática de processo atual.

Retomando a questão do edito através do qual se originavam

as fórmulas, é interessante mencionar que os magistrados ou pretores,

utilizando-se de seus poderes de imperium e da honra que lhes era

conferida, promulgavam anualmente normas relativas ao exercício do

seu cargo, estas eram denominadas editos e faziam parte do direito

314 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 293. A intentio poderia ser in jus e in factum; in rem e in personam; certa e incerta. 315 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 212. A adjudictio é a parte da fórmula na qual se permite ao juiz adjudicar a coisa a algum dos litigantes. Ela somente se encontra nas fórmulas das ações divisórias, que eram três: a actio familiae erciscundae, a actio communi diuidundo e a actio finium regundorum.

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pretoriano. Tratava-se o edito de uma proclamação verbal da tribuna, a

qual era escrita através de memoriais. Nos primeiros tempos, o

magistrado não era obrigado a atender o edito, sendo que, após a Lex

Cornelia que data de 67 a.C., as partes passaram a ter poderes para

invocar a subordinação do magistrado ao edito como se este fosse

verdadeiramente uma lei. Se o magistrado ou pretor entendesse que fosse

necessário, poderia proclamar o edito repentino, que visava a alteração

do edito ao longo do ano de sua vigência.

Durante o principado de Adriano, no período compreendido

aproximadamente entre 125-138 d. C., este determinou a Sálvio Juliano

que criasse um regulamento para todos os editos, que é reconhecido

como o edito perpétuo.

Interessante é observar que os efeitos da coisa julgada existiam

nesta fase de desenvolvimento do processo romano, contudo, esta não

decorria da sentença, mas da litis contestatio. Isto se explica porque a

autoridade estatal era do magistrado, portanto, quando este redigia a

fórmula e as partes a aceitavam, tornava-se imutável a ação, ou seja, não

mais seria possível pedir uma nova fórmula para o mesmo caso,

independentemente do resultado do julgamento proferido pelo juiz.

Na fase in iudicem, o juiz era subordinado aos termos da

fórmula, logo, sua função se restringia a propor um acordo entre as

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partes, averiguar as provas sobre as alegações e responder aos

questionamentos ali contidos. O julgamento consistia em uma decisão do

juiz sobre a existência ou não do direito do autor sempre de acordo com

a fórmula. Sendo condenado o réu, seguia-se o cálculo de um

determinado valor em dinheiro para o pagamento do autor. Desse modo,

a sentença substituía a pretensão originária da ação. Em caso de acordo,

imediatamente se realizava o cálculo, sem a prolação da sentença. Não

havia critérios objetivos para a realização do cálculo, que, portanto,

ficava a cargo do juiz estabelecer.

O sistema probatório foi estruturado paulatinamente, tendo

sido admitidas as provas por testemunhas, confissão, juramento,

documentos, perícias e inspeções oculares. A produção das provas cabia

àquele que alegava o fato a ser provado.

Em princípio, não eram admitidos recursos, contudo, ao longo

do desenvolvimento e estruturação do processo romano, surgiram meios

de discussão da sentença, podendo ser mencionados a intercessio, a

revocatio in duplum e a restitutio in integrum. No período imperial, foi

criado o recurso de apelação da decisão do juiz ao magistrado que

redigia a fórmula. Dessa forma, organizou-se um sistema recursal em

que, posteriormente, recorria-se da decisão do magistrado inferior ao

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magistrado superior e, assim sucessivamente, até o recurso ao

Imperador. Ressalta-se que a apelação tinha efeito suspensivo.

Após a conclusão do processo, e não sendo cumprida a

sentença pelo réu no prazo de 30 dias, o autor, diretamente, deveria

praticar os atos executivos316 os quais seriam dirigidos contra a pessoa

do devedor317. No processo formular, os atos de execução são

controlados pelo Estado através do magistrado, permanecendo, contudo,

o direito de escravização do devedor para que pagasse com seu trabalho

o débito. O direito de execução da dívida, através da morte do devedor,

tornou-se proibido. Posteriormente, a execução é promovida contra o

patrimônio do devedor318 através da venditio bonorum319. Em uma fase

evoluída e humanizada do processo em Roma, foi criada a Missio in

possessionem, que se tratava de uma ordem dada pelo magistrado/pretor

ao interessado para que tomasse posse de bens do réu ou devedor,

dependendo do caso, a fim de assegurar o cumprimento da sentença.

316 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 226. Se não a cumprisse, o autor intentava contra ele a actio iudicati, que, no processo formulário, substituiu a manus iniectio das ações da lei. 317 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 224. Proferida a sentença, produzida ela os seguintes efeitos: a) se fosse condenatória, daria ao autor o direito de exigir do réu o pagamento do valor da condenação, direito esse que era protegido pela actio iudicati (pela qual, como veremos adiante, o autor procederia à execução da sentença quando o réu não a cumprisse espontaneamente); ... 318 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 227. Demais, por uma lei Júlia, da época do Imperador Augusto, permitiu-se que o réu se subtraísse à execução sobre sua pessoa, desde que fizesse a cessio bonorum, isto é, cedesse todos os seus bens ao autor. 319 ALVES MOREIRA. Op. cit. p., 227. Quanto à execução sobre os bens do réu (uenditio bonorum), seu processamento é mais complexo. Segundo tudo indica, a uenditio bonorum foi criada pelo pretor Públio Rutílio Rufo, em 118 a.C., a princípio apenas contra o iudicatus (réu condenado, que não cumpre a sentença); mais tarde, foi estendida ao confessus in iure (o que confessava, in iure – diante do magistrado -, dívida certa em dinheiro, e que, por isso, se equiparava ao iudicatus) e ao indefensus (o que não se defendia convenientemente).

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247

No final do período formulário, havia hipóteses em que o

magistrado poderia diretamente julgar a causa, surgindo, assim, a

decisão extra ordinem320.

Acredita-se que durante o período formulário já seria possível

nortear o fortalecimento da figura do magistrado em relação ao juiz, pois

este exercia um papel restrito, uma vez que a fórmula delimitava as

questões relativas ao processo. A sentença seria objeto de recurso ao

magistrado em casos excepcionais, e havia hipóteses em que os

magistrados poderiam sentenciar.

Aproximadamente em 342 d.C., passou a ser adotado em

Roma como sistema geral o processo público extraordinário, revestido

de particularidades que permitem afirmar a existência de uma terceira

fase do processo em Roma.

7.2.2 Sistema da justiça pública ou da extraodinaria cognitio

Em relação ao processo extra ordinem, é válida a observação

320 ALVES MOREIRA. Op.cit. p. 241. O processo extraordinário surgiu, em Roma, para dirimir questões de natureza administrativa ou policial. Não se tratando de matéria sujeita à jurisdição cível, os magistrados, para solucionar esses conflitos, não se atinham às regras do ordo iudiciorum priuatorum, e, assim, mandavam citar, para comparecer à sua presença, a pessoa contra a qual alguém se queixara; a ausência do querelado não os impedia de conhecer do litígio e de decidi-lo; não se fazia mister a elaboração de fórmulas nem a nomeação de iudex privado, pois todo o processo se desenrolava diante dos magistrados, que afinal, decidiam a lide – enfim, os magistrados poderiam empregar todos os meios, inclusive de coerção, para prontamente dirimir questões de ordem administrativa ou policial.

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segundo a qual não houve uma substituição brusca de uma forma

procedimental por outra. Assim, em relação aos processos que

envolvessem matérias de natureza administrativa ou penal, era adotado

um sistema pelo qual o Imperador conhecia e julgava a ação, portanto,

paralelamente à legis acciones e às fórmulas, vigorava um modelo

procedimental diferenciado, considerado extraordinário, tendo em vista

as causas que envolvessem a jurisdição de natureza pública. 321

A partir do século I d. C., no período do principado, o processo

da cognicio extraordinária começou a ser adotado em hipóteses

especiais relativas a causas de natureza civil ou privada. Estas situações

eram restritas a direitos subjetivos criados pelas constituições imperiais,

constituindo o ius extraordinarium, como era o caso do fideicomisso e as

obrigações alimentares322.

Durante o período de assimilação até a generalização do

processo da cognitio extraordinária, houve uma gradual aplicação desse

sistema nas províncias, para somente mais tarde se tornar obrigatório e

geral em Roma.

Não parece adequado estabelecer uma data precisa a partir da

qual o processo da cognicio extraordinária tenha prevalecido nas causas

321 WOLKMER. Op. cit. p., 403. Quando Justiniano mandou compilar o trabalho dos juristas do período clássico, o processo e o rito que se refletiram na sua compilação eram típicos da cognitio extra ordinem. Nesse sentido, o processo romano que sobreviveu até Justiniano muito pouco teve a ver com o processo formular, origem da literatura jurídica clássica. 322 ALVES Moreira. Op. cit. p., 243.

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cíveis, contudo, a doutrina tem admitido que a partir do governo de

Diocleciano323 a justiça tenha se tornado pública em Roma, no entanto,

coexistindo com o processo formulário. No ano de 342 d. C., uma

Constituição teria extinto o processo formulário, ocorrendo a

generalização do sistema da justiça pública com a estatização ou

publicização do processo324. É interessante observar que esta

característica do processo prevalece ainda no início do século XXI.

Podem ser identificadas características comuns entre o

processo da cognitio extraordinária e o modelo procedimental praticado

atualmente, como se verifica relativamente ao cabimento dos recursos e

ao emprego da força pública na execução das sentenças.

Em Roma, o problema da celeridade no andamento dos

processos era objeto de preocupações, sendo esta uma das causas

determinantes da adoção do procedimento da cognitio extraordinária,

pois o processo se desenvolvia em uma única fase diante do magistrado,

o que assegurava maior rapidez no julgamento da ação com a prolatação

da sentença.

A conseqüentemente mais importante da generalização da

cognitio extraordinária foi que o processo tornou-se público, assim

323 NOVA enciclopédia Barsa, v. 5. p. 181. Caio Aurélio Valério Diocleciano nasceu perto de Salona na costa da Dalmácia, por volta do ano 245. ... foi reconhecido pelo Senado em 285 d. C., após o assassínio do irmão de Numeriano, o co-imperador Carino. 324 LOPES. Op. cit. p., 53. Como sempre na história de Roma, a mudança justifica-se pela restauração da república, mas de fato é substancialmente algo novo.

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como o exercício da função do magistrado325 passa a ter idêntica

característica; deixaram de ser redigidas as fórmulas; generalizaram-se

as hipóteses dos recursos, estabelecendo-se graus hierárquicos entre os

funcionários públicos que exerciam a magistratura; os processos

passaram a ser julgados de acordo com o direito objetivo; as partes

passaram a pagar custas processuais; passaram a prevaler os atos

praticados por escrito. Segundo o professor Arruda Alvim, nesta fase o

processo começa a ser entendido como um meio para a “realização do

direito material (res in judicium deducta)”326.

Tendo em vista a existência de aspectos comuns entre a

cognitio extraordinária e o processo atual é interessante observar que a

citação do réu ocorria através da intervenção do magistrado. Houve

várias formas de citação, dependendo cada uma da presença ou da

ausência do réu na localidade onde tramitava o processo, ou mesmo se

estivesse em local indeterminado. A citação poderia ocorrer por

intermédio de um funcionário do Estado ou do próprio autor, que, neste

caso, disporia de autorização expressa neste sentido.

Aproximadamente no século V estava consolidado o sistema

segundo o qual o procedimento tinha início a partir do libellus

325 CRETELLA JÚNIOR. Op. cit. p., 297. Os magistrados são os juízes superiores, os ordinários e os pedâneos. 326 ARRUDA ALVIM. Manual de Direito Processual Civil., v. 1, parte geral, p. 44.

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conuentionis (petição de citação) e prosseguia com a manifestação do

réu no libellus contraditionis.

O autor redigia pessoalmente através de um funcionário do

Estado ou do tabularius o requerimento dirigido ao magistrado que,

reconhecendo a existência da tutela legal ao pedido, e após a prestação

da caução, determinava que fosse expedida a citação por libellus

conuentionis. A citação ocorria através de um funcionário público

denominado exsecutor, o qual entregava ao réu o libellus conuentionis e

recebia as sportulae, que eram custas proporcionais ao valor da causa. O

réu, a partir do recebimento do libellus conuentionis ou conveintionis,

tinha 10 (dez) dias para apresentar garantias de que compareceria em

juízo (cautio iudicio sisti) bem como negar por escrito e de forma

sumária as alegações do autor. Este documento era denominado libellus

contradictionis e seria enviado para o conhecimento direto do autor. As

partes durante o direito justinianeu tinham 20 (vinte) dias para

comparecerem diante do juiz.

A figura do procurador representante das partes em juízo surge

nesta fase do processo romano, contudo, a idéia da representação ainda

não era reconhecida como atualmente, pois a sentença era proferida em

relação à parte que comparecia em juízo.

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252

Um outro aspecto inovador se refere a que o processo poderia

tramitar sem a presença de uma das partes diante do juiz. Esta situação

caracterizava a contumácia que, em relação ao réu, poderia ocorrer

quando não fosse localizado para a citação ou quando, embora citado,

deixasse de comparecer em juízo em qualquer momento do processo.

Poderia ocorrer a contumácia do autor quando este, após

iniciado o processo com a citação do réu, deixasse de comparecer em

juízo para dar prosseguimento ao processo apresentando a litis

contestatio; neste caso, o réu poderia pedir ao juiz que, decorridos 10

(dez) dias sem o comparecimento do autor, aquele fosse absolvido da

instância e o autor condenado a realizar o pagamento de uma multa ao

réu igual ao dobro das custas que este tivesse pagado. Após a superação

da fase inicial, se o autor abandonasse o processo por dois anos e meio, e

após ter sido intimado por 3 editos, não comparecendo, a causa seria

julgada, podendo o réu ser absolvido ou condenado, entretanto, o autor

seria nesta situação sempre condenado a pagar as custas processuais,

como penalidade pela contumácia.

A contumácia era a exceção, pois, normalmente, as partes

compareciam à presença do juízo no dia designado, o que poderiam fazer

pessoalmente ou através de um procurador. Não era exigida a caução nas

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ações reais, quando as partes compareciam pessoalmente, das pessoas

ilustres e daqueles que não possuíssem bens.

Havia a obrigação das partes e de seus procuradores, quando

estes fossem constituídos, da prestação do iusiurandum calumniae, que

consistia no juramento de calúnia, ou seja, as partes perante às escrituras

juravam que estavam em juízo por acreditar na defesa do direito

requerido e não por chicana. O contraditório era valorizado, sendo que

em audiência as partes debatiam oralmente suas alegações, sendo que a

complexidade da causa determinava a forma e o número de vezes em

que isso ocorria. Era admitida a reconvenção. Era estabelecido um prazo

para o julgamento da ação, sendo que a partir da litis contestatio, o

magistrado tinha 3 (três) anos para proferir a sentença.

As provas escritas tinham prevalência sobre as demais327.

Prevalecia a regra segundo a qual o ônus da prova incumbe a quem

alega. Em ordem de prevalência às provas, era atribuído o seguinte valor:

documentos públicos redigidos por funcionários no exercício de suas

funções; instrumenta publica ou instrumenta publice confecta,

documento redigido em praça pública por notários ou pelos tabelliones,

327 ALVES Moreira. Op. cit. p., 249. Exposta a questão ao juiz, fazia-se mister que cada um dos litigantes procurasse demonstrar a veracidade dos fatos que alegara. Daí, a fase probatória, onde as partes produziam suas provas. Na extraordinária cognitio, ..., não gozava o juiz de ampla liberdade para a avaliação das provas, pois, os imperadores, em constituições imperiais, estabeleceram algumas regras em virtude das quais não só certas provas deveriam ser consideradas superiores a outras, como também a algumas não poderia dar o juiz qualquer valor.

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que não eram funcionários do Estado, mas gozavam de fé pública;

instrumentos privados, cujo valor dependia de terem sido redigidos

perante testemunhas e assinados pelas partes e por estas. A prova

testemunhal não desconstituía a prova documental, ressalvada a hipótese

da invalidação através da perícia do documento escrito. Nos casos em

que fossem ouvidas testemunhas, estas deveriam prestar o juramento de

dizer a verdade. Admitia-se ainda a prova pericial328, o juramento329, a

confissão330, o interrogatório em juízo e a presunção331, que poderia ser

praesumptio hominis (extraída pelo juiz dos elementos da demanda) ou

praesumptio iuris (estabelecida pela lei, podendo ser iuris tantum –

admite prova em contrário, ou, iuris et de iure – é absoluta.

É interessante observar que a publicidade dos atos processuais

é limitada, pois, enquanto nos períodos anteriores os atos procedimentais

ocorriam em grandes espaços abertos, nesta fase, surgem os recintos e

ambientes restritos onde são realizadas as audiências.

Excepcionalmente, quando a causa demandasse grande

328 Ibidem, p. 250. ... os peritos valem-se de processos ainda hoje utilizados, como a comparatio litterarum (comparação de letras) e a manus collatio (cotejo entre o documento impugnado e outro escrito pelo punho de quem deveria ter sido o autor do primeiro); ... havia as comadres, que eram peritas a quem incumbia verificar se uma mulher estava, ou não grávida. 329 Ibidem, p. 250. ... o juiz, sendo insuficientes as provas apresentadas, pode deferir o juramento a uma das partes, que, se o prestar, se exime de ter de produzir outra espécie qualquer de prova, pois, se considera provado o fato objeto do juramento; 330 Ibidem, p. 250. ... no processo extraordinário, valia como causa para a condenação, ... , ao que confessou era concedido prazo para ser executado; demais, nem sempre a confissão tinha força probante: assim, por exemplo, não era ela suficiente para transformar um colono um homem livre; 331 Ibidem. p. 250. ... no processo extraordinário, o juiz podia valer-se, desde que a presunção fosse séria e estivesse em relação direta com o fato que se pretendia provar, ...

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dificuldade, o magistrado poderia determinar a contultatio, que consistia

na remessa dos autos a um magistrado superior ou ao Imperador332 para

o julgamento.

A sentença era escrita e, obrigatoriamente, conteria a

condenação ou absolvição do réu, sendo publicada em audiência e

registrada em livro. As sentenças definitivas poderiam ser impugnadas

no prazo de 10 dias pelo recurso333 de apelação, que era recebido com o

efeito devolutivo e suspensivo. Somente em caso de ilegalidade da

apelação, o magistrado poderia deixar de recebê-la, nas outras situações,

ao receber a apelação, redigia o “libelos demissórios” enviando-o com o

processo para o julgamento na instância superior. Para recorrer, exigia-se

o pagamento de custas processuais.

O surgimento dos recursos na cognitio extraordinária teve

relação direta com a profissionalização do direito.334

332 PRATA. Op. cit. p., 76. Não estando o juiz em condições de compor a lide, pode remeter os autos ao Imperador que, pessoalmente ou através de sua assessoria, prolata a sentença mediante preescrito. 333 WOLKMER. Op. cit. p., 402. Ao contrário da jurisdição ordinária, dos pretores, nela (cognitio extra ordinem) havia a possibilidade de apelo ao imperador, pois as decisões dos funcionários eram feitas por delegação do poder imperial, e a este competia rever os atos de seus delegados. 334 WOLKMER. Op. cit. p., 402. Estando na mão de leigos e não-burocratas, o procedimento formular abriu-se à influência dos juristas. Inicialmente os juristas eram homens da nobiliarquia romana que davam seus conselhos em vários assuntos a outros cidadãos ... .Eram, nessa fase clássica, apenas cidadãos privados, cuja autoridade provinha de sua posição social somada ao reconhecimento de seu saber a respeito das fórmulas e formas jurídicas, , e de sua sabedoria prática. Sob Augusto, receberam autorização para falar em nome do príncipe, isto é, do primeiro cidadão ( ex auctoritate principis). No entanto, foi com o desenvolvimento de uma burocracia imperial, centralizada em torno da Corte, que os juristas se transformaram, já a partir de meados do segundo século A.D., num grupo profissional. Servindo o imperador, participavam da administração sendo escolhidos por força de seu conhecimento jurídico. Este, por seu turno, deixara de ser apenas tradicional para transformar-se num aprendizado que se fazia em escolas, em torno dos juristas mais velhos.

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256

As conseqüências da apelação eram graves, podendo chegar a

casos em que ocorria o desterramento temporário e perda parcial do

patrimônio do recorrente perdedor; era admitida a reforma in pejus.

O sistema recursal não estava bem estruturado, sendo que, em

princípio, poderia se apelar tantas vezes quantos fossem os magistrados

hierarquicamente superiores, até ao Imperador. As restrições aos

recursos eram mais de ordem pragmática do que propriamente

procedimental, pois as condições para recorrer, como o pagamento das

custas, assim como as conseqüências da derrota do recorrente, eram

fatores limitantes. O procedimento na fase recursal era similar àquele

adotado na primeira instância, inclusive, sendo admitida a produção de

provas nos recursos.

Não havendo o exercício do direito aos recursos, ou quanto se

esgotassem todas aquelas possibilidades, o demandante vencedor, diante

da ausência do cumprimento espontâneo pelo demandado da obrigação

constituída na sentença, poderia iniciar o processo de execução através

da actio iudicati.

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7.2.2.1 A execução forçada no sistema da justiça pública em Roma

O processo da cognitio extraordinária também inovou no que

se refere ao processo de execução. Alguns aspectos devem ser

destacados, como a criação da execução para entrega de coisa, de fazer e

não-fazer; a execução passa a ser patrimonial e, excepcionalmente

corporal, no entanto, neste caso, o devedor seria detido em cárcere do

Estado. Adotava-se o princípio da execução menos onerosa para o

devedor, logo, a expropriação se limitava aos bens necessários para a

satisfação da obrigação.

Antes de dar início à execução, era concedido ao devedor um

prazo para o cumprimento da obrigação. Há controvérsias quanto ao

tempus iudicati, o qual poderia ser determinado pelo juiz, que, no

entanto, não o fazendo, deveria ser de 4 (quatro) meses, de acordo com o

direito justinianeu.

Decorrido o prazo sem que o devedor cumprisse a sentença

espontaneamente, o credor poderia exigir a satisfação da obrigação

através da actio iudicati. O devedor poderia admitir a inadimplência ou

se defender alegando a nulidade da sentença ou o cumprimento da

obrigação. Neste caso era adotado um procedimento semelhante ao

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processo de conhecimento, contudo, da sentença, não era admitido

nenhum recurso.

De acordo com cada caso, a execução seria manu militari ou

pignus judicati causa captum.

A execução manu militari dizia respeito aos casos em que a

obrigação era para a entrega de coisa, logo, o executado seria obrigado à

restituição, caso se recusasse, ficaria sujeito à força pública que

promoveria a constrição patrimonial contra a vontade do devedor.

Havia situações em que se tornava impossível a entrega da

coisa, havendo o seu perecimento, assim também quando a obrigação

fosse para fazer ou não-fazer, ou, ainda, quando se tratasse de obrigação

de quantia certa; nestes casos, havia procedimentos próprios.

A pignus judicati causa captum era a ação pela qual se fazia a

apreensão de bens do devedor através dos apparitores do juiz. Esses

bens se restringiam ao necessário para o pagamento, sendo que o

quantum era obtido por meio da venda em leilão. Havendo excedente

após o pagamento do credor, seria entregue ao devedor.

Outra modalidade de execução era a cessio bonorum ou

concurso de credores. O devedor poderia ter mais de um credor, neste

caso, também ocorria a apreensão de bens, mas estes não eram vendidos

em conjunto; procedia-se ao distractio bonorum, que consistia na venda

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parcelada dos bens, de modo que uns eram vendidos após os outros, até

que fossem pagos todos os credores.

Em qualquer caso, a execução era limitada pela obrigação

constituída, logo, o credor somente poderia exigir daquilo que fosse

objeto do débito.

Apenas excepcionalmente a obrigação de entrega de coisa, de

fazer ou não-fazer seria convertida em obrigação pecuniária, ou seja, tais

casos ficavam restritos à impossibilidade do cumprimento nos termos

inicialmente estabelecidos.

Ressalta-se que, no caso da venda de bens do devedor para

satisfação do credor, este receberia somente o valor devido; devolvendo-

se excedentes acaso existentes ao devedor.

O devedor que não tivesse bens poderia sofrer a pena de

prisão, mas esta seria cumprida em cárcere público, ou seja, nesta fase

não era admitido ao credor prender e escravizar o devedor, assim como

não poderia vendê-lo ou matá-lo.

Não havia se desenvolvido a teoria a respeito da classificação

das ações em conhecimento, execução e cautelar como foi admitido

posteriormente. Entretanto, os atos procedimentais para obter a cognição

ou a execução eram realizados de forma independente. Assim eram

praticados atos para obter a certeza do direito aplicável ao caso concreto,

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e somente após o conhecimento do direito que deveria reger o caso, é

que se iniciavam os atos objetivando a execução forçada.

Observa-se, portanto, que a estruturação do processo foi se

constituindo segundo uma lógica que tendia à segurança e à efetividade.

É possível afirmar que, desde as suas origens, o processo se vinculava à

idéia de estabilização da organização societária. Acredita-se que para

estabilizar as relações humanas é necessária a existência de garantias

mínimas que possibilitem o desenvolvimento de um senso coletivo. Os

meios inerentes à concretização prática dessas garantias são afetos ao

processo, sendo que os romanos tiveram essa compreensão, podendo ser

atribuído a isto um dos fatores que explicam o bom nível de

desenvolvimento que a sociedade romana obteve. Neste aspecto,

focaliza-se a importância da segurança jurídica. Sob este ponto de vista,

pode ser afirmado que o direito consiste em um eficiente mecanismo

para a superação do individualismo.

Ocorre, contudo, que não é suficiente a existência das

garantias, é necessário, ainda, que a promessa garantida encontre as

condições para sua efetivação no plano concreto. No plano da

efetividade jurídica, em princípio, o Estado emprega sua força para que o

indivíduo possa usufruir daqueles direitos que lhe tutelam.

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261

Os romanos não sintetizaram teorias a respeito da segurança e

da efetividade jurídica, mas construíram um modelo jurisdicional que

permite a afirmação de que durante o período histórico compreendido

aproximadamente entre 753 a. C. e 476 d. C., foi delineada a noção que a

segurança jurídica está voltada para a interação entre os indivíduos e

conseqüente constituição dos pontos de conexão que forma a teia social.

Por sua vez, a efetividade jurídica volta-se em sentido oposto àquele, a

fim de que o indivíduo, como uma unidade concreta e para o qual tende

toda a formulação jurídica, tenha assegurado o bem jurídico de acordo

com as regras estabelecidas, seja através de normas prévias e

abstratamente estabelecidas, ou através de costumes consolidados.

Por estes aspectos, entre outros, tem havido historicamente

inúmeras discussões sobre formas de realização da “justiça”, sob um

ponto de vista meramente procedimental, os debates e alterações legais

são intermináveis. Sob uma perspectiva hermenêutico-crítico-

historicista, e considerando que o direito romano representa a estrutura

do “DNA” do direito ocidental é afirmado que a questão precípua está na

modulação entre o contexto dos interesses coletivos com caráter

sociológico e o contexto da proteção que o direito deve assegurar ao

indivíduo, no caso específico, quanto aos seus bens.

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262

Destacam-se alguns aspectos que caracterizam o fim da fase

clássica do direito romano, como a centralização e concentração de

poderes políticos, o fim das tradições republicanas e o afastamento

progressivo dos leigos das tarefas de decisão dos conflitos335.

7.3 PROCESSO ROMANO-BARBÁRICO

Cronologicamente, a Alta Idade Média, quando se

desenvolveu um modelo diferente de organização jurídica, compreende

aproximadamente meados do século II, quanto se iniciou a invasão dos

bárbaros ao Império Romano até o século XI. Ressalta-se que no ano 476

d.C., ocorreu a tomada de Roma por Odoacro, sendo este fato

considerado o marco histórico do final do predomínio da civilização

romana336. Os invasores eram bárbaros de origem franca, ostrogoda,

saxônica, angla, bávara, sueva, lombarda, visigótica, entre outros, sendo

os seus costumes semelhantes, podendo ser mencionadas como

características desses povos o fato de serem sedentários, mas estarem em

peregrinação por causa de guerras e fome; não tinham uma organização

335 WOLKMER. Op. cit. p., 402. ... com o passar do tempo o processo deixava seu habitat leigo e concentrava-se nos círculos do novo poder do Estado. 336 NOVA enciclopédia Barsa. v. 12, p. 442. O rei godo Alarico saqueou Roma no ano 410. As forças imperiais, somadas às dos aliados bárbaros, conseguiram entretanto uma última vitória ao derrotar Átila nos Campos Catalaúnicos, em 451. O último imperador do Ocidente foi Rômulo Augústulo, deposto por Odoacro no ano 476, data que mais tarde viria ser vista como a do fim da antiguidade. O império.oriental prolongou sua existência, com diversas vicissitudes, durante um milênio, a´te a conquista de Constantinopla pelos turcos, em 1453.

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urbana de vida; não tinham regras que garantissem direitos individuais.

Há unanimidade entre os historiadores em reconhecer que durante a Alta

Idade Média, houve um retrocesso no sistema de organização social, e,

por via de conseqüência, no modelo jurídico.

O contato entre os povos bárbaros e a civilização romana

produziu uma cultura fundida entre os costumes considerados primitivos

dos primeiros e os modelos de organização social constituídos no

Império Romano ao longo de seus períodos históricos de

desenvolvimento. Para o surgimento desse sistema, podem ser apontados

dois fatores muito importantes que são o reconhecimento por parte dos

povos bárbaros de que o direito romano era superior e importante para o

seu desenvolvimento; bem como a influência da igreja católica, que se

encontrava em processo de expansão.

Os povos germânicos, como ficaram conhecidos os invasores

bárbaros, adotaram um processo onde prevalecia o individualismo, a

jurisdição era decorrência da eleição em assembléia de um juiz, as

normas procedimentais existentes eram incipientes, apoiando-se em

preceitos divinos e as regras processuais coexistiam com a autodefesa.

A aplicação do direito romano-barbárico prevalece no período

compreendido entre o ano 568 até 1.088. A fusão entre a tradição

clássica romana e os costumes dos povos bárbaros não se encaixa em um

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quadro de desenvolvimento da cultura jurídica sob a ótica processual337.

Contudo, o pragmatismo germânico, a ausência de um conjunto de

direitos e garantias a priori que tutelassem os indivíduos e a

fragmentação do poder do Estado, propiciaram o surgimento de um

modelo procedimental simplificado que visava à solução efetiva da

causa338, ainda que ao custo da relativização da segurança jurídica, de

modo que a proteção do indivíduo por regras de organização grupal não

era relevante, assim como não havia a preocupação com a estabilização

social ou institucional, pois o modus vivendi se desenvolvia em um

regime tribal.339

Até o século XI, quando surgiram novas condições para o

direito, os germânicos com o auxílio de juristas romanos haviam

transformado parte de seus costumes em regras legais, sendo que a Lex

Romana Visigothorum, era caracterizada como uma lei romana

337 PRATA. Op. cit. p., 82. O direito germânico primitivo era essencialmente costumeiro, na sua primeira fase, que termina por volta do ano 500 ... . Os invasores não formavam uma nação, porém um punhado de tribos. Daí porque podemos afirmar que o direito germânico primitivo era um direito tribal ... . 338 WOLKMER. Op. cit. p., 227-228. ... a partir do século V o direito romano não se furtará de conviver paralelamente com o direito germânico dos povos do norte, e, até o século VIII, observa-se a progressiva condensação desses vários direitos. Antes de tal processo realizar-se totalmente, e levando-se em conta o desmembramento do poder do Estado na Europa medieval, a segunda observação possível dessa genealogia é a característica descentralização da justiça, isto é, a dissolução da resolução das contendas particulares pelas várias autoridades temporais – os senhores feudais – agora investidas de jurisdição. ... Na alta Idade Média, a partir do momento em que deixa de existir um poder judiciário organizado, a liquidação das contendas era feita entre os indivíduos: ... (grifos nossos) 339 LOPES. Op. cit. p., 75. ... o processo era oral e o sistema de provas era o dos ordálios, cheios de testemunhas, desafios e duelos. Nas aldeias e no campo predominavam, em casos criminais, os julgamentos por ordálios, assistidos por todos. A corte senhorial é presidia pelo senhor da região, mas são os pares (vassalos) que julgam seus pares. As cortes julgam, mas são também órgãos de conselhos e de grandes deliberações.

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barbarizada ou vulgar e tem sido considerada uma das fontes legais

importantes desse período.

A Alta Idade Média é historicamente uma época de crises

estruturais profundas as quais determinaram uma fase de decadência,

pois houve um atraso considerável em decorrência do primeiro modelo

produtivo feudal340. Nessa fase, até o prestígio da igreja católica chegou

a ser afetado, pois as populações, vivendo nas regiões rurais isoladas,

voltaram a adotar credos primitivos. 341

A partir do século XI até o século XVI, surgiram as condições

para a retomada do desenvolvimento social, econômico e cultural na

Europa, sendo reconhecido para o direito o marco inicial de uma nova

fase durante a Baixa Idade Média342.

340 LOPES. Op. cit. p., 74. No primeiro feudalismo (do século VIII ao XI) os reinos eram etnias sob um rei, comunidades de cristãos sob um rei, não eram territoriais propriamente. ... A diffidatio será importante para a teoria política porque será a base do direito de resistência ao tirano, ao senhor injusto. Será também importante, porque Gregório VII, durante a querela das investiduras, tomará para si o privilégio de dissolver os laços de vassalagem, interferindo diretamente no arranjo político da época. 341 LOPES. Op. cit. p., 71-72. Um ato a destacar é que a Igreja, no império ocidental, vê-se ameaçada em sua hegemonia por dois fatores: a religião pagã dos próprios bárbaros e a adesão dos mesmos bárbaros a versões heréticas do cristianismo (especialmente o arianismo). Apesar de progressivamente converter os reis (que buscavam assim uma aliança com seus súditos romanos ou romanizados) durante os primeiros séculos a Igreja foi incapaz de conter a “regressão” do paganismo. Cidades antes florescentes e sedes de catedrais e bispados foram abandonadas. Regressão ao paganismo cujo sinal é a longa vacância de sedes episcopais ... . No campo, as populações voltaram a crer no encantamento dos bosques e nas forças da natureza, na mesma medida em que as áreas cultivadas e as estradas iam sendo abandonadas. 342 WOLKMER. Op. cit. p., 403. Entre Justiniano e o século XI da Era Cristã, quando os textos jurídicos que mandara reunir passaram a ser recuperados e estudados na Itália setentrional (Bolonha)), a porção latinizada da Europa conheceu o fim das organizações relativamente estáveis e centralizadas do Império Romano

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266

7.4 PROCESSO JUDICIALISTA

Não há uma coincidência quanto às datas referentes à fase

denominada período ou processo judicialista e o início da Baixa Idade

Média ou Segundo Feudalismo343. No entanto, é possível verificar a

existência de uma proximidade cronológica, pois entende-se que o

período judicialista começa no ano de 1088 com a fundação da Escola de

Bolonha e se encerra em 1563 com a publicação do livro “Prática Civil e

Criminal e Instrução dos Escrivões”, de autoria de Moterroso. A Baixa

Idade Média, que é caracterizada pela última fase do feudalismo,

estende-se entre os séculos XI e XV.

Os aspectos culturais, econômicos, sociais e políticos da baixa

idade média refletiram no tipo do modelo jurídico adotado naquele

período histórico. A economia autosuficiente e tipicamente agrária foi

substituída gradativamente por uma economia comercial. No plano

social a estrutura rígida dos feudos foi cedendo lugar ao surgimento da

burguesia que era uma nova classe social originária da acumulação de

bens decorrentes das práticas mercantis. Politicamente foram se

343 LOPES. Op. cit. p., 74-75. O segundo feudalismo, ..., estabelece-se entre 1050-1150, justamente no período de surgimento do direito canônico e civil nas universidades. ... Há paralelamente um sistema de justiça feudal e senhorial. A justiça é o centro da vida jurídica. Dar regras gerais (ou seja, legislar) e dar regras particulares (julgar) são apenas duas formas de se fazer justiça. ... Nestes termos, a atividade legislativa é uma forma de justiça. ... Governar é sobretudo administrar a Justiça. Antes do estabelecimento de poderes estatais nacionais, as decisões de justiça retributiva ou corretiva eram muitas vezes proferidas por assembléias populares: ...

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constituindo as condições para a centralização do poder e o surgimento

das monarquias nacionais européias. Durante esse período, ocorreram as

Cruzadas que representam a importância da Igreja e da grande

religiosidade do homem medieval.

Conquanto durante o período da Alta Idade Média não tenha

havido um satisfatório desenvolvimento dos estudos a respeito do

direito, com a criação da Escola de Bolonha esta situação se altera e o

direito romano, sobretudo, o Corpus iuris civilis passa a ser estudado

sistematicamente pelos glosadores344. O ambiente social da Baixa Idade

Média propiciou o aprofundamento dos estudos de direito fazendo

ressurgir as preocupações com sua organização e com as instituições que

lhe estruturam a aplicação.

As relações sociais apresentam uma dinâmica que

historicamente parece apontar para ciclos que levam à concentração do

poder e subseqüente esfacelamento da sua estrutura. Este fenômeno pode

ser associado à tentativa de preservação do status quo vigente para os

integrantes dos grupos de poder, o que termina por criar resíduos345

negativos no ambiente, de onde emergem os quadros diferenciados na

344 WOLKMER. Op. cit. p., 229. Estabelecida a legitimidade divina no decorrer da baixa Idade Média, resta saber como essas leis foram organizadas. Um momento fundamental para compreender o fenômeno do direito canônico, por ser este um direito escrito, é o de sua compilação. Após intensa atividade jurisdicional, a Igreja passou a considerar o antigo direito romano como legislação viva – embora esparsa -, que deveria ser interpretada por doutores abalizados pelo clero nas universidades como a de Bolonha, responsáveis pelo sentido oficial dos textos romanos. (grifo nosso)

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reorganização social. Esse cenário tende a um processo de repetição

contínua, porém, sempre diferenciada.

Durante a primeira fase do feudalismo, a Igreja enfrentou

algumas dificuldades as quais estiveram vinculadas à descentralização

do poder, entre outras causas, no entanto, esta mesma situação tornou

propícia a ascensão do Direito Canônico como forma de ocupação do

poder. Assim, o processo judicialista representa um dos aspectos do

ressurgimento do direito romano e também uma das pontes para a

estruturação do direito canônico e da própria dogmática jurídica.

A Igreja como detentora do poder passou a justificá-lo também

sob o ponto de vista laico, desse modo após Irnérios346 ter descoberto em

Pisa um exemplar do “Digesto” e tê-lo estudado juntamente com seus

alunos, a Universidade de Bolonha foi credenciada como um grande

centro de estudos na Itália, uma vez que, inicialmente, havia o controle

do clero sob a interpretação literal que era realizada a respeito dos textos

legais originários de Roma. Podendo ser afirmado que a Universidade de

Bolonha era o centro onde se desenvolvia sob o controle da Igreja os

estudos a respeito do direito. Paralelamente a isto, outro aspecto

345 DICIONÁRIO brasileiro da língua portuguesa, v.2, p.1502. Resíduo ... . 8. Sociol. Elemento cultural que sobreviveu a mudanças com as quais está em contradição. 346 PRATA. Op. cit. p., 100. Irnérius, fundador da Universidade de Bolonha, em 1088, alcunhado “archote do direito”, “lucerna iuris”, “primus illuminatur scientiae nostrae”, assumiu a cátedra de direito romano, criando escola, fazendo recrudescer o seu prestígio que mais salientava pela interpretação dada aos textos romanos acomodada à prática das instituições vigentes.

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importante para a organização do processo judicialista se refere ao

interesse dos monarcas em concentrar poderes através da adoção de um

direito comum que subtraísse o poder dos nobres, que aplicavam uma

legislação local.

A Universidade de Bolonha marca historicamente a retomada

do progresso nos estudos do direito processual. Mesmo durante a fase de

maior desenvolvimento das instituições processuais, em Roma não havia

uma organização entre os juristas daquela época que tivesse possibilitado

estudos sobre as normas processuais. Tais preceitos decorriam mais de

uma estrutura de organização governamental, devendo ressaltar-se que

sequer havia uma formulação sobre a existência das regras de caráter

material e instrumental.

A Escola dos glosadores caracterizou-se pelo respeito ao texto

original e ao apego sistemático ao Corpus Juris Civiles, buscando uma

interpretação literal daquela lei romana.

As glosas eram anotações realizadas junto ao texto da obra de

Justiniano, apostas nas laterais e às vezes em entrelinhas, com o objetivo

de aclarar o texto da lei romana347. Havia a preocupação em não se

alterar o sentido do texto originário.

347 PRATA. Op. cit. p., 101. ... quase sempre a força e o prestígio das glosas cresceram assustadoramente, tanto que, na prática, aplicava-se mais a glosa do que o texto original.

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270

Os glosadores visavam, inicialmente, constituir um direito

comum que assegurasse a manutenção do poder da Igreja, tanto que esta

apoiou seus estudos, prestigiando seus trabalhos. Não houve êxito no

objetivo de popularizar o direito fundado na interpretação literal do

Corpus Juris Civilis.348 Deve ser lembrado que durante a Idade Média

ocorreu a ascensão da filosofia sob um prisma teológico.

Aos glosadores coube também a elaboração das sumas que

eram pequenos compêndios a respeito do direito processual. Através

desses documentos, surgiu a idéia de fases processuais encadeadas

através de um sistema de procedimentos que se sucedem uns aos outros,

denominados tempos. Esses estudos levaram ao reconhecimento do

instituto da preclusão.

O Corpus Júris Civilis apresentava obscuridades e

contradições, sendo que o seu estudo completo pelos glosadores

demorou por um século e meio, o que, no entanto, não alterou aquelas

características, uma vez que a fidelidade ao texto original era uma

exigência. Associado a isto, ocorreu o acirramento da disputa entre os

poderes seculares da Igreja e imperiais. Esses fatos estavam

intrinsecamente ligados com as profundas alterações sociais que

348WOLKMER. Op. cit. p., 403. A Idade Média conheceu também o problema político central da separação entre Igreja e Estado, separação de jurisdições, autonomia dos respectivos representantes e disputas de poder entre eles. Se a cristandade era inerentemente unitária, quem detinha o poder final de dizer o direito? Essa disputa, como se verá, está na origem do processo moderno. (grifos nossos)

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271

ocorriam com o surgimento do processo de acumulação de riquezas

através das práticas mercantis e com a crescente consolidação da classe

social denominada burguesia. Esse ambiente foi propício para o

desenvolvimento dos Estados Nacionais, para a unificação da jurisdição

e estruturação do direito processual.

Nesse contexto de mudanças, a Escola dos Glosadores tornou-

se obsoleta, tendo ocorrido o aparecimento da Escola dos Ultramontanos

caracterizada pela tentativa, por parte de seus autores, em encontrar, na

aplicação do direito romano, soluções para problemas práticos do

cotidiano da sociedade dos séculos XII e XIII. A Escola dos

Ultramontanos também não conseguiu superar os problemas decorrentes

das incongruências do Corpus Júris Civilis.

No século XIV, surgiu a Escola dos Pós-glosadores349 que

procurou adaptar o direito romano ao contexto histórico daquele tempo.

Para tanto, admitiram uma interpretação mais elástica do direito

justinianeu, não raras vezes afastando-se do Corpus Juris Civilis, criando

verdadeiramente novos preceitos que tinham como inspiração o trabalho

já produzido pelos glosadores através das glosas e sumas.

A Escola dos Pós-glosadores é caracterizada pelo empenho em

349 PRATA. Op. cit. p., 104. Surgiu no século XIV a chamada Escola dos Pós-Glosadores, também denominada Escola dos Comentadores, porque seus integrantes se valeram dos comentários aos textos romanos estudados, assim como os glosadores da glosa se utilizaram.

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dar aplicabilidade prática ao direito, de modo que este tivesse uma

utilidade para o povo. Algumas questões devem ser observadas, como é

o caso da preocupação com a criação de instrumentos que assegurem a

aplicação do direito, inicia-se uma valorização do direito processual e,

por conseqüência, os estudos a seu respeito passam a ter uma dinâmica

diferenciada, ou seja, abre-se espaço na cultura jurídica para o

reconhecimento do direito processual como um ramo específico do

direito. A emergente estrutura social e política, por sua vez, visando à

centralização do poder como meio de elevar a burguesia, que já era

detentora do controle econômico, ao centro das decisões políticas,

procurou oferecer à população uma alternativa para a realização da

“justiça”, de modo que foram constituídos os mecanismos para que o

povo tivesse acesso ao direito.

A Igreja neste cenário teve seu prestígio e poderio abalado

porque o “bem” e a “justiça” não seriam realizados exclusivamente no

ambiente estabelecido por ela, mas, gradualmente se organizaram os

meios para sua concretização no plano laico. Este foi o quadro que levou

à separação entre a Igreja e o Estado. A burguesia detentora do poder

econômico pôde separar-se do Vaticano e, para isto, um dos meios

usados foi a disseminação do direito para o povo e a promessa da

realização da “justiça” entre os homens com base em valores humanos.

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Deve ser destacado que os princípios aplicados pelas

jurisdições vinculadas à instituição do Estado que estava se estruturando

eram originados da jurisdição do clero. Havia uma similaridade entre a

aplicação da “justiça” realizada pela Igreja e pelos reis e imperadores,

sendo que a diferença fundamental estava nos seus fundamentos 350.

Nesse contexto de disputa de espaço na organização e

estruturação da sociedade medieval, duas questões foram relevantes para

a Escola dos Pós-glosadores, uma se refere à necessidade de adaptar o

direito romano clássico à realidade do século XI e seguintes; outra,

relaciona-se com a importância do método escolástico351 o qual

propiciou a realização de estudos sistemáticos a respeito da aplicação da

“justiça”.

350 WOLKMER. Op. cit. p., 405. Os conselheiros dos reis também freqüentavam as universidades e influenciavam as decisões quanto à justiça: os reis mesmos precisavam organizar suas cortes de modo a fazê-las atraentes para os súditos. Com isto podiam neutralizar tanto os poderes locais (cortes baronais e senhoriais) quanto os tribunais eclesiásticos (que pretendiam jurisdição sobre negócios contratuais _ por força da promessa e do juramento ali implicados, como sobre heranças e testamentos). Por outra parte, muitos eram os casos em que por negociação as partes submetiam suas diferenças ao arbitramento segundo as regras do processo canônico; tratava-se de uma competição clara, obrigando o rei a adaptar-se ao novo processo e a impô-lo. Os julgamentos régios destacavam-se, progressivamente, da pessoa do rei e da corte (conselho ou parlamento) para serem entregues a conselhos especialmente criados, compostos por letrados, isto é, juristas treinados nas universidades. O processo ali desenvolvido, em geral, seguia os moldes do processo canônico, sempre que possível. (grifo nosso) 351 NOVA Enciclopédia Barsa, v. 5. p. 469. Entende-se em geral por escolástica o ensino teológico-filosófico da doutrina aristotélico-tomista ministrado nas escolas de conventos e catedrais e também nas universidades européias da Idade Média e do Renascimento. Como sistema filosófico e teológico a escolástica tentou resolver, a partir do dogma religioso e mediante um método especulativo, problemas como a relação entre fé e razão, desejo e pensamento; a oposição entre realismo e nominalismo e a probabilidade da existência de Deus.

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274

Durante o período judicialista, desenvolveu-se também a

Escola Humanista ou Histórico-Crítica ou Cujaciana352. Seus trabalhos

foram realizados na Alemanha, França e Itália, no século XVI,

principalmente. Essa escola do direito pautava-se fundamentalmente na

história remota do direito, realizando seus estudos através da tradução de

textos da Grécia e da Roma antiga. As traduções feitas pela Escola

Humanista foram importantes para a compreensão do direito e da

necessidade de sua inovação. Podem ser criticados por terem defendido a

preservação integral e a aplicação do direito antigo, o que significaria um

retrocesso.353

No final da Idade Média no século XV, o ambiente social

europeu estava transformado, sendo que a separação do trabalhador e dos

meios de produção através do trabalho assalariado sinalizou para o

surgimento de um novo modelo que possibilitou a acumulação

econômica nas mãos da burguesia e a concretização dos Estados

Nacionais, com a queda dos regimes absolutistas e a separação dos

poderes do clero e laico. O trabalho dos juristas no sentido de dar uma

aplicação prática ao direito que deveria regulamentar esta nova

352 PRATA. Op. cit. p., 110. A Escola Humanista não prestou grande contribuição ao direito processual. Merece, entretanto, uma referência especial a obra do alemão Benedito Carpzow. Preferimos, todavia, incluí-lo ente os componentes da escola dos práticos. 353 PRATA. Op. cit. p., 108. As interpretações humanistas caíram ruidosamente no conceito dos doutos, enquanto a glosa e os comentários dos bartolistas cresceram a tal ponto de serem considerados os verdadeiros fundadores do direito moderno. Mesmo assim, “ofereceram uma grande contribuição tão somente para ilustrar o direito mais antigo. Neste sentido, a obra e a atividade de Donelo e Cujácio foram verdadeiramente maravilhosas”. (Riccobono)

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sociedade, havia se desenvolvido bem, e prenunciava o surgimento da

escola praxista do direito.

7.4.1 Direito Canônico

Há um consenso no sentido de reconhecer a importância do

direito canônico354 para o ocidente, podendo ser afirmado que coube à

Igreja o papel de preservar a cultura dos romanos e de, posteriormente,

transmiti-la através das universidades. Durante a Idade Média foram

observadas crises recorrentes no sistema de organização da sociedade,

acreditando-se que estas situações decorriam da ausência de uma

estrutura mínima de regras que regulamentassem as relações entre as

pessoas e entre estas e as coisas, e, principalmente, de um modelo

padronizado de solução dos conflitos que surgiam entre as pessoas.

Coube à Igreja recuperar o Corpus Iuris Civilis, fundar as universidades

para o estudo do direito romano e criar regras mais ou menos uniformes

para a solução dos casos que estivessem afetos à sua jurisdição.

Os princípios do direito canônico foram fundamentais para a

constituição do direito contemporâneo ocidental, sobretudo, no que se

354 TUCCI, José Rogério Cruz; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de processo civil canônico (história e direito vigente), p. 15. O ius canonicum pode, pois, ser definido como “o conjunto de normas jurídicas, de origem divina e humana (mas sempre de inspiração divina), reconhecidas ou promulgadas, por autoridade da Igreja Católica, que determinam a organização e atuação da própria Igreja e de seus fiéis, em relação aos fins que lhe são próprios”.

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refere à preocupação com a humanização das relações jurídicas e com a

importância da constituição das regras eqüitativas para o regulamento

das relações sociais. A filosofia cristã fundada no amor ao próximo, no

perdão e na caridade afastou do direito, a partir do século XI, as penas

cruéis, os sacrifícios sangrentos próprios das ordálias e dos juízos dos

deuses germânicos355. Também foi repelida a autodefesa.

O direito canônico foi organizado a partir do papado de

Gregório I (Gregório Magno) que ocorreu entre os anos de 590 e 604. A

Igreja não era centralizada e hegemônica, sendo que as primeiras

iniciativas no sentido de se alcançar aqueles objetivos foram tomadas por

Gregório I que determinou o envio de monges missionários aos lugares

mais distantes do ocidente com o objetivo de unificar a Igreja. As

cruzadas que foram organizadas pela Igreja entre 1096 – Primeira

Cruzada e 1270 – final da oitava Cruzada tiveram finalidades

semelhantes. Dessa forma, não se tratava apenas de divulgar a fé cristã,

mas da estruturação do poder em uma sociedade desorganizada por

conflitos decorrentes das invasões bárbaras e da ausência de um modelo

355 TUCCI,José Rogério Cruz; AZEVEDO. Luiz Carlos de. Lições de processo civil canônico (história e direito vigente), p. 39. A Igreja condena as ordálias, que somente seriam utilizadas como instrumento subsidiário de convencimento do juiz. A prova racional suplanta então o sistema probatório germânico.

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de administração das questões relativas à vida em comunidade, inclusive

no que se refere a aplicação do direito.356

Pode ser afirmado que durante o período de 400 anos, desde

Gregório I até Gregório VII, a Igreja buscou a centralização, hegemonia

e uniformização das suas práticas. Desse modo, por volta do século X,

estavam criadas as condições para as reformas promovidas na Igreja por

Gregório VII, as quais serviram de modelo para a constituição dos

Estados Nacionais.357

A importância das reformas promovidas por Gregório VII se

relaciona com o fato de que até então havia a confusão entre o poder

político e espiritual dos reis. Não havia se estabelecido a idéia de limites

e esferas do poder, de competência para o exercício do poder. Desse

modo, a Igreja ficava subordinada em cada região ao poder do

imperador, que, por sua vez, poderia adotar práticas que divergiam dos

356 LOPES. Op. cit. p., 84. O evento que marca um ponto de passagem na história do direito canônico é a transformação radical liderada por Gregório VII (papa entre 1073 e 1085). Até então, a Igreja do Ocidente havia sido uma comunidade sacramental, espiritual, não jurídica e muito mais uma federação de Igrejas nacionais do uma rígida monarquia centralizada em Roma. A disciplina comum era muito menos intensa do que se pode imaginar. Certo que o esforço do bispo de Roma, o papa, havia sido sempre no sentido de exercer uma hegemonia sobre a Cristandade latina, Gregório Magno (papa entre 590 e 604) enviara missionários (monges) até os confins do Ocidente, encarregara Agostinho de Cantuária de estabelecer o cristianismo firmemente na Inglaterra ... 357 LOPES. Op. cit. p., 85. Nestes termos, a tradição latina anterior a Gregório VII é mais pluralista e também mais sujeita à influência política. Para contrapor-se a esta espécie de subordinação ao poder civil, as medidas desencadeadas por Gregório VII constituirão um conjunto destinado a marcar o Ocidente. Tornam-se exemplares do que virá a ser o Estado: dominação burocrática (conforme a tipologia weberiana) racional, legal, formal. Neste espaço político é que se desenvolve o direito canônico. ... Gregório VII propõe-se libertar a Igreja Ocidental inteira, e isto só pode ser feito organizando um poder político que seja mais eficaz do que o de seus adversários. Terá sucesso, e daí por diante serão os institutos de direito canônico, particularmente o desenvolvimento racional e formal do processo canônico, que serão imitados por reis, príncipes e senhores seculares. Por este caminho é que a Europa reencontrará sua tradição jurídica racionalizante e formalizante.

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princípios cristãos. De fato, havia várias Igrejas de origem católica,

como ainda hoje, sabe-se da Igreja Anglicana e na Igreja Ortodoxa.

Gregório VII organiza a Igreja através de uma burocracia racionalizada,

estabelece que a autoridade e a capacidade de governar é limitada a um

povo em determinado território; que o Papa é a autoridade suprema da

Igreja; que os bispos somente podem ser nomeados pelo Papa. 358 Com a

reforma gregoriana, a Igreja estava organizada de modo centralizado,

hegemônico, uniforme e burocrático359. A partir de então, tem ocorrido o

aperfeiçoamento do modelo adotado primeiramente pela Igreja através

do direito canônico.

A reforma provocou conflitos que culminaram com a guerra

das investiduras360 e com a Concordata de Worms361, de modo que na

eleição dos bispos o imperador teria o direito de participar, mas a

investidura seria exclusiva do Papa362.

358 LOPES. Op. cit. p., 88. O império era, pois, uma entidade militar/espiritual, não geográfica. Vigorava ainda muitas vezes o princípio da personalidade (ou pessoalidade) das leis e, sobretudo, a força dos costumes locais. O rei legislava pouco, eventualmente decidindo como árbitro. Contra esta concepção de império, a reforma de Gregório será um golpe fatal. 359 LOPES. Op. cit. p., 89. A reforma gregoriana teve um aspecto revolucionário, na media em que um dos atores sociais predominantes no tempo, o clero, mudara de posição e impusera reformas institucionais de maneira consciente e rápida. A convulsão social parece ter sido grande e violenta. A Reforma de Gregório VII é considerada por Berman a primeira revolução do mundo do mundo Ocidental, pois foi rápida, total, universalizante, socioeconômica. 360 TUCCI, AZEVEDO. Op. cit. p., 46. Desse embate de poderes surge a célebre “querela das investiduras”, iniciada entre Henrique IV e Gregório VII, ensejando profícua discussão teórica e, conseqüentemente, uma rica literatura entre os juristas da época, a respeito da soberania e da lei. 361 TUCCI, AZEVEDO. Op. cit. p., 47. Tal concordata entre soberanos e pontífices não significava apenas um protocolo de intenções entre as hierarquias civil e eclesiástica, mas sim o desejo de uma eficaz colaboração recíproca, deveras necessária, quer sob o aspecto espiritual, quer sob aquele político-jurídico. 362 LOPES. Op. cit. p., 89. Com isto, no Ocidente não se afirmou uma teocracia. Nem os reis conseguiram afirmar-se como donos e líderes das respectivas religiões nacionais, nem o clero conseguiu colocar-se acima da lei e julgar o Estado civil.

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A obra fundamental desse período para o direito canônico

surgiu aproximadamente no ano 1140, sendo conhecida como Decreto de

Graciano ou Concordia Discordantium Canonum, tratava-se de uma

coletânea de mais de 3.800 textos cuja aplicação não era obrigatória para

os juízes, mas que tinham grande utilidade na solução das antinomias

dos cânones. Para tanto eram empregados quatro critérios: a) ratione

significationis; b) ratione temporis; c) ratione loci; d) ratione

dispensationis. Os canonistas estudiosos do Decreto de Graciano eram

chamados decretistas363.

Nesse contexto em que a Igreja exerceu um papel decisivo

para o direito, as decretais364 foram significativas porque representavam

uma fonte do direito canônico. Os concílios365 também foram

363 LOPES. Op. cit. p., 95. Começava na Igreja uma crescente hegemonia de canonistas, que foram constituindo uma espécie de carreira e de burocracia. Aliás, foi a primeira burocracia moderna do Ocidente. 364 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 29. ... também se verificou a praxe de consultar-se diretamente o Papa acerca de alguma questão relativa à disciplina monástica, ao matrimônio, à penitência etc. Em resposta ao consulente, filho da Igreja ou membro do clero, o Papa emitia uma epistula decretalis. A regra contida em tal manifestação, a exemplo dos rescripta dos imperadores romanos, passa a gozar de força normativa (fins do séc. IV) e, portanto, é fonte de revelação do direito canônico, conservada nas compilações canônicas. A autoridade do Pontífice é marcada pelo emprego nas decretais da terminologia decernimus, constituimus, praecipimus, definimus, prohibimus ... (grifos nossos) 365 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 28. Apesar da notícia da realização de alguns concílios nos primeiros séculos do cristianismo, foi somente a partir do século IV que ganharam importância. A disseminação permitida da religião cristã na sociedade romana, a multiplicação das comunidades de fiéis, o substancial aumento patrimonial da Igreja e a ocorrência de graves discórdias religiosas impuseram a convocação dos bispos para se reunirem em concílios ecumênicos e regionais. ... Os concílios são presididos geralmente pela autoridade que os convoca. Durante a Idade Média o próprio Papa passa a dirigir os concílios ecumênicos. Nessa época também, especialmente nos séculos XII e XIII, houve uma célebre polêmica acerca da supremacia dos concílios sobre o Sumo Pontífice ou vice-verso. Da atividade doutrinária e judiciária dos concílios são extraídos os cânones, que constituem importante fonte de direito canônico. (grifo nosso)

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importantes, sendo que o IV Concílio de Latrão realizado em 1215366,

destacou-se porque representou um avanço na consolidação do direito

canônico quanto à organização e unificação das normas adotadas pela

Igreja.

Nesse cenário de unificação da Igreja, destacam-se os tribunais

da Inquisição, que visavam a imposição da fé aos hereges. Há notícias de

condenações à morte de hereges pela Igreja desde o século II, contudo

foi no IV Concílio de Latrão que ficou instituído o processo inquisitorial.

A criação do primeiro Tribunal do Santo Ofício367 ocorreu por iniciativa

do Papa Gregório IX em 1236. Os tribunais da inquisição foram extintos

em 1859.

Se por um lado no IV Concílio de Latrão foi estruturado o

processo através da adoção do sistema inquisitorial e, posteriormente,

organizados os Tribunais do Santo Ofício com o objetivo de impedir a

adoção de práticas religiosas distintas daquelas pregadas pela Igreja,

também neste concílio foi proibido aos clérigos participarem como

testemunhas de processos em que o julgamento dependesse de ordálios

ou juízos de Deus. Com isso é possível perceber que conquanto o

sistema processual, sobretudo, quanto às provas fosse muito violento nos

366 LOPES. Op. cit. p., 95. Inocêncio III (reinado de 1198 a 1216), papa durante o IV Concílio de Latrão (1215), formado em cânones em Bolonha, deixou outras tantas decretais e racionalizou especialmente o processo. 367 LOPES. Op. cit. p., 95. Porque escapavam da jurisdição ordinária (dos bispos locais) e porque dispunha de regras processuais próprias, a inquisição constituiu um tribunal de exceção.

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Tribunais da Inquisição, isto não se devia a adoção das práticas

germânicas quanto as ordálias. A Igreja institucionalizou um modelo

processual inquisitorial em que a denúncia da heresia poderia ser feita

por qualquer pessoa independentemente da apresentação de provas, as

investigações eram secretas e havendo suspeitas caberia ao acusado

provar sua inocência. O objetivo do processo era obter a sujeição do

acusado ao catolicismo, neste sentido chegou a ser admitida a tortura,

que sofria restrições, como a limitação das sessões a apenas alguns

minutos e a proibição de se quebrar ossos do torturado. Neste caso, a

tortura visava mais ao arrependimento e a conversão do acusado que

propriamente a prova do fato. A confissão não era o objetivo principal,

sendo que neste caso o acusado que se arrependesse, embora passasse

por humilhações públicas era absolvido da pena capital.

A obra clássica a respeito do direito processual canônico foi as

Decretais do Papa Gregório IX, tendo sido encomendadas ao dominicado

espanhol Raimundo de Penaforte368. Essas decretais foram divididas em

5 livros, tratando o segundo a respeito do processo canônico.

368 PRATA. Op. cit. p., 112. As Decretais de Gregório IX não são uma simples compilação, porém um verdadeiro código, cuja redação se encomendou ao dominicado espanhol Raimundo de Penaforte, confessor do Papa Gregório IX, antigo professor de Lógica em Barcelona e de direito canônico em Bolonha.

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O direito processual canônico se desenvolvia a partir do

comparecimento do autor perante o juiz369 370 que lhe concedia um prazo

para que trouxesse seu pedido por escrito371, devendo constar do mesmo

os nomes completos do autor e do réu; a motivação da causa; o

procedimento escolhido pelo autor e o nome do juiz. A citação do réu era

realizada pelo juiz, sendo, contudo, a petição entregue ao demandado

diretamente pelo demandante na presença do juiz. Havia diferenças

quanto a forma do pedido nas ações reais e pessoais, quanto àquelas

deveria haver maior detalhamento na elaboração do escrito.

Em sua defesa, o réu poderia alegar as exceções dilatórias a

respeito das quais se manifestava o juiz antes de abrir o prazo para a litis

contestatio372 373. O réu poderia também reconvir, sendo que neste caso,

a competência do tribunal eclesiástico era prorrogada, pois, segundo o

direito canônico, o tribunal da Igreja estava investido de competência

universal. Em seguida, as partes prestavam o juramento que consistia em

369 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 37. Os detentores do poder jurisdicional, no âmbito da igreja, eram os bispos, os metropolitanos, os arcebispos, os patriarcas, os pontífices e o sínodo. Este era um órgão colegiado, composto de diáconos, presbíteros e bispos. 370 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 38. Os juízes tinham competência plena e exclusiva no âmbito territorial de suas respectivas paróquias (dioceses). A competência em razão do valor não guardava qualquer aspecto com a expressão econômica do litígio, mas, sim ,com a relevância que esta possuía. 371 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 38.O processo se iniciava com a tentativa de conciliação, que consistia em um ato informal cuja finalidade era a concórdia entre os litigantes. O fundamento desse instituto processual advém de valores da ética cristã. 372 PRATA. Op. cit. p., 114. A entrega da demanda pelo demandante e sua oposição à mesma pelo demandado constitui a litis contestatio. Por este ato formal que representa o fundamentum et initium ipsius iudicii, formaliza-se o objeto do litígio e seu respectivo processo, vedando-se daí por diante qualquer alteração unilateral da demanda. 373 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 61. A presença das partes era imprescindível para a celebração da litis contestatio.

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um ato formal, através do qual era firmado o compromisso de não

caluniar e mentir em juízo374. O processo canônico valorizou a ética

como um preceito na relação jurídico-processual.

No direito processual canônico, surgiu a noção a respeito da

preclusão, pois desenvolveu-se a idéia a respeito das fases do processo,

as quais eram desenvolvidas de modo encadeado e sucessivo.

A fase probatória era regida pela lei, admitindo-se as provas

documental, testemunhal, pericial e a inspeção judicial. A confissão

desonera o acusador da prova do fato admitido pelo acusado. O ato de

comunicação da sentença ocorria na presença das partes, sendo aquela

proferida após o encerramento da instrução pelo juiz. A sentença deveria

designar o prazo para o seu cumprimento, que não deveria ser inferior a

15 dias nem superior a 6 meses.

O recurso de apelação era admitido das decisões injustas,

contudo, em caso de revelia, de juízo arbitral e depois de dois recursos

interpostos pela parte, não era cabível a via recursal. A apelação devolvia

integralmente a causa para novo julgamento, logo, todos os aspectos da

demanda poderiam ser revistos. Em relação às sentenças nulas, o recurso

adequado era o de cassação. Via de regra, os recursos apresentavam o

374 TUCCI. AZEVEDO. Op. cit. p., 61. O autor que houvesse oferecido prova plena de seu direito não estava, todavia, obrigado a jurar.

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efeito devolutivo e suspensivo, sendo conhecidos e julgados por

autoridade hierarquicamente superior.

As sentenças transitadas em julgado poderiam ser executadas

através de requerimento do exeqüente ou de ofício pelo juiz375. Naqueles

casos em que não tivesse sido fixado o prazo para o cumprimento da

obrigação da sentença, o executor deveria fixá-lo, respeitando os limites

temporais antes mencionados376. O juízo competente para a execução era

o mesmo da cognição, excepcionando-se os casos em que as partes

fossem religiosos, então a execução seria instaurada perante o superior

daquele que proferiu a sentença. Com fundamento nesta observação, “a

doutrina especializada reconhece a natureza prevalentemente

administrativa da execução”377.

Era admitida a execução provisória que, contudo, poderia ficar

sujeita a prestação da caução quando houvesse o risco do dano

irreparável.

375 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 145. A via do processo de execução é aberta após o “decreto executório” constante do próprio título judicial ou proferido em momento ulterior (c. 1651). E isto se justifica porque, em algumas hipóteses, impõe-se prévia liquidação da sentença (c. 1652). 376 TUCCI;AZEVEDO. Op. cit. p., 146. Tratando-se de ação real imobiliária, determina o cânone 1.655, § 1º, que a entrega do bem ao exeqüente deve ser cumprida em imediata seqüência ao trânsito em julgado. 377 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 145.

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285

Havendo a nulidade da sentença ou a restitutio in integrum378,

o executor poderia deixar de promover a execução, comunicando tal fato

às partes e devolvendo o processo ao juízo de origem.

Apresentados sumariamente alguns aspectos do direito

processual canônico, considera-se importante mencionar que o mesmo

passou por diversas alterações, sendo que, em 1317, João XXII que

exerceu o papado entre 1316 e 1334, através da bula Quoniam nulla

reconheceu oficialmente as clementinas que instituíram o processo

sumário.

Após a publicação, em 1500, por Jean Chappuis de uma

coleção de textos reunindo o Decreto de Graciano, as Decretais de

Gregório IX, o Sexto de Bonifácio VIII, as Clementinas e as

Extravangantes considerou-se instituído o Corpus iuris canonici, o qual

foi alterado por diversas vezes até que em, 2 de junho de 1582, a Santa

Sé aprovou e publicou uma edição oficial do Corpus iuris canonici.

Neste texto, estavam incluídas as Instituições de Paolo Lancelotto que

continha, no livro 3, as normas de processo civil.

Em 1917, foi promulgado pelo Papa Benedito XV o Codex

Iuris Canonici que vigorou a partir de 1918 até 1983, quando entrou em

378 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 156. A restitutio in integrum constitui um remédio extraordinário de impugnação da sentença injusta, aparentemente válida, já transitada em julgado.

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286

vigor o atual Código de Direito Canônico379. Durante os séculos XII a

XV, o direito canônico ao lado do estudo do direito romano teve grande

preponderância, inclusive exercendo um papel fundamental na

constituição do direito comum adotado contemporaneamente.

Atualmente, este conjunto de lei da Igreja Católica Apostólica Romana

tem aplicação restrita às causas que dizem respeito às questões

eclesiásticas e relacionadas com os membros do clero ou dos fiéis que

professam o seu credo. Ressalta-se, no entanto, que quanto aos princípios

éticos ou morais, o direito canônico conserva sua importância.

Podem ser enumerados os seguintes princípios do direito

canônico que são basilares para o direito processual em geral: princípios

éticos como o dever de dizer a verdade, a adoção da eqüidade nos

julgamentos e da boa-fé das partes; limitações aos poderes do juiz, que,

embora, inicialmente, não precisasse fundamentar a sentença, com a

evolução dos institutos do direito canônico submeteu suas decisões à

lógica e às regras de experiência da vida; valorização da solução

negociada diretamente entre as partes, buscando, através da conciliação

prévia, da transação e da arbitragem, a composição direta dos interesses

conflituosos. Além desses princípios, podem ser mencionadas, ainda, a

379 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 76. O novo Código de Direito Canônico para a Igreja católica latina foi promulgado pela constituição apostólica Sacrae disciplinae leges Catholica Ecclesia, do Papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, tendo entrado em vigor em 27 de novembro deste mesmo ano.

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287

adoção do procedimento escrito, a admissão das exceções, a

regulamentação do sistema probatório e a exigência da caução. Estes

princípios foram desenvolvidos pelo direito canônico.

O processo canônico foi desenvolvido com vistas à unidade, à

segurança e à organização. Esteve voltado para a busca da perfeição,

considerando-se que a finalidade da Igreja foi e ainda é em grande parte

vinculada à realização da “justiça” de Deus na terra380. Para alcançar este

objetivo serviu-se o processo canônico da lógica.

Apesar da nobreza e grandiosidade do processo canônico, este

sempre esbarrou no problema da morosidade381. Seu procedimento era

complexo e demorado porque comportava uma infinidade de atos

processuais, sendo o desafio da celeridade uma das constantes no direito

processual canônico. Esta afirmação fica evidenciada com a criação de

um rito sumário onde os prazos foram reduzidos e a oralidade sempre

tem uma grande importância.

Há que se ressaltar, entretanto, que os valores do direito

processual canônico estão voltados para a fraternidade, harmonia,

eqüidade e solidariedade, donde se conclui que sua realização muitas

vezes demanda um considerável período de tempo.

380 TUCCI; AZEVEDO. Op. cit. p., 162. A preocupação quanto à realização da justiça, ao dispor o direito canônico que a coisa julgada só corria depois de três sentenças conforme ... ,depois reduzida a duas sentenças conformes ... . Além disso, a colocação tradicional de que as sentenças proferidas nas causas sobre o estado das pessoas jamais passariam em julgado. É o que ocorre também na atualidade.

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288

Afirmar que o direito processual comum ocidental está

embasado no Corpus Iuris Civilis tem algumas implicações dentre as

quais a de maior relevância é o fato do transcurso do longo período de

tempo existente entre o período justinianeu até à contemporaneidade. Por

outro lado, há os aspectos inerentes às transformações social, econômica

e, por via de conseqüência, jurídica ocorridas ao longo desses quase dois

mil anos de história.

Acredita-se que o fio condutor da história do direito ocidental,

o viés das experiências jurídicas ao longo do tempo, a partir do século II,

pode ser atribuído ao direito canônico, o qual associou valores cristãos

do direito romano e do direito germânico para organizar um direito

processual consentâneo com os valores socioeconômico e cultural da

Baixa Idade Média e do início da Idade Moderna. As realidades sociais e

o modelo econômico implantado a partir da Idade moderna alteraram

significativamente a forma da jurisdição e o direito processual.

Foi estruturado, durante o período do processo judicialista, um

modelo jurisdicional canônico que era compartilhado pelos Estados

nacionais nascentes. Como já afirmado, o sistema processual dessa época

era complexo e moroso, tornando necessários os estudos de caráter mais

381 LOPES. Op. cit. p., 99. É no campo da jurisdição e do processo que a influência do direito canônico torna-se determinante.

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pragmáticos que possibilitassem soluções práticas mais adequadas a uma

sociedade mercantilista.

7.5 PROCESSO PRAXISTA

O período dos práticos inicia na Idade Moderna em 1563 e

termina na Idade Contemporânea em 1806, estando intrinsecamente

vinculado com a necessidade de dar maior agilidade e praticidade a

aplicação da “justiça”.

A Idade Média é uma época de transição, ocorrendo a negação

do mundo medieval, a formação do capitalismo, a consolidação dos

ideais de progresso e desenvolvimento e o reforço do pensamento

racionalista e individualista. Os valores da burguesia ascendente se

contrapõem à ideologia católico-feudal, tendo em vista o objetivo de

conquistar o espaço social, político e ideológico.

Outros aspectos importantes como a alfabetização da

população, o surgimento da indústria gráfica e a publicação das obras no

idioma local foram preponderantes para que o sistema feudal fosse

enfraquecido até à consolidação do predomínio do capitalismo. Tais

circunstâncias podem ser atribuídas a fatores diversos, mas acredita-se

que a burguesia tenha interferido em todos estes acontecimentos, uma

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vez que tinha interesses na desestruturação do feudalismo, onde não lhe

era reservado um espaço de poder. Dessa forma, foi buscar apoio entre o

povo proclamando os ideais da liberdade, onde se questionava os

tributos cobrados pelos senhores feudais para a locomoção em seus

territórios e sobre as transações ali realizadas; da igualdade, discutindo o

papel da nobreza decaída; e da fraternidade, questionando o papel da

Igreja quanto à disseminação da ideologia do amor ao próximo.

Os estudos do direito realizados nesse período são voltados

para a solução de problemas práticos relativos ao funcionamento da

justiça, havendo uma despreocupação e um afastamento em relação às

questões teóricas que caracterizaram o período anterior.

Podem ser reconhecidas as seguintes causas que justificam o

surgimento do praxismo: as dificuldades que os juristas enfrentavam

para realizar os estudos dos textos em latim do direito romano; a

necessidade de conhecer as coisas locais e contemporâneas; o

surgimento de um mercado de livros e a necessidade de obras jurídicas

que tratassem das questões práticas do direito.

Os estudos realizados pelos praxistas não tinham uma

sistematicidade ou um método. Nos comentários produzidos nesse

período, os autores se limitavam a se repetir uns aos outros as obras,

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embora tivessem um conteúdo prático, não apresentavam nenhuma

didática.

O direito era tratado como arte, havia uma preocupação com o

embelezamento do comentário produzido, neste sentido os praxistas

chegavam a afastar-se do texto legal, distorcendo o seu sentido por

considerarem que seu trabalho era mais importante que a própria lei.

Com base na herança do direito romano, os praxistas382

entendiam que o processo tinha a natureza jurídica de um quase-contrato,

uma vez que uma de suas características seria o livre consentimento das

partes. A litis contestatio era um ato bilateral, de modo que a ausência da

manifestação da vontade de uma das partes impedia a formação da

relação jurídico-processual. No direito romano clássico, a primeira fase

do processo tramitava frente a um juiz que representava a autoridade

romana e a segunda fase se desenrolava de acordo com a escolha das

partes, as quais manifestavam sua vontade em submeter a causa a um

terceiro para o julgamento.

O direito processual era considerado adjetivo em relação ao

direito material que era substantivo, dessa forma, estabeleciam uma

382 PRATA. Op. cit. p., 131. Praxistas seriam os autores que escreveram sobre matéria processual e práticas notariais.

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292

relação de dependência do processo ao direito material383.

O direito processual era considerado simplesmente como o

estudo da prática forense e da beleza da forma.

Os estudos do processo realizados pelos praxistas foram muito

criticados, porque suas obras se limitavam a tratar das práticas forenses

que deveriam ser adotadas sem preocupações técnicas ou teóricas.

Assim, seus trabalhos apresentavam falhas, porque não adotaram um

método de estudos e nem mesmo se preocuparam com a coerência na

apresentação. Também não há notícias de que tenham almejado o

resultado pretendido, ou seja, não conseguiram simplificar e agilizar o

processo.384

Apesar das críticas que foram feitas em relação ao trabalho

produzido pelos praxistas385, houve contribuições para o direito que se

desenvolveram nesse período. Considera-se que a principal contribuição

foi a popularização do direito, o que ocorreu em virtude da alfabetização

da população, da adoção do idioma local nas obras literárias e do

surgimento da indústria gráfica que fornecia as obras jurídicas para os

383 PRATA. Op. cit. p., 128. Outra crítica injusta é a de que os praxistas misturavam normas de direito processual com as de direito material. Ora, todos os escritores procediam assim. Até nosso Código Civil, do início do século, está recheado de normas do direito processual. Não podemos nos esquecer de que o direito processual nada mais era do que direito adjetivo. 384 PRATA. Op. cit. p., 127. Quem quiser examinar a obra dos praxistas com sério cuidado científico terá que se lembrar, antes de mais nada, que eles produziram seus livros durante o período mais negro da História da Humanidade, qual seja o da Inquisição. 385 PRATA. Op. cit. p., 127. Esta imagem, dos praxistas, na realidade, foi algo distorcida pelos pregoeiros do processualismo científico, cujos estudos merecem toda consideração dos doutos.

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estudos. No contexto do surgimento e posterior consolidação dos

Estados Nacionais a disseminação do direito teve preponderância.

Os praxistas produziram importantes trabalhos a respeito do

recurso de apelação, do conceito de instâncias e da intervenção de

terceiros. Embora seus trabalhos não apresentassem um método, tiveram

a preocupação de entender o processo como o desenvolvimento de

situações jurídicas, ou seja, como uma relação sucessiva de atos

processuais. A citação era considerada um instituto de direito natural.

Esse período teve uma importância considerável para o direito

português, sendo que o termo praxista foi usado em algumas situações

para designar todos os juristas portugueses. O praxismo português se

originou do direito romano e do direito canônico, havendo o predomínio

deste principalmente naqueles aspectos em que o direito português dessa

fase apresentou melhores níveis teóricos e científicos. Considerando que

no Brasil inicialmente foi aplicado o direito de Portugal, considera-se

adequado afirmar que a formação do direito brasileiro está vinculada ao

praximo português.386

O conteúdo das obras jurídicas desse período se referia a

apresentação de modelos de formulários que deveriam ser adotados em

386 PRATA. Op. cit. p., 142. O praxismo brasileiro descende dos portugueses, especialmente de Pereira de Sousa, Lobão, Correia Teles, Manuel Mendes de Castro e outros. ... O direito processual brasileiro origina-se diretamente do direito lusitano. Mesmo depois da Independência nacional, os doutrinadores portugueses continuaram influindo grandemente na formação da cultura jurídica pátria.

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cada caso. A parte artística da prática forense era a jurisprudência

formulária387.

Conquanto durante o processo praxista a finalidade dos juristas

tenha sido dar operacionalidade e rapidez ao processo, houve abuso por

parte dos juízes e dos advogados que ignoravam as formalidades,

transformando a argumentação forense em uma ginástica de chicanas,

confundindo a prudência com a astúcia.

Ao praxismo foi sucedido pelo período procedimentalista que

manteve como centro de suas preocupações as questões pragmáticas

relativas a aplicação do direito, mas que estudou o processo não apenas

como prática forense.

7.6 PROCESSO PROCEDIMENTALISTA

Este período da história do direito processual representa uma

fase intermediária entre um momento em que o processo foi confundido

com o procedimento e seus estudos eram voltados para a criação de

modelos no estilo formulários e a constituição de um arcabouço teórico

que possibilitou o reconhecimento de sua autonomia e da sua

387 PRATA. Op. cit. p., 134. Consiste ela na confecção da forma literal dos fatos jurídicos, isto é, das fórmulas forenses. O complexo das fórmulas forenses, para serem aplicadas mutatis mutandis a cada caso particular, denomina-se – formulário forense.

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cientificidade. O procedimentalismo está intimamente ligado com a

Revolução francesa388 que, naquele momento histórico, representou os

maiores avanços quanto à organização de um novo sistema de produção,

tendo havido a superação da economia feudal e a estruturação da

economia capitalista.389

A Revolução Francesa é a demonstração de que a burguesia

estava pronta para assumir o poder e abrir o espaço necessário para o

desenvolvimento do capitalismo. A primeira fase do movimento

revolucionário que compreende o período entre 1789 e 1799, foi bastante

tumultuado, contudo, permitiu que fossem estabilizadas as disputas

existente em os burgueses, sobretudo, entre os girondinos e os jacobinos.

No século XVIII, a burguesia dominava a economia francesa,

porque o comércio, a indústria e as finanças estavam prevalentemente

sob seu controle. No entanto, o poder político permanecia com a nobreza

388 PRATA. Op. cit. p., 158. A França é a pátria do procedimentalismo, razão pela qual se constitui numerosa a galeria dos adeptos da corrente no país. 389 WOLKMER. Op. cit. p., 417. A grande tentativa de reforma e ruptura do sistema judicial e processual deu-se com a Revolução Francesa, no que diz respeito ao direito continental. As funções judiciais haviam sido apropriadas por toda parte como cargos patrimoniais, como são até hoje os cartórios privados. O processo revolucionário desejava incluir a justiça na esfera da cidadania formal e liberal, e para tanto impôs novas características. Em primeiro lugar, toda justiça precisava ser (re)ligada diretamente ao Estado as jurisdições não estatais foram supridas (como a eclesiástica) ou consideradas existentes por permissão e sob a supervisão do Estado (como os tribunais mercantis). Em segundo lugar, considerando que a soberania popular se exercia pela eleição dos oficiais públicos, havia dois caminhos a seguir quanto ao aparelho judicial ou se elegiam os juízes (solução adotada inicialmente e para algumas jurisdições), ou se subordinavam os juízes à vontade popular expressa nas leis votadas pelos representantes eleitos (solução que se generaliza). Nesse segundo caso, o aparelho judicial transformou-se num corpo profissionalizado de servidores públicos, gozando de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Trata-se de um novo processo de profissionalização, que cooperava para o isolamento de uma corporação profissional dentro do Estado, ao lado do Exército regular e profissional que também se estabeleceu. (grifo nosso)

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296

e o clero que gozavam de privilégios fiscais e judiciários, os quais não se

estendiam àqueles. Esta situação criava contradições e contrastes

insuperáveis, pois, o Rei Luis XVI exercia seu poder de forma absoluta,

embasado na teoria do direito divino dos reis com o quê a burguesia era

excluída do centro das decisões, entretanto, sendo obrigada a arcar com

os custos da manutenção daquele Estado absolutista. Há outros fatores

que influenciaram a revolução, a respeito dos quais se optou por não

estudá-los para evitar o distanciamento do tema central.

Em 1789, com a queda da Bastilha, foi inaugurada uma nova

fase na política francesa, a qual estava amparada ideologicamente pelo

Iluminismo e pelos princípios da igualdade perante a lei, o direito de

propriedade e o direito da resistência à opressão. A primeira Constituição

da França data de 1791 e estabeleceu uma monarquia Constitucional,

sendo a autoridade estatal exercida por três poderes, executivo,

legislativo e judiciário; o voto era censitário; previa a proibição da greve

e da associação de trabalhadores. Através desta Constituição, houve a

separação entre a burguesia e o povo. Também em 1791, foi proclamada

a república na França.

Em 1793, o Rei Luis XVI foi guilhotinado o que gerou a

primeira coligação dos países da Europa contra a França, visando à

contenção da burguesia, que poderia insurgir-se em outros locais caso a

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Revolução Francesa obtivesse êxito. Nesse momento, a burguesia

ocupava o poder estando dividida entre os girondinos que desejavam

consolidar as conquistas burguesas, estancar a Revolução e evitar a

radicalização. Nas reuniões do parlamento, sentavam-se à direita; os

deputados da planície sentavam-se no centro, estes não tinham uma

posição política previamente definida; e à esquerda, localizavam-se os

jacobinos que representavam a pequena burguesia que liderava os sans-

culottes, defensores do aprofundamento da Revolução.

O termo sans-culottes refere-se ao povo, porque usavam calças

compridas em vez dos calções até ao joelho usados pela burguesia.

Indicava socialmente os pequenos comerciantes e assalariados,

posteriormente, o termo foi restringido às pessoas do povo que tivessem

engajadas no processo político revolucionário.

Esses grupos disputaram espaços durante todo o período da

Revolução Francesa, sendo que após várias fases se sucedendo no

domínio do poder, em 1799, com o golpe do 18 brumário foi instalado na

França o regime do Consulado representado por três elementos que

eram: Napoleão, Sieyès e Roger Ducos. Napoleão, que representava os

girondinos, exercia uma clara liderança sobre os demais membros do

Consulado, iniciando-se a era napoleônica.

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O poder exercido por Napoleão foi uma decorrência de seus

êxitos como membro do exército, tendo chegado a general aos 24 anos

de idade, o que lhe atribuía a característica da disciplina e comando; da

insatisfação da burguesia com a instabilidade permanente que

atrapalhava o seu crescimento econômico; e do apoio do campesinato

para o qual havia garantido a posse das terras expropriadas da Igreja e da

nobreza emigrada.

É importante perceber o contexto político em que se constitui

o procedimentalismo, principalmente porque está associado à Revolução

Francesa que tem significado o momento final do feudalismo e a

implantação do capitalismo. Houve uma completa alteração nos

paradigmas que, naturalmente, refletiram-se no campo do direito.

Estavam sendo constituídas as condições para uma sociedade organizada

e progressista, contudo, mais excludente.

Em 1804, foi promulgado o Código Civil de Napoleão e, em 1º

de maio de 1807, entrou em vigor o Código de Processo Civil da França

o qual influenciou todo o direito processual no continente europeu,

sobretudo, os países que foram dominados pela França. O Código de

Processo Civil francês de 1807 caracteriza-se pelo procedimentalismo,

portanto, sendo supervalorizada a questão probatória e o procedimento,

ou seja, os atos praticados pelas partes, pelo juiz e auxiliares da justiça

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no processo. Fundamentalmente, os procedimentalistas diferenciaram-se

dos praxistas porque adotaram um método de estudo, preocupando-se

com a criação de uma técnica processual que pudesse assegurar

resultados efetivos na prestação jurisdicional.

Considera-se interessante mencionar que a França, em 1667,

através da “Ordennance” de Luis XIV, havia codificado o direito

processual de forma metódica, desde então, cogitando a separação entre

o direito formal e o direito material. Em 1790, houve um movimento

reformista do processo civil francês, o qual visava a redução dos prazos

para apelar; a obrigatoriedade da fundamentação das sentenças; a

simplificação das formalidades processuais; o ius postulandi que

posteriormente foi substituído pela obrigatoriedade do profissional do

direito e o retorno da Corte de Cassação.

Nesse ambiente, o Código de Processo civil francês de 1807 se

insere em uma seqüência histórica de desenvolvimento do direito

naquele país, onde desde a fase praxista eram vislumbradas questões

técnicas e teóricas ainda ignoradas em outras regiões da Europa.

Justifica-se, portanto, o papel de destaque da França no

procedimentalismo que atualmente ainda é a referência teórica adotada

naquele país.

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300

Entende-se adequado afirmar que, sob o prisma historicista, os

contornos do processo contemporâneo foram introduzidos na Revolução

Francesa e, através do procedimentalismo, nesse sentido alguns aspectos

são relevantes como a profissionalização da justiça e a busca da

uniformização dos procedimentos. O sistema recursal era fundamental,

pois permitia a supervisão e o controle político permanente das

instâncias inferiores pelas instâncias superiores.

A profissionalização da justiça e a uniformização do

procedimento se traduziram em uma crescente formalização do processo

que passou a operacionalizar com o conceito de verdade formal, o que,

no campo probatório, repercutiu na medida em que o convencimento do

julgador passou a ter parâmetros mais estreitos e, por outro lado,

possibilitou a revisão das provas através dos recursos. Ainda naquele

sentido, eram admitidos os recursos fundados em questões de natureza

meramente formal.

Percebe-se a existência de um fundamento ideológico na

reforma do processo ocorrido na Revolução Francesa que se refere à

estabilização dos meios da aplicação da lei e da realização da “justiça”

através exclusivamente do Estado burguês. As implicações dessa atitude

são inúmeras, mas uma pode ser prontamente identificada, como haver

independência e harmonia entre os poderes da República?

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301

Ideologicamente, a estabilização da direita girondina na França dependia

da criação de uma estrutura de controle ligada ao Estado burguês.

A burguesia francesa soube manejar bem com essas questões,

entretanto, no plano funcional e finalístico do direito processual, as

conseqüências têm sido lamentáveis, porque nesse quadro a prestação

jurisdicional é excessivamente onerosa inviabilizando a existência de um

Poder Judiciário tão eficiente quanto seguro, sobretudo, nos países

periféricos do sistema.

O procedimentalismo sob um ponto de vista técnico

estruturou-se melhor que as fases anteriores, contudo, não conseguiu

resolver o problema da realização da “justiça” célebre, segura e efetiva.

7.7 PROCESSO CIENTÍFICO

Seriam os pressupostos do conhecimento científico capazes de

oferecer respostas aos problemas relativos a aplicação do direito material

através do direito processual? A segurança e a efetividade da prestação

jurisdicional podem ser obtidas através do direito processual? Não

parece ser possível, de forma conclusiva, responder a tais questões.

Algumas considerações, contudo, podem ser feitas.

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302

Sob o ponto de vista teórico, o processualismo científico

representa um ganho qualitativo para as técnicas de aplicação do direito

material. Quanto à operacionalidade do sistema processual há dúvidas

sobre os seus reais benefícios em termos de funcionalidade e finalidades

a serem realizadas pelo processo. Estas afirmações remetem a um ponto

fundamental do final do século XX, o paradigma da ciência está

corrompido, porque não conseguiu oferecer respostas a inúmeras

questões atinentes à solução efetiva dos problemas do Homem. No

campo do direito estão ocorrendo experiências similares àquelas

verificadas nas ciências naturais. O direito processual como instrumento

reflete, de forma clara, as frustrações produzidas através da quebra das

expectativas em relação à possibilidade de uma “vida melhor construída

pela ciência”.

O reconhecimento do processo como uma relação jurídica que

se desenvolve de acordo com determinados requisitos lógicos, que lhe

impõem princípios ordenadores e asseguradores de um resultado pautado

na eqüidade, foi sintetizada na fase científica do processo, contudo,

houve um período de formulação daquela compreensão, sendo que,

desde a história do direito na Grécia390, há notícias de preocupações com

390 WOLKMER. Op. cit., p. 76. Algo notável no direito grego era a clara distinção entre lei substantiva e lei processual. Enquanto a primeira é o próprio fim que a administração da justiça busca, a lei processual trata dos meios e dos instrumentos pelos quais o fim deve ser atingido, regulando a conduta e as relações dos tribunais e dos litigantes com respeito à litigação em si, enquanto que a primeira determina a conduta e as relações com respeito aos assuntos litigados.

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o aperfeiçoamento da técnica do direito processual391. Do

desenvolvimento desta história resultaram as concepções jurídicas que

formaram o processualimo científico.

A doutrina do processualismo científico foi inaugurada com a

publicação, em 1868, da obra “Teoria das Exceções Dilatórias e dos

pressupostos processuais”, cujo autor é Oscar Von Bülow. Foram

valorizadas questões de caráter teórico, como o problema da autonomia

do processo e sua cientificidade.

Em relação aos períodos anteriores de desenvolvimento do

direito processual, sobretudo, em relação ao praxismo e ao

procedimentalismo, foram abandonados os estudos meramente

descritivos e analíticos das práticas forenses. Em substituição, surgiram

estudos ligados aos pressupostos do conhecimento científico

contemporâneo, ou seja, aqueles realizados a partir da definição do

objeto da investigação, da problematização, da justificativa, da

formulação de uma metodologia de abordagem, da adoção de uma

nomenclatura própria para a descrição e explicação do objeto estudado e

391 WOLKMER. Op. cit., p. 70/71. Antes do século VII a.C. os gregos não tinham leis escritas porque a arte da escrita se perdera (escrita linear B) com o término do período Micênico. A escrita, ... , somente foi reaprendida pelos gregos no século VIII a.C. e um dos usos dessa nova arte foi a inscrição pública de leis. ... o povo grego, em determinado ponto da história (por volta do século VII a.C.), começou a exigir leis escritas para assegurar melhor justiça por parte dos juízes. ... As palavras de Teseu nas Suplicantes de Eurípedes (produzida por volta de 420 a.C.) têm sido utilizadas como apoio a essa posição: ‘Quando as leis são escritas, o pobre e o rico têm justiça igual.’ ... É interessante que as maiores inovações introduzidas pelos legisladores, nas novas leis escritas, era com respeito ao processo, justamente o ponto da queixa de Hesíodo. (grifos nossos)

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304

a validação pela comunidade científica do conhecimento produzido.

Nesse contexto, o direito processual teve reconhecida a sua

natureza jurídica publicística, uma vez que sua aplicação está

diretamente ligada ao interesse do Estado392 em assegurar determinados

meios aos indivíduos ou mesmo às coletividades, visando à manutenção

ou restabelecimento da paz social393. Assim, foram definidos os pontos

que separam o direito processual e o direito civil e comercial, estes com

reconhecida natureza jurídica privatística.

Tendo em vista o caráter científico reconhecido ao direito

processual foram elaborados os conceitos fundamentais que deram

sustentação à Teoria Geral do Processo. Neste sentido, Ramiro Podetti

identificou a trilogia estrutura da ciência processual394, qual seja,

jurisdição, ação e processo.

Os codigos de processo do século XX surgiram como

392 ALVIM. Op. cit. p., , 91. Se o processo é meio a perseguir um fim – que se aceita como axioma – põe-se relevante que a técnica é elemento fundamental no tratamento da disciplina. O escopo do processo é, na realidade, não exclusivamente a consecução de um interesse privado das partes, mas principalmente de um interesse público de toda a sociedade. 393 ALVIM. Ob.cit. p. 89. Em 1868, Oskar von Bülow publicou célebre obra, intitulada ‘Teoria das Exceções Dilatórias e dos Pressupostos Processuais’, em que distinguia, com nitidez, o direito material controvertido e o processo, através do qual se resolvia aquela. A relação material litigiosa (res in judicium deducta) era, pois, algo de diferente da relação jurídica processual (judicium). Esta conceituação foi de extraordinária importância, eis que o processo ficou conhecido como verdadeiro ‘continente’ e a lide (retrato do direito material expressado no processo – arts. 128, 460, caput) como o seu ‘conteúdo’. A partir desta distinção passou-se a identificar, na principiologia do processo, a predominância da marca do Direito Público. 394 J. Ramiro Podetti. Teoria y Técnica del Processo Civil da Trilogia Estructual de la Ciencia del Processo civil.

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decorrência da estruturação do direito processual395, sendo significativos

modelos de sistematicidade, organização e método. Os temas são

apresentados de forma compartimentada e de acordo com a classificação

das ações segundo a eficácia pretendida no pedido, o que demonstra o

comprometimento com os paradigmas constituídos pela ciência do

processo396.397

O processualismo científico reflete um momento histórico

onde se cristalizaram as teorias positivistas. O século XIX pode ser

considerado um período de transição entre o mundo clássico e a

modernidade com seus estilos romântico e realista se sucedendo. O

Estado moderno se estruturou nesse período e o direito como

instrumento de regulação nos Estados nacionalistas teve seu campo de

atuação definido, ou seja, os ambientes sócio-político-jurídico estavam

395 PRATA. Op. cit. p., 187. O Código de Processo Civil de 1939 trouxe no seu bojo os postulados abraçados pela nova ciência processual. Aproveitou a doutrina chiovendiana da oralidade processual. Disciplinou condignamente o processo de conhecimento, mas manteve o processo de execução preso a um sistema de cognição, desfigurando-o até certo ponto. Assim, apesar do grande avanço num confronto com os códigos estaduais, por ele revogados, o estatuto processual elaborado por Pedro Batista Martins não conseguira renovar a legislação processual brasileira como se esperava, fato este que os estudiosos iriam observar desde logo ... (grifo nosso) 396 O Código de Processo Civil de 1973 é ilustrativo da adoção do processualismo científico no Brasil. Observa-se o rigor na abordagem dos temas, assim, o Livro I trata das questões conceituais próprias da Teoria Geral do Processo, dos procedimentos no processo de conhecimento, dos processos nos tribunais e dos Recursos; o Livro II dispõe a respeito do processo de execução; o Livro III regulamenta o processo cautelar; o Livro IV trata dos procedimentos especiais; e o Livro V regula as disposições finais e transitórias. Como se verifica houve a preocupação por parte da comissão relatora do Código em lhe dar uma vertente teórica. 397 Exposição de Motivos do Código de Processo civil de 1973. Alfredo Buzaid. Capítulo I. As palavras do insigne mestre italiano que servem de epígrafe a esta Exposição de Motivos, constituem grave advertência ao legislador que áspera a reformar o Código de Processo Civil. Foi sob a inspiração e também sob o temor desse conselho que empreendemos a tarefa de redigir o projeto, a fim de pôr o sistema processual civil brasileiro em consonância com o progresso científico dos tempos atuais.(grifo nosso)

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306

preparados para a superação do pluralismo jurídico e a adoção de um

direito unicamente originado do Estado.

Deve ser considerado o fato de que o processualismo científico

e a teoria pura do direito estão inseridos em um momento histórico

conhecido pela racionalização do poder398. As teorias constituídas nesse

período têm o mérito de apresentar um elevado nível científico,

inclusive, porque estavam ligadas à idéia da importância do método de

investigação. Observa-se que conquanto seja possível identificar um bom

nível teórico-científico neste período, o problema concernente à

complexidade da aplicação prática do arcabouço conceitual criado ainda

não foi resolvido. Esta questão se torna mais evidente nos países cuja

estrutura do Estado apresenta-se desgastada seja pelo endividamento

interno e externo ou pela burocracia anacrônica que abre espaços para a

corrupção.

Dessa forma, os contornos da questão da efetividade e da

segurança da prestação jurisdicional pode ser objeto tanto do direito

como da administração pública, uma vez que o Poder Judiciário não tem

398 DINIZ. Op. cit. p., , 116-117. O racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria kelseniana, expressão máxima do estrito positivismo jurídico, é uma repercussão ideológica de sua época, é uma conseqüência da decadência do mundo capitalista-liberal, marcado pela Primeira Guerra Mundial. Para a ciência jurídica, segundo essa doutrina, não importa o conteúdo do direito. Isto porque, como nos ensina Machado Neto e Legaz y Lacambra, essa teoria, fruto da época denominada “racionalização do poder”, devia reconhecer a existência de ordens jurídicas de conteúdo político, diverso do conteúdo liberal ou social-democrático que exibia nos povos europeus ocidentais. Deveria constituir-se numa teoria do direito que tivesse condições conceituais para admitir a existência ao lado do direito democrático-liberal, de um direito soviético, fascista, nazista.

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autonomia financeira, portanto, permanecendo na “dependência”

orçamentária da União e dos Estados, e, ainda, do Poder Legislativo, na

medida em que não tem plena autonomia gerencial para determinar a

criação dos órgãos jurisdicionais399.

A importância da formulação dos conceitos e métodos

próprios elaborados pelo processualismo científico através da Teoria

Geral do Processo e a posterior Constitucionalização dos princípios

processuais como meio de resguardar os direitos individuais e coletivos

postos em juízo pode ser considerada fundamental para a segurança

jurídica. Inegável, contudo, é a insatisfação dos jurisdicionados com os

resultados apresentados pelo Poder Judiciário em termos da realização

efetiva da prestação jurisdicional. Esta situação agravou-se após 1988,

pois, com a promulgação da Constituição brasileira se reconheceram

novos direitos, o que levou o legislador a criar as leis que os

regulamentasse. A ampliação das tutelas individual e coletiva provocou a

expansão da jurisdicionalização das relações jurídicas e a sobrecarga de

trabalho do Poder Judiciário, o qual já se encontrava abarrotado.

399 Exposição de Motivos do Código de Processo civil de 1973. Alfredo Buzaid. Capítulo I. Depois de demorada reflexão, verificamos que o problema era muito mais amplo, grave e profundo, atingindo a substância das instituições, a disposição ordenada das matérias e a íntima correlação entre a função do processo civil e a estrutura orgânica do Poder Judiciário. Justamente por isso a nossa tarefa não se limitou à mera revisão. Impunha-se refazer o Código em suas linhas fundamentais, dando-lhe novo plano de acordo com as conquistas modernas e as experiências dos povos cultos. Nossa preocupação foi a de realizar um trabalho unitário, assim no plano dos princípios, como no de suas aplicações práticas. (grifos nossos)

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308

Embora não se esteja trabalhando com dados estatísticos, mas

com verificações obtidas a partir dos registros doutrinários e com as

justificativas dos movimentos reformistas do direito processual no

Brasil, há consideráveis razões para admitir a transformação do sistema

processual, bem como a ruptura com os postulados da sua cientificidade,

o que há indícios de que já tenha ocorrido.

Acredita-se na necessidade da identificação das novas

referências teóricas do direito processual no Brasil, pois não parece ser

possível obter a estabilização, no sentido da segurança e efetividade, das

relações jurídicas no campo jurisdicional a partir de casuísmos,

sobretudo, porque os ambientes sócio-político-cultural onde incide o

direito contemporaneamente é altamente complexo e extremamente

susceptível à influência do ambiente econômico.

Observa-se que, desde 1994, quando se intensificou o

movimento de reforma do Código de Processo Civil brasileiro, o modelo

adotado em 1973 vem passando por alterações consideráveis, sendo mais

relevantes sob o ponto de vista científico aquelas que implicaram na

obstrução dos compartimentos que separam os processos de acordo com

a eficácia pretendida no pedido, ou seja, não há nenhum critério razoável

para a classificação das ações atualmente, logo, o sistema ternário

adotado pelo Código não corresponde à situação atual, assim como a

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309

classificação quinária segundo as potências contidas na sentença

apresentada por Pontes de Miranda400 também se revela insuficiente para

explicar a ocorrência dos atos executivos no âmbito da cognição, do

mesmo modo no que se refere à antecipação da tutela, com sua natureza

acautelatória.

O paradigma atual do direito processual brasileiro se assenta

na sua instrumentalidade, acredita-se, contudo, que ainda não tenha sido

sintetizado pela doutrina o adequado aparelhamento teórico que

resguarde o processo dos influxos dos ambientes sócio-político-

econômico. Esta é uma das causas pela qual o direito processual está

sendo apropriado como meio para a realização dos interesses dos grupos

que dominam a cena política e econômica no Brasil.401 Logo, questões

teóricas basilares como aquelas referentes aos critérios para a

classificação das ações, parecem irrelevantes, ou pouco importantes, ou,

objeto de discussões sem caráter pragmático.

400 MIRANDA, Pontes de Francisco Cavalcante. Tratado das ações., t.1. 401 BECKER. L. A.; SANTOS, E. L. Silva. Elementos para uma Teoria Crítica do Processo, p. 47. A instrumentalidade do processo surge como necessidade de criar um novo tipo de discurso nada científico – já que sua finalidade é conferir o atributo de disciplina nada científica a esse ramo da mecânica – ... Qualquer linguagem pseudocientífica, inclusive as da robótica, nesse passo, ajuda a preservar nichos de poder, seja o do economista, seja o do processualista, seja o do robô. ... O direito em geral e o processo em particular, para que sejam estudados com um mínimo de seriedade, precisam constantemente ser acompanhados da seguinte questão: afinal, a que interesse econômico tal ou qual instituto jurídico (processual) visa a defender? A questão não é ‘justiça de quem’ (Macintyre), mas ‘justiça para quem’ (ver Horkheimer, Max, Op. cit. p., , 45). Sem essas questões, que lhes expõem a ideologia, os operadores do direito continuarão comendo a poeira dos economistas (que, aliás, na é pouca) a ponto de serem descartados pelo mercado que defendem tão ardorosamente, qual velhas vassouras esquecidas na despensa.

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310

As referências teóricas elaboradas pela ciência, no entanto,

têm sido consideradas os pontos de sustentação do conhecimento

contemporâneo, por isso a verdade sobre um determinado objeto de

investigação é sempre relacionada com as teorias e métodos que estão

sendo utilizados para seu estudo. Isto pode ser considerado importante

porque assegurou, ao longo do século XX, o desenvolvimento de todos

os setores da vida contemporânea, em que pese não ter sido possível

trilhar todo o caminho na “longa batalha pela luz”.

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311

8 O PROCESSO DE EXECUÇÃO INSTRUMENTAL

A Revolução Francesa representa um momento de transição

paradigmática porque houve a substituição da concepção da vida pautada

em valores metafísicos pela humanização das relações sociais. As idéias

iniciadas na Idade Moderna e que predominaram até à 2ª Guerra

Mundial, correspondem a um momento histórico conhecido como

modernidade402, nesse período, ocorreu a afirmação do Homem como o

centro de referência de todas as coisas. A ciência foi escolhida como o

meio para nortear as ações humanas. Dessa forma, o indivíduo é central

e a ciência é o seu Deus.

A Tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, por artesãos,

operários, camponeses e servos franceses é ilustrativa daquilo que se

sucederia nas camadas sociais, pois demonstra a necessidade da

criação de um sistema de inclusão econômica, social, cultural e legal das

402 TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade, p. 9. A idéia da modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o que repousa esta correspondência de uma cultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo, o que já buscavam pensadores religiosos, mas que foram paralisados pelo finalismo próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito e pelo mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade. É esta afirmação central que foi contestada ou rejeitada pelos críticos da modernidade.

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312

massas desprivilegiadas de bens, títulos e honras. Através da razão

lógico-científica, buscou-se equacionar um sistema onde pudessem ser

acolhidas todas as reivindicações dos diferentes segmentos de

organização da sociedade. Assim foram instaladas as condições para a

criação das novas tutelas jurídicas compreendidas pelos direitos de

liberdade e ao desenvolvimento, identificadas como, respectivamente,

direitos de segunda e terceira geração.

Os direitos materiais foram expandidos de forma significativa,

surgindo as tutelas econômica, social, cultural, ao meio ambiente, à paz e

consumeira.

Em conseqüência desses fenômenos, cada indivíduo passou a

ser portador de um amplo conjunto de direitos a serem efetivados no

plano concreto, ou seja, a abstração legal necessariamente deve ser

aplicada, ainda que de modo coercitivo, diante do descumprimento da

lei. Neste caso o Estado atribuiu ao Poder Judiciário a autorização para

exigir de forma coercitiva o comportamento previsto na lei, logo, através

do processo de execução é possível obter a realização forçada do direito.

Considerado os paradigmas humanistas do individualismo e da

racionalidade exacerbada, optou-se por um modelo que adotou como

premissa a igualdade. Ao direito processual, a partir daqueles

pressupostos, atribuiu-se um caráter eminentemente técnico; ao juiz, a

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313

obrigação da imparcialidade e adotou-se o postulado da verdade formal

no processo civil, em detrimento da busca da verdade real. Estes são

alguns dos aspectos que compõem o quadro das relações jurídico-

processuais voltadas para aquela concepção social da modernidade.

Observa-se que se por um lado o direito material orientou-se

no sentido de incorporar os problemas inerentes ao contexto sócio-

histórico-cultural através da ampliação das tutelas, o direito processual,

permaneceu hermético e, portanto, distante da necessidade da

implementação daqueles direitos de segunda e terceira geração. No

Brasil, as discussões à respeito da inadequação do processo em seu

modelo clássico e científico para atender às novas demandas somente

foram intensificadas a partir de 1988. Essa discrepância entre o direito

material e o direito processual tem estado ligada a uma compreensão

equivocada quanto ao sentido da proclamada autonomia do direito

processual.

A questão da autonomia do direito processual está resolvida

sob o ponto de vista da sua teleologia, pois sua existência vincula-se a

realização de finalidades diferenciadas em relação ao direito material.

Esta questão é reputada de considerável importância, porque da

afirmação anterior, não se pode concluir que o direito processual não

esteja ontologicamente ligado à ciência do direito. Logo, podem ser

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314

mencionadas as finalidades próprias e específicas do direito processual e

aquelas outras finalidades de caráter geral, as quais são compartilhadas

por toda a ciência do direito, entre estas se destaca a estabilização das

relações jurídicas.

Acredita-se que a instrumentalidade do direito processual deve

estar referida aos fins gerais da ciência do direito, e sob este ponto de

vista representa um importante avanço na busca da segurança e da

efetividade da jurisdição.

8.1 A TEORIA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

Diante das questões relativas à ampliação das tutelas de direito

substancial, como já mencionado, e da dificuldade em obter a realização

efetiva do direito, surgiram concepções a respeito dos problemas que

afetam a prestação jurisdicional, bem como dos possíveis meios para

resolvê-los. Nesta seara, destaca-se o conjunto de postulados a respeito

da instrumentalidade do processo403.

403 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, p. 25. É a instrumentalidade o núcleo e a síntese dos movimentos pelo aprimoramento do sistema processual, sendo consciente ou inconscientemente tomada como premissa pelos que defendem o alargamento da via de acesso ao Judiciário e a eliminação das diferenças de oportunidades em função da situação econômica dos sujeitos, nos estudos e propostas pela inafastabilidade do controle jurisdicional e efetividade do processo, nas preocupações pela garantia da ampla defesa no processo criminal ou pela igualdade em qualquer processo, no aumento da participação do juiz na instrução da causa e da sua liberdade na apreciação do resultado da instrução.

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315

A Teoria da Instrumentalidade do processo propõe a

democratização do acesso ao Poder Judiciário e a garantia de uma célere

e efetiva prestação jurisdicional a partir da releitura da Teoria Geral do

Processo e dos princípios Constitucionais de processo404.

É considerado pelos instrumentalistas que a ciência processual

é portadora de um bom nível de abstração conceitual e metodológico, o

que leva à identificação de duas conseqüências principais; por um lado, o

enrijecimento formal das concepções positivistas do processo, e de outro,

o amadurecimento necessário do processo, o que autorizaria uma nova

interpretação e aplicação dos princípios Constitucionais de direito

processual. A partir dessas idéias básicas, é proposta a flexibilização da

segurança jurídica em prol do trinônimo certeza, probabilidade e risco405.

Nesse ambiente, a lei processual e os princípios Constitucionais de

processo podem ser considerados como pontos de referência para guiar a

interpretação e a aplicação concreta do direito processual, que teria,

como finalidade última, o amplo e irrestrito acesso à jurisdição célere,

404 DINAMARCO. Op. cit. p., , 27. A tutela constitucional do processo tem o significado e escopo de assegurar a conformação dos institutos do direito processual e o seu funcionamento aos princípios que descendem da própria ordem constitucional. 405 DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do Processo Civil, p. 17. Nesse clima e com esse espírito, as Reformas do Código de Processo Civil dispuseram-se a transgredir dogmas tradicionalmente levados a extremos perversos. De modo consciente, quiseram transigir racionalmente em relação aos pilares da segurança jurídica dos litigantes, para poder cumprir com mais eficiência a promessa constitucional de acesso à justiça. Uma boa ordem processual não é feita somente de segurança e das certezas do juiz. Ela vive de certezas, probabilidades e riscos. Onde houver razões para decidir ou para atuar com apoio em meras probabilidades, sendo estas razoavelmente suficientes, que se renuncie à obsessão pela certeza, correndo algum risco de errar, desde que se disponha de meios aptos a corrigir os efeitos de possíveis erros.

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316

“justa” e efetiva.

No centro do instrumentalismo estão as idéias de que para o

positivismo os princípios e a Teoria Geral do Processo teriam finalidades

específicas as quais estariam voltadas para a auto-realização da ciência e

do método. Embasado nessa premissa, é afirmado que o processo

científico é excessivamente formalista, afastando-se do interesse

pragmático da jurisdição que seria a realização da paz social através da

“justiça”. Desse modo, pode ser concluído que através da aplicação do

processo instrumental seria possível a construção de uma sociedade mais

pacífica e justa.

A reforma do direito processual brasileiro tem alguns aspectos

de estrangulamento ou ruptura com a ciência processual, sendo que neste

tocante a justificativa passa pela idéia de que o individualismo no

processo é fruto das remanescências de sua vinculação ao direito

privado406. A partir deste fato é proposta a separação entre os fins da

ação segundo os efeitos pretendidos na sentença e a classificação das

406 DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p.52. Apesar da revolucionária abertura favorável ao reconhecimento da natureza pública da relação processual, da ação e de todo o sistema processual enfim, nos espíritos permaneceu a marca da idéia privatista. Os germânicos abandonaram as preocupações centrais com a ação (Rechtsschutzanspruch) e passaram a referir-se ao direito de demandar (Klagerecht), sem maior empenho e desviando para o objeto do processo (Streitgegenstand) o centro metodológico do sistema processual. Mas os latinos, italianos à frente permaneceram metodologicamente ligados à ação e às preocupações com ela e seu conceito e seus elementos e suas condições, assim é, de modo superlativo, a orientação predominante entre os processualistas brasileiros, caracterizada na “Escola Processual de São Paulo”. Numa palavra, a ciência dos processualistas de formação latina apresenta a ação como pórtico de todo o sistema, traindo com isso a superada idéia (que, conscientemente, costuma ser negada) do processo e da jurisdição voltados ao escopo de tutelar direitos subjetivos..

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317

ações ou tipos de processo. Assim também se justifica a fusão entre os

procedimentos previstos no Código, donde, na cognição são realizadas a

execução e a antecipação da tutela. O processo de execução e o processo

cautelar são esvaziados sob o argumento da necessidade da celeridade

para a obtenção da efetiva entrega do bem da vida ao jurisdicionado.

Tudo se realizando ao fundamento da possível reversibilidade da

situação anterior em casos de erros.

Após a apresentação geral dos aspectos fundamentais da

Teoria da Instrumentalidade do Processo, deve-se, ainda, mencionar que

a figura do julgador é central para a operacionalização da

instrumentalidade, porque o princípio dispositivo cede espaço ao

princípio inquisitivo, sendo que o juiz deve assumir uma postura ativa

em face da condução do processo e da aplicabilidade da lei, sempre

tendo em vista o contexto sócio-histórico-cultural atual ao momento do

julgamento, objetivando a uma justiça com conteúdo substancial.

O núcleo da Teoria Instrumental consiste na realização do

objeto substancial do processo que deve ser a “justiça”.

Axiologicamente, a “justiça” se vincularia à garantia do acesso ao Poder

Judiciário e à prestação jurisdicional célere e efetiva. As construções

tendentes à realização daquelas finalidades são realizadas no campo da

principiologia Constitucional e da Teoria Geral do processo. Nesse

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318

contexto, há uma pretensão de se discutir o direito processual a partir da

sua abertura sistêmica em relação aos ambientes sócio-cultural.

No tocante ao reconhecimento da comunicação entre os

ambientes jurídico e sócio-cultural, a partir da axiologia do processo, e

da sua compreensão no âmbito da Teoria da Ciência do Direito, a Teoria

Instrumental está cumprindo um papel importante na incansável busca da

realização da prestação jurisdicional satisfatória.

8.2 A CRISE DOS PARADIGMAS E SEUS REFLEXOS NO DIREITO

Deve ser lembrado que a insatisfação quanto aos meios de

realização da “justiça” é um fenômeno histórico, assim, em todos os

tempos, lugares e civilizações houve tentativas que procuraram contornar

os problemas inerentes a adoção de um método eficiente para a aplicação

do direito. Neste sentido, o objetivo primordial do processo tem sido

assegurar a paz social através da aplicação das normas jurídicas de

direito material. Através de uma observação superficial poderia parecer

que o processo não tem um fim em si mesmo, repousando sua existência

sob o direito material.

Esta aparente vinculação entre o direito formal e o material, foi

superada com o processualismo científico, no entanto as questões

relativas ao modo como a jurisdição é operacionalizada continuaram

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319

apresentando algumas dificuldades diante da incapacidade do Poder

Judiciário em atender, em tempo razoável, a demanda dos serviços que

lhe é exigido.

A partir dessas considerações pode ser afirmado que o direito

processual não está enfrentando uma crise de paradigmas, porque seus

conceitos e métodos não estão sendo substituídos, bem como não se está

diante de novos problemas a serem enfrentados pela ciência processual.

A comunidade jurídica especula a respeito das maneiras que possam

tornar os resultados da prestação jurisdicional céleres, efetivos e

“justos”. Nesses problemas reside, praticamente, toda a história de

formação do direito processual.

Deve observar-se que, embora através da Teoria da

Instrumentalidade exista uma tentativa de abertura do ambiente jurídico

processual, o que possibilitaria admitir o seu acoplamento estrutural, isto

efetivamente não ocorre, porque as propostas apresentadas através

daquela teoria são referidas ao fechamento operacional, ou seja, o

problema da efetividade da jurisdição não ultrapassou as fronteiras da

ciência processual para ser discutida nos ambientes econômico-político-

social-cultural a saturação do Poder Judiciário.

Acredita-se que o “justo”, seja qual for o sentido que se

pretenda lhe atribuir, não se realizará como um bem inerente ao direito

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processual, porque a amplitude e a magnitude dessa expressão não

podem ser limitadas a um ambiente restrito.

Ao tratar da crise dos paradigmas o que se pretende é remeter

à teoria dos sistemas autopoiéticos, estabelecendo os critérios para o

estudo da instrumentalidade do processo a partir das relações que este

pode estabelecer com ambientes extra-processuais. Logo, a crise está

localizada nos resíduos que a modernidade produziu como consectários

das transformações verificadas após a Revolução Francesa407, as quais

407 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: para um novo senso comum, v. 1. p. 23-24. Não parece que faltem no mundo de hoje situações ou condições que nos suscitem desconforto ou indignação e nos produzam inconformismo. Basta rever até que ponto as grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos. No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21’% da população mundial controlam 78% da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do sector têxtil ou da electrónica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e da América do Norte na realização das mesmas tarefas e com a mesma produtividade. Desde que a crise da dívida rebentou no início da década de 80, os países devedores do Terceiro Mundo têm vindo a contribuir em termos líquidos para a riqueza dos países desenvolvidos pagando a estes em média por ano mais de 30 biliões de dólares do que o que receberam em novos empréstimos. No mesmo período a alimentação disponível nos países do Terceiro Mundo foi reduzida em cerca de 30%. No entanto só a área de produção de soja no Brasil daria para alimentar 40 milhões de pessoas se nela fossem cultivados milho e feijão. Mais pessoa morreram de fome no nosso século que em qualquer dos séculos precedentes. A distância entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no mesmo país não tem cessado de aumentar. No que respeita a promessa da liberdade, as violações dos direitos humanos em países vivendo formalmente em paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze milhões de crianças trabalham em regime de cativeiro na índia; a violência policial e prisional atinge o paroxismo no Brasil e na Venezuela, a violência sexual contra as mulheres, a prostituição infantil, os meninos de rua, os milhões de vítimas de minas antipessoais, a discriminação contra os toxicodependentes, ... . No que respeita à promessa da paz perpétua que Kant tão eloquentemente formulou, enquanto no século XVIII morreram 4,4 milhões de pessoas em 68 guerras, no nosso século morreram 99 milhões de pessoas em 237 guerras. Entre o século XVIII e o século XX a população mundial aumentou 3,6 vezes, enquanto os mortos na guerra aumentaram 22,4 vezes. Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da guerra fria, a paz que muitos finalmente julgaram possível tornou-se uma miragem em face do aumento nos últimos 6 anos dos conflitos entre Estados e sobretudo dos conflitos no interior dos Estados. Finalmente, a promessa da dominação da natureza foi cumprida de modo perverso sob a forma de destruição da natureza e da crise ecológica. ... Nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca de um terço de sua cobertura florestal. Apesar da floresta tropical fornecer 42% da biomassa vegetal e do oxigênio, 600.000 hectares de floresta mexicana são destruídas anualmente. As empresas multinacionais detêm hoje direitos de abate de árvores em 12 milhões de hectares da floresta amazônica. A desertificação e a falta de água são os problemas que mais vão afectar os países do Terceiro Mundo na próxima década. Um quinto da humanidade já não tem hoje acesso a água potável. (grifos nossos)

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afetam o direito a partir de seu estudo como sistema acoplado

estruturalmente.

A crise dos paradigmas da modernidade ocidental pode ser

localizada nas concepções a respeito da ciência e do direito, como

formas articuladas de poder social. Considera-se útil e necessário definir

que, no âmbito desta pesquisa, os paradigmas da modernidade são a

regulação408 e a emancipação409. Tendo em vista a complexidade e o

aspecto revolucionário que a modernidade representou em relação ao

mundo clássico, seu projeto criou contradições internas que levaram ao

que pode ser identificado como os excessos e os déficits da regulação e

da emancipação.410

408 SANTOS. Op. cit. p., , 50. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, formulado essencialmente por Hobbes, pelo princípio do mercado, desenvolvido sobretudo por Locke e por Adam Smith e pelo princípio da comunidade, que domina toda a teoria social e política de Rousseau. O princípio do Estado consiste na obrigação política vertical entre cidadãos e Estado. O princípio do mercado consiste na obrigação política horizontal individualista e antagônica entre os parceiros de mercado. O princípio da comunidade consiste na obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e entre associações. (grifos nossos) 409 Ibidem,p. 50. O pilar da emancipação é constituído pelas três lógicas de racionalidade definidas por Weber; a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e do direito. (grifo nosso) 410 Ibidem, p. 50. O paradigma da modernidade pretende um desenvolvimento harmonioso e recíproco do pilar da regulação e do pilar da emancipação, e pretende também que esse desenvolvimento se traduza indefectivelmente pela completa racionalização da vida, colectiva e individual. Esta dupla vinculação – entre os dois pilares, e entre eles e a práxis social – vai garantir a harmonização de valores sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça e autonomia, solidariedade e identidade, igualdade e liberdade. ... Cada um dos pilares, e porque ambos assentam em princípios abstractos, tende a maximizar o seu potencial próprio, quer pela maximização da regulação quer pela maximização da emancipação, prejudicando, assim o êxito de qualquer estratégia de compromissos pragmáticos entre ambos. Para além disso, os referidos pilares assentam em princípios independentes e dotados de diferenciação funcional, cada um dos quais tende a desenvolver uma vocação maximalista: ao lado da regulação, a maximização do Estado, a maximização do mercado ou a maximização da comunidade; no lado da emancipação, a esteticização, a cientificização ou a juridicização da praxis social. (grifo nosso)

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Os excessos foram considerados como desvios fortuitos e os

déficits como deficiências temporárias, os quais deveriam ter sido

resolvidos com a utilização dos recursos material, intelectual e

institucional criados na modernidade. A reordenação dos excessos e dos

déficits foi confiada à ciência que subordinou o direito411, o qual

manteve um papel determinante412. Os critérios científicos da eficiência e

da eficácia se tornaram hegemônicos em relação ao outros pilares da

emancipação na medida em que a ciência assumiu o seu papel como

força produtiva,

Sob a regência do conhecimento identificado como científico

se estabeleceu uma relação circular de cooperação entre o direito e a

ciência, sendo, contudo, a racionalidade moral-prática e cognitivo-

instrumental colocadas aos serviços dos pilares da regulação.

A respeito da relação de cooperação entre o direito e a ciência,

a conseqüência fundamental se refere a despolitização da vida social

através da gestão científica da sociedade. Em um ambiente com tais

411 Ibidem, p. 51-52. ... tanto a micro-ética – um princípio de responsabilidade moral reportada exclusivamente ao indivíduo – como o formalismo jurídico – uma vasta constelação intelectual jurídica que se estende das pandectas germânicas ao movimento da codificação (cujo marco principal é o Código Napoleônico de 1804) e à teoria pura do direito de Kelsen (1967) – são valorizados de acordo com a sua adequação à necessidades da gestão científica da sociedade. (grifo nosso) 412 Ibidem, p. 52. ... a racionalidade moral-prática do direito, para ser eficaz, teve de se submeter à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência ou ser isomórfica dela. Mas, apesar de subordinada, foi também uma participação central porque, pelo menos a curto prazo, a gestão científica da sociedade teve de ser protegida contra eventuais oposições através da integração normativa e da força coercitiva do direito. Por outras palavras, a despolitização científica da vida social foi conseguida através da despolitização jurídica do conflito social e da revolta social. (grifo nosso)

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características, os princípios do Estado, do mercado e da comunidade

encontram condições favoráveis a exacerbação das suas práticas.413

O desequilíbrio entre a regulação e a emancipação ocorreu sob

o predomínio da regulação, identificando-se uma das causas que pode

justificar esta situação como a necessidade da neutralização dos conflitos

e revoltas sociais que pudessem desestruturar as organizações de poder

consolidadas pela burguesia, que após a Revolução, sonegou ao

proletariado o espaço que lhe havia sido prometido através da igualdade,

mitigando seu lugar através das políticas intervencionistas nas relações

trabalhistas e após a 2ª Guerra Mundial, nas relações consumeiras.414

O direito na transição entre o mundo clássico e o moderno

pretendeu ocupar um papel emancipatório ao lado das artes e da ciência.

Fatores diversos, como o modo pelo qual ocorreu a recepção do direito

romano pelos glosadores transformando-o em um sistema lógico, rígido

de estruturas formais baseadas na complexa combinação entre

autoridade, racionalidade e ética. A subordinação dos paradigmas da

413 Ibidem, p. 57. A redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado, incentivadas pela conversão da ciência na principal força produtiva, constituem as condições determinantes do processo histórico que levou a emancipação moderna a render-se à regulação moderna. Em vez de se dissolver no pilar da regulação, o pilar da emancipação continuou a brilhar, mas com uma luz que já não provinha da tensão dialética inicial entre regulação e emancipação – tensão que ainda pode ser percebida, já sob o crepúsculo, na divisa do positivismo oitocentista - ordem e progresso -, mas sim dos diferentes espelhos que reflectiam a regulação. Neste processo, a emancipação deixou de ser o outro da regulação para se converter no seu duplo. 414 Ibidem, p. 57. A absorção da emancipação pela regulação – fruto da hipercientificização da emancipação combinada com a hipermercadorização da regulação - , neutralizou eficazmente os receios outrora associados à perspectiva de uma transformação social profunda e de futuros alternativos.

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modernidade ao desenvolvimento do capitalismo a partir do momento

em que este assumiu a posição de modo de produção dominante nos

países centrais, e ainda, a burguesia tendo se tornado uma classe

hegemônica; alteraram o papel do direito que se transformou em uma das

espécies do conhecimento-regulação. A ordem é a forma do saber para o

conhecimento-regulação.

Dessa forma, ocorreu a juridicização dos conflitos no ambiente

social, sendo que, ao ampliar horizontal e verticalmente sua autoridade

reguladora sobre a sociedade, o direito comprometeu sua

operacionalização funcional, politizando-se excessivamente, e

desequilibrando sua autoprodução normativa.415

É considerada muito complexa a questão da crise dos

paradigmas da modernidade ocidental e suas repercussões no ambiente

jurídico, acreditando-se, contudo, que o desequilíbrio entre a regulação e

a emancipação verificado a partir da vocação maximalista dos pilares

que lhe dão sustentação e, principalmente, tendo como referências a

dominação do direito pela cientificização do conhecimento, como única

forma de saber válido, e da preponderância da regulação sobre a

emancipação, podem ser admitidos como os pontos onde são mais

415 Ibidem, p. 158. ... as disfunções redundam numa ineficácia do direito: é muito provável, ou até quase certo, que a discrepância da lógica interna e da autoprodução dos padrões do direito com os das outras esferas da vida social por ele reguladas torne a regulação jurídica ineficaz ou contraproducente. (grifo nosso)

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perceptíveis os reflexos da crise sobre o direito.

Quanto à tendência maximalista dos pilares da emancipação é

especialmente relevante o fato da judicização da praxis social416 porque

aí podem ser localizados alguns problemas operacionais do direito

regulatório, tais como a demora e os custos da prestação jurisdicional; o

congestionamento dos tribunais; a insuficiência dos serviços da justiça

que estão associados a fatores de ordem financeira e humana,

principalmente; as discrepâncias entre o direito escrito e o direito

aplicado, entre outros fatores.417

8.3 QUESTÕES INSTRUMENTAIS E PARADIGMÁTICAS DA ALTERAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO

Através do direito processual, deve ser assegurada a prestação

jurisdicional revestida das características da segurança jurídicas e da

efetividade. O conteúdo desses valores atribuídos ao processo tem

demandado discussões intermináveis, as quais são travadas entre

todos os setores do ambiente jurídico.

416 Ibidem, p. 151. A juridicização da prática social significou a imposição de categorias, interacções e enquadramentos jurídicos estatais, relativamente homogéneos, nos mais diversos e heterogêneos domínios sociais (família, vida comunitária, local de trabalho, esfera pública, processos de socialização, saúde, educação, etc.). A manejabilidade do direito estatal pressupunha a maleabilidade dos domínios sociais a regular juridicamente. 417 Ibidem, p. 161. ... para além do limitado – mas importante – nível “operacional”, esses problemas não são jurídico-técnicos: são problemas políticos. Isto é sobretudo evidente em dois dos defeitos da juridicização da vida social salientados pelos processualistas e os autopoieticistas: ineficácia e materialização (sobrecarga). (grifo nosso)

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326

A propósito da questão da segurança jurídica é possível

demarcar três dimensões as quais são acreditas como fundamentais: sob

o ponto de vista técnico-jurídico Constitucional, o princípio do devido

processo legal e suas garantias é uma referência; a instrumentalidade do

processo para a realização do pacta sunt servanda é representativa de

outra esfera de incidência da segurança jurídica, neste caso, enfocada

teoricamente. Considerando aspectos metodológicos, a segurança

jurídica pode assumir um importante papel no controle dos riscos quanto

aos desapontamentos ocorridos diante da potencial frustração das

expectativas verificadas no ambiente jurídico.

A efetividade apresenta um conteúdo mais restrito, podendo

ser vinculado à garantia da concretização do comando legal contido na

norma jurídica através do aparelho estatal, ou seja, por meio da ação do

Poder Judiciário, que para obter o resultado pretendido, poderá adotar

atos de violência institucional. Esta afirmação está ligada à idéia

largamente aceita e difundida de que o direito tutela a autonomia da

vontade, logo, quando ocorre a imposição da realização de atos

contrários à vontade, não é impróprio reconhecer-se a violência, e ainda

mais, que todo o sistema legal estará operacionalizando de forma

invertida.

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327

É questionável a afirmação corrente que associa a efetividade à

celeridade e à “justiça” da prestação jurisdicional. Estes também são

reconhecidos como importantes características da prestação jurisdicional,

mas não se confundem com a garantia da realização prática do direito

através do poder judiciário.

Desta forma, os problemas que podem afetar a efetividade nem

sempre são iguais àqueles que comprometem a celeridade, ou ainda, a

“justiça”.

A celeridade é um substantivo feminino que se refere àquilo

que apresenta “grande atividade ou rapidez”418. O processo, pela sua

própria natureza e pelo seu estágio moderno de desenvolvimento,

vincula-se a certos valores que naturalmente comprometem as idéias que

tenham o objetivo de torná-lo algo essencialmente rápido. Nesse

diapasão, deve ser lembrado o princípio do contraditório e da ampla

defesa e a garantia do duplo grau de jurisdição, entre outros preceitos

normativos que instruem o sistema processual. Observa-se que tais

preceitos estruturantes da ordem processual vinculam-se ao princípio

fundamental da constituição do Estado Democrático de Direito419.

As idéias concernentes à “justiça” têm uma amplitude

418 AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa., v, 1. p. 670. 419 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 1º

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328

epistemológica, subjetividade histórica e relatividade espacial que

permite afirmar que o “justo” somente pode ser realizado considerando-

se aquelas contingências.

O processo de execução no Brasil tem apresentado bons níveis

de segurança jurídica, pois não há notícias de privação de bens ou

direitos sem a observância das garantias inerentes ao devido processo

legal420. Quanto à efetividade, não se vislumbra uma crise institucional

da República, onde a desobediência civil apresente proporções elevadas

ao ponto dos órgãos judiciários não conseguirem realizar as suas

funções.

Logo, o problema do direito processual e, sobretudo, da

execução não está relacionado com a segurança jurídica e nem mesmo

com a efetividade da entrega da prestação jurisdicional. Ressalta-se,

ainda, que estes são valores distintos e complementares, não se

admitindo o pressuposto da existência de fortes contradições e

contraposições entre eles.

Deve ser questionado, então, quais são as justificativas para o

movimento de reforma do direito processual e do poder judiciário no

Brasil. E mais, por que os jurisdicionados e os operadores do direito

420 Deixa-se de adentrar nos problemas da legitimação da ordem jurídica e do pluralismo legal porque extrapolam os propósitos deste estudo.

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329

manifestam um elevado grau de insatisfação com a prestação

jurisdicional?

Acredita-se na impossibilidade de se apresentar soluções para

tais problemas com base restritivamente nos elementos do ambiente do

sistema jurídico. É necessário reportar ao que foi identificado como a

crise dos paradigmas da modernidade ocidental, tendo havido o

predomínio da regulação sobre a emancipação e a maximização dos seus

pilares, os excesso e os déficits geraram como resíduos da modernidade,

entre outros, a incapacidade do Direito em responder à sua máxima

autoprodução normativa e à juridicização das práticas sociais.

O ponto central está em que a reforma do processo de

execução está sendo realizada com base em uma confusão entre o que

vem a ser a efetividade, a segurança, a celeridade e a “justiça” no

contexto do direito processual e do funcionamento do Poder Judiciário.

Como salientado, cada uma daquelas características são distintas e

autônomas entre si. Os problemas somente poderão ser adequadamente

enfrentados e resolvidos na medida em que houver o reequilíbrio entre os

pilares da emancipação e da regulação e a interpretação e a aplicação do

direito com base em teorias sistêmicas que admitiam o acoplamento

estrutural.

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330

É desagradável a constatação angustiante de que as possíveis

soluções para o problema da insatisfação generalizada com os serviços

prestados pelo judiciário não possam ser viabilizadas através dos

postulados da teoria da instrumentalidade processual ou da sanção de

uma nova lei. O que está sendo tentado é uma “saída” que,

economicamente, não torne a estrutura do Poder Judiciário ainda mais

onerosa. No entanto, o que se está colocando em risco é a própria ordem

institucional do Estado brasileiro, porque as reformas estão sendo

promovidas ao sabor da ampliação dos poderes da magistratura, e do

emprego de uma linguagem processual indefinida e de conteúdo muito

vago. Desta forma, corre-se o alto risco de não serem resolvidos os

problemas quanto à insatisfação com a prestação jurisdicional e, ainda,

criarem-se outros problemas decorrentes da subjetividade do julgador e

da qualidade duvidosa da técnica da linguagem e do procedimento.

8.4 PRINCIPAIS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 11.232 DE 22/12/2005.

Na exposição de motivos no 204, de 15/12/2004421, foram

assumidos compromissos qualificados como fundamentais pelos Três

Poderes da República tendo em vista a morosidade dos processos

421 Pacto de Estado em favor de um judiciário mais rápido e republicano.

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judiciais e a baixa eficácia de suas decisões. No mesmo sentido é a

exposição de motivos do Projeto de Lei que tramitou na Câmara com o

no 3.253-B de 2004, e no Senado, com o no 52/2004, tendo sido

sancionado em 22 de dezembro de 2005, na Lei 11.232.

O Instituto Brasileiro de Direito Processual exerce um

importante papel nas reformas que estão sendo promovidas porque,

através de seus membros, dentre os quais destaco a professora Ada

Pellegrini Grinover e o professor José Manoel de Arruda Alvim Neto;

estão sendo promovidas as discussões que têm resultado nos textos

legais aprovados, assim como as jornadas de estudos e os seminários,

com a participação da comunidade jurídica.

Sob o ponto de vista estrutural e legal, as reformas

representam grandes mudanças e terão repercussões profundas na

operacionalização dos procedimentos judiciais, acreditando-se que as

novas normas processuais possam ser hábeis ferramentas na realização

da prestação jurisdicional satisfatória.

Enfocando os aspectos estruturais, verifica-se que a Lei

11.232/2005 rompe definitivamente com o modelo compartimentado do

Código de Processo Civil de 1973. Desta forma, a separação entre a

cognição e a realização prática do comando legal concreto externado na

sentença, que se embasava na classificação das ações segundo a eficácia

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pretendida na petição inicial, perde consideravelmente sua importância

para a doutrina processual brasileira.

As conseqüências dessa mudança serão percebidas de

diferentes maneiras, quer-se destacar seu possível alcance sob a

perspectiva procedimental. Para tanto, tome-se a petição inicial a qual

tem a finalidade precípua de nortear a pretensão objeto da causa. Logo,

nos requerimentos da inicial, deve ser mencionado tudo aquilo que se

pretenda obter através do processo. No modelo anterior, os pedidos

visavam, por exemplo, ao conhecimento a fim de que o poder judiciário

declarasse, constituísse ou condenasse, relativamente aos fatos argüidos

e provados. Necessariamente, a sentença se subordinava à pretensão, daí

não poder ser proferida extra, ultra ou citra petita422.

Há de se questionar, na petição inicial,se deverá ser

manifestada a pretensão quanto à liquidação e ao cumprimento da

sentença nos termos dos recém-criados Capítulos IX e X, do Título VIII,

do Livro I do Código de Processo Civil?

Ressalta-se que a sentença não terá o efeito de terminar o

processo423, uma vez que os atos realizados para o seu cumprimento

422 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, p. 456. A função do juiz é compor a lide, tal como for posta em juízo. Deve proclamar a vontade concreta da lei apenas diante dos termos da litis contestacio, isto é, nos limites do pedido do autor e da resposta do réu. São defeitos, assim, os julgamentos extra petita (matéria estranha à litis contestatio); ultra petita (mais do que pedido) e citra petita (julgamento sem apreciar todo o pedido). 423 Lei 11.232/05. Artigo 162 § 1º. Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei (CPC).

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333

serão praticados como uma simples decorrência desta. O julgador poderá

ex officio promover os atos que se seguem à sentença a fim de obter o

seu efetivo cumprimento?

Havendo sido requerido pela parte na petição inicial que o

julgador na sentença, em caso de condenação, determine a liquidação e o

comprimento da mesma, tal pedido vincula sua manifestação para a

caracterização dos defeitos que podem atingi-la? Em caso positivo,

caberá embargos de declaração?

Admitindo-se que a petição inicial possa apresentar

requerimentos mistos, objetivando a condenação, a liquidação e o

cumprimento da sentença de modo sucessivo; proferida a sentença

condenatória, que neste caso, teria efeitos constitutivos integrativos e

executivos, e permanecendo inerte o órgão jurisdicional, ou seja, o Juízo

deixando de promover os atos tendentes à efetivação da sentença,

poderá, posteriormente, ser aplicada a prescrição intercorrente à parte?

O artigo 475-P, parágrafo único da Lei 11.232/05 dispõe sobre

a possibilidade legal da escolha pelo exeqüente quanto ao foro para a

tramitação do cumprimento da sentença. Neste caso, isto ocorrerá através

da carta precatória, ou através de um novo processo? Nesta segunda

situação, qual será o procedimento adequado? Observe-se que o

cumprimento da sentença, nos moldes das alterações, não caracteriza um

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novo processo, mas apenas um conjunto de procedimentos realizados na

continuidade da cognição.

Tratando-se de sentença condenatória líquida em obrigação de

pagamento de quantia certa, portanto, dispensada a fase de liquidação,

qual o procedimento que deve ser adotado? Verifica-se que os artigos

475-I a 475-R, da Lei 11.232/05, que regulam o cumprimento da

sentença não mencionam, na hipótese aventada, como seria iniciado o

procedimento, limitando-se no artigo 475-J a afirmar que o não-

pagamento pelo devedor no prazo de 15 dias gera direito ao credor a uma

multa de 10% (dez por cento). Como deverá ocorrer a comunicação

processual do devedor para que efetue o pagamento?

Quanto aos meios de impugnação do procedimento de

cumprimento da sentença, embora o artigo 475-M, da Lei 11.232/05,

tenha estabelecido como regra geral a não-concessão do efeito

suspensivo. Em sua segunda parte, prevê a possibilidade da suspensão do

andamento do processo “desde que relevantes seus fundamentos e o

prosseguimento da execução seja manifestamente suscetível de causar ao

executado grave dano de difícil ou incerta reparação”. Neste tocante,

verifica-se que o legislador confiou ao julgador a apreciação dos critérios

para a suspensão, pois a medida da relevância e os riscos efetivos dos

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danos deverão ser averiguados segundo a sua compreensão diante dos

fatos.

Restaram ainda os embargos à execução da fazenda pública, o

que dispensa comentários diante dos reclamos dos operadores do direito

pela isonomia entre as partes no processo, ressaltando-se o fato de que

pode ser atribuída à fazenda pública boa parte dos problemas do Poder

Judiciário, tendo em vista seus privilégios processuais e as práticas

prograstinatórias que adota.

Pode transparecer certo pessimismo e resistência quanto às

inovações criadas, mas não é o caso. Realmente não se pode deixar de

notar um retrocesso na técnica utilizada, sobretudo, na linguagem

adotada. Os termos e expressões lingüísticos em muitos pontos são

portadores de uma indefinição que se acredita ser inadequada ao direito

processual. O intérprete e aplicador da norma jurídica processual precisa

ter bem demarcadas as maneiras através das quais fará atuar

concretamente o direito. Este fato consiste em um importante elemento

de segurança jurídica.

As situações levantadas comportam soluções, ora contidas no

texto legal, ora construídas através da analogia. Ao que tudo indica, o

legislador pretendeu assimilar o modelo praxista adotado no processo

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336

trabalhista onde, sabidamente, o andamento dos processos consome

menos tempo.

Ressalta-se, ainda, que são adotadas fórmulas, algumas vezes

casuísticas para resolver os problemas que afetam o processo trabalhista.

Há, contudo, uma justificativa teleológica para as práticas

procedimentais da justiça do trabalho, trata-se do reconhecimento

pacificado segundo o qual entre as partes na lide trabalhista há diferenças

intransponíveis, resquícios da “questão social”424 , a qual jamais chegou

a ser superada, principalmente nos países periféricos do sistema

capitalista.

A autonomia do processo trabalhista em relação ao direito do

trabalho é reconhecida, mas entre eles pode ser observada uma relação

vertical, neste sentido, a instrumentalidade do processo tem

um caráter mais profundo, donde há importantes

doutrinadores que reconhecem a aplicação dos princípios da

424 NASCIMENTO, Amaury Mascaro do. Curso de Direito do Trabalho, p. 4. A expressão questão social não havia sido formulada antes do século XIX, quando os efeitos do capitalismo e as condições da infra-estrutura social se fizeram sentir com muita intensidade, acentuando-se um amplo empobrecimento dos trabalhadores, inclusive dos artesãos, pela insuficiência competitiva em relação à indústria que florescia. ... Daí porque Utz intenta delimitar a questão social nos seguintes termos: 1) deve tratar-se de uma perturbação do corpo social; 2) mediante essa perturbação resultam prejuízos a um ou diversos grupos sociais; 3) não se trata de um fenômeno individual e transitório, mas coletivo e prolongado de irrealização do bem comum; 4) é definida como ‘problema ou procura das causas das perturbações que dificultam a realização do justo social na totalidade da sociedade e igualdade o esforço para encontrar os meios para superar essas causas’.

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337

proteção425 e da finalidade social426 no processo trabalhista em

atenção ao princípio protecionista do hipossuficiente econômico do

direito do trabalho.

O artigo 791, da Consolidação das Leis do Trabalho427, está

vigente, ressurgindo desse fato a manutenção do ius postulandi na justiça

do trabalho, o que representa um outro aspecto que diferencia o modelo

procedimental trabalhista do civilista. Em decorrência dessa

característica do procedimento na justiça do trabalho, o princípio

inquisitivo é aplicado na condução do processo a fim de tutelar o

reclamante.

Traçar um paralelo analítico entre o processo trabalhista e o

processo civil a fim se defender a adoção daquele modelo é temerário,

porque a relação jurídico-material sobre a qual se desenvolve o processo

425 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho, p. 66-67. Entre os autores pátrios que reconhecem ser o princípio da proteção peculiar ao processo do trabalho, destacamos Wagner D. Giglio, para quem, ‘embora muitas outras fossem necessárias, algumas normas processuais de proteção ao trabalho já existem, a comprovar o princípio protecionista. Assim, a gratuidade do processo, com isenção de pagamento de custas e despesas, aproveita aos trabalhadores, mas não aos patrões, a assistência judiciária gratuita é fornecida ao empregado, mas não ao empregador, a inversão do ônus da prova por meio de presunções favorece o trabalhador, nunca ou raramente o empregador, o impulso processual ex officio beneficia o empregado, já que o empregador, salvo raras exceções, é o réu, demandado, e não aufere proveito da decisão ... . A desigualdade econômica, o desequilíbrio para a produção de provas, a ausência de um sistema de proteção contra a despedida imotivada, o desemprego estrutural e o desnível cultural entre os sujeitos do processo do trabalho certamente são realidades que são trasladadas para o processo do trabalho. 426 Humberto THEODORO JÚNIOR. Os princípios do direito processual civil e o processo do trabalho. in Alice Monteiro de BARROS (Coord.). Compêndio de direito processual do trabalho. p. 61. ... o primeiro e mais importante princípio que informa o processo trabalhista, distinguindo-o do processo civil comum é o da finalidade social, de cuja observância decorre uma quebra do princípio da isonomia entre as partes, pelo menos em relação à sistemática tradicional do direito formal. (grifo nosso) 427 BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Art. 791. Os empregados e os empregadores poderão reclamar pessoalmente perante a justiça do trabalho e acompanhar as suas reclamações até o final.

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338

do trabalho apresenta como característica fundamental a desigualdade

substancial das partes. A Justiça do Trabalho foi criada e existe para

exercer um papel de anteparo entre o capital e o trabalho, tanto que os

países que conseguiram promover o estado do bem-estar social não

precisam desse órgão jurisdicional especializado. Ressalta-se, ainda, que

o crédito trabalhista tem natureza alimentar. As partes no processo civil

apresentam-se em pé de igualdade e a relação obrigacional discutida

parte de diferentes pressupostos ligados à capacidade negocial e no

interesse na obtenção do lucro, neste caso, ressalvadas algumas situações

específicas, onde uma das partes objetive beneficiar a outra, como na

doação428.

No processo comum, não se verificam aquelas particularidades

que caracterizam e diferenciam consideravelmente o processo do

trabalho, isto não significa que seja impossível adaptar o modelo

trabalhista ao procedimento civil, mas não podem ser olvidados fatos

históricos, aspectos sociológico, cultural e jurídico que exigem uma

modulação na implantação desse sistema procedimental.

As alterações promovidas no processo civil e, particularmente,

na execução de sentença de obrigação de quantia certa que, doravante

será denominada cumprimento de sentença, não levaram em

428 BRASIL. Código Civil Brasileiro, art. 538 a 564.

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339

consideração algumas questões que se procurou evidenciar quanto a

aspectos estruturais, procedimentais e teleológicos.

Não se defende um preciosismo tecnicista formalista e em

avançado estágio de superação, mas a adoção de um referencial teórico

claro que leve em consideração aspectos metodológico e histórico

através de uma análise crítica429, tomando-se como ponto de partida uma

abordagem autopoiética do processo.

429 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da ração indolente, p. 23. A análise crítica do que existe assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades da existência e que portanto há alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no que existe. O desconforto o inconformismo ou a indignação perante o que existe suscita impulso para teorizar a sua superação.

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340

9 CONCLUSÃO

Acredita-se que o ato de conhecer pressuponha

necessariamente referências para a formulação das proposições

lingüísticas que serão produzidas.

Assim, o mesmo objeto pode ser validamente conhecido de

diferentes maneiras. Dessa afirmação, resulta o reconhecimento da

possibilidade da existência de variadas teorias igualmente aceitas para a

descrição ou explicação de um mesmo objeto. Estas diferentes

linguagens levam o Homem a um estado de perplexidade.

Provavelmente este seja um dos fatores preponderantes na compreensão

do seu estado atual a que se referiu inicialmente.

Reconhecendo-se a imprescindibilidade da adoção de uma

metodologia para a realização do trabalho, optou-se por estudar o

processo a partir da problemática da segurança e da efetividade

jurisdicional sob o prisma da contextualização sistêmica do processo de

execução.

A pesquisa foi desenvolvida admitindo-se como pressuposto

básico que o direito pode ser conhecido cientificamente. Essa afirmação

teve como conseqüência a necessária estruturação de um

projeto que delineasse alguns objetivos, hipóteses,

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341

justificativas, problemas, métodos e a definição de uma teoria de

base que foi utilizada como ferramenta de trabalho na abordagem do

assunto problematizado.

No desenvolvimento do trabalho, não houve a preocupação

com a confirmação ou não das hipóteses, em razão disso, em

determinados aspectos, a pesquisa pode ter apresentado uma aparente

contradição entre afirmações a respeito das questões relativas ao objeto

estudado, qual seja, a segurança e a efetividade da jurisdição sob o ponto

de vista do cumprimento das sentenças das obrigações privadas para o

pagamento de quantia certa.

Foi necessário que o trabalho alcançasse um considerável

desenvolvimento para que se pudesse concluir que o sistema processual

brasileiro não está comprometido pela insegurança e inefetividade da

prestação jurisdicional.

De outra parte, foi possível verificar que, com relação ao

método funcional estruturalista de Niklas Luhmann, devem ser

diferenciadas as questões inerentes à segurança, à efetividade, à

celeridade e à “justiça” na entrega da prestação jurisdicional. Dessa

forma, ficou evidenciado o equívoco em se confundir aqueles termos,

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342

pois tem-se tomado como problemáticas situações onde há o controle

dos riscos estruturais.430

As alterações processuais são pertinentes a problemas

decorrentes do reconhecimento da juridicização dos conflitos sociais, o

que ocorreu através da cristalização de um Direito excessivamente

regulatório dominado pelo paradigma da cientificização de todo o

conhecimento produzido na modernidade.431

O direito processual, sob o enfoque da Teoria da

Instrumentalidade do processo, não assimilou as novas realidades

jurídicas criadas através do paradigma dominante da regulação científica

e jurídica. Dessa forma, identificou-se um descompasso profundo entre a

ampliação das tutelas privadas e coletivas em contraposição com a

permanência do direito processual em um estágio de letargia histórica e

metodológica. Em conseqüência, ocorreu um distanciamento entre as

430 VILANOVA, Lourival. Escritos Jurídicos e Filosóficos,v,.1. p. 418. Sem a norma – sem lei constitucional, ou sem lei ordinária, sem decreto executivo - ,seja qualquer a espécie exigida, sem ela, plano nenhum de governo, programa nenhum de desenvolvimento econômico ou social passaria para o campo concreto da realização. Por aí se está vendo como carece de fundamento a crítica que se faz da crise do direito, tomando a crise como agonia de todo um sistema social juridicamente orientado. Em toda a parte, salvo os hiatos de civilização e de cultura, ali onde há sociedades ainda com largos setores de vida interna indesenvolvida, o processo nem é lento, passo a passo num tempo social sem pressa, nem é espontâneo, desprogramado. É rápido e orientado, dentro de planos com previsão para medir a velocidade e o alcance da ação. (grifo nosso) 431 Ib idem. p. 418. A racionalização do processo de desenvolvimento confere a globalização: desenvolvimentos só setoriais desarticulam a composição do conjunto. Requer a politização: só um agente, com o poder, dispõe de substância econômico-financeira, decisão sobre o todo do desenvolvimento, duração e fins que ultrapassam a duração e os fins de indivíduos e, até, de gerações, somente o poder político capacita-se para a programação dessa mudança que, pelo compasso e velocidade, é mudança revolucionária, ultrapassando a singela fórmula do progresso dentro da ordem, do Estado liberal-democrático. Requer planejamento. Tudo isso necessita mais Estado e, exigindo mais Estado, exige mais direito.(grifo nosso)

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343

exigências da sociedade contemporânea, altamente tutelada, tecnificada e

dotada de um sistema de comunicação rápido e acessível e o instrumento

processual estruturado para ser aplicado em uma sociedade onde os

valores e as práticas eram outros, principalmente porque ainda não havia

ocorrido a maximização dos pilares do Estado, da comunidade e do

mercado, o que somente pode verificar-se com a desestruturação do

modelo econômico soviético.

Sob o ponto de vista dos sistemas fechados, como aquele

idealizado na Teoria Pura do Direito, observou-se que seria impossível a

abordagem das interações e comunicações estabelecidas entre o direito

processual e a Teoria da Ciência do Direito, e ainda, com os sistemas

social, econômico e político. A contextualização do direito, em relação à

teoria dos sistemas, tornou-se fundamental porque levou a identificação

de uma sistêmica jurídica embasada no estudo crítico da hermenêutica da

Constituição Federal. Há uma crescente tendência ao reconhecimento de

um conjunto de preceitos legais desvinculados da praxis social. Paulo

Bonavides e Eros Roberto Grau trataram dessa problemática e suas

repercussões para o intérprete e aplicador do direito.

Considerada a importância da segurança jurídica, procurou-se

compreender a sua dimensão dogmática através do estudo da teoria dos

princípios. A esse respeito, foi adotado um referencial que

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estruturalmente diferencia os princípios, as regras e os postulados

normativos, tendo em vista suas funções.

Em certo momento, duas questões assumiram muita

relevância, a Ciência do Direito e a apresentação dos conceitos

elementares da Teoria autopoiética dos sistemas sociais. Isto se justificou

porque a partir do estudo do direito como sistema fechado e tendo como

base a teoria husserliana das regiões ônticas, seu objeto é classificado

como ideal ou avalorativo, na medida em que a lei expressaria em si

mesma todo o conteúdo dos valores eleitos pelos seus destinatários.

Rompido o axioma dos sistemas jurídicos fechados, foi

necessário explicar como o direito processual pode ser estudado como

objeto cultural, portanto criado pelo Homem e dotado de uma gama

valorativa localizada nas proximidades do sistema jurídico, mais

precisamente nos sistemas com os quais interage e se comunica através

do acoplamento estrutural.

Nesse tocante, foi considerada fundamental a compreensão de

que o direito é uma estrutura lingüística que objetiva à simplificação da

complexidade do ambiente onde o Homem desenvolve sua existência.

Detectou-se uma relação diretamente proporcional entre a elevação da

complexidade e dos riscos estruturais e o surgimento de novas estruturas,

as quais têm a função de reduzir a complexidade e os riscos.

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345

Deve ser esclarecido que o Homem é considerado o ambiente

do qual emanam ou se desenvolvem todos os sistemas. Para efeito deste

trabalho, o Homem é a figura central de onde provém tudo aquilo que

lhe é circundante. Assim, o sistema jurídico é uma estrutura que visa à

redução da complexidade da vida humana, porque lhe assegura, o

controle das expectativas e dos desapontamentos.

Identificadas a metodologia para a análise do objeto de estudo,

as questões teórico-científicas e dogmático-Constitucionais do trabalho

se entendeu que seria relevante a realização da abordagem dos fatos

históricos que demarcaram o direito processual desde os períodos pré-

histórico quando não havia sido criada a escrita. Assim, a autodefesa é

considerada como a primeira forma de pacificação social e o

processualismo científico o ápice de seu desenvolvimento, tomando-se

como referência as idéias de técnica, método e arcabouço teórico.

A Teoria da Instrumentalidade processual foi assimilada como

uma tentativa de ruptura com a macroteoria do sistema jurídico fechado,

concluindo-se, entretanto, que a ausência da definição dos métodos de

abordagem e de procedimento comprometeu seus resultados. Observa-se

que os objetivos e as justificativas formulados pelos instrumentalistas

são consetâneos com a problemática do direito processual

contemporâneo, mas suas proposições são equivocadas na medida em

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346

que realizam sua abordagem do processo com vista a aspectos que lhe

são intrínsecos, desconsiderando questões fundamentais como aquelas

referentes aos sistemas social, político e econômico que interagem com o

sistema jurídico.

Esta afirmação pode ser comprovada ao observar-se que há,

por parte dos adeptos da teoria da instrumentalidade, a tendência a

admitir a concentração dos poderes dos juízes, assim como a ampliação

de suas funções procedimentais. Quanto aos poderes que devem ser

atribuídos ao julgador sob o argumento de que ele deve ter a

sensibilidade social e o preparo jurídico para sopesar, de forma razoável

e proporcional, os fatos e valores que envolvem cada caso, alguns

problemas podem ser mencionados.

A magistratura é exercida por pessoas susceptíveis ao

ambiente onde exercem suas funções, arcando, contudo, com o ônus da

imparcialidade no exercício do cargo público que lhes impõe o dever de

interpretar a lei, aplicando-lhe aos fatos jurídicos, assim, tornando a

norma abstrata em concreta através da sentença.

Admitindo-se que o direito e sua interpretação se manifestam

através da linguagem e que todo processo comunicacional pressupõe

interferências ou ruídos, assim como sofrem influências as quais podem

ser identificadas como históricas e culturais, há que se concluir que a

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347

concentração dos poderes do juiz terá, como conseqüências, a

variabilidade nas decisões e a prevalência dos interesses econômicos

sobre quaisquer outros.

Decisões variadas e divergentes, ainda que de caráter

procedimental, no âmbito do Poder Judiciário, deverão agravar os riscos

institucionais quanto ao desacreditamento na eqüidade e “justiça” dos

provimentos jurisdicionais.432 Em relação à questão econômica, é

corrente, tanto entre os operadores do direito quanto entre as pessoas em

geral, que o modelo econômico capitalista exacerbou no sistema social o

valor da economia e, portanto, tem lhe assegurado uma posição de

predomínio em relação a outros valores sociais.433

O magistrado interage e se comunica com aquele meio, logo,

432SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente, p. 181. Esta dimensão, sem precedentes, do risco e do perigo desgastou a credibilidade da confiança proporcionada pelo Estado. Por um lado, como alguns dos riscos e perigos foram globalizados, o seu controlo é agora uma tarefa que está muito para além das capacidades dos Estados individuais e o sistema inter-estatal não foi, de modo algum, concebido para compensar as deficiências de regulação dos Estados através de acções internacionais concertadas. Por outro lado, a crescente consciencialização dos riscos e dos perigos evidenciou as limitações estruturais dos mecanismos jurídicos usados pelos Estados para os gerir (critérios estreitos de legitimidade processual, responsabilidade, prova relevante, dano; sistemas judiciais lentos, frustrantes, selectivos, dispendiosos ou inacessíveis).(grifo nosso) 433 Ibidem, p. 213. As formas de direito distinguem-se também segundo o tipo de projecção da realidade social que adoptam. A projecção é o procedimento através do qual a ordem jurídica define as suas fronteiras e organiza o espaço jurídico no interior delas. ... Segundo o tipo de projecção adoptado, cada ordem jurídica tem um centro e uma periferia. Isto significa, em primeiro lugar, que, à semelhança do que se passa com o capital financeiro, o capital jurídico de uma dada forma de direito não se distribui igualmente pelo espaço jurídico desta. Tende a concentrar-se nas regiões centrais, pois é aí que é mais rentável e tem mais estabilidade. Nessas regiões, o espaço é catografado com mais detalhe e absorve mais recursos institucionais, tais como tribunais e profissionais de direito, e mais recursos simbólicos, como sejam os tratados e os pareceres dos juristas e a ideologia e cultura jurídicas dominantes. Inversamente, nas regiões jurídicas periféricas, o espaço jurídico é catografado com traço muito grosso, absorve poucos recursos institucionais (justiça inacessível, assistência judiciária de baixa qualidade, advogados mal preparados, etc.) e igualmente poucos recursos simbólicos (práticas jurídicas menos prestigiadas, teorização jurídica menos sofisticada, etc.) (grifo nosso)

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348

sendo natural que esteja influenciado por esse ambiente. Esperar que

adote um padrão comportamental desvinculado deste contexto não

parece razoável sob qualquer ponto de vista.

Em relação a ampliação das funções procedimentais da

magistratura, observa-se que os prazos que lhe são atribuídos pelo

Código de Processo Civil434 não são cumpridos sob o argumento da

sobrecarga de trabalho. Não parece viável, diante disso, atribuir-lhes

mais atividades, uma vez que um dos fatores apontados como

responsáveis pela morosidade na entrega da prestação jurisdicional é a

incapacidade da magistratura em atender à excessiva demanda de

trabalho que recebe.

Segundo o que foi averiguado através dessa pesquisa, as

estruturas sistêmicas são redutoras da complexidade. Não há dados

concretos que permitam afirmar que ao modelo compartimentado do

Código de Processo Civil brasileiro possa ser atribuída a morosidade do

Poder Judiciário. Por outro lado, observou-se que as alterações

promovidas pela Lei 11.232/2005 não chega a criar uma nova dinâmica

procedimental através da supressão de atos processuais. De fato,

promove o deslocamento dos atos que implicam a coerção estatal para o

processo de conhecimento, preservando aqueles procedimentos que antes

434 BRASIL. Código de Processo Civil, art. 189. O juiz proferirá: I – os despachos de expediente, no prazo de 2 (dois) dias; II – as decisões, no prazo de 10 (dez) dias.

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349

gozavam de uma autonomia teleológica, tais como, o requerimento para

o cumprimento da sentença quê, anteriormente, realizava-se através da

petição inicial executiva; a necessidade dos atos de acertamento ou

liquidação da sentença; não houve, ainda, a modificação dos atos

expropriatórios. As modificações são mais de forma que propriamente de

conteúdo.

Quanto às questões relativas às citações para cada processo

(execução, liquidação), o que passa a ocorrer através da intimação dos

advogados, há que questionar-se como se resolverá o problema quando o

mandato procuratório for restrito até a prolatação da sentença. Esta

situação não deverá ser incomum, uma vez que a sistemática para a

fixação dos honorários não foi alterada, ou seja, sua cobrança é

determinada por etapas processuais. No modelo anterior, havia clareza

quanto ao término de um processo e o início de outro, o que doravante se

modifica, pois a quantificação, a constrição e a expropriação ocorrerão

no próprio processo de conhecimento. Não são conhecidos mecanismos

procedimentais que autorizem a imposição ao advogado da obrigação à

prática de atos para os quais não tenha poderes.

Não se tratou de realizar uma abordagem desconstrutiva da

teoria da instrumentalidade do processo, pretende-se contribuir para a

ampliação das discussões em torno do problema generalizado

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socialmente com a insatisfação quanto à prestação

jurisdicional no Brasil, a qual é considerada ineficiente e injusta em

face da demora excessiva entre o início do processo e o seu resultado

final.

Há aspectos que, conquanto sejam atinentes aos sistemas

social, político e econômico, poderão produzir resultados positivos se

forem adequadamente abordados no campo do sistema jurídico, através

do reconhecimento das interações e comunicações estabelecidas entre os

sistemas por meio do acoplamento estrutural admitido pela teoria

autopoiética.

Quanto ao sistema social, não se vislumbra a possibilidade do

re-equacionamento da juridicização dos conflitos sociais, contudo, pode

ser admitida a hipótese do pluralismo jurídico435 como uma alternativa

através da qual poderão ser constituídos modelos paraestatais para a

composição dos conflitos436.

Dessa forma, a própria comunidade desenvolveria

técnicas que observados, os princípios fundamentais da

Constituição Federal, pudessem resultar na pacificação do

435 ARNAUD, Arnaud, André-Jean. Dicionário enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. p. 585. Pluralismo jurídico – 1. Em direito; a) Existência simultânea, no seio de uma mesma ordem jurídica, de regras de direito diferentes aplicando-se a situações idênticas; b) Coexistência de pluralidade de ordens jurídicas distintas estabelecendo ou não relações de direito entre si. 2. Em sociologia do direito; coexistência de pluralidade de quadros ou sistemas de direito no seio de uma determinada unidade de análise sociológica (sociedade local, nacional ou mundial).

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conflito de interesses entre seus membros437. Neste sentido,

ressalvado a prática de atos de expropriação patrimonial, que

poderiam ficar sujeitos ao controle jurisdicional, podendo a parte

interessada demonstrando liminarmente a causa impeditiva da alienação

do bem por meio de simples petição, já devidamente instruída com as

provas dos fatos alegados, assegurar-se de eventuais danos irreparáveis.

Tomando como referencial o sistema político438 aqui entendido

como aquelas estruturas articuladas que se referem à organização e ao

exercício do poder através do Estado em uma determinada sociedade,

destaca-se a questão da complexidade relativa à independência e à

harmonia entre os poderes. Verifica-se uma interdependência entre os

poderes, interessando, particularmente, a vinculação estabelecida entre o

436 A Lei da Arbitragem (Lei 9.307 de 23/9/1996 ) se coaduna com a proposta da ampliação dos modelos heterocompositivos para a solução dos conflitos de interesses decorrentes dos fatos jurídicos. Acredita-se, contudo na possibilidade da simplificação quanto à criação e ao acesso a tais meios. 437 SANTOS, Boaventura de Sousa. O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. p. 11-12. ... com a valorização progressiva dos terrenos em que se implantaram as favelas e a especulação selvagem daí decorrente, cresceram as pressões da burguesia urbana sobre o aparelho do estado no sentido de remover em bloco para os arredores os bairros marginais da cidade, libertando os terrenos para empreendimentos urbanísticos. Perante isto, os habitantes das favelas sempre procuraram organizar-se de modo a melhorar as condições de habitabilidade, criando várias redes de água e de electricidade administradas pelos utentes, constituindo brigadas de trabalho (sobretudo nos fins de semana) para melhoria das ruas e outras infrastruturas colectivas. Procuraram sobretudo maximizar o desenvolvimento interno da comunidade e garantir a segurança e a ordem nas relações sociais entre os habitantes com o objectivo de, fortalecendo as estruturas colectivas, fazer subir os custos políticos e sociais para o aparelho do estado de uma eventual destruição ou remoção forçadas. Estas formas organizativas desenvolveram-se sobretudo no início da década de 60, numa conjuntura populista do poder político burguês, e as lutas mais avançadas tiveram lugar à volta das associações de moradores, que então se constituíram (ou reconstituíram) para coordenar as acções dos vários níveis da vida colectiva e sobretudo para defender os interesses das comunidades perante as agências do aparelho de estado. Com o tempo, algumas dessas associações passaram a assumir funções nem sempre previstas directamente nos estatutos, como, por exemplo, a de arbitrar conflitos entre os vizinhos, ...(grifos nossos) 438 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, v. 2. Sistema Político. 1. Definição – Em sua acepção mais geral, a expressão Sistema político refere-se a qualquer conjunto de instituições, grupos ou processos políticos caracterizados por um certo grau de interdependência recíproca.

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352

Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Nos Estados Democráticos de

Direito, a administração e o orçamento público são vinculados à lei que

os regulamenta. Dessa forma, a ampliação dos serviços públicos e, por

conseguinte, dos órgãos do poder judiciário, bem como os recursos

financeiros para sua operacionalização dependem de uma decisão

política tomada na esfera do Poder Legislativo através da aprovação dos

projetos de leis que visem à melhoria e ampliação dos serviços prestados

na esfera do Poder Judiciário.

Entende-se que seriam positivas as ações em que os

operadores do direito analisassem a problemática das estruturas

organizacionais do Poder Judiciário em face das questões que envolvem

suas relações com os poderes executivo e legislativo, tendo em vista a

possibilidade da ampliação dos meios que garantissem o acesso à

jurisdição através da criação de órgãos aparelhados e cargos suficientes

para atender as demandas dos conflitos sociais, principalmente naquelas

causas que envolvessem direito indisponíveis e preceitos de ordem

pública.

Não há a pretensão de colocar em discussão o controle legal ou

o princípio da legalidade da administração pública, mas de ressaltar que

as iniciativas para resolver os problemas decorrentes da baixa eficiência

do Poder Judiciário quanto à realização concreta do comando legal,

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poderiam ser objeto de propostas que não se restringissem às reformas

do modelo processual, abrangendo-se, também, a situação dos déficits

quanto à estrutura e organização do Poder Judiciário.

No que tange ao sistema econômico, ressalta-se que este

promove suas ações no campo do “risco”, isto significa afirmar que seus

ganhos resultam da oferta do crédito como mecanismo de propulsão de

sua própria atividade. Ou seja, a rentabilidade financeira do sistema

econômico está diretamente vinculada com a possibilidade da

inadimplência, até porque, admitindo-se como pressuposto que a

economia não dependesse do crédito, não haveria inadimplência e, por

sua vez, restariam controlados os “riscos” estruturais decorrentes dos

desapontamentos quanto ao processo de cumprimento de sentenças e da

execução.

Não se trata de desconsiderar os problemas do

descumprimento das obrigações privadas de pagamento de quantia certa.

No entanto, é pertinente, sob o ponto de vista sistêmico realizar análises

que objetivem a identificação do papel do Poder Judiciário no controle

dos riscos que são inerentes à atividade do sistema econômico. É pouco

provável que se consiga reduzir, de forma significativa ou eliminar os

riscos financeiros, pois este é parte integrante do próprio sistema

econômico.

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Desta forma, acredita-se que o direito processual não é capaz

de apresentar respostas satisfatórias aos problemas que envolvem a

lentidão na entrega da prestação jurisdicional, sobretudo, quando

abordado como um sistema fechado. As alterações realizadas a partir de

1994 não têm sido capazes de reduzir o tempo de espera dos

jurisdicionados, o quê por si só é um indicador da pertinência na

abordagem dos problemas inerentes ao sistema jurídico tendo em vista

suas relações com os sistemas social, político e econômico.

Interessa, fundamentalmente, demonstrar que a abordagem do

direito processual deve levar em consideração os seus mecanismos de

contato com outros ramos do direito, com a Teoria da Ciência do Direito

e com os demais sistemas que compõem o ambiente onde se

desenvolvem as relações humanas. Desta forma, as referências anteriores

aos possíveis efeitos positivos dessa análise sistêmica não têm o objetivo

de sugerir respostas ou soluções de lege ferenda, mas de demonstrar que

há aspectos que, se considerados, poderão produzir efeitos satisfatórios

quanto aos resultados apresentados pelo Poder Judiciário na realização

da “justiça”.

Não houve o propósito de prescrever fórmulas que pudessem

indicar mecanismos capazes de resolver os problemas que afetam a

eficiência quanto à prestação jurisdicional no Brasil. O aspecto central a

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respeito do qual gravita este trabalho esteve relacionado com as causas

que tornam a questão do adimplemento através da ação do Estado

alguma coisa insusceptível de realizar-se de forma satisfatória.

Desse modo, procurou-se realizar a identificação e a descrição

de algumas das prováveis causas que justificam os problemas e,

particularmente, que ofereçam possibilidades de propostas mais

abrangentes e compatíveis com a complexidade do ambiente da

modernidade. O objetivo da pesquisa foi o desenvolvimento de análises

que pudessem exercer uma contribuição complementar aos trabalhos que

têm sido realizados no campo dogmático.

A construção de uma teoria de caráter especulativo a qual foi

denominada hermenêutico-crítico-historicista como método para o

conhecimento do processo e aplicação das normas instrumentais,

sobretudo, quanto ao cumprimento da sentença e execução, está

diretamente referida à principiologia Constitucional de processo, através

da qual se acredita na possibilidade de avançar no campo pragmático

relativamente às necessidades da sociedade contemporânea quanto a

aceleração dos procedimentos e acesso à jurisdição sem aumentar os

riscos estruturais ligados à instituição das organizações e organismos

estatais.

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O referencial crítico se fez presente na adoção da autopoiese

dos sistemas sociais luhmanniano como mecanismo para a descrição das

relações que o objeto do estudo estabelece, através dos processos de

interação e comunicação decorrentes do reconhecimento da existência do

acoplamento estrutural entre os diversos sistemas que compõem o

ambiente humano.

Adotado o pressuposto khuniano, segundo o qual o

desenvolvimento do conhecimento ocorre através da acumulação dos

saberes e experiências constituídas historicamente, entendeu-se que não

havia a possibilidade de produzir conclusões a respeito do estudo sem

que fosse percorrida a trajetória do direito processual ao longo do tempo.

Neste caso, observando-se que a insatisfação dos jurisdicionados com os

serviços prestados pelo Estado, no campo da realização no mundo dos

fatos dos comandos jurídicos, elaborados abstratamente através da lei

revelam-se como um fenômeno histórico.

Nesta seara, ressurge a pergunta: Qual o real problema do Direito

Processual historicamente e contemporaneamente quanto à realização da

“justiça”? Entendeu-se que seja um problema vinculado ao método

sistêmico.

Finalmente, pode ser afirmado que se o Direito Processual não

poderá sozinho, resolver o problema da morosidade na aplicação dos

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procedimentos judiciais, com certeza será um instrumento poderoso na

construção da “utopia”439 de um direito emancipatório, propulsor das

transformações esperadas, sobretudo, nos países periféricos.

439 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente, p. 167. O conhecimento emancipatório pós-moderno a que tenho feito apelo visa descobrir, inventar e promover as alternativas progressistas que essa transformação pode exigir. É uma utopia intelectual que torna possível uma utopia política. ... Tais transições ocorrem quando as contradições internas do paradigma dominante não podem ser geridas através dos mecanismos de gestão de conflitos e de ajustamento estrutural desenvolvidos pelo paradigma em causa. (grifo nosso)

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