o Precariado

download o Precariado

of 276

Transcript of o Precariado

  • 7/21/2019 o Precariado

    1/276

    GUY STANDING

    0 PRECARIADOA nova classe perigosaTraduo Cristina Antunes

    Reviso da traduo Rogrio Bettoni

    P edio

    reimpresso

    Coleo Invenes Democrticas - Volume IV Nupsi-USP autntca

  • 7/21/2019 o Precariado

    2/276

    Copyright 2013 Guy Standing

    Copyright 2013 Autntica Editora

    Ttulo original; The Precariat: The New Dangerous Class

    Todos os direitos reservadospela Autntica Editora. Nenhuma partedesta publicaopoder ser reproduzida,

    seja por meios mecnicos, eletrnicos, seja cpia xerogrfica, sem autorizao prvia da Editora.

    COORDENADORIA DA COLEO INVENES DEMOCRTICAS

    And r Menezes Rocha, David Calderoni, Helena Singer,

    Ulian DAbbate Ke/ian, Luciana de Souza Chaui Mattos

    Berlinck, Marcelo Gomes Justo, Maria Luci Bu ff Migllori,

    Maria Lcia de Moraes Borges Calderoni.

    CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL

    Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra/

    University o f Wisconsin), Chhstian Azas (Universit de

    Picardie Juies Verne d'Amiens), Diego Tatian (Universidad

    Nacional de Cordoba), Laurent Bove (Universit de Picardie

    Jules Verne d'Amiens), Marana Gainza, Marilena de Souza

    Chaui, M ilton Meira do Nascimento (FFLCH-USP), Paul Israel

    Singer (FEA-USP), Sandra Jovchelovitch (London School

    o f Economics), Vitto rio M or fino (Universit degli stud i di

    Milano-Bicocca).

    EDITORA RESPONSVEL

    Rejane Dias

    REVISO DA TRADUO

    Rogrio Betton i

    REVISO

    Lucia Assumpo

    CAPA

    Diogo Droschi (sobre fotogra fia de

    Caro! Anne de Mural em Berlim,

    Alemanha, pintado em 2007 pelo

    artista italiano BLU)

    DIAGRAMAAO

    Christiane Morais

    Tamara Lacerda

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Standing, Guy

    0 precariado : a nova classe perigosa / Guy Standing ; traduoCristina Antunes. -- 1. ed.; 1. reimp, - Belo Horizonte : AutnticaEditora, 2014 (Invenes Democrticas, v. IV).

    Ttulo original: The Precariat: The New Dangerous Class.

    ISBN 978-85-8217-245-2

    1. Globalizao 2. Salrio minimo 3. Salrios 4. Setor informal(Economia) 5. Trabalho e classes trabalhadoras - Aspectos sociaisI. Ttulo.

    13-10034 CDD-331.554

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Trabalho informal: Economia 331.5542. Trabalho precrio : Economia 331.554

    G R U P O A U T N T I C A

    Belo HorizonteRua Aimors, 981, 8 andar. Funcionrios30140-071 . Belo Horizonte . MGTel,: (55 31) 3214 5700

    Televendas: 0800 283 13 22www.autenticaeditora.com.br

    So PauloAv. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I23 andar, Conj. 2301 . Cerqueira Csar01311-940 . So Paulo . SPTel.: (55 11)3034 4468

  • 7/21/2019 o Precariado

    3/276

    Sumrio

    Prefcio edio brasileira ...........................................................................7

    Prof. Dr. David Calderoni

    Prefcio ............................................................................................................11

    Lista de abreviaes......................................................................................

    13

    C aptulo 1 - 0 p r ec aria d o .........................................................................15

    Captulo 2 - Po r que o precariado est crescendo?............................ 49

    Cap tulo 3 - Q u em ingressa no precariado?.........................................97

    Captulo 4 - Migrantes: vtimas, viles ou her is? ........................... 141

    Cap tulo 5 - Tarefa, trabalho e o arrocho do te m p o .......................177

    Cap tulo 6 - U m a poltica de in fern o ................................................. 201

    Captulo 7 - U m a poltica de paraso...................................................233

    Referncias ................................................................................................... 273

    Posfcio ......................................................................................................... 283

    Senador Eduardo Matarazzo Suplicy

  • 7/21/2019 o Precariado

    4/276

    Prefcio edio brasileira

    Prof. Dr. David Calderonf

    S.fomos todos pessoasflutuando ao redor do mundo. Encontramos uns aos outros,mas nunca chegamos realmente a nos conhecer. Este pungente testemunho

    annimo deixado numa parede por um trabalhador migrante sintetiza

    um dos mais emblemticos dramas da era do precariado, cuja formao

    o economista ingls Guy Standing analisa com vasta erudio e notvel

    clareza, informadas por muitos anos dedicados Organizao Interna

    cional do Trabalho, docncia e pesquisa universitrias internac ionais

    e R ede M undial de R en da Bsica, da qual fundador e copresidente.

    O autor circunscreve o campo diagnstico e prognstico em grande

    arco histrico e geopoltico, dando a ver que a globalizao precarizante,

    desencadeada sob o influxo da terceira revoluo industrial, do neoliberalismo e da superexplorao de populaes da sia, desmantela o que os

    gregos inventaram nos primrdios da democracia como o ceme hum ani-

    zante do trabalho: o vnculo interno entre praxis ephilia , constitutivo do

    autorreconhecimento dos cidados como homens livremente associados

    nas construes da amizade cvica. Ao propor maneiras de reconstru-la

    em todo o mundo, Guy Standing toma preciosa, necessria e urgente aobra O precariado: a nova classe perigosa.

    O carter democrtico deste livro j se deixa apreender no modo

    como o autor equaciona a definio do precariado. Apoiando-se em

    categorias consagradas, atualiza suas significaes mediante sucessivas di

    ferenciaes baseadas em dados sociais, histricos, polticos, psicolgicos

    e econmicos, oferecidos passo a passo ao leitor.

    ' Idealizador do Nupsi-USP e da Coleo Invenes Democrticas.

    7

  • 7/21/2019 o Precariado

    5/276

    assim que o vemos desenvolver a questo da natureza categorial do

    precariado em dilogo com as duas grandes referncias na tradio das cin

    cias sociais: Convencionalmente, os socilogos pensam tendo em vista asformas de estratificao de Max W eber - classe e status Ou, em passa

    gem anterior: Podemos afirmar que o precariado uma classe-em-formao,

    se no ainda uma classe-para-si, no sentido marxista do termo.

    Segundo o meu entendimento da perspectiva do autor, tanto classe

    (referente posio nos processos de trabalho e nos modos de produo)

    como status (que correlaciona ocupaes a hierarquias socioeconmicas

    e simblicas) constituem categorias que impHcam relaes variveis deconfiana para com o Estado e o capital, sobredeterminadas por formas e

    graus de acesso direto e indireto renda social, objeto da justia distributiva

    (poltica salarial, securitria e previdenciria) e dos arranjos institucionais

    conexos (sindicatos, leis trabalhistas, direitos sociais) praticados aps a

    Segunda Guerra M undia l sob o influxo dos Estados de Bem -Estar Social

    (Welfare States), caracterizados por polticas de proteo social da classetrabalhadora. Mas, num quadro histrico determinado pela derrocada do

    Welfare State, Standing observa que:

    Em qualquer caso, a diviso entre mo de obra remunerada [wage

    labour] e empregado assalariado [salaried employee], e as ideias de

    ocupao, se dissolve quando consideramos o precariado. [...] Sem

    um poder de barganha baseado em relaes de confiana e sem

    poder usufruir de garantias em troca de subordinao, o precariado

    sui generis em termos de classe. Ele tambm tem uma posio de

    status peculiar, no se encaixando em alto status profissional ou em

    atividades artesanais de mdio status. Uma forma de explicar isso

    dizendo que o precariado tem status trunc ad o [truncated status].

    E, como veremos, a sua estrutura de renda social no se mapeia

    perfeitam ente conforme velhas noes de classe ou ocupao.

    Com o psicanahsta e cidado contraposto opresso laborai de cen

    tenas de milhes de seres humanos em largas pores do planeta, gostaria

    de sugerir a ideia de que a amizade poltica inviabihzada no apenas

    intersubjetivamente, mas tambm intrapsiquicamente, na medida em que

    o truncamento de status e a correlativa perda de identidade ocupacional

    torpedeiam o cerne da autoestima, a saber, a relativa integridade ntimaque constmda ao longo do processo individual e social pelo qual respon

    demos aos dois desafios psicossociais fundamentais que a problemtica do

    8

  • 7/21/2019 o Precariado

    6/276

    precariado agudiza e transversaliza, por envolver a globalizao de relaes

    de produo e distribuio da insegurana e da incerteza: a necessidadede amparo e a necessidade de identidade.

    Diante de obra to seminal, que nos incita a distinguir entre pleno

    emprego e bem-estar no trabalho, concluo estas palavras preliminares

    com um sentimento de misso cumprida e de mos obra. Senti-me

    no dever de batalhar pela publicao e de me engajar na divulgao deste

    trabalho desde o primeiro instante em que o conheci, quando organizei

    o I Seminrio Intersetorial Nupsi-U SP, A s invenes democrticas diante dos

    desafios do precariado: o encontro da Renda Bsica com a Economia Solidria,memorvel evento que reuniu Guy Standing, Eduardo Suplicy e Paul

    Singer na Faculdade de Sade Pblica da USP em junho de 2012. A

    parceria com a Autntica Editora permitiu que em apenas quatorze meses

    lanssemos esta verso brasileira, com a presena do autor, no II Colquio

    Internacional Nupsi-USP, Invenes democrticas: construes da felicidade,no

    qual procuraremos, com acadmicos de oito pases, sedimentar alianas

    entre modos democrtico-cooperativos de construir conhecimento em

    parceria com comunidades desassistidas e em prol delas. Isso combina

    com a composio heterognea do precariado tal como aqui postulada, a

    qual congrega migrantes e minorias vulnerabilizados e superexplorados,

    membros da classe trabalhadora destitudos das garantias de emprego e

    indivduos cuja qualificao universitria no encontra trabalho condigno.

    Agosto de 2013 .

  • 7/21/2019 o Precariado

    7/276

    Prefcio

    Guy Standing

    E-iste livro trata de um novo grupo no mundo, um a classe em formao.Nele pretendo responder a cinco questes: O que essa classe? Por que

    devemos nos preocupar com seu crescimento? Por que ela est crescendo?

    Quem est ingressando nela? Para onde o precariado est nos levando?

    Esta ltima questo crucial. A menos que o precariado seja en

    tendido, h um perigo de que seu aparecimento possa levar a sociedade

    para um a poltica de in fe rno. Isso no um a profecia, mas sim uma

    possibilidade perturbadora. Ela s ser evitada se o precariado puder se

    tornar um a classe-para-si, com um a agncia efetiva, bem como um a fora

    para forjar uma nova poltica de paraso, uma agenda levemente utpica

    e uma estratgia a ser adotada pelos polticos e pelo que , eufemistica-mente, chamado de sociedade civil, incluindo a a multiplicidade de

    organizaes no governamentais que muitas vezes tm interesse em setornarem quase governamentais.

    Precisamos urgentemente acordar para o precariado global. H

    muita raiva po r a e m uita ansiedade. Porm, em bora este livro destaque

    o lado vtima do precariado mais do que o lado libertador, vale afirmar

    desde o incio que no correto ver a precariedade estritamente pelosseus dissabores. Muitos indivduos atrados po r ela esto procurando por

    algo melhor do que o que foi oferecido na sociedade industrial e pelo

    trabalhismo do sculo XX . Eles ainda merecem mais o nom e de Vtima

    do que de Heri, mas esto comeando a mostrar por que o precariado

    pode ser um prenncio de um a Boa Sociedade do sculo XXI.

    O contexto que, enquanto o precariado crescia, a realidadeobscura da globalizao veio para a superfcie com o choque financeiro

    de 2008. Adiado por muito tempo, o ajuste global est pressionando os

    11

  • 7/21/2019 o Precariado

    8/276

    pases de alta renda para baixo na medida em que melhora a situao

    dos pases de baixa renda. A menos que as desigualdades negligenciadas

    intencionalmente pela maioria dos governos nas ltimas duas dcadassejam reparadas de maneira radical, o sofrimento e as repercusses po

    dem se tornar explosivos. A economia de mercado global pode acabar

    elevando os padres de vida em todos os lugares - at mesmo seus crticosdeveriam desejar isso - , mas certamente apenas os idelogos podem negar

    que ela trouxe insegurana econmica para muitos e muitos milhes. O

    precariado est nas primeiras fileiras, mas ainda tem de encontrar a voz

    para trazer baila sua agenda. No se trata da classe mdia oprimidaou de uma classe baixa, tampouco da classe trabalhadora mais bai

    xa. Ela tem um fardo distintivo de insegurana e ter, igualmente, um

    conjunto diferente de reivindicaes.

    Nos estgios iniciais da elaborao deste livro , foi feita uma apre

    sentao dos temas para o que acabou se tornando um grupo extrema

    mente maduro de acadmicos de convico social-democrata. A maioria

    recebeu as ideias com desprezo e disse que nelas no havia nada de novo.

    Para eles, a resposta de hoje era a mesma de quando eram jovens. Eramnecessrios mais empregos, e empregos mais decentes. Tudo o que vou

    dizer a essas distintas figuras que acho que o precariado no teria sido

    afetado por isso.H muitas pessoas para agradecer individualmente por ajudarem no

    raciocnio que est por trs deste livro. No entanto, gostaria de agradeceraos muitos grupos de alunos e ativistas que ouviram as apresentaes dos

    temas nos dezesseis pases visitados durante sua preparao. Espera-se

    que suas ideias e perguntas tenham sido absorvidas pelo texto final. Basta

    acrescentar que o autor de um livro como este , principalmente, um

    transmissor dos pensamentos dos outros.

    Novembro de 2010.

    12

  • 7/21/2019 o Precariado

    9/276

    Lista de abreviaes

    A A R P Am erican Association of R etired Persons (AA RP -

    Associao Americana de Aposentados)

    A FL -CIO Am erican Federation o f Labor/Congress o f Industrial

    Organizations (AFL-CIO - Federao Americana doTrabalho e Congresso de Organizaes Industriais)

    BBVA Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (BBVA)

    BIEN Basic Income Earth N etwo rk (BIEN - R ede Globalde Renda Bsica)

    CB T Cognitive behavioural therapy (TC C - Terapia cog-nitivo-comportamental)

    C C T Cond itional cash transfer (T C R Transferncia con

    dicional de renda)

    CIA Central Intelligence Agency (CIA - Agncia Cen tral

    de Inteligncia)

    C R I Crim e Reduction Initiatives (Iniciativas para Reduodo Crime)

    EH R C Equality and H um an R ights Com mission (UK)

    (EH R C - Comisso de Igualdade e Direitos H um a

    nos do Rein o Unido)

    E U European U nion (UE Unio Europia)

    GCSE General Certificate o f Secondary Educa tion (GCSE -Certificado Geral de Educao Secundria)

    13

  • 7/21/2019 o Precariado

    10/276

    IMF International M onetary Fund (FMI - Fundo M one

    trio Internacional)

    LIFO Last-in, first-out (LIFO - ltimo a entrar, primeiro asair)

    N G O Non-governmenta l organisation (O NG - Organizao

    No Governamental)

    N IC Newly industria lising country (N IC - Pases recm-

    industrializados)

    OE CD O rganisa tion for Econom ic C o-o pe ra t ion and

    D eve lopm ent (OC D E - O rgan izao pa ra a

    Cooperao e o Desenvolvimento Econmico)

    R M I Revenu m inimum d insertion (RM I - Rendimento

    mnimo de insero)

    SEWA Self-Employed Womeris Association o f ndia (SEWA -

    Associao de Trabalhadoras Autnomas da ndia)

    UK BA U K Border Agency (UKBA - Agncia de Fronteira

    do Rein o Unido)

    U M P U nion pour un Mouvement Populaire (UM P - Unio

    por um M ovim ento Popular)

    14

  • 7/21/2019 o Precariado

    11/276

    Captulo 1

    O precariado

    N os anos 1970, um grupo de economistas de inspirao ideolgicacapturou o ouvido e a mente dos polticos. O elemento central de seu

    modelo neoliberal era que o crescimento e o desenvolvimento de

    pendiam da competitiv idade do mercado; tudo deveria ser feito paramaximizar a concorrncia e a competitividade e para permitir que os

    princp ios de mercado perm eassem todos os aspectos da vida.

    U m dos temas era que os pases deveriam aumentar a flexibilidade

    do mercado de trabalho, o que passou a significar uma agenda para a

    transferncia de riscos e insegurana para os trabalhadores e suas famlias.

    O resultado tem sido a criao de um precariado global, que consiste em muitos milhes de pessoas ao redor do mundo sem uma ncora

    de estabilidade. Eles esto se tornando uma nova classe perigosa. So

    propensos a ouvir vozes desagradveis e a usar seus votos e seu dinheiro

    para dar a essas vozes um a plataform a poltica de crescente influncia.

    O verdadeiro sucesso da agenda neoliberal, aceita em m aior ou menor

    grau por todos os tipos de governos, criou um monstro poltico incipiente.

    E necessrio agir antes que o monstro ganhe vida.

    O despertar do precariado

    Em 1 de maio de 2001, cinco mil pessoas, principalmente estudan

    tes e jovens ativistas sociais, se reuniram no centro da cidade de Milo

    para o que pretendia ser um a marcha alternativa em tom de protesto noDia do Trabalho. Em 1 de maio de 2005, a quantidade de pessoas cresceu para bem mais de 50 mil - mais de 100 mil, de acordo com algumas

    15

  • 7/21/2019 o Precariado

    12/276

    estimativas - e o EuroM ayDay' se tornou p an-europ eu, com centenas

    de milhares de pessoas, principalmente jovens, ocupando as ruas das

    cidades de toda a Europa continental. Essas manifestaes marcaram osprim eiros movim entos do precariado global.

    Os velhos sindicalistas que costumavam orquestrar os eventos doMay Day s puderam ficar perplexos diante dessa nova massa desfilante,

    cujas dem andas por livre migrao e uma renda bsica universal tinh am

    pouco a ver com o sindicalismo tradicional. Os sindicatos viram a resposta

    ao trabalho precrio com o u m retorno ao modelo trabalhista que eles

    tinham colaborado para consolidar em meados do sculo X X - empregosmais estveis com segurana de contratao a longo prazo e os aparatosde benefcios que vinham junto com isso. Mas muitos dos jovens ma

    nifestantes viram a gerao de seus pais agindo de acordo com o padro

    fordista de empregos em tempo integral e subordinao gesto industrial e aos ditames do capital. Apesar da falta de uma agenda alternativa

    coesa, eles no mostraram nenhum desejo de ressuscitar o trabalhismo.

    Despertando primeiro na Europa O cidental, o EuroM ayDay logo

    assumiu um carter global, com o Japo tornando-se um importante

    centro de energia. Comeou como um movimento de jovens, com europeus instrudos e descontentes alienados pela abordagem do mercado

    competitivo (ou neoliberal) do projeto da Unio Europia que os instava

    a uma vida de empregos, flexibilidade e crescimento econmico mais

    rpido. Mas suas origens eurocntricas logo deram lugar ao internaciona-lismo, na medida em que eles viram sua difcil situao de inseguranasmltiplas ligadas ao que estava acontecendo com outras pessoas em todo

    o mundo. Os m igrantes tornaram -se parte substancial das manifestaes

    do precariado.

    O movimento se espalhou para as pessoas com estilos de vida

    no convencionais. E todo o tempo houve uma tenso criativa entre o

    precariado tido como vtima, penalizado e demonizado por instituiestradicionais e polticas, e o precariado tido como heri, que rejeitava

    essas instituies em um ato conjunto de desafio intelectual e emocional. Em 2008, as manifestaes do EuroMayDay estavam tolhendo as

    1 O EuroMayDay um dia em que as aes polt icas e demandas so apresentadas para

    com bater a precarizao ge neralizada da juv en tud e e a discriminao dos im igrantesna Europa e em outros lugares. comemorado no dia 1 de maio de cada ano. Dia do

    Trabalho, tradicionalmente uma celebrao da solidariedade entre os trabalhadores de

    todo o mundo. (N.T.)

    16

  • 7/21/2019 o Precariado

    13/276

    marchas sindicalistas que aconteciam no mesm o dia. Isso pode ter passado

    bastante despercebido do pblico em geral e dos polticos, mas foi um

    desenvolvimento significativo.Ao mesmo tempo, a dupla identidade de vtima/heri contribuiu

    para a falta de coerncia. O utro problema foi o fracasso em se concentrar

    na luta. O qu ou quem era o inimigo? Todos os grandes movimentosao longo da histria foram baseados em classe, para o bem ou para o

    mal. Um grupo de interesse (ou vrios) lutava contra outro, sendo que

    este explorava e oprimia aquele. Normalmente, a luta tratava do uso e

    do controle dos principais recursos do sistema de produo e de distribuio do tempo. O precariado, por toda sua rica complexidade, parecia

    no ter uma ideia clara do que eram esses recursos. Entre seus heris

    intelectuais, temos Pierre Bourdieu (1998), que articulou a precarieda

    de, Michel Foucault, Jrgen Habermas, Michael Hardt e Tony Negri

    (2000), cujo Impriofoi um texto seminal, tendo H anna h Arendt (1958)

    como pano de fundo. Havia tambm as sombras dos levantes de 1968,

    ligando o precariado Escola de Frankfurt de O homem unidimensional

    de Herbert Marcuse (1964).

    Foi uma libertao da mente, a conscincia de um sentimento

    comum de insegurana. Mas nenhuma revoluo surge do simples

    entendimento. A inda no havia uma raiva eficaz - isso porque nenhum a

    agenda poltica ou estratgia havia sido forjada. A falta de uma resposta

    program tica foi revelada pela busca de smbolos, pelo carter dialticodos debates internos e pelas tenses dentro do precariado que ainda esto

    l e no vo embora.Os lderes dos manifestantes do EuroMayDay fizeram o possvel

    para literalm ente encobrir as rachaduras, como acontecia em seus car

    tazes e imagens visuais. Alguns enfatizaram uma unidade de interesses

    entre os migrantes e outros grupos {migranti e precariefoi um a mensagem

    estampada num cartaz do EuroMayDay de Milo em 2008) e entre os

    jovens e os idosos uma simptica justaposio no cartaz do EuroMayDay

    de Berlim em 2006 ( D o e r r , 2006).

    Porm^ como movimento esquerdista libertrio, ele ainda tem de

    provocar o medo, ou mesmo o interesse, de quem est fora. At mes

    mo seus protagonistas mais entusiastas admitiram que as manifestaes

    at agora tinham sido mais teatro do que ameaa, que tratavam maisde afirmar a individualidade e a identidade dentro de uma experincia

    coletiva de precariedade. Na linguagem dos socilogos, as manifestaes

    17

  • 7/21/2019 o Precariado

    14/276

    pblicas tm sido sobre o orgulho em subjetividades precrias. U m car

    taz do EuroMayDay feito para uma manifestao de Hamburgo funde

    quatro figuras em pose de desafio um faxineiro, um profissional desade, um refugiado ou m igrante e um chamado trabalhador criativo

    (presumivelmente com o a pessoa que desenhou o cartaz). Foi dado umlugar de destaque a um a sacola de compras, exibida com o smbolo icnico

    do nomadismo contemporneo no mundo globalizado.

    Os smbolos so importantes. Eles ajudam a unificar grupos em algomais do que uma multido de estranhos. Ajudam a formar uma classe

    e a construir identidade, promovendo uma conscincia de afinidade euma base para solidariedade oufraternit. A passagem de smbolos para

    um programa poltico o assunto deste livro. A evoluo do precariado

    como agncia de uma poltica de paraso ainda precisa passar do teatro

    e das ideias visuais de emancipao para um con junto de exigncias que

    vo envolver o Estado em vez de meramente confundi-lo ou irrit-lo.

    Uma caracterstica das manifestaes do EuroMayDay tem sido

    sua atmosfera de carnaval, com msica caribenha e cartazes e discursos

    construdos em torno de zombaria e humor. Muitas das aes ligadas frouxa rede que est por trs dessas manifestaes so anrquicas e

    intrpidas, em vez de estratgicas ou socialmente ameaadoras. Em

    Hamburgo, os participantes foram aconselhados sobre como evitar o

    pagamento de tarifas de nibus ou ingressos de cinema. Em uma proeza

    acontecida em 2006, que entrou para o folclore do movimento, umgrupo de cerca de 20 jovens usando mscaras de carnaval e cham ando-se

    por nomes com o M am e A ranha, M ultiflex, O peraistorix e Santo

    Guevara, invadiu um superm ercado g ou rm et no m eio da m anh. Eles

    encheram um carrinho com comidas e bebidas de luxo, posaram para

    as prprias cmeras e depois saram, no sem antes entregar caixa

    uma flor com um bilhete explicando que eles produziam riqueza, mas

    no a desfrutavam em nada. O episdio foi como a vida imitando a

    arte, baseado no filme The Edukators. O grupo, conhecido como a

    gangue de Robin Hood, nunca foi capturado. Eles publicaram uma

    nota na intern et anunciando que haviam distribudo os alimentos para

    estagirios, a quem destacavam como os trabalhadores precrios mais

    explorados da cidade.

    Raram ente pretendendo conquistar amigos ou influenciar as correntes dominantes da sociedade, as travessuras de grupos como esse

    trazem mente analogias histricas. Podemos estar em um estgio na

    18

  • 7/21/2019 o Precariado

    15/276

    evoluo do p recariado no qual aqueles que se opem s suas principais

    caractersticas - precariedade de m oradia, de trabalho e de emprego e

    de proteo social - so parecidos com os rebeldes prim itivos quesurgiram em todas as grandes transformaes sociais, quando direitos

    antigos foram eliminados e pactos sociais foram jogados para escanteio.

    Sempre houve Robin Hoods, como Eric Hobsbawm (1959) observou

    de forma memorvel. Eles geralmente se sobressaram em um perodo

    anterior configurao de uma estratgia poltica coerente para promoveros interesses da nova classe.

    Aqueles que partic ipam das paradas do EuroM ayDay e dos eventosparceiros em outras partes do m undo so apenas a ponta do precariado.

    H um elemento muito maior vivendo no medo e na insegurana. A

    maioria no se identificaria com as manifestaes do EuroMayDay. M'

    isso no os torna menos parte do precariado. Eles esto fiutuando, de-

    ri\'a e potencialm ente furiosos, capazes de se desviar po liticamente para

    2

    extrema direita ou para a extrema esquerda e de apoiar a demagogiapopulista que tira proveito de seus medos ou suas fobias.

    O precariado desperto

    Em 1989, a cidade de Prato, prxima a Florena, era quase in

    teiramente italiana. Durante sculos, havia sido um grande centro de

    manufatura de tecidos e vesturio. Muitos dos seus 180 mil habitantesestavam ligados a essas indstrias, gerao aps gerao. Refietindo os

    valores antigos, essa cidade toscana permaneceu firme em sua poltica.

    Parecia a personificao da moderao e da solidariedade social.

    Naquele ano, um grupo de 38 trabalhadores chineses chegou

    cidade. Um novo gnero de empresas de artigos de vesturio, perten

    centes aos imigrantes chineses e a uns poucos italianos ligados a eles,comeou a surgir. As empresas importavam mais e mais trabalhadores

    chineses, muitos vindos sem vistos de trabalho. Apesar de notados,

    eram tolerados; eles contribu am com a prspera economia e no faziam

    exigncias com relao s finanas pblicas, uma vez que no recebiam

    quaisquer benefcios sociais. Mantiveram-se isolados, cercados em um

    enclave onde as fbricas chinesas estavam localizadas. A m aioria veio de

    um a cidade do litoral de W enzhou, na provncia de Zhejiang, um a reacom um a longa histria de migrao de profissionais empreendedores. A

    maior parte chegou via Frankfurt com visto de turista para trs meses e

    19

  • 7/21/2019 o Precariado

    16/276

    continuou a trabalhar clandestinamente depois que seus vistos expiraram,

    colocando-se num a posio vulnervel e explorvel.

    Em 2008, havia 4.200 firmas chinesas registradas na cidade e 45mil trabalhadores chineses, constituindo um quinto da populao dePrato ( D i n m o r e , 2010a, b). Esses trabalhadores produziam um milho de

    peas de vesturio por dia, o suficiente para vestir a populao mundial

    durante 20 anos, de acordo com clculos dos representantes municipais.

    Nesse meio tempo, minadas pelos chineses e fustigadas pela concorrncia

    da nd ia e de Bangladesh, as empresas italianas locais se viram obrigadas

    a dem itir em massa. Em 2010, elas empregavam apenas 20 m il trabalha

    dores, 11 m il a menos do que em 2000. A medida que encolhiam , essasempresas provocavam a transio de mais trabalhadores de empregos

    regulares para empregos precrios.Ento veio o choque financeiro, que atingiu Prato de um modo

    muito parecido com o que atingiu tantas outras antigas reas in dust ria i^ a

    Europa e da Am rica do N orte. As falncias se multiplicaram , o desem^prego aumentou, a indignao tom ou propores obscenas. Em poucosmeses, a esquerda poltica tinha sido varrida do pod er pela xenfoba Liga

    do Norte, que prontamente instituiu uma represso aos chineses, exe

    cutando invases noturnas em suas fbricas e empresas escravizantes,

    capturando trabalhadores e demonizando-os, do mesmo modo que o

    aliado poltico da Liga, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, falou de

    sua determ inao em derrotar o exrcito do m al, forma com o descreveuos imigrantes ilegais. Um embaixador chins abalado veio apressadamente

    de Roma e disse que o que estava acontecendo lembrava-lhe os nazistas

    em 1930. Estranhamente, o governo chins parecia relutante em levar

    os migrantes de volta.

    Os problemas no foram causados apenas por nativos intolerantes.

    A realidade do enclave tambm contribuiu. Enquanto as antigas fbricasde Prato lutavam para competir, deixando os trabalhadores italianos pro

    curarem fontes alternativas de rend imento, os chineses constru ram uma

    comunidade dentro da comunidade. As gangues chinesas, ao que consta,

    organizaram o xodo da China e dirigiam o enclave, ainda que disputassem

    o controle com gangues da Rssia, da Albnia, da Nigria e da Rom

    nia, bem como com a Mfia. E elas no estavam apenas se restringindo

    a Prato. As gangues chinesas estavam ligadas s companhias chinesas noinvestimento em projetos de infraestrutura itahanos, incluindo um proposto

    multibilionrio term inal E uro-C hin a perto do porto de Civitavecchia.

    20

  • 7/21/2019 o Precariado

    17/276

    Prato se tornou u m smbolo de globalizao e dos dilemas levanta

    dos pelo crescimento do precariado. Na medida em que aquelas empresas

    escravizantes se espalharam, os italianos perderam seus papis proletrios

    e foram abandonados para brigar por um emprego precrio ou absolu

    tamente inexistente. Assim a parte migrante do precariado foi exposta

    retaliao das autoridades, embora fosse dependente de redes dbias

    dentro do enclave de sua comunidade. Prato reflete um a contracorrente

    da globalizao, mas sem dvida no a nica.

    O filho da globalizao

    No final dos anos 1970, um encorajado grupo de pensadotes sociais

    e econmicos, posteriormente chamados de neoliberais e liqertrios

    (embora os termos no sejam sinnimos), percebeu que suas opinies

    estavam sendo ouvidas depois de serem ignoradas durante dcadas. A

    maioria deles era jovem o suficiente para no ter sido marcada pela

    Grande Depresso ou para ter se dedicado agenda social que eliminou

    as correntes dominantes depois da Segunda Guerra Mundial.

    Eles no gostavam do Estado, que comparavam a governo cen

    tralizado, com seu planejamento e seu aparato regulatrio. Viam o

    mundo como um lugar cada vez mais aberto, onde o investimento,

    o emprego e a renda fluiriam para onde as condies fossem mais

    receptivas. Argumentavam que a menos que os pases europeus, emparticular, reduzissem os ttulos de crdito, que haviam se acumulado

    desde a Segunda Guerra Mundial para a classe operria industrial e o

    setor pblico burocrtico, e a menos que os sindicatos fossem doma

    dos, a desindustrializao (conceito novo na poca) se aceleraria, o

    desemprego aumentaria, o crescimento econmico seria mais lento,

    o investimento escoaria e a pobreza se agravaria. Foi uma avaliao

    moderada. Eles queriam m edidas drsticas e encontravam , em polticoscomo M argaret Thatcher e R on ald R eaga n, o tipo de lderes dispostos

    a concordar com sua anlise.

    A tragdia foi que, enquan to o seu diagnsticoem parte fazia sentido,

    o seu prognsticoera insensvel. Ao longo dos 30 anos seguintes, a tragdia

    foi agravada pelo fato de que os partidos polticos social-democratas que

    construram o sistema que os neoliberais queriam desmantelar, depoisde brevemente contestarem o diagnstico dos neoliberais, acabaram

    aceitando, meio sem jeito, tanto o diagnstico quanto o prognstico.

    21

  • 7/21/2019 o Precariado

    18/276

    Um a reivindicao neoliberal que se consolidou na dcada de 1980

    foi a de que os pases tinham de perseguir a flexibilidade do mercado

    de trabalho. A menos que os mercados de trabalho se flexibilizassem, os

    custos trabalhistas aum entariam e as corporaes transfeririam a produo

    e o investimento para locais onde os custos fossem mais baixos; o capital

    financeiro seria investido nesses pases, em vez de ser investido em casa.

    A flexibilidade tinha muitas dimenses: flexibilidade salarial significavaacelerar ajustes a mudanas na dem anda, especialm ente para baixo; flexi

    bilidade de vnculo empregatcio significava habilidade fcil e sem custos

    das empresas para alterarem os nveis de emprego, especialmente parabaixo, im plicando uma reduo na segurana e na proteo do em pregt^

    flexibilidade do emprego significava ser capaz de mover continuamente

    funcionrios dentro da empresa e modificar as estruturas de trabalho com

    oposio ou custo mnimos; flexibilidade de habilidade significava ser

    capaz de ajustar facilmente as competncias dos trabalhadores.

    Em essncia, a flexibilidade defendida pelos impetuosos economistas

    neoclssicos significava, sistematicamente, tornar os funcionrios mais

    inseguros, o que afirmavam ser um preo necessrio para a manutenodo investimento e dos empregos. Cada revs econmico era atribudo,

    em parte, de form a justa ou no, a um a falta de flexibilidade e falta de

    reforma estrutural dos mercados de trabalho.

    N a m edida em que ocorria a globalizao e os governos e corpo

    raes se perseguiam mutuamente para tornar suas relaes trabalhistasmais flexveis, o nmero de pessoas em regimes de trabalho insegurosaumentou. Esse fato no foi determ inado em termos tecnolgicos. C on

    forme o trabalho flexvel se propagava, as desigualdades cresciam, e a

    estrutura de classe que sustentava a sociedade industrial deu lugar a algo

    mais complexo, porm certamente no menos classista. Voltaremos a isso

    mais tarde. No entanto, as mudanas polticas e as respostas das corpora

    es aos ditames da economia do mercado globalizante geraram em todo

    o m undo um a tendncia que jamais havia sido prevista pelos neoliberais

    ou pelos lderes polticos que estavam pondo em prtica suas polticas.

    Milhes de pessoas, em economias de mercado abastadas ou em er

    gentes, passaram a fazer parte do precariado, um novo fenmeno, ainda

    que tivesse nuances do passado. O precariado no fazia parte da classe

    trabalhadora ou do proletariado. Estes termos sugerem uma sociedadecomposta, em sua maioria, de trabalhadores de longo prazo, em empregos

    estveis de horas fixas, com rotas de promoo estabelecidas, sujeitos a

    22

  • 7/21/2019 o Precariado

    19/276

    acordos de sindicalizao e coletivos, com cargos que seus pais e mesteriam entendido, defrontando-se com empregadores locais com cujos

    nomes e caractersticas eles estavam familiarizados.

    Muitos que passaram a fazer parte do precariado no conheceriam

    seu empregador ou saberiam quantos companheiros empregados tinham

    ou provavelmente teriam no futuro. Eles tambm no eram a classe

    mdia, uma vez que no tinham um salrio estvel ou previsvel ou ostatus e os benefcios que as pessoas da classe mdia deveriam possuir.

    Conforme a dcada de 1990 avanou, mais e mais pessoas, no

    apenas nos pases em desenvolvimento, encontravam-se em um a posioque os economistas do desenvolvimento e os antroplogos chamarifrde

    info rm al. Provavelmente elas no considerariam esse term o um a fornlg

    til de descreverem a si prprias, muito menos uma forma de faz-las

    ver nos outros uma maneira comum de viver e trabalhar. Sendo assim,

    elas no eram classe trabalhadora, nem classe mdia, nem informal.

    O que eram elas? Um lampejo de reconhecimento teria ocorrido ao

    serem definidas como tendo uma existncia precria. Amigos, parentes e

    colegas tambm estariam num a condio temporria de algum tipo, semgarantia de que estariam fazendo dali a alguns anos, ou ainda meses ou

    semanas, o que faziam naquele m om ento. M uitas vezes eles nem sequer

    desejavam ou tentavam faz-lo dessa maneira.

    Definindo o precariado

    H duas maneiras de definir o que queremos dizer com precariado.

    Um a delas dizer que se trata de um grupo socioeconm ico distinto, de

    modo que, por definio, uma pessoa faz parte dele ou no. Isso til

    em termos de imagens e anlises e nos permite usar o que Max Weber

    chamou de tipo ideal. Nesse esprito, o precariado poderia ser descrito

    como um neologismo que combina o adjetivo precrio e o substantivo relacionado proletariado. Neste livro, o term o frequen temente

    usado nesse sentido, embora tenha limitaes. Podemos afirmar que o

    precariado um a classe-em-formao, se no ainda uma classe-para-si, no

    sentido marxista do termo.

    Pensando em termos de grupos sociais, podemos dizer que, dei

    xando de lado as sociedades agrrias, a era da globalizao resultounuma fragmentao das estruturas de classe nacionais. medida que as

    desigualdades aumentaram e que o mundo se moveu na direo de um

    23

  • 7/21/2019 o Precariado

    20/276

    mercado de trabalho aberto e flexvel, a classe no desapareceu. Em vez

    disso, surgiu uma estrutura de classe global mais fragmentada.

    Os termos classe trabalhadora, trabalhadores e proletariadoforam incorporados em nossa cultura por vrios sculos. As pessoas po

    diam se descrever em term os de classe, e outras pessoas as reconheceriam

    nesses termos, pela maneira como se vestiam, falavam e se comportavam.

    Hoje em dia, so pouco mais que etiquetas evocativas. Andr Gorz (1982)

    escreveu sobre o fim da classe trabalhadora h muito tempo. Outros

    continuaram a agonizar sobre o significado daquele termo e sobre o

    critrio para classificao. Na realidade, talvez precisemos de um novovocabulrio, um vocabulrio que reflita as relaes de classe no sistetaade mercado global do sculo XXI.

    Em termos gerais, enquanto as classes antigas persistem em partes

    do mundo, podemos identificar sete grupos. No topo est uma elite,

    que consiste em um minsculo nm ero de cidados globais absurdamente

    ricos governando o universo, com seus bilhes de dlares, listados naForbes como pessoas de prestgio, capazes de influenciar os governos

    em todos os lugares e de se permitirem gestos filantrpicos generosos.

    Abaixo da elite vm os assalariados, que ainda ocupam emprego estvel

    de tempo integral, sendo que alguns esperam passar para a elite, mas a

    maioria apenas aprecia os sinais simblicos de sua espcie, com penses,

    frias pagas e benefcios da empresa, muitas vezes subsidiados pelo Estado.

    Os assalariados esto concentrados em grandes corporaes, agnciasgovernam entais e na administrao pblica, incluindo o servio pblico.

    Ao lado dos assalariados, em mais de um sentido, est (at agora)

    um grupo m enor deproficians.Esse termo combina as ideias tradicionais

    de profissional (professional) etcnico (technician),mas abrange quem

    detm um conjunto de habilidades que podem ser vendidas, recebendo

    altos rendimentos em contrato, como consultores ou trabalhadores autnomos. Osproficianseqivalem aosyeomen (pequenos proprietrios de

    terras com direitos polticos), cavaleiros e squires (nobres rurais) na IdadeMdia. Vivem com a expectativa e o desejo de se m udar continuam ente,

    sem um impulso para o emprego de longo prazo e de perodo integral

    numa nica empresa. A relao de emprego padro no serve para eles.

    Abaixo dosproficians,em termos de renda, est um ncleo retrado

    de trabalhadores manuais, a essncia da velha classe trabalhadora. OsEstados do bem-estar foram construdos tendo em mente esse grupo,assim como os sistemas de regulam entao do trabalho. Mas os batalhes

    24

  • 7/21/2019 o Precariado

    21/276

    de trabalhadores industriais que integravam os movimentos trabalhistas

    se retraram e perderam seu sentido de solidariedade social.Em baixo desses quatro grupos est o crescente precariado, flan-

    queado por um exrcito de desempregados e um grupo separado de

    pessoas hostis socialm ente desajustadas, vivendo custa da escria da

    sociedade. O carter dessa estrutura de classe fragmentada discutido

    alhures (St a n d i n g , 2009). E o precariado que queremos identificar aqui.

    Convencionalmente, os socilogos pensam tendo em vista as formas

    de estratificao de M ax W eber - classe e status - , sendo que classe se

    refere s relaes sociais de produo e posio da pessoa no processode trabalho (W e b e r , [1922] 1968). Dentro dos mercados de trabalho,com exceo de empregadores e trabalhadores autnomos, a principal

    distino tem sido feira entre trabalhadores remunerados e empregados

    assalariados os primeiros so prestadores de servio que recebem por

    tempo de trabalho ou po r pea, com imagens de pagamento por esforo,

    e os ltimos supostamente so gratificados pela confiana e compensao

    por servio (G o l d t h o r p e , 2007, v. 2, cap. 5; M c G o v e r n ; H i l l ; M i l l s ,

    2008, cap. 3). Sempre se presumiu que o assalariado estivesse mais perto

    de gerentes, chefes e proprietrios, enquanto os trabalhadores remunera

    dos seriam inerentemente alienados, exigindo disciplina, subordinao

    e uma combinao de incentivos e sanes.Em contraste com classe, a ideia de status tem sido associada com a

    ocupao de um a pessoa, sendo as ocupaes de status mais altos aquelasque esto mais perto de servios profissionais, gerenciamento e admi-

    mstrao (G o l d t h o r p e , 2009). Uma dificuldade que se apresenta que

    dentro da maioria das ocupaes h divises e hierarquias que envolvem

    status muito diferentes.

    Em qualquer caso, a diviso entre mo de obra remunerada e empre

    gado assalariado, e ideias de ocupao, se dissolve quando consideramos

    o precariado. O precariado tem caractersticas de classe. Consiste empessoas que tm relaes de confiana m nim a com o capital e o Estado,

    o que as torna completamente diferentes do assalariado. E ela no tem

    nenhuma das relaes de contrato social do proletariado, por meio dasquais as garantias de trabalho so fornecidas em troca de subordinao e

    eventual lealdade, o acordo tcito que serve de base para os Estados de

    bem-estar social. Sem um poder de barganha baseado em relaes deconfiana e sem poder usufruir de garantias em troca de subordinao,

    o precariado sui generis em termos de classe. Ele tambm tem uma

    25

  • 7/21/2019 o Precariado

    22/276

    posio de status peculiar, no se encaixando em alto status profissional

    ou em atividades artesanais de m dio status. Um a form a de expficar isso

    dizendo que o precariado tem status truncado. E, como veremos, a

    sua estrutura de renda social no se mapeia perfeitamente conforme

    velhas noes de classe ou ocupao.O Japo ilustra os problemas confrontando os estudantes do preca

    riado. O pas tem tido um nvel relativamente baixo de desigualdade de

    renda (o que faz dele um bom pas, de acordo com W ilkinson e Pickett,

    2009). Mas a desigualdade profunda em termos de hierarquia de status

    e tem sido intensificada pela proliferao do precariado, cuja situaoeconmica subestimada por medidas convencionais de desigualdade de

    renda. As posies de status mais alto na sociedade japonesa acarretam um

    conjunto de gratificaes que proporcionam segurana socioeconmica e

    que valem muito mais do que pode ser medido pela renda monetria por

    si s (Ke r b o , 2003, p. 509-512). O precariado no tem todas essas gratifi

    caes, razo pela qual a desigualdade de renda to seriamente atenuada.

    O termo descritivo precariado foi usado pela primeira vez pelossocilogos franceses nos anos 1980, para descrever os trabalhadores tem

    porrios ou sazonais. Este livro usa um a noo diferente, mas o status de

    mo de obra tem porria com preende um aspecto central do precariado.

    Apenas temos de lembrar que contratos de em prego temporrios no so,

    necessariamente, a mesma coisa que fazer trabalho temporrio.

    Alguns tentam dar ao precariado uma imagem positiva, tipificando um romntico esprito livre que rejeita normas da antiga classe

    trabalhadora mergu lhada no trabalho estvel, hem com o o materialismo

    burgus de quem tem empregos assalariados de colarinho branco.

    Esse desafio do esprito independente e do inconformismo no deve ser

    esquecido, porque ele realmente figura no precariado. No h nada de

    novo nas lutas da juventude e dos no to jovens contra os ditames do

    trabalho subordinado. O que mais novo a receptividade po r parte dosidosos do trabalho precrio e do estilo de mo de obra, optando por

    semelhante modo de vida aps um longo perodo de emprego estvel.

    Ns os consideraremos mais tarde.

    O significado do termo tem variado na medida em que entra no debate

    popular. Na Itlia, o termo precariato tem sido empregado para significar

    mais do que apenas pessoas cumprindo tarefas casuais e com baixas rendas,indicando a existncia precria como um estado de vida normal (G r i m m ;

    R o n n e b e r g e r , 2007). N a Alemanha, o termo tem sido usado para descrever

    26

  • 7/21/2019 o Precariado

    23/276

    no apenas trabalhadores temporrios, mas tam bm desempregados que no

    tm esperana de integrao social. Isso se aproxima da ideia marxista de

    um lumpenproletariate no o que ser apresentadoTeste livro.

    N o Japo, o term o tem sido usado como sinnimo de trabalhador

    pobre, embora tenha evoludo como um termo distintivo na m edida em

    que passou a ser associado com o movimento japons do D ia do Trabalho e

    os chamados sindicatos freeter, formados por jovens ativistas que exigem

    melhores condies de trabalho e de vida ( U e n o , 2007; O b i n g e r , 2009).

    O Japo tem produzido um grupo de jovens trabalhadores conhecidos

    como freeters - um nom e que combina peculiarmente free (livre)e Arbeiter, palavra alem para trabalhador que tem sido forado a um

    estilo de emprego casual.

    No correto equiparar o precariado com o trabalhador pobre ou

    simplesmente com o emprego incerto, embora essas dimenses estejam

    correlacionadas com ele. A precariedade tam bm implica a falta de um a

    identidade segura baseada no trabalho, considerando que os trabalhado

    res em alguns empregos de baixa renda podem estar construindo uma

    carreira. Alguns analistas tm ligado a ideia falta de controle sobre seuemprego. Isso complicado, uma vez que existem vrios aspectos do

    trabalho e do emprego, sobre os quais uma pessoa pode ter o controle

    desenvolvimento e uso de habilidades, tempo necessrio para o emprego,

    tempo de emprego e trabalho, intensidade do trabalho, equipamentos,

    matrias-primas, etc. E h vrios tipos de controle e de controladores, noapenas o supervisor padro ou o gerente que supervisiona o trabalhador.

    Afirmar que o precariado se com pe de pessoas que no tm con

    trole sobre o prprio trabalho ou emprego seria m uito restritivo, um a vez

    que sempre h ambivalncia e acordo implcito em relao a empenho,

    cooperao e aplicao de habilidades, bem como espao para atos de

    sabotagem, furto e atividades inteis. Mas os aspectos de controle so

    relevantes para uma avaliao de sua situao.Talvez um a linha de delineamento igualmente interessante esteja asso

    ciada com o que pode ser chamado de dissonncia de status. Pessoas com

    nvel relativamente alto de educao formal que tiveram de aceitar empregos

    com um status ou rendimento abaixo do que acreditam estar de acordo

    com suas qualificaes so propensas a sofrer de frustrao de status. Esse

    sentimento tem predominado no jovem precariado do Japo (Ko s u g i , 2008).Para nossos propsitos, o precariado consiste em pessoas que so

    desprovidas das sete formas de garantia relacionadas ao trabalho resumidas

    27

  • 7/21/2019 o Precariado

    24/276

    no quadro a seguir, e perseguidas pelos social-democratas, partidos traba

    lhistas e sindicatos aps a Segunda Guerra M undia l com o sua agenda de

    cidadania industrial para a classe trabalhadora ou para o ^oletariado

    industrial. N em todos aqueles que fazem parte do precariado valrizariam

    todas as sete formas de segurana, mas se saem mal em todos os aspectos.

    Formas de garantia e segurana de trabalho nos termos

    da cidadania industrial

    Garantia de mercado de trabalho - oportunidades adequadas de renda-

    salrio; no nvel macro, isto realado por um compromisso gover

    namental de pleno emprego.

    Garantia de vnculo empregatcio - Proteo contra a dispensa arbitrria,

    regulamentao sobre contratao e demisso, imposio de custos aos

    empregadores por no aderirem s regras e assim por diante.

    Segurana no emprego - Capacidade e opo rtunidade para manter um

    nicho no emprego, alm de barreiras para a diluio de habilidade, e

    oportunidades de mobilidade ascendente em termos de status e renda.

    Segurana do trabalho- Proteo contra acidentes e doenas no trabalho

    atravs, por exemplo, de normas de segurana e sade, limites de tem po de trabalho, horas insociveis, trabalho noturno para as mulheres,

    bem como compensao de contratempos.

    Garantia de reproduo de habilidade - O portunidad e de adquirir habili

    dades, atravs de estgios, treinam ento de trabalho, e assim por diante,

    bem como oportunidade de fazer uso dos conhecimentos.

    Segurana de rendaGarantia de renda adequada e estvel, protegida,

    por exemplo, por meio de mecanismos de salrio m nim o, indexao

    dos salrios, previdncia social abrangente, tributao progressiva para

    reduzir a desigualdade e para complementar as baixas rendas.

    Garantia de representao - Possuir uma voz coletiva no mercado de

    trabalho por meio, por exemplo, de sindicatos independentes, com odireito de greve.

    28

  • 7/21/2019 o Precariado

    25/276

    Nas discusses da atual insegurana de trabalh>dada mais ateno

    *Hegurana de vnculo empregatcio - falta de contratos de longo prazo

    CMsncia de proteo contra a perda do vnculo. Isso compreensvel. Noo m ito , a insegurana no emprego tambm um a caracterstica marcante.

    A diferena entre garantia de vnculo e segurana no emprego vi-

    nL Considere-se um exemplo. Entre 2008 e 2010, trinta funcionrios da

    aDce Telecom cometeram suicdio, resultando na indicao de algum

    t fora como o novo chefe. Dois teros dos 66 mil funcionrios tinham

    otabilidade do servio pblico, com a segurana de vnculo empregatcio

    garantida. Mas a administrao sujeitou-os sistemtica insegurana nonqwego, com um sistema chamado Time to Move (Hora de Mudar),

    i|ae os obrigava a mudar de escritrio e postos de trabalho abruptamente,

    de poucos em poucos anos. A tenso resultante foi considerada a principal

    causa dos suicdios. A insegurana no emprego foi relevante.

    Essa insegurana tam bm tem im portncia no servio pblico. Os

    empregados assinam contratos que lhes do a to cobiada segurana dexinculo empregatcio. Mas eles tambm concordam em ser alocados para

    cargos de acordo com a vontade de seus gerentes. Em um mundo de

    ngorosa gesto de recursos humanos e flexibilidade funcional, provvel que o deslocamento para l e para c seja pessoalmente perturbador.

    O utra caracterstica do p recariado a renda precria e um padro

    de renda que diferente daquele de todos os outros grupos. Isso pode ser

    demonstrado usando-se o conceito de renda social. Em todos os lugares,as pessoas obviam ente tm de sobreviver com a renda que recebem , seja

    na forma de fluxo m onetrio ou de rendimentos em espcie, em termos

    do que as pessoas ou suas famlias produzem. Isso pode ser medido pelo

    que elas poderiam receber antecipadamente, caso venham a precisar. A

    maior parte das pessoas, na maioria das sociedades, tem vrias fontes derenda, embora alguns possam depender de apenas uma.

    A composio da renda social pode ser dividida em seis elementos. O

    prim eiro a autoproduo, os alimentos, os bens e os servios produzidos

    diretamente, se consumidos, trocados ou vendidos, incluindo o que se

    pode plantar numa horta ou num terreno domstico. Em segundo lugar,

    h o salrio nominal ou a renda em dinheiro recebido do trabalho. Em

    terceiro, h o valor do apoio fornecido pela famlia ou pela comunidade

    local, muitas vezes por meio de crditos de seguros informais mtuos. E mquarto, h benefcios corporativos que so fornecidos a muitos grupos de

    empregados. Em quinto , h os benefcios estatais, incluindo benefcios de

    29

  • 7/21/2019 o Precariado

    26/276

    seguro social, assistncia social, transferncias discricionrias, subsdios pa

    gos diretamente ou atravs dos empregadores, e servios sociais subsidiados.

    Por fim, h os benefcios privados derivados de economias e investimentos.Cada um deles pode ser subdividido em formas que so mais ou

    menos seguras ou garantidas e que determ inam seu valor integral. Por

    exemplo, os salrios podem ser divididos em formas fixadas num a base

    contratual de longo prazo ou formas variveis ou flexveis. Se algum

    recebe hoje um salrio que oferece a mesm a renda m ensal para o pr

    ximo ano, a renda recebida esse ms vale mais do que a mesma renda

    em dinheiro derivada de um salrio que dependente dos caprichos do

    tempo e da agenda de produo ind etermina da de um empregador. Damesma forma, os benefcios estatais pod em ser divididos em direitos de

    cidadania universal, ao lado de benefcios de seguro, que dependem

    de contribuies passadas e por isso so, em princpio, garantidos, e

    mais transferncias discricionrias que podem ou no estar disponveis,

    dependendo de circunstncias imprevistas. Os benefcios da empresa p odem ser subdivididos em elementos que todos recebem num a empresa,elementos que dependem do status ou do servio an terior e elementos

    dados discricionariamente. O mesmo verdadeiro para os benefcios

    da com unidade, que podem ser divididos em reivindicaes de famlia

    ou parentesco e reivindicaes que podem ser feitas na comunidade

    em geral para apoio em momentos de necessidade.

    O precariado pode ser identificado por uma estrutura caractersticada renda social, que confere um a vulnerabilidade que vai bem alm da que

    seria transmitida pela renda financeira recebida em um mom ento espec

    fico. Por exemplo, num perodo de rpida comercializao da economia

    de um pas em desenvolvimento, os novos grupos, muitos a caminho do

    precariado, acham que perdem os benefcios tradicionais da comunidade e

    no obtm benefcios corporativos ou do Estado. Eles so mais vulnerveisdo que muitos grupos com rendas mais baixas que m antm formas tradi

    cionais de apoio da comunidade e so mais vulnerveis do que empregados

    assalariados que tm rendimentos financeiros similares, mas tm acesso a

    um conjunto de benefcios da empresa e do Estado. Um a caracterstica do

    precariado no o nvel de salrios em dinheiro ou de rendas auferidas

    em qualquer momento especfico, mas a falta de apoio da comunidade em

    momentos de necessidade, a falta de benefcios assegurados da empresa oudo Estado e a falta de benefcios privados para complementar ganhos em

    dinheiro. Consideraremos os efeitos disso no captulo 2.

    30

  • 7/21/2019 o Precariado

    27/276

    Alm da falta de garantia no emprego e da renda social insegura,

    aqueles que fazem parte do precariado carecem de um a identidadebaseada

    no trabalho. Quando esto empregados, ocupam empregos desprovidosde carreira e sem tradies de memria social, ou seja, no sentem que

    pertencem a uma comunidade ocupacional imersa em prticas estveis,

    cdigos de tica e normas de comportamento, reciprocidade e fraternidade.O precariado no se sente parte de uma comunidade trabalhista

    solidria. Esse fato intensifica um sentimento de alienao e instrumen-

    tahdade no que ele tem de fazer. As aes e atitudes derivadas da preca

    riedade tendem ao oportunismo. No h sombra de futuro pairandosobre suas aes, para lhes dar um senso de que o que dizem, fazem

    ou sentem hoje ter um forte ou obrigatrio efeito em suas relaes de

    longo prazo. O precariado sabe que no h nenhum a sombra do futuro ,

    da mesma forma como no h futuro no que eles esto fazendo agora.

    Estar fora amanh no seria um a surpresa, e sair talvez no fosse ru im ,

    caso ou tro trabalho ou um a exploso de atividade surjam no horizonte.O precariado carece de identidade ocupacional, mesmo que al

    guns tenham qualificaes vocacionais e mesmo que muitos tenham

    empregos com ttulos extravagantes. Para alguns, h uma liberdade

    em no ter nenhum comprometimento moral ou comportamental

    que defina uma identidade ocupacional. Consideraremos a imagemdo nm ade u rban o mais tarde, bem como a relacionada imag em de

    habitante , a pessoa que no um cidado pleno. Da mesma formaque alguns preferem ser nm ades - isto , viajantes no colonos - , nem

    todos que esto n o p recariado devem ser considerados com o vtimas.

    N o entanto, a m aioria vai se sentir desconfortvel em sua insegurana,sem uma perspectiva razovel de fuga.

    Tarefa, trabalho,^ diverso e cioOs antecedentes histricos do precariado foram os banausoida Grcia

    antiga, aqueles que deviam cumprir as tarefas produtivas na sociedade

    (ao contrrio de escravos, que trabalhavam apenas para seus senhores).

    Os banausoi, considerados por seus superiores como rgidos de corpo

    N o o rig ina l, lab o u r e w o rk . E m te rm os m arxistas, lab o u r esta ria lig ado aovalor de troca, e work ao valor de uso. Baseado nas distines estabelecidas por

    Guy Standing, optamos p or t raduzir wo rk por trabalho e labo ur por tarefa ou

    emprego. (N.E.)

    31

  • 7/21/2019 o Precariado

    28/276

    e vulgares de mente, no tinham nenhum a opo rtunidade de ascender

    na escala social. Trabalhavam ao lado dos metecos(residentes estrangeiros),

    artesos aceitos com direitos limitados. Juntamente com os escravos, essesdois grupos faziam todas as tarefas, sem expectativa de que alguma vez

    pudessem partic ipar da vida da polis.

    Os antigos gregos compreendiam melhor do que nossos estra

    tegistas polticos atuais as diferenas entre trabalho e tarefa e entrediverso e cio, ou o que eles chamavam de schole. Os que faziam as

    tarefas eram no-cidados, pois os cidados no as cumpriam; eles se

    entregavam praxis, ao trabalho na casa e ao redor dela, com a famlia

    e os amigos. Tratava-se de uma atividade reprodutiva, o trabalho

    feito por si s, para fortalecer relaes pessoais, para se misturar par

    ticipao pblica na vida da comunidade. De acordo com os nossos

    padres, a sociedade deles era desigual, particularm ente no tratam ento

    das mulheres. No entanto, eles entendiam por que era ridculo medir

    tudo em termos de tarefas.Uma controvrsia neste livro que um dos principais objetivos de

    se superar o lado negativo do precariado medida que o sculo XXIavana deveria ser resgatar o trabalho que no tarefa e o cio que no

    diverso. Durante todo o sculo XX, a nfase esteve em maximizar

    o nmero de pessoas que realizam tarefa, enquanto se denegria ou se

    ignorava o trabalho que no fosse tarefa. Esperava-se que o precariado

    realizasse tarefas, como e quando fosse necessrio, em condies que noso, em grande parte, de sua prpria escolha. E esperava-se que se permitisse muita diverso. Conforme argumentado no captulo 5, tambm

    se espera que seja feito muito trabalho por tarefa no remunerado. Mas

    seu cio considerado acidental.

    Variedades do precariado

    No im porta como seja definido, o precariado est longe de ser

    hom ogneo. O adolescente que entra e sai o tempo inteiro de um ciber-

    caf enquanto sobrevive de empregos transitrios no o mesmo que o

    migran te que usa a inteligncia para sobreviver, estabelecendo febrilmente

    um a rede de contatos enquanto se preocupa com a polcia. Tam pouco

    semelhante me solteira que se preocupa de onde vir o dinheiro paraos alimentos da prxima semana, ou ao homem de 60 anos que aceita

    empregos eventuais para ajudar a pagar as despesas mdicas. Mas todos

    32

  • 7/21/2019 o Precariado

    29/276

    des com partilham um sentimento de que seu trabalho til (para viver),

    oportunista (pegar o que vier) e precrio (inseguro).

    Uma maneira de descrever o precariado como habitantes [de-trcHs]. O habitante algum que, por uma razo ou outra, tem um

    conjunto de direitos mais limitado que o dos cidados. A ideia de habi

    tante, que pode ser rastreada at os tempos romanos, tem sido, geralmente,

    jfJicada a estrangeiros qu recebem direitos de residncia e direitos para

    exercerem seu comrcio, mas no direitos plenos de cidadania.

    A ideia pode ser expandida se pensarmos na gama de direitos

    dos quais as pessoas so merecedoras - civis (igualdade perante a lei edireito proteo contra o crime e dano fsico), culturais (igualdade de

    icesso ao usufruto da cultura e direito a participar da vida cultural da

    comunidade), sociais (igualdade de acesso a formas de proteo social,

    inclu indo penses e servios de sade), econmicos (igualdade de direitopara realizar atividade de gerao de renda) e polticos (igualdade de

    direito de votar, candidatar-se a eleies e participar da vida poltica

    da comunidade). Um nmero crescente de pessoas em todo o mundo

    no tm pelo menos um desses direitos e, como tais, pertencem ao

    conjunto de habitantes em vez de ao conjunto de cidados, ondeque r que estejam vivendo.

    O conceito tambm poderia ser estendido vida corporativa, com

    cidados corporativos e habitantes de vrios tipos. Os assalariados po

    dem ser visto como cidados com, pelo menos, direitos de voto implcitosna empresa, abrangendo uma srie de decises e prticas que o outro

    grupo de cidados, os acionistas e proprietrios, aceitam implicitam ente,

    embora tenham seus prprios direitos de voto explcitos sobre as decises

    estratgicas na empresa. O resto das pessoas ligadas s corporaes - os

    temporrios, eventuais, empreiteiros dependentes e assim por diante -

    seriam habitantes, com poucos m erecimentos ou direitos.

    Em todo o mundo, a maioria dos habitantes migrante de um

    npo ou de outro, e eles sero abordados mais tarde. No entanto, outra

    categoria se destaca - a grande camada de pessoas que foram crim inaliza

    das, os condenados. A era da globalizao tem visto um crescimento no

    nmero de aes consideradas criminosas. Mais do que nunca, pessoas so

    detidas e presas, resultando em uma quantidade sem precedentes de pes

    soas sendo criminalizadas. Parte da expanso da criminalizao deve-seao pequeno crime, incluindo reaes comportam entais aos esquemas de

    assistncia social que criam riscos imorais, situaes em que as pessoas

    33

  • 7/21/2019 o Precariado

    30/276

    carentes arriscam penalizar a si mesmas caso digam a verdade e, assim,

    acabam caindo na violao de alguma regra burocrtica.

    Os trabalhadores temporrios desprovidos de carreiras, habitantes

    migrantes, batalhadores criminalizados, requerentes de benefcios sociais...

    os nmeros crescem. Infelizmente, as estatsticas trabalhistas e econmicas

    no so apresentadas de uma forma que nos permitiria estimar o nmero

    total de pessoas no precariado, e muito menos o nmero nas variedades

    que com pem suas categorias. Temos de construir um a imagem com base

    em variveis substitutas. Consideremos os principais grupos que consti

    tuem o precariado, tendo em mente que nem todos eles se encaixam aliharm oniosamente; a caracterstica identificadora no , necessariamente,

    suficiente para indicar que uma pessoa est no precariado.

    Para comear, a maioria das pessoas que se encontram em empre

    gos temporrios est perto de estar no precariado porque tem relaes de

    produo tnues, baixas rendas comparadas com outros que fazem um

    trabalho similar e tm oportunidades mnimas em termos ocupacionais.

    O nmero de pessoas cujos empregos esto rotulados como temporrios

    tem crescido enormemente na era do mercado de trabalho flexvel. Em

    uns poucos pases, como o Reino Unido, as definies restritivas do que

    constitui o trabalho temporrio dificultaram a identificao do nmero de

    postos de trabalho sem proteo do emprego. Mas, na maioria dos pases, a

    estatstica mostra que o nm ero e a quota das foras nacionais de trabalho

    em status temporrios vm aumentando acentuadamente ao longo dasltimas trs dcadas. Eles cresceram rapidamente no Japo, onde em 2010mais de um tero da fora de trabalho ocupava empregos temporrios,

    mas a proporo pode ser mais alta na Coreia do Sul, onde, fazendo uma

    interpretao sensata, mais da metade dos trabalhadores ocupa empregos

    temporrios no regulares.

    Em bora o fato de ocupar um emprego temporrio seja o indicativo

    de um a pessoa que ocupa um emprego desprovido de carreira, isso nem

    sempre o caso. N a verdade, aqueles que ch am am os proficiansalegram-se

    por ter uma existncia baseada em projetos, saindo de um projeto de curto

    prazo para outro . E os empregos de longo prazo, nos quais se deve fazer

    as mesmas poucas tarefas repetidas vezes, dificilm ente so ambicionados.

    Ter um emprego temporrio bom se o contexto social for satisfatrio.

    Mas se o sistema econm ico global exige que um m onte de gente tenhaempregos temporrios, ento os estrategistas polticos deveriam tratardo que os torna precrios.

    34

  • 7/21/2019 o Precariado

    31/276

    Atualmente, ter um trabalho temporrio um forte indicador de

    um tipo de precariedade. Para alguns, ele pode ser um trampolim para

    a construo de uma carreira. Mas, para muitos, pode ser um degrauque desce para um status de renda mais baixa. Aceitar um emprego

    temporrio aps um perodo de desemprego, como encorajado por

    muitos estrategistas polticos, pode resultar em ganhos menores para osprxim os anos ( A u t o r ; H o u s e m a n , 2010). Quando uma pessoa aceita

    um emprego em um patamar mais baixo, a probabilidade de ascensosocial ou de ganhar uma renda decente perm anentem ente reduzida.

    Aceitar um emprego casual pode ser uma necessidade para muitos, mas improvvel que promova a mobilidade social.

    Outra via de entrada para o precariado o emprego de meio pero

    do, um complicado eufemismo que se torn ou um a caracterstica da nossa

    economia terciria, ao contrrio das sociedades industriais. Na maioria

    dos pases, o sujeito que trabalha em regime de meio perodo definido

    como empregado ou rem unerado por menos de 30 horas semanais. Seriamais preciso cham-los de supostos trabalhadores de meio perodo, uma

    vez que muitos que escolhem ou so obrigados a ter um emprego de

    tempo parcial acham que tm de trabalhar mais do que o previsto e mais

    do que so pagos para fazer. Os trabalhadores de meio perodo, muitas

    vezes mulheres, que decaem na carreira, podem acabar mais explorados,

    tendo que fazer muito trabalho por tarefa no remunerado fora de suas

    horas pagas, e mais autoexplorados, tendo de realizar trabalhos extraspara m anter um lugar de algum tipo.

    O crescimento dos empregos de meio perodo ajudou a ocultar a

    expanso do desemprego e do subemprego. Desse modo, na Alemanha,

    deslocar mais pessoas para os miniempregos tem mantido a iluso de alto

    nvel de emprego e levado alguns economistas a fazerem reivindicaes

    tolas sobre um milagre empregatcio no pas aps o colapso financeiro.

    Outras categorias sobrepostas ao precariado so os empreiteirosindependentes e os empreiteiros dependentes. Aqui no h equiva

    lncia com o precariado, um a vez que muitos empreiteiros esto seguros

    em alguns aspectos e tm uma forte identidade ocupacional. Pensa-se

    no dentista autnomo ou no contador. Mas diferenciar o empreiteiro

    dependente do independente tem causado dores de cabea para os advo

    gados trabalhistas em todos os lugares. Tem havido debates interminveissobre como distinguir aqueles que prestam servios daqueles que prestam

    tarefa de servio, e entre aqueles que dependem de algum interm edirio

    35

  • 7/21/2019 o Precariado

    32/276

    e aqueles que so empregados ocultos. Em ltima anlise, as distines

    so arbitrrias, dependendo de noes de controle, subordinao e de

    pendncia de outras partes. Todavia, aqueles que dependem de outrospara serem alocados em tarefas sobre as quais tm pouco controle correm

    um risco maior de entrar para o precariado.O utro grupo ligado ao precariado o crescente exrcito nas centrais

    de atendimento. Essas centrais esto em toda parte, um smbolo sinistroda globalizao, da vida eletrnica e do trabalho alienado. Em 2008, o

    Channel 4 do Reino Unido apresentou um documentrio de televiso

    cham ado Phone Rag e [Fria do Telefone], destacando os desentendimentos mtuos entre os jovens funcionrios das centrais de atendimentoe os clientes irritados. De acordo com o programa, em mdia, as pessoasno R ein o Unido passavam um dia inteiro a cada ano falando com centraisde atendimento, e a quantidade de tempo estava aumentando.

    Depois h os estagirios, um fenmeno m oderno peculiar po r meio

    do qual os recm-formados, os atuais alunos e at mesmo os pr-universi

    trios trabalham durante um tempo, por pouca ou nenhuma remunerao,cumprindo tarefas insignificantes de escritrio. Alguns analistas francesesequipararam o precariado aos estagirios, o que incorreto, porm indicativo da inquietao com que o fenmeno encarado.

    Os estgios so potencialm ente um veculo para canalizar os jovens

    rumo ao precariado. Alguns governos ainda tm lanado programas de

    estgio como uma forma de poltica ativa do mercado de trabalho,projetada para esconder o desem prego. Na realidade, os esforos parapromover os estgios so muitas vezes pouco mais do que esquemas dispendiosos e ineficientes de subveno. Eles tm custos administrativosaltos e usam pessoas para fazerem pouca coisa de valor duradouro, seja

    para as organizaes, seja para os prprios estagirios, apesar da retrica

    sobre aclimatar as pessoas para a vida organizacional e a aprendizagem

    no emprego. Consideraremos os estagirios mais adiante.Em resumo, uma maneira de olhar para o precariado perceber

    como as pessoas passam a realizar formas inseguras de trabalho queprovavelm ente no as ajudaro a construir uma identidade desejvel ou

    uma carreira cobiada.

    PrecarizaoOutra maneira de ver o precariado em termos de processos, a

    maneira pela qual as pessoas so precarizadas. Esta palavra canhestra

    36

  • 7/21/2019 o Precariado

    33/276

    inloga a pro letarizado, descrevendo as foras que levaram proleta-

    rizao dos trabalhadores no sculo XIX. Ser precarizado ser sujeito a

    presses e experincias que levam a uma existncia precariada, de viverno presente, sem um a identidade segura ou um senso de desenvolvimento

    alcanado por meio do trabalho e do estilo de vida.

    Nesse sentido, parte dos assalariados est sendo levada ao precariado.

    O caso do lendrio salaryman [homem assalariado] no Japo ilustrativo.

    Esse trabalhador do sculo XX I, com emprego vitalcio em um a empresa,

    surgiu atravs de um modelo altamente paternalista do trabalhismo que

    prevaleceu at o inc io dos anos 1980. N o Japo (e em outros lugares), agaiola dourada pode facilmente se tornar uma gaiola de chumbo, com

    tantas garantias de vnculo empregatcio que o exterior se torna uma

    zona de medo. Isso o que aconteceu no Japo e em outros pases doleste asitico que adotaram um modelo similar. Sair da companhia ou

    organizao tornou-se um sinal visvel de fracasso, uma desmoralizao.

    Em tais circunstncias, a busca do desenvolvimento pessoal facilmentedi lugar a uma politicagem de deferncia em relao aos que esto em

    posio mais alta na hierarquia in terna e de conspiraes oportunis tas.

    Isso foi levado ao limite no Japo. A companhia tornou-se uma

    tmlia fictcia, de modo que a relao de emprego se tornou uma

    kintractshipj na qual o empregador adotava o empregado e, em troca,

    esperava algo prx imo de um a relao dadivosa de subservincia, dever

    nhal e dcadas de trabalho intenso. O resultado foi um a cultura de horasextras de servio e o sacrifcio mximo do karoshi,a morte por excesso

    de trabalho (M o u e r ; Ka w a n i s h i , 2005). Mas desde o incio dos anos

    1980, a participao da fora de trabalho japonesa na massa assalariada

    encolheu drasticamente. Aqueles que ainda esto agarrados a ela esto soh

    presso, muitos esto sendo substitudos por trabalhadores mais jovens e

    por mulheres sem nenhuma garantia de vnculo empregatcio equivalente

    deles. O precariado est deslocando o salaryman, cuja dor revelada

    por um aumento alarmante do nm ero de suicdios e de doenas sociais.

    A transformao japonesa do salarymanpode ser um caso ex tremo.

    Mas possvel ver como algum psicologicamente aprisionado a um

    emprego de longo prazo perde o controle e levado a se aproximar de

    uma forma de dependncia precria. Caso o pai se torne descontente.

    O te rmo kintractship derivado de um a com binao da palavra contract (contrato) com a

    palavra kinship (parentesco). (N.T.)

    37

  • 7/21/2019 o Precariado

    34/276

    ou seja, incapaz ou relutante de continuar no papel parental fictcio, a

    pessoa ser lanada no precariado, sem as habilidades de autonomia e de

    proezas de desenvolvimento. O emprego de longo prazo podedesqualificar.

    Como foi explicado em outro texto (St a n d i n g , 2009), esse foi um dos

    piores aspectos da era do trabalhismo.Em bora se deva tom ar cuidado para no estender demais a defini

    o, outra caracterstica da precarizao o que poderia ser chamado

    de mobilidade ocupacional fictcia, simbolizada pelo fenmeno ps-moderno de uptitling elegantemente satirizado pelo The Economist

    (2010a). Uma pessoa que ocupa um emprego esttico, que no leva a lugarnenhum , recebe um ttulo pomposo para sua ocupao a fim de esconder

    as tendncias do precariado. Pessoas so transformadas em chefe ouexecutivo ou oficial sem ter um exrcito para liderar ou um a equipe

    para modelar. O corpo profissional dos Estados Unidos, que caracteristi-camente d a si mesmo o ttulo presunoso de Associao Internacional

    de Profissionais Administrativos (tendo sido antes a Associao Nacional

    de Secretrias, bem mais modesta), inform ou que teve mais de 500 ttulos

    de emprego em sua rede, incluindo coordenador de escritrio princi

    pal, especialista em docum ento ele trnico, oficial de distribuiode m dia (jornaleiro/jornale ira), oficial de reciclagem(esvaziador de

    cestos) e consultor de instalaes sanitrias (limpador de banheiros).

    Mas os Estados Unidos no tm o monoplio sobre a criatividade das

    titulaes: ela est acontecendo em todos os lugares. Os franceses agoratendem a cham ar as mulheres da limpeza com o nome mais prestigioso

    de techniciennes de surface.O The Economist atribuiu a proliferao de ttulos de ocupao

    recesso ps-2008 , que induziu a substituio de novos ttulos po m po

    sos por aumentos de salrios, e crescente complexidade interna das

    corporaes multinacionais. Mas isso no apenas um surto recente de

    hiprbole. Reflete o crescimento do precariado, em que smbolos fictciosde mobilidade ocupacional e desenvolvimento pessoal tm de encob rir a

    falta de trabalho. As estruturas profissionais achatadas so ocultadas pela

    inflao de ttulos. O The Economist colocou isso muito bem:

    O culto da flexibilidade tambm inflacionrio. A moda de nivelar

    hierarquias tem tido o efeito paradoxal de multiplicar ttulos de

    emprego sem sentido. Os trabalhadores almejam ttulos que soemimportantes, da mesma forma que os polticos so nomeados C hance

    ler do Duca do de Lancaster ou Lorde Presidente do Con selho. Todo

    38

  • 7/21/2019 o Precariado

    35/276

    m und o, do con junto executivo para baixo, que r ajeitar seu currculo

    como umal cerca-viva contra a demisso.

    Isso aponta/para um mal-estar mais profundo. O The Economistconclui sua anlise panormica afirmando que os benefcios de dar s

    pessoas um novo ttulo pomposo geralmente tm vida curta. O prejuzo

    e je longa durao. O The Economistpercebeu que a prtica induzia ao

    cmismo e que os ttulos extravagantes podem tornar seus possuidores

    lais descartveis. Certamente, o mesmo vale para o contrrio. Os titu-

    los que so dados s pessoas tambm demonstram esse fato porque elasocupam cargos descartveis.

    A mente precarizada

    No preciso ser um determinis ta tecnolgico para perceber que

    o cenrio tecnolgico configura a maneira como pensamos e nos com

    portamos. O precariado no se mostra ainda como uma classe organizada que busca ativamente seus interesses, em parte porque aqueles que

    meie se encontram so incapazes de controlar as foras tecnolgicas que

    enfrentam. H um indcio crescente de que a parafernlia eletrnica

    qne perm eia cada aspecto de nossas vidas vem exercendo um im pacto

    profundo no crebro humano, na maneira como pensamos e, de forma

    amda mais assustadora, na nossa capacidade de pensar. O que compatvel com a ideia de precariado.

    O precariado definido pelo curto prazismo, que pode evoluir

    para um a incapacidade da massa de pensar a longo prazo, induzida

    pelabaixa probabilidade de progresso pessoal ou de construo de uma

    carreira. Os grupos de iguais podem acentuar essa questo ameaando

    marginalizar aqueles que no esto em conformidade com as normas

    de com portam ento. Regras tcitas sobre o que ou no feito impemcustos pesados sobre os dissidentes.

    A internet, o hbito de navegar, o envio de mensagens curtas, o

    Facebook, o Tw itter e outras mdias sociais - tud o isso est agindo para

    reprogramar o crebro (C a r r , 2010). Essa vida digital est danificando

    o processo de consolidao da memria de longo prazo que a base do

    que geraes de seres hum anos vieram a considerar com o in teligncia, acapacidade de raciocinar m ediante processos complexos e de criar novas

    ideias e modos de imaginao.

    39

  • 7/21/2019 o Precariado

    36/276

    o m und o digi/alizado nao tem respeito pela contemplao ou

    reflexo; ele proporciona a estimulao e a gratificao instantneas,

    forando o crebro a dar mais ateno s decises e reaes de curtoprazo. Embora isso oferea algumas vantagens, uma conseqente perda

    a mente alfabetizada e a ideia de individualidade. H um afastamento

    de uma sociedade formada por indivduos com distintas combinaes

    de conhecimento, experincia e aprendizagem para uma sociedade na

    qual a maioria das pessoas tem pontos de vista socialmente construdos,

    rapidamente adquiridos, que so superficiais e desviados para a aprovao

    do grupo e no para a originalidade e a criatividade. A bundam os termos

    extravagantes, tais como ateno parcial contnua e dficits cognitivos.

    Isso pode parecer exagerado. Mas est ficando cada vez mais

    difcil negar que esto acontecendo mudanas mentais, emocionais

    e comportamentais e que esse fato consistente com a expanso da

    precarizao. A m ente alfabetizada - com seu respeito pelo potencial

    deliberativo do tdio, do tempo parado, para a contemplao reflexiva e um a sistemtica ligao do passado, do presente e de um futuroim aginado est sob a ameaa do bom bardeio constante de investidas

    de adrenalina induzidas eletronicamente.

    A capacidade de se concentrar deve ser aprendida e pode, igual

    mente, ser perdida ou distorcida. Alguns bilogos evolucionistas afir

    mam que os dispositivos eletrnicos esto devolvendo o crebro hu

    mano ao seu estado primitivo, quando era condicionado a responderinstintiva e rapidamente a sinais de perigo e s circunstncias, e o

    pensam ento intelectual era a aberrao histrica. Essa interpretao

    de uma regresso biolgica sem dvida deprimente e tem enormes

    implicaes evolucionistas.

    O ambiente eletrnico perm ite e encoraja a multitarefa, uma carac

    terstica da sociedade terciria que ser considerada mais tarde. A pesquisatem mostrado que aqueles que, por hbito, inclinao ou necessidade,

    cedem multitarefa sistemtica dissipam energias e so menos produtivos

    em relao a qualquer tarefa especfica do que aqueles que fazem isso com

    menos frequncia. Os multitarefeiros so excelentes candidatos ao precaria

    do, uma vez que tm mais problemas em se concentrar e mais dificuldades

    em excluir a informao irrelevante ou perturbadora ( R i c h t e l , 2010) .

    Incapazes de controlar seu uso do tempo, eles sofrem de estresse, o quecorri a capacidade de manter uma mente desenvolvente que percebe a

    aprendizagem reflexiva com um a perspectiva de longo prazo.

    40

  • 7/21/2019 o Precariado

    37/276

    Resumindo, o precariado sofre de sobrecarga de informao sem

    um estilo de vida que pudesse dar aos seus membros o controle e a ca

    pacidade de peneirar a in fo rm ao que til da que suprflua. Mais

    adiante, veremos como o Estado neoliberal est lidando com isso.

    Raiva, anomia, ansiedade e alienao

    O precariado sofre do que, em ingls, chamamos de quatro A

    - raiva {anger, em ingls), anomia, ansiedade e alienao. A raiva decor

    re tanto da frustrao diante das vias aparentemente bloqueadas parapromover um a vida significativa quanto de um sentimento de relativa

    privao. Alguns a cham ariam de inveja, mas estar rodeado e cons

    tantemente bombardeado pelas armadilhas do sucesso material e pela

    cultura da celebridade certamente induzir indignao fervilhante.

    O precariado se sente frustrado no s por causa de toda uma vida de

    acenos de empregos temporrios, com todas as inseguranas que vm

    com eles, mas tambm porque esses empregos no envolvem nenhuma

    construo de relaes de confiana desenvolvidas em estruturas ou redes

    significativas. O precariado tambm no tem nenhum meio de mobili

    dade para ascender, o que deixa a pessoa em suspenso entre a profunda

    autoexplorao e o desengajamento.

    Um exemplo citado no The Observer ( R e e v e s , 2010) o de uma

    assistente social de 24 anos, que recebe 28 mil libras por ano trabalhando,em teoria, 37,5 horas por semana. Ela fazia algumas visitas noturnas

    porque algumas famlias no podiam ser visitadas durante o dia, e assim

    gastava mais tempo trabalhando sozinha e em casa. Ela disse ao jornal;

    Minha grande frustrao que, durante um bom tempo, disseram-

    me que eu era boa o suficiente para prog red ir para o prxim o nvel,

    e eu tenh o assumido tarefas alm do m eu papel de trabalho, mas noh reconhecimento disso. Preciso apenas esperar a disponibilidade

    de um cargo. Acho que isso acontece para poucas pessoas. Da equi

    pe com quem comecei, eu sou a nica assistente social que sobrou.

    E muitos deles saram por causa de questes de plano e progresso

    de carreira. Ns fazemos um trabalho rduo, responsvel, e, se isso

    fosse reconhecido, p oderia nos m anter no emprego po r mais tempo.

    Essa mulher est ligada ao precariado por falta de progresso e por

    sua avaliao desse fato. Ela concordava com a autoexplorao na esperana

    41

  • 7/21/2019 o Precariado

    38/276

    de ter mobilidade, fazendo mais trabalho por tarefa. Seus colegas fugitivos

    constataram que a miragem da promoo no passava disso.

    Pelo menos desde o trabalho de Em ile Durkhe im , entendemos quea anomia um sentimento de passividade nascido do desespero. Ele cer

    tamente intensificado pela perspectiva de empregos simples e desprovidos

    de carreira. A anomia surge de um a indiferena associada com a derrotaconstante, agravada pela condenao arremessada por polticos e analistas

    da classe mdia sobre muitos que esto no precariado, castigando-os como

    preguiosos, sem rum o, desmerecedores, socia lm ente irresponsveis,

    ou pior. No caso dos que clamam pelos benefcios sociais, dizer que aspsicoterapias so o caminho a seguir paternalista e facilmente visto

    como tal por aqueles estimulados a optar por elas.

    O precariado vive com ansiedade - insegurana crnica associada

    no s oscilao beira do limite, sabendo que um erro ou um epi

    sdio de m sorte poderia pender a balana entre a dignidade modestae ser um sem-teto, mas tambm com um medo de perder o que possui,

    mesmo quando se sente enganado por no ter mais. As pessoas tm a

    mente insegura e so estressadas, e ao mesmo tempo subempregadas

    e sobrempregadas. So alienadas de seu emprego e de seu trabalho, e

    seu comportamento anmico, incerto e desesperado. As pessoas que

    temem perder o que tm esto constantemente frustradas. Ficaro com

    raiva, mas em geral, de forma passiva. A mente precarizada alimentada

    pelo medo e motivada pelo medo.A alienao decorre do conhecimento de que aquilo que fazemos

    no para o nosso propsito ou para o que poderamos respeitar ou apre

    ciar; simplesmente algo feito para outros, ordem deles. Isso tem sido

    considerado como uma caracterstica marcante do proletariado. Mas os

    membros do precariado experim entam vrias injees especiais, inclusi

    ve um sentimento de ser enganado dito a eles que devem ser gratos

    e felizes porque esto trabalhando e devem ser positivos. E dito a

    eles que devem ser felizes, mas eles no conseguem perceber o motivo.

    Experimentam o que Bryceson (2010) chama de ocupacionalidade fra

    cassada, que s pode ter um efeito psicolgico adverso. Pessoas em tais

    circunstncias so susceptveis de experimentar a desaprovao social e uma

    profunda falta de propsito. E a falta de ocupao cria um vcuo tico.

    O precariado no se deixa enganar. Seus membros enfrentam umbombardeio de apelos. Porm, ser que a mente inte ligente sucumbe to

    facilmente? Em Smile or Die, Barbara Ehrenreich (2009) ataca o culto

    42

  • 7/21/2019 o Precariado

    39/276

    moderno do pensamento positivo. Ela relembra como, nos EstadosUnidos nos anos 1860, dois charlates (Phineas Quimby e Mary Eddy)

    criaram o M