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7/21/2019 o Português Do Brasil - Revisitando a História http://slidepdf.com/reader/full/o-portugues-do-brasil-revisitando-a-historia 1/19 Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, n o 39, p. 119-137, 2009 119 O PORTUGUÊS DO BRASIL: REVISITANDO A HISTÓRIA Filomena de Oliveira Azevedo Varejão RESUMO O objetivo deste artigo é apresentar um breve histórico de algumas ideias linguísticas desenvolvidas no Brasil sobre as origens do português brasileiro, desde o início do século XIX e ao longo do século XX. Essas ideias mostram duas diferentes direções para explicar sobre al- gumas peculiaridades do Português Brasileiro (PB), des- de explicações “impressionistas” a pesquisas linguísticas cienticamente conduzidas. PALAVRAS-CHAVE: História das ideias linguísticas; português brasileiro; periodização do português bra- sileiro. Introdução P oucos questionam o fato de o Brasil ser um país geogracamente multicultural e multidialetal. No entanto, embora seja evidente essa face multidialetal em termos diastráticos, não parece ser-lhe atribuída legitimidade equivalente. Infelizmente, mesmo entre intelectuais da área de educação, não existe a compreensão de que há normas cultas e vernáculas em tensão na heterogênea comunidade de fala brasileira, todas com coerência e funcionalidade particulares. A alguns parece mais visível a dissonância entre uma norma padrão lusitanizante – idealizada e codicada na tradição escolar – e a fala da “massa inculta”. Desde as primeiras monograas produzidas por diale- tólogos brasileiros até os estudos elaborados por linguistas, constatam-se, nos diversos níveis da gramática dos falantes brasileiros de diferentes escolaridades,

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Discute-se a possibilidade, de fato, de se ter o português falado no Brasil como uma outra língua diferente da de Portugual.

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 119-137, 2009 119

O PORTUGUÊS DO BRASIL:

REVISITANDO A HISTÓRIA

Filomena de Oliveira Azevedo Varejão

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar um breve histórico

de algumas ideias linguísticas desenvolvidas no Brasilsobre as origens do português brasileiro, desde o iníciodo século XIX e ao longo do século XX. Essas ideiasmostram duas diferentes direções para explicar sobre al-gumas peculiaridades do Português Brasileiro (PB), des-de explicações “impressionistas” a pesquisas linguísticascienticamente conduzidas.

PALAVRAS-CHAVE: História das ideias linguísticas;português brasileiro; periodização do português bra-sileiro.

Introdução

Poucos questionam o fato de o Brasil ser um país geogra camentemulticultural e multidialetal. No entanto, embora seja evidente essaface multidialetal em termos diastráticos, não parece ser-lhe atribuída

legitimidade equivalente. Infelizmente, mesmo entre intelectuais da área deeducação, não existe a compreensão de que há normas cultas e vernáculas emtensão na heterogênea comunidade de fala brasileira, todas com coerência efuncionalidade particulares. A alguns parece mais visível a dissonância entre umanorma padrão lusitanizante – idealizada e codi cada na tradição escolar – e afala da “massa inculta”. Desde as primeiras monogra as produzidas por diale-

tólogos brasileiros até os estudos elaborados por linguistas, constatam-se, nosdiversos níveis da gramática dos falantes brasileiros de diferentes escolaridades,

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fenômenos considerados não-padrão que idealmente seriam realizados da formaconsiderada padrão entre os europeus. Nesse sentido, seriam idiossincráticosao vernáculo brasileiro fenômenos fonético/fonológicos – como a iotização( véio por velho ) e a monotongação ( quexa por queixa ) – e fenômenos morfos-sintáticos – como a preferência pela marcação de plural apenas no primeiroelemento do sintagma nominal ( as criança ); a simpli cação do quadro exionaldos verbos ( eles/nós chegou ); o uso de estruturas de relativização do tipo ‘a garotaque eu saí com ela é só minha amiga’, entre outros.

Na opinião de alguns, entre eles Mendonça 1 e Raimundo2, tais peculia-ridades resultariam da inuência das línguas africanas em território brasileiro

e de outros fatores de ordem social. Para outros, como Silva Neto3

e Melo(1981)4, as línguas africanas não teriam contribuído de forma muito signi-cativa para a formação do nosso vernáculo, embora se deva reconhecer que oaprendizado imperfeito do português pelos africanos pudesse ter gerado umalíngua crioula ou semicrioula em suas origens.

Hoje, passadas algumas décadas dos primeiros estudos dialetológicos e daconsolidação de diversos projetos acadêmicos que buscaram e ainda buscamdescrever as normas em prática no Brasil, podemos falar de uma história lin-guística do português brasileiro (PB), cujos passos este artigo tenta reconstruir

O registro das diferenças

Ao historiografar as ideias linguísticas no Brasil, Guimarães5 estabelecea existência de quatro períodos, que são denidos (i) pelo tipo de produçãointelectual, (ii) pelos objetivos propostos e (iii) e pelas ideias veiculadas. Nessprocesso de desenvolvimento dos saberes sobre a língua, as propostas teóricaevoluíram da ausência de aporte teórico às teses cienticamente ancoradas.

Descartado o estudo do primeiro português, por se denir como ree-

1 MENDONÇA, R. A inuência africana no português do Brasil . Rio de Janeiro: Sauer, 1933.2 RAIMUNDO, J. O elemento afro-negro na língua portuguesa. Rio de Janeiro: Renascença, 1933.3 SILVA NE O, S. da. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro:

Presença, 1986.4 MELO, G. C. A língua do Brasil. Rio de Janeiro: Padrão, 1981.5

GUIMARÃES, E. Sinopse dos estudos do português no Brasil: a gramatização brasileira.In: GUIMARÃES, E.; ORLANDI, E. (Org.).Língua e cidadania. Campinas: Pontes,1996.p. 127-138.

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xões sobre a línguano Brasil, mas nãodo Brasil, Guimarães centra sua atençãoa partir do segundo momento.

O segundo período inicia-se na segunda metade do século XIX, compublicação de gramáticas, artigos, listas de vocabulário e dos célebres debpúblicos acerca da legitimidade de uma língua nacional brasileira. O autconsidera central nesse momento a tensão entre posicionamentos puristaslibertários, sobretudo em relação à escrita literária brasileira, o cerne das cussões.

O terceiro, delimitado entre o m dos anos 30 e meados da década de 6do século XX, caracteriza-se pelo abandono da perspectiva purista e aprese

como central aos debates a defesa da unidade linguística Brasil/Portugal, cargumentação já fundamentada nas ideias da Ciência Linguística, que acabde chegar às faculdades de Letras do país.

Finalmente, o quarto período dessa história tem início no nal dos ano60 e é marcado pela produção das pesquisas de pós-graduação desenvolviem várias universidades brasileiras.

Ao retomar algumas reexões de Guimarães acerca da constituição língua brasileira, Pagotto6 propõe, a partir de estudos sobre a sintaxe do PB,que a história da construção da norma culta no Brasil pode ser dividida eduas fases: uma que data da segunda metade do século XIX até os anos 30século XX – marcada pelo tom apaixonado das defesas polêmicas – e outra se inicia a partir dos anos 40 do século XX, cuja argumentação se fundameno discurso da ciência. Sobre este último, Pagotto7 arma que, “ao fugir com-pletamente do discurso polêmico, o trabalho deste período jamais consegtrazer, para a codicação da norma culta escrita, as formas linguísticas do Bsil” e, “ao acentuar a diferença [entre PE/PB], permite a volta do discurso punidade da norma culta, agora reforçado pelo discurso cientíco”.

Do que se extrai dos trabalhos de Guimarães e Pagotto, podemos sintetizar a trajetória dos estudos em torno da diferenciação da fala brasilerelativamente à fala lusitana a partir de dois diferentes recortes discursiv

6 PAGO O, E. Norma e condescendência; ciência e pureza. In:Línguas e instrumentos lin- guísticos. Campinas: Pontes, n. 2, 1998.

7 ______. Gramatização e normatização: entre o discurso polêmico e o cientíco. In: ORLANDI, E. (Org.).História das idéias linguísticas. Mato Grosso: UNEMA , 2001. p. 39-57.

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que atuaram e continuam atuando mais ou menos explicitamente na condu-ção desse debate (ainda hoje) central: o discurso impressionista e os discursocientícos, cujas formulações se estabelecem ou sob a égide do purismo apaixonado, ou sob uma proposta descritiva isenta de paixões normativistas, porassim dizer.

As tensões do momento podem ser sintetizadas na polaridade entre a de-fesa da manutenção dos vínculos culturais e políticos com Portugal e a defesada autonomia linguística brasileira. Os puristas, representantes do primeiropólo, defendiam o combate à corrupção do idioma a todo custo. Os nacio-nalistas, no outro extremo, argumentavam pela necessária política da arma-

ção nacional, amplamente justicada pelos movimentos impostos ao processohistórico de independência de um país colonizado que, embora rejeitandoo afastamento da América, debatia-se pelo reconhecimento da superioridadecultural e linguística branca na origem dessa nação miscigenada.

Segundo Pinto8, data de 1824, naIntrodução de Pedra Branca ao AtlasEtnográco do Globode Adrien Balbi, a primeira menção à constituição de um“idioma brasileiro”, e são de autoria de José Bonifácio, em 1825, as primeirasdefesas sobre a liberdade de expressão da escrita literária, congurada no direitde criar neologismos que atendessem às necessidades expressivas de uma cutura, desde que tais criações não ferissem o imperativo da língua culta. Aindanesse quadro encontram-se alguns debates entre puristas e nacionalistas, nosquais escritores românticos e gramáticos pugnavam entre o direito ao uso deestrangeirismos e de estruturas de cor local e a manutenção de uma língua lite-rária pura e livre dos galicismos que estariam desgurando a língua de Camões

Desta forma, em 1870, enquanto José de Alencar sofria ataques do lólo-go Pinheiro Chagas por registrar um vocabulário típico de certas construçõesgramaticais à brasileira, e Gonçalves Dias defendia o bom aproveitamento da“língua do povo” já dicionarizada e lapidada pelo “arredondamento” eufôni-co peculiar à tarefa do artista, escritores como aunay, Euclides da Cunha,Olavo Bilac combatiam a existência de um dialeto brasileiro e se dedicavam àtarefa de rearmar a norma literária purista. Em 1789, também centrada napolarização purismo/nacionalismo, o escritor brasileiro Carlos de Laet encetapolêmica com o escritor português Camilo Castelo Branco.

8 PIN O, E. P. (Org.). Introdução. In:O português do Brasil:textos críticos e teóricos. SãoPaulo: EDUSP, 1978. p. 15-58.

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Esse tipo de debate, inicialmente recortado pelo discurso impressionise posteriormente baseado em interpretações equivocadas da ciência, perduraté o início do século XX, quando o Modernismo consolidou os ideais ncionalistas para a expressão literária, embora, de modo geral, isso tenha sfeito sob a problemática concepção de português brasileiro equivocadameequacionado à fala de indivíduos pobres e de baixa escolarização.

Além do discurso impressionista, desenvolveu-se entre intelectuais bsileiros uma linha de argumentação calcada em postulados cientícos de colas francesas, inglesas, alemãs e americanas. Dentro dessa segunda vertereúnem-se trabalhos alinhados, em alguma medida, ao ideal normativo lu

tano e, por vezes, resultantes de interpretações problemáticas em relaçãopropostas da Ciência da Linguagem, embora muitos desses estudos procedde ideias losócas e cientícas vindas da Europa.

Nesse momento, no entanto, registram-se dados mais concretos da sintaxe da fala ou da escrita dos brasileiros (embora o foco ainda seja o léxicoisso pode ser observado nas monograas dialetais, em gramáticas normaticomo a de Júlio Ribeiro, Maximino Maciel e Antonio Alvares Pereira Cor ja e em dicionários como o de Antonio Joaquim de Macedo Soares. Algudesses trabalhos apresentam no título as expressões “[língua] nacional” e “cabulário brasileiro”, num claro, porém nem sempre el, compromisso comdescrição do português usado no Brasil, mas não em detrimento da unidadlinguística com Portugal (PIN O, 1978).

omando a proposta de Pagotto (1998; 2001), o estabelecimento desslinha discursiva data de 1940. Com ela se pretende fundamentar o debatsobre a língua do Brasil a partir das ideias de Ferdinand Saussure, sobretudpartir da dicotomia entre a fala diversicada na prosódia e no léxico e a unide da escrita, especialmente da escrita literária brasileira. ais propostas seram aos interessados em justicar nossas diferenças a partir de noções estilcas e a partir de registros de peculiaridades que externariam linguisticameas nossas características, isto é, as idiossincrasias do “espírito americano”.

Sem lhes tirar o mérito devido, não se pode deixar de dizer que, embora nquele momento alguns estudos já estivessem orientados por propostas de Sasure, especialmente sobre a distinção entrelanguee parole , sua argumentação

se sustentava em uma falsa relação entre parolee informalidade. Isso permitiudizer que, relativamente à norma lusitana, à fala dos brasileiros cabiam

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“erros” próprios da comunicação informal, mas à escrita cabia manter os laçosde unidade que nos identicavam com a norma lusitanizante (cf. PAGO -

O, 1998; 2001), justicando o projeto classicista de bem escrever comomatriz que orientou e ainda orienta diretrizes e documentos para o ensino delíngua portuguesa.

Situa-se ainda uma segunda vertente discursiva dentro desse recorte em-pírico, na qual se evidencia uma postura de investigação cientíca, visto que, apartir dela, se orientam trabalhos acadêmicos que visam a refutar ou conrmararmações sobre fatos estruturais do PB com base na interpretação de evidên-cias controladas por rigorosa metodologia.

Precisamos ressaltar, no entanto, que a vertente defensora da norma clás-sica lusitana permanece presente em documentos, artigos, reportagens, etc.Como marca dessa permanência, publicam-se reportagens como a da revistaÉpoca,de 14/06/1999, “A ciência de escrever bem”, em que se lê a seguinte re-comendação: “O uso do gerúndio empobrece o texto. Lembre que não existegerúndio no português falado em Portugal”. A revistaVeja , de 25/06/2001,publicou “ odo mundo fala assim – Vem aí uma gramática anistiando osprincipais desvios da linguagem oral. Mas atenção: o português continua amerecer respeito.” Esse artigo destaca como “anistiadas” as formas comoVocê fez o que eu te falei?; Os manifestantes chegaram em Brasília e Amanhã vou fazero serviço, numa inequívoca retomada do discurso da condescendência para aoralidade contra o rigor normativo para a escrita, que sustentou a construçãodiscursiva da norma culta brasileira (cf. PAGO O, 1998).

Entre o nacionalismo e a subserviência

Constituindo as bases do discurso impressionista, encontram-se os céle-bres debates acerca da norma – para alguns, “popular” e para outros, “deslei-xada” – registrada por escritores brasileiros do nal do século XIX. Em 1870 José de Alencar registra sua defesa aos ataques do lólogo português PinheirChagas, que o havia acusado de deturpar a norma clássica em seus romancesEm 1879, envolvem-se numa querela em torno da norma o brasileiro Carlosde Laet e o escritor português Camilo Castelo Branco.

Num dos pólos desse debate, era imperativo estabelecer o PB comolíngua autônoma e se fazia necessária uma descrição (contrastiva ou não) que

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pudesse constituir um conjunto de documentos fundadores, que, no dizerde Guimarães (1996), promovessem a gramatização de nosso idioma. Comoreferências desse movimento situam-se três monograas do início do séculopassado acerca das realizações diferenciadas do português em território brasi-leiro:O dialeto caipira , investigado por Amadeu Amaral9; O linguajar carioca ,de Antenor Nascentes10 e A língua do nordeste, de Mário Marroquim11.

Como ponto de vista subjacente a essas monograas está a noção de qhavia, nos diversos níveis gramaticais, fatos tipicadores dos falares brasil justicáveis i) pela distância em relação à matriz; ii) pelas diferentes forde ocupação de nosso território e iii) pela história interna e externa da líng

portuguesa no Brasil. A preocupação em apresentar os novos e inevitáveis rumos do PB, es-pecialmente o falado português pelas camadas sociais “incultas e semicultas”– comparativamente aos usos dos falantes cultos europeus –, segue a tradiçãodos estudos lológicos. Essa base metodológica traz, no entanto, uma ques-tão: comparam-se níveis díspares de uso (culto e popular) e conclui-se pelaexistência de uma variação que, por princípio, existiria independentementedas causas apontadas como causa das distâncias entre as duas normas.

Mas, ainda que apresentem imprecisões conceituais, é de se considerque, já àquela época, Amaral, Nascentes e Marroquim trouxessem dadosanálises que somente muito mais tarde seriam retomados por outros estudisos do campo da linguagem. Eles não só foram intuitivamente surpreendencomo também foram vanguardistas, uma vez que demonstraram empiricmente a existência de variedades linguísticas, cujas diferenças formais nos feriam identidade em relação à matriz e, de certa forma, assim veicularam unoção de língua como produto cultural.

A ciência como instrumento do projeto de unidade linguística

É curioso constatar que, apesar do esforço para legitimar a fala brasileiao nal do século XIX, a norma culta escrita no PB se apresentava muito m

9 AMARAL, A.O dialeto caipira.São Paulo: O livro, 1920.10

NASCEN ES, A.O linguajar carioca.Rio de Janeiro: Organização Simões, 1922/1953.11 MARROQUIM, M. A língua do Nordeste : Alagoas e Pernambuco. Curitiba: HD LivrosEditora, 1934.

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próxima ao PE moderno do que se podia para um momento de disputas ideo-lógicas e de armação da nacionalidade, conforme aponta Pagotto (1998). Asrespostas a essa aparente contradição não se denem sem que atentemos parao projeto de nacionalidade delineado de formasui generispor nossas elites: anacionalidade seria pela ruptura com o passado colonial, mas não podia pres-cindir da legitimidade que a chamada cultura de civilização conferia.

A questão seria denir se o Brasil poderia ou não se expressar artistica-mente com uma “língua própria” e a resposta a esse conito de identidadelinguística se encaminhou no sentido da constituição de uma norma cultamodelada na forma do PE moderno. al resposta ecoava as aspirações de nos-

sas elites, uma vez que rearmava seu lugar privilegiado em face da maioria dpopulação inculta, que passaria a perseguir o acesso à norma prestigiada comomeio de inclusão.

Estava, assim, posto o contexto que serviria tanto à defesa do purismocomo à acomodação das tensões em torno da variação observada entre as mo-dalidades escrita e falada do português brasileiro. A saída seria reconhecer existência de uma norma culta escrita decalcada ao português europeu e, pa-ralelamente, reconhecer as peculiaridades “toleráveis” da fala. O reconhecimento e a aceitação dessas normas foram denitivos para a construção dasdiferenças linguísticas entre o PE e o PB e também contribuíram para que– diferentemente de Portugal – as normas das duas modalidades, no Brasil,fossem se distanciando pouco a pouco.

O discurso polêmico, agora apaziguado, deu então lugar ao cientíco,que contribuiu para justicar e legitimar as particularidades do PB. SegundoPagotto (1998; 2001), o aporte teórico da Linguística acabou por corroborar adefesa da norma purista xada no nal do século XIX e fundamentou cienti-camente a argumentação em torno da unidade entre o PE e o PB, acomodan-do as diferenças. O autor sustenta sua tese com base na análise de texto escritopor Gladstone Chaves de Melo na década de 40 – publicado sob o título Alencar e a ‘Língua Brasileira’ , em 1970 – no qual situa o marco inicial do usodo discurso cientíco como argumentação para a tese que negava a existênciade uma língua brasileira. Nesse ensaio, Melo se coloca como um cientistaque assume ponderadamente a voz da verdade ao defender Alencar como um

grande escritor e, portanto, uma legítima referência para a norma culta escri-ta no Brasil. O ensaísta recorre a Saussure para justicar as diferenças entre

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língua (sistema) e fala e situa esta última como olocuspara a manifestaçãodas idiossincrasias da cultura e do indivíduo. Para Melo, Alencar não podeter escrito em língua brasileira, uma vez que o sistema é o mesmo no Brae em Portugal. Nessa linha argumentativa, as reconhecidas diferenças lexie estruturais apenas reetiriam estilisticamente as peculiaridades nacionreexo das manifestações de fala, nos termos de Saussure.

Para Melo, é justamente esse caráter estilístico o que leva “muitos oservadores superciais ou doutrinadores improvisados em linguistas a faem língua brasileira”12. A m de construir uma identidade cientíca para seudiscurso, ele argumenta que, embora bem intencionado, faltou a Alenc

o conhecimento cientíco – que não poderia ter – das noções de Saussusobre os conceitos delangue e parolequando o romancista saiu em defesade seu estilo.

A preocupação de Melo é enfatizar que Alencar jamais atentou conta unidade da língua e argumentar que, quando o romancista armou qucolocava os clíticos onde mandassem os seus ouvidos, Alencar tinha racientíca, pois, de fato, ainda no dizer de Melo, o que diferiria o PE e o Pem termos de colocação pronominal seria a questão da eufonia e não das mdanças que já registravam especicidades dos dois sistemas. Para ele, só uposição reacionária justicaria uma rigidez doutrinária acerca da colocaçpronominal, embora logo em seguida lembre que: “Não se pense, porém, eliberdade absoluta de colocação do pronome átono. Há tendências respetáveis, que a leitura de bons autores ensina”13, pois “não se trata, é claro, deliberdade absoluta e caótica, não se trata de sinal verde para os ignorantesolecistas prossionais, semianalfabetos de pai e mãe: trata-se, isto sim,liberdade estilística, consagrada por dois mestres do tope de Said Ali e Soda Silveira”14.

Desta forma, a solução da polêmica em torno do estilo de Alencar pretou serviço à estratégia da condescendência, que previa regras mais sevpara a norma escrita e permitia maior liberdade para a fala, atendendo estaidiossincrasias da cultura e do espírito brasileiro.

12 MELO, G. C. de. Alencar e a “Língua Brasileira”. Conselho Federal de Cultura, 1970/1972.

p. 12.13 MELO, op. cit., p. 103.14 Ibidem, p. 140

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A partir do primeiro trabalho de descrição do PB cienticamente funda-mentado –Para o estudo da fonêmica portuguesa, de Joaquim Mattoso Câmara,publicado em 1953 –, novos quadros teóricos vêm sendo incorporados aocampo da linguística e cada vez mais as diferenças estruturais entre o PE e oPB são objeto de investigação cientíca.

O discurso cientíco contemporâneo

A vertente discursiva que podemos chamar de rigorosa apresenta, emlinhas gerais, trabalhos fundamentados no pressuposto de que os atos verbais

constituem as diferentes normas, que são consequência de complexas relaçõesociais, semânticas, pragmáticas e sintáticas. Esses atos verbais – ou usos –formam a base de dados matematicamente quanticados com vistas a análisesque nos permitem contrastar ocorrências e desenhar os contornos das diferen-tes gramáticas que coocorrem em um determinado sistema.

No Brasil, nas três últimas décadas do século passado, a produção cien-tíca tem gerado trabalhos que mapeiam com certa precisão as tendênciasgerais de mudança e oferecem explicações que, embora situadas em diferentequadros teóricos, reetem a trajetória da variação em todos os níveis da gra-mática do PB.

Os primeiros estudos a reetirem sobre essa variação se organizaram emtorno da constituição do Projeto de Estudo da Norma Linguística UrbanaCulta, desenvolvido em cinco capitais brasileiras (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre). Nele se reúnem 1.500 horas de registrosmagnetofônicos, que formam a base de dados a partir da qual se pretendedocumentar e descrever o português urbano culto do Brasil, em termos derealizações fonológicas, morfológicas, sintáticas e vocabulares.

Segundo Callou15, a execução desse projeto surgiu como proposta deextensão do Proyecto de Estudio Coordinado de la Norma Lingüística Cultade las Principales Ciudades de Iberoamérica Y de la Peninsúla Ibérica peloprofessor Nélson Rossi que, em 1968, ao elaborar o relatório para a Comissãode Linguística Ibero-Americana do Programa Interamericano de Ensino deIdiomas (PILEI), observou pontos em comum entre questões linguísticas do

15 CALLOU, D. O Projeto NURC no Brasil: da década de 70 à década de 90. In:Linguística.São Paulo: ALFAL, v.11, p. 231-250, 1999.

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espanhol das Américas e do português no Brasil. Dessa forma, visando a racterizar a fala culta habitual daqueles centros urbanos, adotaram-se critérde pesquisa rigorosos, tais como foram estabelecidos para o projeto espanh

Ainda segundo Callou (1999), no Projeto NURC do Rio de Janeiro(www.letras.ufrj.br/nurc-rj/projnurc.html), a equipe de trabalho subdividiuse em três subprojetos16: fonética e fonologia, morfossintaxe e léxico. O pri-meiro tem como objetivo apresentar uma visão geral dos principais procesfonético-fonológicos da fala culta e toma como base teórica a sociolinguísquantitativa laboviana. Já se desenvolveram trabalhos nas seguintes áreas: lise acústica do vocalismo átono e tônico; harmonização vocálica; análise

consoantes l, r, s em posição de travamento de sílaba; ditongação e palatazação, conforme se pode vericar nos trabalhos de Callou, 1987:Variação edistribuição da vibrante na fala urbana culta do Rio de Janeiro; Demasi, 1995:O –l pós-vocálico na fala culta do Rio de Janeiro; Callou, Moraes & Leite 1996: O sistema vocálico do português do Brasil ; Callou & Moraes, 1996: A normade pronúncia do /s/ e do /r/ pós-vocálico: distribuição por áreas regionais ; Orsini,1995: A acústica das vogais orais no dialeto carioca, a voz feminina , entre outros.

No campo da morfossintaxe, com base nas propostas teóricas da Socilinguística Variacionista e do Funcionalismo, muitos temas foram abordadem teses, artigos e dissertações. Entre os quais, a modalização discursivsistema de tempos verbais; particípios duplos; concordância verbal; advérbem –mente ; sistema de pronomes português pessoais; uso de artigo antes dpossessivos e de nomes próprios; alternância de nós/ a gente ; processos de inde-terminação do sujeito; topicalização; sintaxe e prosódia; ordem; anteposiçãposposição de adjetivos no sintagma nominal; fechamento de turnos; caracrísticas do discurso indireto; processos de intensicação e, mais recentemte, uso variável de preposições; auxiliaridade verbal; sujeito e objeto nuorações subordinadas comparativas, entre outros. Alguns desses temas podser encontrados nos trabalhos de Monteiro, 1991:Pronomes pessoais:: subsídios para uma gramática do português do Brasil ; Lobo, 1992: A colocação dos clíti-cos em português: duas sincronias em confronto; Cunha, 1993:Indeterminação

16 Arrolamos apenas alguns dos trabalhos realizados em cada um dos subprojetos, tendo e

vista os limites e objetivos desse artigo. Para uma lista mais completa, sugerimos a leiturCALLOU, Dinah. O Projeto Nurc no Brasil: da década de 70 à década de 90. In:Linguís-tica , São Paulo: ALFAL, ano 11, 1999.

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pronominal do sujeito; Lopes, 1993: Nós pora gente no português falado culto;Barbosa, 1993:Particípios duplos na fala culta carioca ; Rodrigues, 1994: A função dos vocábulos em –mente na fala culta carioca ; Costa, 1995:Estratégiasargumentativas no texto NURC ; Duarte, 1995: A perda do princípio ‘evite pro-nome’ no português brasileiro.

No subprojeto acerca do léxico, indexaram-se substantivos, adjetivos everbos e cerca de 500 mil unidades vocabulares já foram quanticadas na falacarioca culta, como se pode observar nos trabalhos de Oliveira, 1995:Tendên-cias e características do vocabulário da fala culta carioca,e de Marques, 1996:Ovocabulário da fala carioca .

Ao nal da década de 90, já passados mais de 20 anos da implantaçãodo Projeto, muitos resultados de pesquisas apontavam para a necessidade dese conrmarem evidências apresentadas em tempo aparente num recorte dia-crônico, ou seja, em tempo real. Nova amostra foi então constituída e foramtambém recontactados alguns daqueles informantes da amostra inicial, a mde viabilizar estudos do tipo Painel e endência, a partir dos quais se podemfazer armações mais consistentes sobre o quadro geral das mudanças no PB

Concomitantemente à constituição do Projeto NURC, outra frente depesquisa tomava corpo. Conforme relatam Oliveira e Silva & Scherre17, ostrabalhos na linha da Sociolinguística Variacionista se iniciaram em 1979,com a formação de um grupo interuniversitário composto por orientandose/ou orientados do professor Anthony Julius Naro, sediado no Departamen-to de Linguística e Filologia da Faculdade de Letras da UFRJ. As pesquisasdesse grupo tinham como objetivo traçar o perl da norma urbana não-cultado português falado no Brasil, enquanto, paralelamente, o Projeto NURC seocupava da norma urbana culta. Doiscorpora principais constituíam o bancode dados do grupo: ocorpusMobral (proveniente de doação doProjeto Com- petências Básicas do Português , de 1977) e o corpusCenso.

Em 1980, o primeiro projeto desse grupo, nanciado pela FINEP edenominadoCenso Variação Linguística no Estado do Rio de Janeiro, organizouum banco de dados com 48 horas de fala de 48 falantes adultos estraticados

17 OLIVEIRA e SILVA, G. M.; SCHERRE, M. M. P. (Org.).Padrões sociolinguísticos : análisede fenômenos variáveis do português falado na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:

empo Brasileiro, 1996.

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por sexo, idade e escolaridade. Em 1981, sob nanciamento do Instituto Ncional de Estudos e Pesquisas Educacionais, um outro projeto de pesquiintituladoEstruturas de Fala e Aquisição da Língua Padrão, buscou ampliar ocorpusdo Projeto Censo, visando a analisar fenômenos variáveis que tivesserelação direta com o ensino de língua padrão no ciclo básico. Para isso, forgravadas mais 16 horas de fala de informantes na faixa de 7 a 14 anos. E1982, a FINEP nanciou um terceiro projeto –Subsídios Sociolinguísticos doProjeto ‘Censo’ à Educação – agora coordenado pela professora Giselle Machli-ne de Oliveira e Silva. Ainda sob fomento da FINEP, oProjeto MecanismosFuncionais do Uso Linguístico, o quarto do grupo Censo (que sofrera modi-

cações com a saída de alguns participantes e com a entrada de novos pesqsadores), era implementado sob a coordenação do professor Sebastião Votr18. Contando com diferentes linhas de pesquisa (variacionista, funciona

lista e conversacional) atuando harmonicamente, o grupo passa a se denomnar PEUL –Programa de Estudos sobre o Uso da Língua . Ainda atuando, hojeassessora outros grupos de pesquisa pelo Brasil (como os gruposDialetosSociais Cearenses 19 ; Estudos do Bilinguismo e Variação Linguística na RegiSul do País(VARSUL); A Língua Falada em Alagoas ; Projeto de Vitória daConquista ) e seus trabalhos são divulgados internacionalmente (cf. Anais doencontros do grupo NWAVE –New Ways of Analysing Variation), podendotambém ser consultados em várias publicações nacionais. No VARSUL, pexemplo, focalizando a fala da Região Sul, foram investigados fenômenvariáveis no âmbito das concordâncias verbal e nominal, da ordem SVem construções monoargumentais e do preenchimento do sujeito, numperspectiva diacrônica. No ProjetoO Português Falado no Ceará , foramobservados fenômenos como a despalatalização e a iotização e o vocalispré-tônico na fala popular de Fortaleza.

18 VO RE, S. J.; NARO, A. J. Mecanismos funcionais do uso da língua.D.E.L.T.A. São Paulo:Educ. v. 5, p. 169-184, 1989.

19 Coordenado por RONCARA I e GONÇALVES (1997-1998, FINEP/UFC). Os dialetossociais cearenses. Convênio FINEP/ FCPC, nº 41.85.0655.00, 1988. Posteriormente, algumas gravações desse projeto foram publicadas: ARAGÃO, M. S. S. de SOARES, Maria E(Org.). A linguagem falada em Fortaleza - diálogos entre informantes e documentador(Materiais para estudo). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1996. Essa publicaçcontém um histórico do Projeto por Roncarati.

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Embora assumindo o risco de uma listagem parcial, é preciso lembraralguns dos trabalhos desenvolvidos pelo PEUL20.

No campo da fonética e da fonologia, foram investigados os seguintestópicos: a estabilidade da supressão de –d na sequência –ndo (MA OS;MOLLICA, 1989); o reforço da palatalização do –s pós-vocálico (SCHER-RE; MACEDO, 1989); a queda de –r nos grupos consonantais (MOLLICA;PAIVA, 1991); a implementação da queda do –r pós-vocálico, em especial nosinnitivos (LIMA, 1992); a redução variável da preposição ‘para’ (FELGUEIRAS, 1993); a prótese (avoar) e a aférese (assistir/sistir ) de segmentos fônicos(GONÇALVES, 1993); a tendência à supressão de semivogais em ditongos

(PAIVA, 1996).No campo da morfossintaxe, os estudos sobre concordância deniramuma simetria entre os seguintes processos variáveis: a variação na concordância em verbos português pessoais (GRYNER, 1977); a variação do sujeito naescrita informal (PAREDES DA SILVA, 1988); a concordância no sintagmanominal (SCHERRE, 1988; 1994; SCHERRE; NARO, 1993; 1997); a con-cordância verbo e sujeito (SCHERRE; NARO, 1993; NARO; SCHERRE,1996; SCHERRE; NARO, 1993; 1997).

Os pronomes pessoais de 3a pessoa em função acusativa foram abordadospor Omena (1978). ambém foram investigados os fenômenos de queísmo edequeísmo (MOLLICA, 1989), a regência do verbo IR (MOLLICA, 1996) ea regência variável de verbos bitransitivos (GOMES, 1996). Foram observadasainda as mudanças no uso pronominal, especialmente no uso alternado de nós/a gente (OMENA, 1987) e de seu/dele (OLIVEIRA E SILVA, 1991). ambémnessa área, agora assumindo uma perspectiva discursivo-funcional, foi pesquisada a variação tempo e modo no processo de conexão das orações condicionai(GRYNER, 1990), a análise da ordenação das cláusulas causais (PAIVA, 1992)das cláusulas temporais (BRAGA, 1995), das orações reduzidas de gerúndio(BRAGA, 1996) e da variação da negação (RONCARA I, 1996, 1997, 2001).

Uma outra frente de trabalho, focalizando a fala popular como base dedados (circunscrita à fala dos pescadores do Norte Fluminense), desenvolveu-se também na UFRJ. O intitulado Projeto APERJ – Atlas Etnolinguístico dosPescadores do Estado do Rio de Janeiro– retomou alguns fenômenos já obser-20 Mais detalhes em PAIVA & SCHERRE. Retropesctiva sociolinguística: contribuições do

PEUL.D.E.L.T.A, v. 15, p. 201-232,1999.

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vados nas Amostras NURC e PEUL, dentre os quais podemos citar a realição variável da concordância nominal, em estudo de Brandão (1994); o udenóse a gente,em trabalho de Machado (1995) e o estudo da concordânciaverbal, em Vieira (1995).

Numa outra perspectiva teórica, mas ainda na busca de entender o funcionamento do sistema e a gramática do PB, Fernando arallo21 lançou asprimeiras idéias que semeariam uma nova vertente dos estudos variacionisde fato implantada por ele na PUC de São Paulo e na UNICAMP, a partida defesa de sua tese de doutorado sobre as estratégias de relativização. Nvertente, a associação com Kato, em meados da década de 80, consolid

aquelas primeiras propostas e alicerçou as bases teóricas do fecundo “camento” entre a eoria da Variação e alguns pressupostos gerativistas da eode Princípios e Parâmetros, cujo “contrato” se encontra em Kato & arallo22.São frutos desse casamento, entre outros, os trabalhos de Duarte (1986sobre o clítico acusativo e o objeto nulo; de Andrade Berlinck (1989), fcalizando a perda da ordem VS; de Nunes (1990), sobre oseindenido ouapassivador; de Pagotto (1992), acerca da perda de clíticos de 3a pessoa; deCyrino (1994), sobre a diacronia do objeto nulo; de Ramos (1992), que trada marcação de caso e a mudança sintática; de Duarte (1993), a respeito sujeito nulo; de Ribeiro (1995), sobre a diacronia da sintaxe da ordem; dLopes Rossi (1996), sobre as interrogativas –Q; de Corrêa (1991; 1998que focaliza o objeto nulo e a aprendizagem formal das orações relativOs resultados desses trabalhos revelam uma intrigante rede de relações enfenômenos sintáticos, que se propagam em cadeia por diversos subsistemDeles concluiu-se, por exemplo, que o enfraquecimento da concordância pessoa no PB no parece ter engatilhado a perda do sujeito nulo e perda dinversão VS, bem como a perda dos clíticos -o e –se.

Em Duarte (2001; 2005), obtém-se uma visão orgânica de alguns doresultados de investigações desse grupo. ais resultados dão suporte à hipó

21 ARALLO, F. Por uma Sociolinguística românica ‘paramétrica’: fonologia e sintaxe. OLIVEIRA, M. A. ; NASCIMEN O, M. do (Org.).Ensaios de linguística. Belo Horizonte:Fac. de Letras da UFMG, p. 51-83, 1987.

22

KA O, M.; ARALLO, F. Anything YOU can do in Brazilian Portuguese. In: JAEGGLO.; SILVA-CORVALAN, C. (Ed.). Studies in Romance Linguistic.Holland/USA: Dordre-cht, Riverton, 1986. p. 343-358.

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levantada por Kato (2005) de que a gramática do letrado brasileiro, em algunsaspectos, não corresponde à do letrado português, já que a escolarização con-serva estruturas da gramática antiga (europeia), mas não “corrige” algumasinovações incorporadas da fala brasileira inovadora. Desse modo, é possíveque a escrita do letrado brasileiro registre, por exemplo, a variação entre o usodo clítico e do pronome reto em função acusativa.

Em 1990, agregando inclusive trabalhos do grupo da SociolinguísticaParamétrica, tinha início oProjeto de Gramática do Português Falado, organi-zado pelo linguista Ataliba de Castilho, do qual resultaram os dez volumes daGramática do português falado,elaborados por pesquisadores como Margarida

Basílio, Dino Pretti, Rodolfo Ilari, H. Urbano, M. Abaurre, Ângela Rodri-gues, Mary Kato, Ingedore Koch, entre muitos outros.Os resultados de tantos estudos zeram surgir, naturalmente, outras in-

quietações, e algumas delas apontavam em direção ao passado. Desse modo, am de perscrutar aspectos sociais e estruturais do PB na perspectiva históricaorganizou-se oPrograma Para a História da Língua Portuguesa (PROPHOR),capitaneado por Rosa Virgínia Mattos e Silva 23, na UFBa. Ainda na Bahia,Lucchesi e Baxter24 deram vida aoProjeto de Dialetos Crioulos em Comunidades Afro-brasileiras . Logo em seguida veio à luz oProjeto para a História do Por-tuguês Brasileiro (PHPB), cujos primeiros resultados foram apresentados no ISeminário para a História do Português Brasileiro, realizado em abril de 1997,e estão publicados em Castilho, 199825.

Todos esses estudos levantaram perguntas importantes sobre as dife-renças do PB em relação ao PE e às demais línguas românicas, e isso promo-veu, também a partir da década de 90 do século passado, o estabelecimentode projetos de cooperação entre pesquisadores do Brasil e de Portugal, con-substanciados no PEPB (Português europeu português brasileiro: unidadee diversidade na virada do milênio) – coordenado por Mary Kato e João

23 MA OS E SILVA, R. V.Uma compreensão histórica do português brasileiro:velhos proble-mas revisitados. Bahia: UFBA. Conferência para Concurso Público de Professor itular,1999. Mimeografado.

24 LUCCHESI, D.; BAX ER, A. A relevância dos processos de pidginização e crioulização naformação da língua portuguesa no Brasil.Revista Estudos Linguísticos e Literários, v. 19, p.

65-84, 1997.25 CAS ILHO, A. . de. (Org.).Para a história do português brasileiro. São Paulo: Humanitas,1998.

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Peres – e no VARPORT ( Análise Contrastiva de Variedades do Português ) –coordenado por Sílvia Brandão e Maria Antónia Mota 26. Os resultados dosestudos realizados sob a égide dessa cooperação resultaram em encontros detrabalho em que se levam a cabo discussões, principalmente, em três áreasda sintaxe: as concordâncias, o sistema pronominal e a ordem dos consti-tuintes na frase.

Do que foi exposto, importa sublinhar que, a partir desses estudos, visão que se tem do PB hoje não pode mais se deixar inuenciar nem por ípetos impressionistas nem por argumentos aparentemente cientícos, já qo conjunto dessas investigações revela com alguma segurança os limites

conuências entre as duas variedades de português.Sobre as origens do PB

Uma das explicações para as diferenças entre o PE e o PB remete fato historicamente inegável de que esse português transplantado serviu instrumento de interação entre o colonizador branco e povos que aqui viviaou que para cá foram trazidos, índios e africanos, ambos falantes de língumaternas diversas. Por outro ângulo, porque somos herdeiros de uma língque remonta séculos de existência em Portugal, buscam-se explicações soos aspectos formadores de nossa diversidade também nos processos de traformações normais por que passa uma língua natural.

Sem dúvida, não se pode deixar de observar ainda que, perpassandqualquer debate sobre a nossa formação e nossas peculiaridades linguísticdevem estar em foco as diferenças particularmente advindas das especidades de o Brasil ser um país: i) de imenso território, cujo povoamento fheterogêneo e, inicialmente, de base rural; ii) de evidente diversidade culral e iii) de importante estraticação social, com signicativas consequêncna escolarização dos indivíduos27. Logo, uma das possibilidades de resposta àquestão da variação aponta para os estudos das histórias interna e externaconstituição do PB, subsumindo quatro correntes representativas principais

26 BRANDÃO, S.; MO A, M. A. (Org.). Análise contrastiva de variedades do português : pri-

meiros estudos. Rio de Janeiro: IN-Fólio, 2003.27 MA OS E SILVA, R. V. O português são dois...” Novas fronteiras, velhos problemas. SãPaulo: Parábola Editorial, 2004.

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A primeira vertente pode ser reduzida à proposta que fundamenta asorigens do PB num processo histórico de crioulização/descrioulização, tesedefendida principalmente por Guy 28. Uma segunda linha de análise refuta apossibilidade da formação de um crioulo no Brasil, tendo em vista a amplafuncionalidade das línguas gerais indígenas como meio de comunicação, Naro& Scherre29. A terceira linha de argumentação reete sobre a hipótese de terocorrido uma forte inuência das línguas africanas, como analisa Mattos eSilva (2004), podendo ter ocorrido um processo de crioulização leve, no dizerde Lucchesi & Baxter (1997) ou de aquisição irregular do português comoL2, como defende Lucchesi (1999)30. A quarta proposta é defendida princi-

palmente por Scherre & Naro (2001)31

e atribui à deriva secular das línguasindo-européias (em particular, das línguas românicas) a forma do portuguêsnão-padrão, que teria se acelerado e maximizado no Brasil devido ao contatocom outras línguas.

Palavras nais

Sem dúvida, a História conrma que o Brasil foi a maior sociedade deescravos do Novo Mundo e, embora muito ainda deva ser investigado sobreo real papel das etnias e das línguas em contato no Brasil Colonial, hoje sereconhece que o papel das línguas africanas foi decisivo para o desenho dovernáculo brasileiro ( Mattos e Silva, 2004).

Em suma, é evidente que os trabalhos realizados, sejam impressionísticossejam de caráter cientíco, comprovam a complexidade acerca das origens etransformações do PB. ambém está claro que o principal ponto de conver-gência entre os estudos que focalizam as origens de nossa língua é o que adene como uma realização plural e heterogênea porque apenas um fato em-

28 GUY, G. On the nature and origins of popular brazilian portuguese. In: Estudios sobre españolde América y lingüística afroamericana. Bogotá : Instituto Caro y Cuervo, 1989. p. 226-244.

29 NARO, A.; SCHERRE, M. M. P. Variable concord in portuguese: the situation in Braziland Portugal. In: McWRHO ER, J. (Ed.).Language change and language contact in pidginsand creoles. Amsterdam/Philadelphia, 2000. p. 235-255.

30 LUCCHESI, D. A questão da formação do português popular do Brasil. A cor das letras,

n.

3, p. 73-100, 1999.31 SCHERRE, M. M. P.; NARO, A. Sobre as origens estruturais do português brasileiro:crioulização ou mudança natural?Papia, n. 11, p. 40-50, 2001.

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pírico é inegável: existem semelhanças e diferenças quantitativas e qualitatentre o PB e o PE. As questões postas aos linguistas interessados nesse campodem ser resumidas à busca por resposta a uma questão de partida: saber qé de fato a dimensão quantitativa e qualitativa dessas semelhanças e diferen

Concretamente, resultados de pesquisas sugerem que alguns dos traçestruturais característicos do português popular brasileiro são também contitutivos da gramática do PE e, ante a evidente diferença quantitativa entreocorrências lá e cá, é preciso pôr em relevo as condições singulares pelas qse deu o processo de implantação da língua portuguesa no Brasil e as subquentes transformações em consequência dos contatos por que passou.

Cabe à pesquisa seguir sua natural busca por outras evidências e assetamento de novas hipóteses para questões que ainda permanecem em abert

ABS RAC

Te aim of this paper is to provide a brief overviewof some linguistic ideas about the origins of BrazilianPortuguese from the 19th century throughout the 20th

century. Such ideas follow two different directions toexplain some peculiarities of Brazilian Portuguese, ran-ging from “impressionistic” explanations to scienti-cally driven linguistic researches.

KEY-WORDS: History of linguistic ideas; BrazilianPortuguese; periodization of Brazilian Portuguese.

Recebido em 17/06/2009 Aprovado em 24/08/2009