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O PODER DAS IMAGENS E AS IMAGENS DO PODER: A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DE LEONEL BRIZOLA, NO EPISÓDIO DA LEGALIDADE (1961) Daniela Görgen dos Reis (PUCRS) [email protected] Resumo: A partir da problemática da produção de imagens fotográficas pela Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini, o artigo tem por objetivo proceder a análise das imagens produzidas por Leonel Brizola no episódio da Legalidade (1961). Em consonância com o cruzamento das fotografias com o contexto político e social do período, o trabalho busca identificar a construção ideológica das imagens e sua circulação no âmbito de algumas das principais revistas ilustradas do período, procurando identificar se o discurso produzido pela Assessoria de Comunicação do governador Brizola em âmbito regional, se perpetuava em território nacional. Também visa refletir, a partir de conceitos teóricos, acerca da articulação entre o campo político e elementos constitutivos da cultura visual do período. Palavras-chave: História, fotografia, imagens do poder, Legalidade, Leonel Brizola. Introdução A partir do estudo das especificidades das imagens visuais e de seu campo de conhecimento, bem como as suas condições sociais, tais como seus estatutos e processos de circulação e recepção, podemos suscitar algumas questões relevantes para o estudo da imagem. Afinal, o que fazemos quando atribuímos um sentido a uma imagem? O que fazemos quando a descrevemos? E quando dizemos que a imagem representa algo? A resposta pressupõe um cruzamento com a semiologia. Numa obra de arte, a imagem organiza-se numa iconografia, ou numa forma simbólica, enquanto dotada de um significado cultural. A iconografia, nesse sentido, deve ser considerada, em primeiro lugar, como uma forma de retórica, um código convencional, no sentido de um conjunto de forma reconhecidas, estratificadas, que devemos reconhecer ou reconstruir através

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O PODER DAS IMAGENS E AS IMAGENS DO PODER: A REPRESENTAÇÃO

POLÍTICA DE LEONEL BRIZOLA, NO EPISÓDIO DA LEGALIDADE (1961)

Daniela Görgen dos Reis

(PUCRS)

[email protected]

Resumo:

A partir da problemática da produção de imagens fotográficas pela Assessoria de

Imprensa do Palácio Piratini, o artigo tem por objetivo proceder a análise das imagens

produzidas por Leonel Brizola no episódio da Legalidade (1961). Em consonância com

o cruzamento das fotografias com o contexto político e social do período, o trabalho

busca identificar a construção ideológica das imagens e sua circulação no âmbito de

algumas das principais revistas ilustradas do período, procurando identificar se o

discurso produzido pela Assessoria de Comunicação do governador Brizola em âmbito

regional, se perpetuava em território nacional. Também visa refletir, a partir de

conceitos teóricos, acerca da articulação entre o campo político e elementos

constitutivos da cultura visual do período.

Palavras-chave: História, fotografia, imagens do poder, Legalidade, Leonel Brizola.

Introdução

A partir do estudo das especificidades das imagens visuais e de seu campo de

conhecimento, bem como as suas condições sociais, tais como seus estatutos e

processos de circulação e recepção, podemos suscitar algumas questões relevantes para

o estudo da imagem. Afinal, o que fazemos quando atribuímos um sentido a uma

imagem? O que fazemos quando a descrevemos? E quando dizemos que a imagem

representa algo?

A resposta pressupõe um cruzamento com a semiologia. Numa obra de arte, a

imagem organiza-se numa iconografia, ou numa forma simbólica, enquanto dotada de

um significado cultural. A iconografia, nesse sentido, deve ser considerada, em primeiro

lugar, como uma forma de retórica, um código convencional, no sentido de um conjunto

de forma reconhecidas, estratificadas, que devemos reconhecer ou reconstruir através

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dos meios que a história possivelmente nos oferece. Contudo, o presente trabalho

pretende propor uma metodologia aplicada a um tipo específico de representação visual:

as imagens técnicas, mais especificamente, a fotografia.

Nesse sentido, a fotografia, é concebida aqui como uma linguagem e uma

convenção, que é necessário conhecer e decifrar. Vilém Flusser (1998) acredita que a

dificuldade de decifrar as imagens técnicas se dá porque aparentemente elas não

necessitam serem decifradas:

“Aparentemente, pois, imagem e mundo encontram-se no mesmo nível do real:

são unidos por uma cadeia ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a

imagem parece não ser um símbolo e não precisar de deciframento. [...] O

observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia nos seus próprios

olhos.” (FLUSSER, 1998, p.33).

A ilusão da objetividade das imagens técnicas pode funcionar, portanto, como

uma armadilha. Para desmontá-la é preciso captar seu significado, decifrá-las. Uma vez

que as imagens são ambíguas e passíveis de múltiplas interpretações, buscamos a

desconstrução do processo de elaboração da imagem fotográfica. Para isso, é necessário

um aprendizado desse código visual e uma cuidadosa discussão teórico-metodológica

que nos permita utilizá-lo na pesquisa histórica.

Tendo a fotografia como objeto central, a proposta da presente pesquisa é tentar

analisar o papel da Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini (RS) na construção da

imagem do governador Leonel Brizola e demais lideranças políticas, civis e militares no

episódio da Legalidade (1961). A metodologia do trabalho será pautada da seguinte

forma: partiremos do estudo do autor das fotografias (Assessoria de Imprensa),

seguindo pelo estudo do contexto histórico (político e social), adentrando na análise da

obra produzida pela Assessoria de Imprensa (as imagens da Legalidade propriamente

ditas) e finalizando com a análise da circulação que essas imagens tiveram na imprensa

da época (o uso que tiveram pelos veículos de comunicação).

O Autor das imagens: Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini

É nas primeiras décadas do século XX que a indústria cultural brasileira começa

a tomar forma. As revistas firmam-se como um importante meio de comunicação visual,

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assim como a televisão, que passa a ser introduzida nas principais capitais. O fim da

Segunda Grande Guerra aproxima-nos ainda mais do estilo de vida norte-americano e

ocorre uma reorganização na área da publicidade com as fotografias aparecendo

vinculadas ao mercado de consumo interno.

Nesse período, a fotografia se tornava cada vez mais uma forma importante de

informar e mobilizar a população através de sua veiculação em jornais e revistas

ilustradas. Câmeras mais portáteis, como a Rolleiflex e a Leica. Permitiram o avanço da

foto instantânea e permitiu uma dinamicidade no trabalho do fotógrafo, que agora podia

registrar e informar a modernização dos espaços urbanos, a vida social e os movimentos

políticos (MASSIA, 2008, p. 83).

É nesse contexto de evidência das imagens fotográficas (início da década de

1950), quando as imagens passavam a ganhar espaço de destaque nos periódicos, é que

começa a se estruturar a Assessoria de Imprensa do Poder Executivo Estadual do Rio

Grande do Sul. Em 1947, na gestão de Walter Jobim, foi criado o primeiro sistema de

comunicação social da administração do Estado1. Passava a existir a figura do Assessor

de Imprensa. No entanto, a relação entre o Governo e os veículos de comunicação era

feita de maneira informal e coordenada pelo chefe da Casa Civil.

Durante a administração de Ernesto Dornelles, o secretário de Governo, Ney

Britto, intermediava a relação do governador com a imprensa. No Governo de Ildo

Meneghetti, o chefe de Gabinete, responsável pela imprensa, era o jornalista Vinícius

José Távora. Nesse período, a relação com a imprensa continuava informal.

A formalização de uma estrutura profissional aconteceu na administração de

Leonel Brizola. O governador nomeou o primeiro chefe da Assessoria de Imprensa, o

jornalista Hamilton Chaves, enquanto Antônio Carlos Contursi era indicado chefe do

setor de Fotografia2..

As imagens da Assessoria de Imprensa do Governo do Estado do RS, desde a

sua criação, em 1947, até os dias atuais, estão acondicionadas no Arquivo Fotográfico

do Palácio Piratini conservado no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa. A

crescente preocupação oficial com a comunicação e a imagem do Poder Executivo é

registrada neste Arquivo Fotográfico através de uma análise quantitativa do número de

1 A História da Comunicação Social nos Governos Gaúchos (1947-2006). Catálogo da Associação Brasileira de Imprensa, disponível no Arquivo Fotográfico do Museu Hipólito José da Costa. p. 3. 2 A História da Comunicação Social nos Governos Gaúchos (1947-2006). Op. Cit., p. 5.

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negativos desde a criação da Assessoria de Imprensa em 1947, atingindo seu auge na

gestão de Leonel Brizola, quando esta Assessoria é oficializada pelo governador.

• Walter Jobim (1947-51) 2.624 negativos

• Ernesto Dornelles (1951-55) 5.048 negativos

• Ildo Meneghetti (1955-59) 5.560 negativos

• Leonel Brizola (1959-63) 18.757 negativos

Este aumento indica que a organização da comunicação tornava-se cada vez

mais elaborada e sofisticada, com medidas mais democráticas e um interesse pelos

novos meios de comunicação, formando uma tentativa de penetrar o cotidiano da

população através de métodos mais democráticos, que não o uso da escrita: os governos

podiam fortificar a propaganda política com o uso das imagens.

O Arquivo Fotográfico do Palácio Piratini vêm sendo, desde a sua criação,

permanentemente atualizado e não possui autoria das imagens singularizadas. A

identificação das fotografias está ligada à listagem de fotógrafos que atuaram em cada

gestão de governo. Isto constitui em um problema de pesquisa importante, devido à

importância fundamental da autoria do documento fotográfico. Como afirma Boris

Kossoy (1989, p. 38), por mais isenta que seja a interpretação dos conteúdos

fotográficos, o passado será sempre visto segundo a interpretação do fotógrafo que

optou por um determinado ângulo – a interpretação do real será influenciada pela visão

de mundo do fotógrafo.

Entretanto, entendemos que a fotografia, concebida aparentemente por um

indivíduo, o fotógrafo, é, entretanto, criada, administrada e utilizada por organismos

governamentais específicos, neste caso, a Assessoria de Imprensa do Estado, agência

responsável pela criação das imagens do governo e que as distribuía para os jornais e

revistas regionais, nacionais e até internacionais.

Em entrevista à Cláudio Fachel (2009), Lemyr Martins, fotógrafo do Palácio

Piratini na gestão de Leonel Brizola, afirma que a equipe de fotógrafos deste período era

formada por cinco integrantes, incluindo o seu nome: Alberto Serrano, Pedro Flores,

George de Alencastro e Carlos Contursi. O fotógrafo afirma que a maioria das imagens

publicadas nas revistas do centro do país e até mesmo em alguns jornais diários sobre a

Legalidade em Porto Alegre, foram produzidas pela Assessoria do Palácio Piratini

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(FACHEL, 2009, p. 87). Revistas como Manchete, Fatos & Fotos e Mundo Ilustrado

tinham fotos destes profissionais. Abordando o tema, Lemyr Martins relata que nas

imagens registradas pelos fotógrafos da Legalidade, “as metralhadoras eram

fotogênicas, mas não funcionavam. Foram compradas por Flores da Cunha na

Tchecoslováquia” (Idem).

Lemyr declara ainda, que a sua missão era demonstrar, a partir dos

acontecimentos em Porto Alegre, que os gaúchos estavam preparados para defender a

causa da Legalidade, e que estavam fortemente armados – mesmo que as metralhadoras

não funcionassem efetivamente, como imagem eram eficazes.

Na crise de 1961, uma extraordinária cobertura fotográfica foi realizada pela

Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini. Entre os dias do embate na defesa da

Constituição na capital gaúcha, uma visualidade inusitada do governador Brizola foi

representada pelos repórteres fotográficos de sua própria Assessoria de Imprensa,

apresentando as lideranças políticas, as manifestações populares e mobilizações

militares que se organizavam na resistência ao golpe militar e na defesa da Legalidade

constitucional.

O contexto Político e Social

No contexto político e social, a partir dos anos 1950, o Brasil inicia um período

de modernização. Era um momento de transição entre o Estado Novo e a chamada

democratização, a partir de 1945. Para além da questão política, o Brasil urbano dava

lugar ao rural, as manifestações artísticas buscaram novos rumos (artes visuais, poesia,

fotografia, teatro) os meios de comunicação ensaiavam uma incipiente indústria cultural

tendo como base uma sociedade de consumo. É um período marcado pelo nacionalismo,

pelo populismo e pela busca de uma nova inserção no panorama internacional.

Naquele contexto, ocorre o que alguns economistas chamaram de “revolução

verde” ocasionada pela introdução de novas técnicas agrícolas e pelo desenvolvimento

capitalista no campo, provocando a expulsão de um vasto contingente de trabalhadores

para os centros urbanos (PETERSEN & PEDROSO. 2007, p. 220). Esse contingente

populacional foi atraído pela promessa de empregos na indústria em crescimento, de

amparo da previdência social (aposentadoria e serviço médico), educação para os filhos

e uma série de outras oportunidades de trabalho informal e de lazer. Tanto a política

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populista-nacionalista de Vargas quanto o discurso desenvolvimentista de JK estavam

baseados no fenômeno da expansão do eleitorado urbano e na organização dos partidos

de massa.

Entretanto, os anos 1950 marcaram os limites da estrutura econômica gaúcha e a

conseqüente crise regional (SOARES, 2007, p. 301). O pós-guerra atingiu a indústria

gaúcha, com a reabertura do comércio mundial provocando a modernização do setor no

centro do país, não acompanhada no Rio Grande do Sul. A crise econômica provocou

diferentes posturas no campo político. Os governos do Rio Grande do Sul buscaram

projetar o Estado no contexto nacional e buscaram uma modernização da economia, da

política e da sociedade gaúcha (RÜDIGER, 2007, p. 357).

No final dos anos 1950, Leonel Brizola assume como governador do Estado

(PTB,1959-63). Brizola, embora com limitadas possibilidades de intervenção,

encampou serviços de telefonia (CRT) e energia elétrica, que eram tradicionais

obstáculos ao desenvolvimento econômico. Também atuou decisivamente junto ao

governo federal, ao lado dos governadores do sul, para conquistas relevantes em infra-

estrutura pesada, diferenciando-se dos governos de seu opositor Ildo Meneguetti (PSD,

1955-59, 1963-67), que propugnavam o estímulo à agropecuária e a indústrias

tradicionais como solução da crise (CORTÉS, 2007, p. 276-277). Nesse sentido, a

ascensão de Leonel Brizola ao governo do Estado do Rio Grande do Sul, em 1959,

significou o início de uma administração que se tornou modelo para o trabalhismo no

Brasil.

Estudos realizados sobre a história do Rio Grande do Sul contemporâneo,

chamam a atenção quanto à importância histórica de Brizola e de sua capacidade de

mobilização da sociedade gaúcha, tornando-se uma figura política popular. Com forte

inserção no meio urbano, Brizola conseguia articular ligações com setores das camadas

médias da população. Entretanto, apesar do prestígio regional, Brizola começa a

destacar-se nacionalmente, após a crise político-institucional ocasionada pela renúncia

de Jânio Quadros à presidência da República e o veto dos ministros militares à posse do

vice-presidente João Goulart, em agosto de 1961.

A crise acirrou um antagonismo político e ideológico em torno da legitimidade

constitucional, frente ao impasse criado pelos ministros militares, determinando o

impedimento do vice-presidente João Goulart de assumir o poder. Este veto por parte

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dos ministros militares e com apoio dos “liberais” conservadores da União Democrática

Nacional (UDN) tinha respaldo no discurso anticomunista americano no contexto da

Guerra Fria. Jango foi considerado elemento subversivo e próximo aos comunistas,

representando uma ameaça à democracia liberal brasileira (FACHEL, Op. Cit., p. 50).

Ao se iniciar a crise da Legalidade, em 25 de agosto de 1961, concentraram-se

em Porto Alegre todos os contingentes possíveis da Brigada Militar que se encontravam

destacados nos municípios vizinhos. Em frente ao Palácio Piratini, era permanente uma

multidão de dezenas de milhares de homens e mulheres de todas as idades e categorias

sociais. O Rio Grande do Sul encontrava-se bloqueado, sem nenhuma comunicação com

o país (CORTÉS, Op. Cit., p. 268). Leonel Brizola criou a Rede da Legalidade, com a

integração de uma quantidade crescente de pequenas emissoras às transmissões da

Rádio Guaíba, além da participação de centenas de jornalistas, nacionais e estrangeiros,

sob a coordenação de Hamilton Chaves. Brizola mobilizou a população, distribuindo

armas a funcionários e voluntários (BARBOSA, 2002, p. 82).

O governador coloca-se à frente de uma resistência heróica, conseqüentemente

transformando a sua figura em uma espécie de comandante-herói defendendo um bem

maior: os valores da Legalidade e da democracia. Através da união entre discurso e

imagem, Brizola tenta criar uma coesão entre o líder e o povo heróico na defesa da

pátria. A resistência à manobra inconstitucional por parte dos militares só foi possível

com o apoio de amplos segmentos sociais: trabalhadores, sindicatos, partidos políticos

e, principalmente, da adesão do III Exército na luta pela defesa da Constituição.

Ao final da crise, a emenda parlamentarista foi aceita por João Goulart.

Skidmore (1969) explica a posse de João Goulart unicamente pela divisão que se deu no

seio das Forças Armadas. Afirma que se elas estivessem unidas poderiam ter imposto

uma solução política impopular (SKIDMORE, 1969, p. 58). Já Felizardo (1988), afirma

que é preciso compreender o jogo das forças sociais envolvidas. A classe dominante

estava dividida, e o parlamentarismo se consistiu na melhor solução em face da

resistência popular (FELIZARDO, 1988, p. 43).

Como lembra Joaquim Felizardo, a presença carismática de Leonel Brizola deu

uma característica peculiar ao levante. O governador trazia uma dimensão moderna: ele

estava muito mais próximo dos desígnios populares que os seus antecessores, na medida

em que não possuía nenhuma relação especial com o latifúndio. Desta maneira, a

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Legalidade não representou somente a garantia da posse de Jango ou um ato de bravura

da comunidade gaúcha afrontada pelo centro do país. Outras inspirações estavam

implícitas no levante histórico, como medidas democráticas e igualitárias: os

investimentos estatais, a encampação de empresas estrangeiras e a monumental rede de

escolas (LABAKI, 1986, p. 84). Tudo isso estava na consciência das massas e da

pequena burguesia urbana.

Como afirma Bandeira (1978, p. 104), Brizola foi o último porta-voz dessa

referência cultural de uma mentalidade audaz, alicerçada no orgulho regional, na

coragem e heroísmo dos indivíduos em frente a situações dramáticas. Soube apelar para

os valores do inconsciente coletivo, para os fundamentos de um imaginário entranhado

em todo o Rio Grande do Sul.

A obra produzida pela Assessoria de Imprensa: as imagens da Legalidade

Ao todo, a obra da Assessoria de Brizola se constitui em 402 imagens

digitalizadas. Estas fotografias produzidas no período da Legalidade repercutiram no

cenário nacional e internacional justamente no início dos anos sessenta, anos de amplas

mudanças econômicas e sociais no país. Ao mesmo tempo, ocorriam mudanças no

jornalismo brasileiro tornando a fotografia uma atividade essencial na divulgação das

informações e das notícias. Através da análise dessas imagens é possível identificar

como o Piratini, através de sua Assessoria de Imprensa, deu-se a ver no contexto de

projeção do Estado gaúcho no panorama nacional, buscando uma modernização da

política e da sociedade gaúcha.

Estas fotografias estão carregadas de conotação. Cada objeto, cada pose, formam

um conjunto de combinações para demonstrar o esforço de Brizola em fazer valer a

Constituição. O que identificamos, a partir do suporte teórico de John Tagg (2005), é a

construção de uma ideologia, que está consubstanciada nos objetos, armamentos e

acontecimentos registrados nas imagens, que realizam uma espécie de “esquema mítico”

(FELIZARDO, Op. Cit., p. 61) de proteção à Constituição.

Tagg (2005) também afirma que a fotografia contém o pensamento de

indivíduos ou grupos sociais que a produz. Conforme determina este autor, quando se

aceita que as eleições de acontecimento, aspecto, ângulo, composição e profundidade

representam toda uma complexa cadeia de procedimentos ideologicamente significantes

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e determinados, pode-se afirmar que as fotografias têm suas raízes em um âmbito

manipulativo, que existe através da ideologia de determinados grupos sociais (TAGG,

2005, p. 26)., neste caso, a elite política do período histórico em questão.

As 402 imagens produzidas pela Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini,

objeto de estudo desta pesquisa, passaram por um processo de indexação, fichamento e

análise, que resultou na distribuição de quatro grupos temáticos: “Legalidade e meios de

comunicação” (120 fotos), “Lideranças políticas” (104 fotos), “Manifestações Públicas”

(88 fotos) e “Resistência e Fortificações” (90 fotos). A organização foi realizada

levando em conta a temática principal, o teor dos acontecimentos e as fotografias que os

compõem. A classificação foi feita a fim de realizar uma análise dos padrões de

visualidade recorrentes em cada grupo, seguido de um cruzamento das informações

obtidas para a caracterização do poder político na campanha da Legalidade. Contudo,

como o presente artigo objetiva problematizar a utilização das imagens fotográficas

como estratégias do poder estadual (personificado na figura de Leonel Brizola) no

sentido de tornar visível a sua ação perante à sociedade, resolvemos evidenciar neste

trabalho, apenas o estudo de um grupo temático: “Lideranças políticas”.

O grupo das lideranças políticas da Legalidade é composto por 104 imagens. Os

três principais líderes do movimento, e também os que mais aparecem registrados nas

lentes da Assessoria de Imprensa, foram: o Governador Leonel Brizola, o Presidente

João Goulart e o General Machado Lopes. O governador Brizola encontra-se na maioria

absoluta das imagens, tido como uma liderança da maior importância, um articulador

político em evidência e um herói regional em ascensão. Brizola aparece em 70% das

fotografias, João Goulart, em 46% e Machado Lopes, em 24%. Uma particularidade

desta série, é que 40% das imagens são ascencionais e somente 16% descencionais. O

restante das imagens se configuram em vistas centrais.

A maioria das imagens com vistas ascencionais indicam a representação e a

preponderância da liderança de Brizola e dos líderes políticos e militares sobre a

movimentação da sociedade civil. Apesar da maioria das imagens serem classificadas à

primeira vista como instantâneas, percebemos que as lideranças políticas sabiam que

estavam sendo fotografadas e tinham consciência de como deveriam portar-se para

aparecer nas imagens. Na realidade, o governador Brizola atuou como o diretor de um

filme, produzido pela sua própria Assessoria de Imprensa e centrado em torno de

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propostas, como a defesa da liberdade, da honra e dos direitos gaúchos e, acima de tudo,

dos direitos de todos os cidadãos brasileiros. A Legalidade funcionou, nesse sentido,

como uma espécie de pilar de uma realidade cultural e ideológica que já existia na

tradição gaúcha, no velho espírito heróico regionalista, e que foi utilizada por Brizola no

intuito de ascender como líder nacionalmente.

A Legalidade na imprensa

Em meio ao período de modernização da década de 1950 e início de 1960, as

imagens, notícias da televisão, dos jornais e dos rádios, mostravam seu brilho, seu

fascínio e seu apelo simultâneo aos olhos e aos ouvidos e eram produzidos para a

audiência de um público determinado: urbano industrial – o que compreendia a maior

parte do eleitorado.

Os trabalhos acadêmicos sobre texto, diagramação e caricatura que contemplam

este riquíssimo período da imprensa brasileira, em geral não deixam de mencionar a

relevância que a fotografia ganhou nos veículos na década de 1950. O fotojornalismo e

a fotografia do período também têm sido objeto de pesquisas específicas, fundamentais

para seu entendimento, embora em escala muito menor do que as voltadas para o texto e

as transformações gráficas. Mas o resultado destas investigações leva a crer que o

fotojornalismo, num período de amplas mudanças políticas, sociais e culturais do país,

abriu espaço para a fotografia, de maneira que ela se constituiu como linguagem, com

especificidades para a imprensa, e com isso conquistou um espaço privilegiado nas

revistas ilustradas.

Neste período, marcado pelo processo de transformação por que passa a

sociedade brasileira, que experimenta uma crescente urbanização e acelerada

industrialização, reconfigurando toda a estrutura social que se moderniza a passos

largos, a modernização da imprensa se apresenta como resultado deste processo, na

medida em que só sobrevivem as empresas que se adequaram à nova conjuntura. Esta

adequação consiste em adotar formatos que insiram o jornalismo na modernidade, e se

traduz na busca de técnicas que levem o leitor a acreditar que o que está ali publicado é

a verdade tal qual aconteceu e não mais uma visão do fato. Em outras palavras,

transformar o jornalismo num ator socialmente reconhecido, conquistando assim o

direito de exercer uma "fala autorizada". Esta é também uma característica inerente à

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fotografia desde a sua invenção. O mito da verdade fotográfica se baseia na capacidade

que a imagem técnica teria em espelhar a realidade. A fotografia de imprensa, mais que

qualquer outra imagem, seria ainda mais "real".

A imagem pode fortalecer ou até mesmo criar identidades, forjando

representações com o objetivo de dar significados de acordo com os interesses de quem

a produziu ou de quem as manipulou, modificando o seu sentido original. A importância

da análise de sua circulação não está somente em encontrar significado na imagem, mas

também em saber como este significado é usado pelos meios de comunicação visual (o

uso social desta imagem e com que intuito ela foi utilizada).

Para Roland Barthes (1982) a fotografia de imprensa é uma mensagem

constituída pela fonte emissora, o canal de transmissão e o meio receptor. A conotação,

ou seja, a imposição de um segundo sentido à mensagem fotográfica, acontece nos

diferentes níveis de produção da fotografia (escolha, tratamento técnico,

enquadramento, paginação) (BARTHES, 1982. p. 301-313).

A fotografia de imprensa, também é examinada por Vilches (1987), que,

concordando com Barthes, afirma: “La foto que publica un periódico es el resultado de

múltiples actividades técnicas, mecánicas, profesionales, estruturales (por ejemplo, la

obediencia a los géneros culturales y periodísticos, y, dentro de éstos, a las secciones, y

dentro de éstas, a la compaginación, a la espacialidad y superficie de la página.)”

(VILCHES, 1987, p. 246).

É preciso, portanto, entender o que torna uma fotografia publicável por

determinado veículo de comunicação social e porque ela é publicada nesta ou naquela

página, seu posicionamento em relação às outras imagens e ao texto. O recorte na

realidade promovido pelos meios não se dá apenas com a decisão de publicar

determinada matéria ou fotografia, mas também ao se estipular uma hierarquia na

publicação destas fotos de acordo o assunto abordado, como explica Jorge Pedro Sousa:

As notícias são socialmente construídas e constroem socialmente a realidade,

de onde a ênfase na novidade, no conflito ou nas horas de fecho [...] Ora, os

designers racionalizam-nas num todo funcional, lógico, hierarquizado e

premeditado, oferecendo mapas de leitura do mundo que maioritariamente

orientam, a acreditar nos estudos críticos, no sentido da manutenção do statu

quo e do controle social [...] A foto, nos jornais e nas revistas, é

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simultaneamente autônoma e interdependente, dependendo de fatores como:

o suporte de conotação com que o texto insufla a imagem (embora,

porventura, o inverso também possa ser verdadeiro); [...] o contexto socio-

histórico-cultural da situação representada, da altura da publicação e do

momento da leitura. (SOUSA, 2004, p. 37).

O passo seguinte é examinar como o assunto escolhido é publicado pelos meios

de comunicação, lembrando que foi estabelecido para ser analisado apenas o grupo

temático “Lideranças políticas”. Desta maneira, 4 revistas ilustradas foram pesquisadas:

Fatos e Fotos, O Cruzeiro, Mundo Ilustrado e Revista do Globo. Ao todo, nas revistas

pesquisadas, encontram-se apenas 31 imagens produzidas pela Assessoria de Imprensa

do Palácio Piratini, sendo 8 do grupo temático “Legalidade e meios de comunicação”,

somente 3 do grupo temático “Manifestações públicas”, 8 fotos do grupo “Resistência e

fortificações” e 12 pertencentes à “Lideranças políticas”, grupo que será analisado.

A revista Fatos e Fotos retrata o episódio da Legalidade em 4 edições, do

número 31 ao número 34 e faz um rastreamento da crise por todo o Brasil, deixando

bem claro que a “capital da crise” é Brasília, e não Porto Alegre. Ao todo, nas quatro

edições que abordam o tema da Legalidade, foram registradas 162 fotos referentes ao

assunto, sendo apenas 6 destas imagens, produzidas pela Assessoria de Imprensa do

Palácio Piratini. Quanto ao grupo “Lideranças políticas” foram encontradas 4 fotos,

sendo 3 delas com Brizola e o General Machado Lopes juntos (uma de uma página e

meia, uma de um terço de página e uma de um quarto de página); e 1 foto retratando

João Goulart de uma página inteira.

A revista O Cruzeiro retrata a crise da Legalidade em apenas duas edições (16 e

23 de setembro de 1961), sendo uma delas uma edição “Extra”, encontrada dentro da

edição do dia 16 de setembro de 1961. Ao todo foram registradas 61 fotos do levante

em duas edições, sendo 7 imagens produzidas pela Assessoria de Imprensa do Governo

do RS, todas da edição Extra. Três fotos do total das imagens da Assessoria de Brizola

na revista pertencem ao grupo temático “Lideranças políticas”, sendo 2 de um quarto de

página retratando Brizola e o general Machado Lopes, e uma de página inteira com João

Goulart (capa da edição do dia 23 de setembro).

A revista Mundo Ilustrado dá uma ênfase maior na renúncia de Jânio Quadros e

na posse de João Goulart, mas também retrata Porto Alegre e a figura do governador

Page 13: O PODER DAS IMAGENS E AS IMAGENS DO PODER: A … · novos meios de comunicação, formando uma tentativa de penetrar o cotidiano da população através de métodos mais democráticos,

dos pampas. Retrata a Legalidade em duas edições, as de número 194 e 195,

apresentando ao todo 78 fotos da crise, sendo apenas 5 imagens produzidas pela

Assessoria de Imprensa de Leonel Brizola. Duas imagens pertencem ao grupo

“Lideranças políticas”, ambas retratando juntos, o governador Leonel Brizola e o

General Machado Lopes, uma de página inteira e uma de um terço de página.

A Revista do Globo retrata apenas a esfera local da crise em Porto Alegre e dá

muita ênfase à figura de Brizola como líder do movimento pela Legalidade. A crise é

retratada em 2 edições, as de número 803 e 804. Ao todo, são 39 fotos do levante, sendo

14 produzidas pela Assessoria de imprensa do Palácio Piratini. As “Lideranças

políticas” aparecem em 3 imagens, duas com Brizola e o general Machado Lopes (uma

de meia página e outra de um terço de página) e uma de João Goulart em meia página.

Como visto anteriormente, a aparição de Brizola nas imagens produzidas pela

Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini, revelam a alta representatividade do

governador como sendo o líder das massas trabalhadoras e no exercício de um

articulador político entre as demais lideranças do levante. Entretanto, dentre as fotos

pertencentes ao grupo temático “Lideranças políticas” que aparecem nas revistas

ilustradas pesquisadas, o governador do RS não aparece sozinho em nenhuma

fotografia.

Sua imagem é captada sempre ao lado do General Machado Lopes, comandante

do Terceiro Exército. Uma representação bastante significativa da força que esta figura

teve na luta pela Legalidade, pois foi a partir do momento em que este assumiu a

definição de não aceitar nenhuma solução para a crise fora da Constituição, que se criou

uma situação de resistência em todo o país: um ambiente de apoio e solidariedade

generalizada de parte da população, começando a prevalecer a nova investida de

ufanismo, envolvendo o próprio vice-presidente João Goulart. Portanto, o apoio do

General Machado Lopes foi decisivo para que a posse de João Goulart se tornasse uma

realidade concreta. Apoio que se tornou possível através da mediação de Leonel

Brizola. Essa negociação entre as partes é registrada nas revistas através do constante

aparecimento conjunto dessas duas lideranças políticas, representando 9 das 12 imagens

encontradas.

As revistas ilustradas e sua linguagem imagética, baseada na fotografia, se

constituíram, portanto, num importante instrumento na configuração de uma identidade

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criada pelos segmentos dominantes da sociedade: a de Brizola como um líder regional

do RS, com características de negociador político, cuja ação foi fundamental para o

desfecho da crise da Legalidade no país, mas que não merecia ter sua imagem destacada

das demais lideranças, uma vez que sua atenção é dividida com as outras duas principais

figuras do episódio da Legalidade: João Goulart e Machado Lopes.

Fotografia produzida pela Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini

(negativo original, digitalizado e acondicionado no Arquivo Fotográfico

do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa)

Autor: Assessoria de Imprensa do Palácio

Piratini.

Título: Visita do general Machado Lopes ao

Governador Leonel Brizola.

Local de origem: Porto Alegre (RS), Palácio

Piratini.

Local atual: Porto Alegre (RS), Arquivo

Fotográfico do Museu de Comunicação Hipólito

José da Costa.

Data: 28/08/1961.

Descrição física: 1 negativo P&B.

Medidas: 6x6cm.

Número da foto: APP04M13150.

Fotografia produzida pela Assessoria de Imprensa do Palácio Piratini

(veiculada pela Revista do Globo)

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Nome do periódico: Revista do Globo.

Edição: 803.

Data: 16 a 29 de setembro de 1961.

Número da página: 8 e 9.

Legenda: O momento mais importante para o êxito da campanha legalista encetada pelo chefe do

executivo gaúcho. O gen. José Machado Lopes, comandante do III Exército, vem dar seu irrestrito e

decisivo apoio ao governador gaúcho.

Crédito (individual, equipe fotográfica, equipe): não encontrado.

Diagramação:

*Espaço da foto na página/dimensão: meia página

*Predomínio (complemento foto/texto): foto

Conclusão

No presente artigo, verificou-se que para entendermos o processo de construção

da representação das imagens, é preciso fazer a desmontagem do processo de

construção que teve o fotógrafo (ou o produtor – Assessoria de Imprensa) em conjunto

com o seu contexto histórico, e conhecer o uso ou aplicação que esta imagem teve por

terceiros (neste caso, as revistas ilustradas).

A tentativa de analisar as características do poder político do governador Leonel

Brizola como líder do movimento da Legalidade, por intermédio de suas respectivas

imagens, fez com que este artigo se concentrasse na busca da compreensão do

significado público destas fotografias, através da análise de sua circulação.

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Conclui-se, assim, que a imprensa veiculou sim a imagem de Brizola, não como

sendo o principal líder do movimento pela Legalidade, mas como um negociador

político entre as partes envolvidas (de um lado, o presidente João Goulart e, de outro, as

forças militares representadas pelo general Machado Lopes). Brizola não aparece

sempre acompanhado de outras lideranças, principalmente do comandante do III

Exército, figura decisiva para o desfecho parlamentarista. As imagens difundidas pela

Assessoria de Imprensa, organizada pelo próprio Brizola, pensada como uma das

principais arma do governador em defesa de seus ideais, teve pouca circulação nacional.

Dentre as revistas pesquisadas, a única que veiculou um número significativo destas

imagens, a Revista do Globo, tinha forte âmbito regional, provando que a característica

de Brizola como principal líder e herói das massas trabalhadoras não ultrapassou a

fronteira do sul do país.

Entretanto, apesar de não aparecer como líder principal do levante e ter que

dividir as atenções com os demais participantes da crise da Legalidade, Brizola teve seu

objetivo alcançado. Através da construção de uma rede de comunicação que envolvia

todo um aparato de imprensa, inclusive com a criação da Rádio da Legalidade, e que

inclui as imagens produzidas pela sua própria Assessoria, o governador conseguiu

conquistar o apoio do Terceiro Exército e, a partir daí, garantir a posse de Jango na

presidência do país.

Essas imagens nos levam ao estudo da fotografia como um importante

mecanismo na formação de uma ideologia. É necessário, desta maneira, admitirmos que

a imagem fotográfica pode se prestar a utilizações interesseiras, em função de sua

pretensa credibilidade enquanto registro visual “neutro” dos fatos. Mesmo que seja um

processo difícil e trabalhoso, os documentos visuais se mostram como uma importante

ferramenta no processo de construção da História. Repensar a gênese da apropriação

pelo poder da utilização dessas imagens técnicas é um caminho para reconstruir a

utilização que os setores privilegiados da sociedade fazem desses meios para fazer valer

seus interesses.

Bibliografia

Page 17: O PODER DAS IMAGENS E AS IMAGENS DO PODER: A … · novos meios de comunicação, formando uma tentativa de penetrar o cotidiano da população através de métodos mais democráticos,

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