O poder da cultura e a cultura no poder - A disputa simbólica da herança cutural negra no Brasil

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    SANTOS, JT. O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simblica da herana cultural negra no Brasil [online]. Salvador: EDUFBA, 2005. 264 p. ISBN 85-232-0355-9. Available from SciELO Books .

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    O poder da cultura e a cultura no poder a disputa simblica da herana cultural negra no Brasil

    Joclio Teles dos Santos

  • | O poder da cultura ea cultura no poder | A disputa simblica da herana

    cultural negra no Brasil

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:141

  • Universidade Federal da Bahia

    ReitorNAOMAR MONTEIRO DE ALMEIDA FILHO

    Vice-ReitorFRANCISCO MESQUITA

    Editora da Universidade Federal da Bahia

    DiretoraFLVIA GOULLART MOTA GARCIA ROSA

    Conselho Editorial

    TitularesAngelo Szaniecki Perret Serpa

    Carmen Fontes TeixeiraDante Eustachio Lucchesi Ramacciotti

    Fernando da Rocha PeresMaria Vidal de Negreiros Camargo

    Srgio Coelho Borges Farias

    SuplentesBouzid Izerrougene

    Cleise Furtado MendesJos Fernandes Silva Andrade

    Nancy Elizabeth OdonneOlival Freire JniorSlvia Lcia Ferreira

    Editora da UFBARua Baro de Geremoabo,s/n Campus de Ondina

    40170-290 Salvador BATel: 71 3263-6164Fax: 71 3263-6160www.edufba.ufba.br

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  • | O poder da cultura ea cultura no poder | A disputa simblica da herana

    cultural negra no Brasil

    Joclio Teles dos Santos

    EdufbaSalvador

    2005

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  • 2005 by Joclio Teles dos Santos

    Direitos para esta edio cedidos EDUFBA.Feito o depsito Legal.

    Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados,a no ser com a permisso escrita do autor e das editoras, conforme a Lei n 9610,

    de 19 de fevereiro de 1998.

    Capa e Projeto grficoGABRIELA NASCIMENTO

    Preparao de Originais e Reviso de TextosTANIA DE ARAGO BEZERRA

    MAGEL CASTILHO DE CARVALHO

    S237 Santos, Joclio Teles dos.O poder da cultura e a cultura no poder : a disputa

    simblica da herana cultural negra no Brasil / Joclio Telesdos Santos. - Salvador : EDUFBA, 2005.

    264 p.

    ISBN 85-232-0355-9

    1. Negros - Brasil - Cultura. 2. Negros - Brasil -Identidade racial. 3. Poder. I. Ttulo.

    CDU - 323.14(81)CDD - 320.560981

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  • Aos meus pais Helenita Souza Teles

    e Jos Bezerra dos Santos

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  • | Agradecimentos |

    Este livro foi apresentado originalmente como tese de doutoramento

    na FFLCH Universidade de So Paulo, em agosto de 2000. Agradeo a

    Maria Lcia Montes, orientadora, que desde a elaborao de um projeto

    angustiado entre o politicamente correto e o corretamente poltico se

    entusiasmou pela proposta. O cuidado na leitura, o apontar novas idias

    quando o material assim o exigia, o carinho e a amizade sempre manifes-

    tas so dvidas contradas. A sua orientao, marcada por um tempo nuer

    e acontecimentos inesperados como blecautes e enchentes paulistanas,

    esteve alm do singular.

    Ao Departamento de Antropologia da UFBA, que me liberou das

    atividades docentes, e CAPES, por ter me concedido a bolsa PICDT.

    Fundao Ford que, atravs do Programa A Cor da Bahia, me proporcio-

    nou assistentes de pesquisa, Ana Lcia Formigli e Vandete Cristina Gada,

    e a participao em congressos internacionais (Americanistas e LASA),

    visando apresentao de verses iniciais de captulos.

    A Vagner Gonalves da Silva, grande amigo e colega, pelas leituras

    nas verses dos captulos e no passar a rgua final. Aos colegas, e no

    menos amigos, Lvio Sansone, Antonio Srgio Guimares, Paula Cristina

    da Silva, Delcele Guimares, Cloves Lus Oliveira, Nadya Guimares e

    Michel Agier, pelo estmulo constante e por termos criado no Programa A

    Cor da Bahia um ambiente profcuo de discusses de temas que perpas-

    sam este trabalho. A Joo Reis e Maria Rosrio Carvalho pela amizade,

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  • cuja pergunta como anda a tese? muito me animou. A Peter Fry e Lilian

    Schwarcz pelos comentrios e sugestes.

    Aos amigos avessos academia, ber Fagundes, Dadinha, Aldair

    Amparo, Bencio Silva, Roque Alcntara, Ada Fontes e a minha irm

    Consuelo. As suas perguntas quando que termina? ou ainda no ter-

    minou? muito me instigaram e serviram de estmulo. A Maria Jos L. do

    Esprito Santo pelo fundamental apoio no CDCN e a Maria Nazar M.

    Lima pela reviso. A Goli Guerreiro, amiga de sempre.

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  • | Sumrio |

    Introduo

    O renascimento africano na sociedade brasileira

    O patrimnio negro na origem e baiano na definio

    O candombl como imagem-fora do estado

    Mobilizao poltica e normatizao de conflitos: o conselho negro

    Concluso

    Referncias

    Anexos

    11

    27

    77

    129

    195

    233

    239

    251

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    | Introduo |

    A elaborao deste livro, seus percalos e descaminhos, foi interca-

    lada por alguns discursos que desvelam dilemas que nos afligem. Em

    1994, quando da realizao do II Seminrio Estadual de Universitrios

    Negros SENUN, realizado em Salvador-BA, um estudante e militante

    negro, finalizando a sua interveno nos debates, reivindicava um Estado

    negro. A fala, reveladora de alternativas para romper com as desigualda-

    des raciais no pas, inscrevia-se no plano da representao ideolgica do

    Quilombo de Palmares. Anos depois, em 1996, o presidente Fernando

    Henrique Cardoso reconhecia oficialmente a existncia do preconceito

    racial na sociedade brasileira e institua, atravs de decreto, em vinte de

    novembro, Dia da Conscincia Negra, o Grupo de Trabalho Interminis-

    terial com a finalidade de desenvolver polticas para a valorizao da

    populao negra.

    bvio que a repercusso do discurso presidencial teve mais efei-

    to, pelo menos na sua divulgao atravs da mdia, que a fala do militan-

    te, pois o reconhecimento do racismo brasileira muito menos proble-

    mtico que a proposta, vista naquele momento por muitos como radical,

    de construo de um novo tipo de representao para o pas. De todo

    modo, penso que os dois discursos so menos passveis de aproximao

    pelos seus contedos que pelo elemento comum de constiturem discur-

    sos afirmativos, tanto pelas denncias e mobilizaes dos movimentos

    negros, a partir dos anos setenta, quanto pela significativa produo das

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    pesquisas de carter sociolgico e antropolgico produzidas no pas e no

    exterior, desde o final da primeira metade do sculo vinte, e com maior

    vigor a partir dos anos setenta/oitenta.

    Curioso que as constantes denncias de preconceito racial e a

    crescente racializao das suas denncias levaram a leituras interpretativas

    de que no mais fazia sentido falar do mito da democracia racial, visto

    que o reconhecimento de uma sociedade de carter racista implica, mais

    que imediatamente, negao automtica do mito da democracia racial. Se

    o mito o ponto nodal para entender as representaes da, e sobre a

    sociedade brasileira, de que modo interpretado e se apresenta, tanto na

    literatura quanto no discurso dos militantes negros? Onde ele se ampara?

    Se ele o moto perptuo dos nossos dilemas, h que entender o seu

    prprio questionamento.

    Inicio este livro revendo as crticas ao mito da democracia racial,

    demonstrando a trama urdida no seu questionamento, em que mito tem

    como pressuposto a identificao imediata com ideologia e falsa consci-

    ncia, constatao que revela ingenuidades e equvocos tericos, pois

    tanto a sua desmistificao quanto o simples desmitificar no produzi-

    ram um efeito imediato em termos de sua completa negao, pelo menos

    naquilo que Fernando Pessoa j dizia sobre a natureza do mito: o nada

    que tudo.

    Nada mais dissenso que o nosso mito de origem. Por essa razo

    que eu tomarei como ponto de partida autores brasilianistas e nacio-

    nais, e as suas vises sobre esse mito, para adentrar na reflexo da teoria

    antropolgica sobre o mito como um objeto de conhecimento. A escolha

    deu-se em funo desses tericos terem, em algum momento dos seus

    trabalhos, direcionado suas anlises sobre a democracia racial, assim

    como por uma questo metodolgica, pois as suas reflexes situam-se

    entre as dcadas de cinqenta e noventa, periodizao aqui analisada.

    A partir de um depoimento, Roger Bastide (1955) afirmava que no

    Brasil h o preconceito de no ter preconceito, o que significava, seguin-

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    do uma livre interpretao, uma espcie de fidelidade do Brasil ao ideal

    de democracia racial; por conseqncia, isso constitua-se em uma res-

    posta que no passava de uma ideologia a mascarar os fatos. Observe-

    se a sua afirmao: verdade que esse ideal (grifo meu) de democracia

    impede as manifestaes demasiado brutais, disfara a raa sob a classe,

    limita os perigos de um conflito aberto (p.124).

    Nos anos sessenta, um outro brasilianista, Marvin Harris (1967),

    partia do princpio de que no havia grupos sociais brasileiros

    subjetivamente significativos baseados exclusivamente no critrio racial.

    Os termos preto e branco denotavam segmentos bem definidos da popu-

    lao apenas para um antroplogo fsico. Como conseqncia da falta da

    lei de descendncia, verificada na sociedade americana, e de uma ambi-

    gidade semntica, dizia haver diplomatas brasileiros e outros expoentes

    oficiais e semi-oficiais que compartilhavam a crena de Gilberto Freyre no

    paraso racial. Ainda para Harris, Donald Pierson subestimava o precon-

    ceito racial, admitindo uma democracia inter-racial na Bahia (p.96).

    A discriminao racial por si s era, para Marvin Harris, sutil e equ-

    voca, enquanto que a discriminao de classe produzia impedimentos e

    desigualdades de qualidade persistentes, o que aproximaria as classes,

    no Brasil, aos ndios dos altiplanos e aos negros dos Estados Unidos.

    Alm disso, apoiava-se na classificao de Thales de Azevedo para a hie-

    rarquia social baiana em trs classes, e observava que todos os sintomas

    familiares de discriminao racial tendiam a ser abafados pelas diferenas

    entre as classes. Na argumentao de Harris, o paraso racial habitado

    por criaturas de fico; e no que se refere ao comportamento real, as

    raas no existiam para os brasileiros, apesar das classes existirem tanto

    para o observador quanto para os brasileiros, assim como a identidade

    racial em si mesma seria uma coisa sutil e de pouca monta no Brasil,

    enquanto que, nos Estados Unidos, constitua, para milhes de pessoas,

    um passaporte para o inferno.

    De que modo se apresenta a democracia racial nos estudos afro-

    brasileiros?

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    Thales de Azevedo (1975) pensava a democracia racial como ideo-

    logia, chegava a apontar a reflexo de O. Ianni nessa mesma direo, e

    tambm via-a como mito mantido por duas ordens de argumentos: pri-

    meiro, a forte determinao dos critrios de classe no processo de atribui-

    o de status e de relacionamento individual; segundo, a ausncia de

    hostilidade manifesta e de violncia entre brancos e pessoas de cor. Apoian-

    do-se em Charles Wagley, dizia que fatores como fortuna, profisso,

    instruo representavam papel mais importante que a raa nas relaes

    pessoais. Entre esses fatores, salientar-se-iam os critrios para classifica-

    es raciais, de acordo com os quais branco , genericamente, todo aque-

    le que, mesmo mestio, tem certos atributos do grupo social superior (p.36).

    Recorrendo ao dilogo com autores norte-americanos que aqui

    aportaram, como Marvin Harris, Donald Pierson, Carl Degler, Thales de

    Azevedo chamava a ateno para as falcias do mito. E algo que se destaca

    na sua argumentao que a ideologia que estaria no mago do mito che-

    gou a ser pensada de diferentes formas nas regies do pas. A tradio e a

    herana cultural do patriarcalismo no norte do pas tornaria essa regio

    menos ostensiva em sua resistncia ascenso social das camadas

    baixas e de cor, por ter a camada superior e branca mais efetivo

    controle sobre os mecanismos de mobilidade social, enquanto que

    no Sul, com uma ordem mais competitiva, a maior discriminao

    seria resultado de menor influncia histrica do patriarcalismo, na

    opinio de Bastide. (p. 260)

    O autor que mais se destacou na influncia extra-acadmica, com

    releituras dos movimentos e intelectuais negros, Florestan Fernandes1.

    Na sua argumentao (1972), a democracia era refletida como realidade e

    mito. Para ele, a idia de que existiria uma democracia racial no Brasil

    vem sendo fomentada h muito tempo, e constitua-se em uma distoro

    criada no mundo colonial, como contraparte incluso de mestios no

    ncleo legal das grandes famlias, ou seja, como reao a mecanismos

    efetivos de ascenso social do mulato. A miscigenao havia sido pro-

    duzida como conseqncia de uma estratificao racial, resultante de uma

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    ordem escravista e dominao senhorial, contribuindo para aumentar a

    massa da populao escrava e para diferenciar os estratos dependentes

    intermedirios, do que para fomentar a igualdade racial. Por isso, a misci-

    genao e a mobilidade social vertical operavam-se dentro dos limites e

    segundo as convenincias daquela ordem social; indo alm, dizia que,

    fundamentalmente, era a hegemonia da raa dominante (p.26).

    Transitando entre idia e mito na qualificao da democracia racial

    no Brasil, Florestan Fernandes observava que, se vista pelo ngulo do

    comportamento coletivo das populaes de cor, constitua-se em um mito

    cruel, e acreditava que poderia acontecer essa democracia racial, a par-

    tir de alguns fatores potenciais como economia de subsistncia, desenvol-

    vimento (leia-se industrializao) e oportunidade de emprego. Na anlise

    de Florestan, confunde-se tolerncia racial com democracia racial, e a

    propalada democracia racial no passa, infelizmente, de um mito

    social. um mito criado pela maioria e tendo em vista os interesses

    sociais e os valores morais dessa maioria; ele no ajuda o branco

    no sentido de obrig-lo a diminuir as formas existentes de resistn-

    cia ascenso social do negro; nem ajuda o negro a tomar cons-

    cincia realista da situao e a lutar para modific-la, de modo a

    converter a tolerncia racial existente em um fator favorvel a seu

    xito como pessoa e como membro de um estoque racial. (p.40)

    Alm de ser refletido como ideologia, idia, mito ou mesmo reali-

    dade, uma concepo sobre a democracia racial no Brasil se apresenta.

    Roberto da Matta (1987) faz um certo deslocamento ao ver o racismo cien-

    tfico contido na fbula das trs raas, desde o final do sculo passado,

    florescendo no campo erudito (das chamadas teorias cientficas) e no campo

    popular, ao demonstrar que impressionante a profundidade histrica

    desta fbula. Chamando a ateno para a obviedade e a banalidade

    emprica da descoberta dos trs elementos sociais (negro, indgena e bran-

    co), observa que h uma distncia significativa entre a presena emprica

    dos elementos e seu uso como recursos ideolgicos na construo da

    identidade social. Reportando-se ao que me parece ser uma das nossas

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    mais antigas inquietaes, a comparao com a sociedade norte-america-

    na diz que, ao contrrio dos Estados Unidos, onde o recorte social da

    realidade empiricamente dada foi numa espcie de linha social perpendi-

    cular, por aqui houve uma triangulao tnica; uma juno ideolgica

    bsica entre um sistema hierarquizado real, concreto e historicamente dado,

    e a sua legitimao ideolgica num plano mais profundo. A mestiagem,

    portanto, deve ser notada como uma ideologia dominante abrangente,

    capaz de permear a viso do povo, dos intelectuais, dos polticos e dos

    acadmicos, de esquerda e de direita.

    Roberto da Matta evita falar em mito da democracia racial, deslo-

    cando-o para a anlise da fbula das trs raas. Isto significativo, pois

    demonstra a hierarquia totalizadora da sociedade brasileira e o poder

    dessa fbula de se apresentar como a mais poderosa fora cultural do

    Brasil, que integra idealmente sua sociedade e individualiza sua cultura

    (p.62). No entanto, este modo de pensar o mito apresenta problemas ana-

    lticos: afinal de contas, se o mito recorrente na anlise das desigualda-

    des raciais, por que esgot-lo em fbula, se esta, desse modo, pode ser

    reduzida a alegoria social?

    Ainda no mbito da leitura do mito da democracia racial como ide-

    ologia, ou melhor, no sentido de uma falsa conscincia, encontra-se nas

    ltimas dcadas uma referncia de sua criao na argumentao e defesa

    freyriana. Gilberto Freyre, que foi elevado condio de uma espcie de

    intelectual orgnico das elites brasileiras, desde os anos sessenta, com o

    seu apoio ao regime militar, referido como uma espcie de Dumzil

    tupiniquim. Carlo Ginzburg (1990), ao discutir a obra de G.Dumzil

    Mythes et dieux des Germains e a sua relao com a interpretao ou

    mesmo a influncia da mitologia germnica e as orientaes polticas,

    militares e culturais do Terceiro Reich, observa que a obra refletiria uma

    pesquisa sobre longussimas continuidades culturais: na mitologia

    germnica, pode-se individuar um elemento a evoluo em sentido mi-

    litar que a distingue das outras mitologias do campo indo-europeu. Tal

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    evoluo pode se encontrar nas conotaes guerreiras, alm das reais e

    sacerdotais, assumidas pela figura de Odin, onde haveria concordncias

    explicitamente indicadas entre o presente e passado. Uma continuidade

    ideolgica. Segundo Ginzburg, a continuidade inconsciente entre mitos

    germnicos e aspectos da Alemanha nazista mostrava-se, em Mythes et

    dieux des Germains, como um dado, sem remeter raa nem ao inconsci-

    ente coletivo.

    Guardando as devidas propores, no estaria reservado a Gilber-

    to Freyre o mesmo destino que foi consagrado a Dumzil? Seria bom refle-

    tir que estamos, de um lado, perante um accord prtabli entre passado

    pr-histrico e presente, uma continuidade cultural e no tnica , e do

    outro, diante de uma reconstruo histrica que argumentava a importn-

    cia das trs culturas na formao da sociedade brasileira. O que aproxima

    os dois autores seria no s a moldura interpretativa a cultura o arse-

    nal explicativo da sociedade alem e da brasileira mas o papel a eles

    reservado pela crtica: a continuidade entre mitos germnicos e aspectos

    da Alemanha nazista (Dumzil) e a interpretao do encontro das raas

    como substrato da tese de uma democracia racial brasileira e, por conse-

    guinte, da manuteno do racismo brasileira.

    No intuito de pensar a democracia racial como mito, sendo, portan-

    to, um objeto de conhecimento da sociedade brasileira, argumento que

    possvel refletir sobre o seu significado menos como pura negao, ideo-

    logia, falsa conscincia ou uma mera estria, e sim pelo que ele pode

    trazer de compreenso sobre a sociedade brasileira.

    Afinal, se descartamos a sua utilizao como produto da reflexo, j

    que o no reconhecimento significaria o seu desaparecimento, a tradio

    antropolgica encontrar-se-ia perante uma encruzilhada que poderia le-

    var seguinte indagao: o mito morreu; abaixo, ou viva, a Antropologia?

    Uma primeira observao a de que, como observa Balandier (1976),

    os relatos mticos expressam simbolicamente, atravs das personagens

    primordiais e de suas aes, a argumentao pela qual se compreendem

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  • 18 | Joclio Teles dos Santos

    (e se justificam) a ordem das coisas e dos homens. A ordem estaria, por

    assim dizer, fornecendo um elemento de constituio da matria mtica.

    Nessa direo, eu remeteria a observaes de Lvi-Strauss (1985) sobre a

    estrutura dos mitos. Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos pas-

    sados: antes da criao do mundo, ou durante os primeiros tempos,

    em todo caso, faz muito tempo. Esses acontecimentos formam tambm

    uma estrutura permanente, em que esta se relaciona simultaneamente ao

    passado, ao presente e ao futuro. E o que melhor se assemelha ao pensa-

    mento mtico a ideologia poltica. Exemplificando o evocar da Revolu-

    o Francesa, que se refere a uma seqncia de acontecimentos passados,

    cujas conseqncias longnquas se fazem presentes atravs de uma srie,

    no-reversvel, de acontecimentos intermedirios, Lvi-Strauss observa que,

    para o homem poltico, a Revoluo Francesa uma realidade de outra

    ordem: seqncia de acontecimentos passados, mas tambm esquema

    dotado de uma eficcia permanente, permitindo interpretar a estrutura

    social da Frana atual, os antagonismos que nela se manifestam, e entre-

    ver os lineamentos da evoluo futura.

    Alguns pontos tericos importantes aparecem na argumentao de

    Lvi-Strauss (1981 e 1987). H, em primeiro lugar, o fato de por vezes os

    mitos se assemelharem a fragmentos e remendos, histrias desconexas; e

    por vezes serem histrias muito coerentes e com logicidade. Podem se

    constituir numa espcie de minimitos, visto que muito curto e condensado,

    mas preservando a propriedade de um mito, na medida em que o pode-

    mos seguir sob diferentes transformaes: um elemento provoca a

    readaptao de outros elementos, so histrias altamente repetitivas, ou

    seja, um mesmo tipo de elemento pode ser utilizado diversas vezes na

    explicao de vrios acontecimentos...

    Em segundo lugar, a transformao que ocorre nos mitos se opera-

    ria de uma variante a outra de um mesmo mito, de um mito a um outro

    mito, de uma sociedade a uma outra sociedade, com referncia aos mes-

    mos mitos ou a mitos diferentes, e que afetariam ora a armadura, ora o

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  • O poder da cultura e a cultura no poder | 19

    cdigo, ora a mensagem do mito, mas sem que este deixe de existir como

    tal. Enfim, as transformaes respeitam uma espcie de princpio de con-

    servao da matria mtica, em funo do qual, de qualquer mito sempre

    poder sair um outro mito. Indo extenuao e no ao desaparecimento,

    dois caminhos se apresentam: o da elaborao romanesca (em que o con-

    to uma opo) e o da reutilizao para fins de legitimao histrica. E

    por sua vez, essa histria pode ser de dois tipos: retrospectiva, para

    fundar uma ordem tradicional sobre um passado longnquo; ou

    prospectiva, para fazer desse passado o incio de um futuro que comea a

    desenhar-se, o que demonstraria uma continuidade orgnica entre a mi-

    tologia, a tradio lendria e a poltica (p.274).

    Pensar o mito da democracia racial na sociedade brasileira apon-

    tar os seus vrios significantes que esto ancorados no sistema de poder,

    os seus rearranjos e a sua operacionalizao. Por outro lado, h que ob-

    servar os seus significados mudando de lugar, possuindo variaes e re-

    velando as leituras alternativas que correspondem a determinados inte-

    resses especficos, pois a realidade est sendo interpretada constantemente

    pelos interesses de poder. Isso fica demonstrado seja na reduo desse

    mito falsa ideologia, seja na exaltao ao encontro das trs raas, nas

    comemoraes dos 500 anos de descobrimento, por exemplo.

    O mito da democracia racial pode, ento, ser usado com base na

    justificao de que a igualdade ou desigualdade de direitos independem

    da cor, na inexistncia de discriminao racial no pas, nas relaes de

    tratamento entre brancos e negros e convivncia em espaos diversos, na

    identificao de que as elites brasileiras so mestias, na mestiagem como

    uma causa da democracia racial ou como o que indica a identidade naci-

    onal, ou mesmo por uma outra variao: o nosso racismo diferente de

    outros racismos.

    Pensar o mito, portanto, significa desconstruir e mostrar a sua efic-

    cia como forma de entender a ambigidade e os paradoxos presentes na

    sociedade brasileira; se, por um lado, revela um apartheid social, com a

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1419

  • 20 | Joclio Teles dos Santos

    excluso social da populao negra e indgena, do outro, demonstra que

    inclusivo via a convivialidade racial, ou, se preferirem, a cultura afro-

    brasileira ao longo da nossa formao social.

    Como os estudos antropolgicos demonstram, o mito fala de hist-

    ria e conta estrias, e nessa trilha que desenvolvo o livro. Percorro o

    caminho atravs de um recorte histrico me reportando, no captulo pri-

    meiro, s representaes oficiais sobre a populao negra, em um pero-

    do marcado por um discurso que me parece angustiado. Se at os anos

    cinqenta a democracia racial pensada menos como ideologia que como

    fazendo parte da nossa socialidade, fosse em estudos acadmicos, discur-

    sos oficiais, e at por intelectuais negros nacionais e norte-americanos2,

    no perodo seguinte, mais precisamente na dcada de sessenta e, com

    mais nfase, nos anos setenta, a referncia toma outras cores e nomes: a

    democracia racial ser referida como mito e identificada como mera ideo-

    logia. Nesse processo de negao do mito da democracia racial, no ocor-

    reu uma ruptura epistemolgica ou analtica, mas uma insero poltica

    nas reflexes sobre as desigualdades raciais na sociedade brasileira ou o

    que eu poderia chamar de projeo da dimenso poltica no universo

    simblico.

    Essa politizao na reflexo sobre as relaes raciais, que tem sig-

    nificativa influncia da racializao dos movimentos civis nos Estados

    Unidos3, um fenmeno de extrema relevncia nas ltimas dcadas, seja

    pela adoo intelectual de reivindicaes dos movimentos negros, pela

    maior publicizao da discriminao racial ou pelas denncias cada vez

    mais constantes de indivduos no cotidiano e nas relaes sociais.

    Mesmo que a questo racial esteja presente na viabilizao da na-

    o desde as primeiras dcadas do sculo vinte, com as mais diferentes

    interpretaes e solues4, o que singular a partir do final dos anos

    cinqenta a legitimao do Estado, atravs da elaborao de polticas

    pblicas, cujo leitimotiv a convivialidade racial como matria-prima na

    implementao dessas polticas, tanto em termos polticos e econmicos

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1420

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 21

    quanto culturais stricto sensu. a convivialidade racial, vista pela tica da

    cultura, ou seja, um sistema de valores que organiza as relaes de

    socialidade e fornece o tom da poltica anunciada como externa e inde-

    pendente no governo Jnio Quadros, o que se torna um elemento subs-

    tantivo no incremento poltica desenvolvimentista no perodo militar,

    tema do captulo 2, ou na criao de uma nova poltica do turismo, pela

    elevao do candombl condio de imagem-fora do estado da Bahia,

    a que me reporto no captulo terceiro.

    Argumento que o poder da cultura remete cultura no poder no

    perodo que vai do incio dos anos sessenta, governo Jnio Quadros, ao

    advento do que se convencionou chamar de Nova Repblica ou

    redemocratizao, pois se a articulao poder/cultura tem nos discursos

    oficiais a reiterao da importncia da populao afro-brasileira, tambm

    se observa uma profcua relao com aqueles que falam em nome da

    cultura; refiro-me a intelectuais e lideranas afro-religiosas, sobremaneira

    a partir dos anos sessenta, e militantes negros no perodo ps-

    redemocratizao, quando da elaborao da nova Constituio, com a

    criao dos conselhos de defesa da comunidade negra, que discuto no

    captulo quatro.

    Usando uma metfora, diria que a cultura uma carta poltica; ou

    seja, h uma espcie de camada arqueolgica cultural que no pode ser

    simplesmente reduzida a manipulaes, sejam elas no mbito de uma

    ao poltica interna ou externa, pois o que se observa so discursos

    antigos, produzidos ao longo do sculo e sendo ressignificados a partir

    da segunda metade desse mesmo sculo.

    Se a cultura no se reduz poltica, e o inverso tambm pode ser

    dito, h de se notar uma dimenso tanto do poder na cultura quanto,

    seguindo Bourdieu (1998 ), do poder da cultura. Enfim, a questo que se

    apresenta de que modo a cultura de origem negra atravessa a poltica

    em diferentes governos e, o que mais desafiante, com projetos especfi-

    cos, posto que no foram construdos pelas mesmas elites. Pois se h

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1421

  • 22 | Joclio Teles dos Santos

    aparentemente uma dificuldade, por parte de quem representa o poder

    poltico, em precisar o conceito de cultura afinal a reificao de um

    discurso de valorao da cultura afro-brasileira, no que tange tradio,

    o patrimnio, o critrio de antigidade, sempre recorrente observo

    que em perodos politicamente distintos, a disputa pela hegemonia no

    mbito da cultura nunca foi to acirrada como no campo das definies

    das polticas sociais e econmicas, e, talvez por isso, que no se detecte

    um campo que polarizasse o discurso cultural. Havia projetos, sim, mas

    no uma poltica cultural. Fazia parte do projeto desenvolvimentista acoplar

    turismo e cultura, pois tornava-se legtimo trabalhar em um projeto que

    tinha como pressuposto a hegemonia.

    E na percepo de uma dinmica cultural na sociedade brasileira

    que se tece no somente a legitimidade de propostas polticas, mas a

    prpria legitimidade da cultura negra. Perseguindo a forma como essa

    cultura atravessa a elaborao dessas polticas oficiais, elegi o estado da

    Bahia como ponto focal da anlise para entender o processo poltico da

    construo de imagens de uma Bahia negra, que hoje parece definir

    naturalmente a identidade do estado. O processo de construo e con-

    solidao dessas imagens vai se firmando, paulatinamente, entre o final

    da dcada de 50 e o incio da Nova Repblica, num contexto marcado por

    fortes tenses e ambigidades nas relaes entre as elites polticas e os

    prprios grupos e entidades negras, como os terreiros de candombl e

    suas lideranas, e outras entidades culturais e polticas, como o Olodum,

    o Il Aiy, o Filhos de Gandhy e o MNU.

    Neste sentido, a negritude dessa baianidade corresponde ao pro-

    cesso de construo de uma nao corretamente poltica, em razo de

    serem os seus smbolos diferentemente apropriados. A Bahia deixa de ser

    pensada como melting pot, e onde se fixa e cristaliza a idia de que ali

    se encontra o estado verdadeiramente negro. Diferente do incio do scu-

    lo, h na Bahia uma reelaborao de polticas direcionadas para manifes-

    taes de tradio negra, em um perodo, a partir do final dos anos ses-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1422

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 23

    senta, em que o discurso da modernidade enfatizando desenvolvimento

    prioritrio. A questo que se apresenta : de que forma os contedos da

    democracia racial, seus significados e significantes, passaram a consoli-

    dar essa identidade? Que discursos polissmicos marcam a dimenso do

    poder na cultura e a dimenso do poder da cultura (caracterstica de refor-

    o, por exemplo, do povo-de-santo). Afinal, a Bahia, e a elevao dos

    seus smbolos, a partir dos anos sessenta, parece se constituir num equi-

    valente do que foi o Rio de Janeiro no perodo 20-30. Entretanto, a

    legitimao desses smbolos no se reduz existncia do autoritarismo

    poltico nos dois perodos.

    A pesquisa, iniciada arduamente em 1993, teve como ponto de par-

    tida a coleta de matrias de jornais baianos que apontassem temas refe-

    rentes populao negra no perodo 50-90 e a sua relao com as polti-

    cas oficiais. Como o perodo 50-70 se apresentava como o de maior

    dificuldade para obteno de dados em rgos pblicos, as matrias

    publicadas nesse perodo tornaram-se objeto de uma maior investigao,

    pois houve uma constante veiculao de atos de rgos oficiais na im-

    prensa.

    A escolha dos jornais obedeceu ao critrio da representatividade

    de projetos polticos distintos. O jornal de maior veiculao, A Tarde,

    desde o incio do sculo identificado com as elites locais, e o extinto

    Dirio de Notcias se insere num projeto alm-Bahia, pois vinculava-se

    aos Dirios Associados, de Assis Chateaubriand. Inclu na pesquisa o jor-

    nal A Tribuna da Bahia e o Jornal da Bahia, posto que em alguns mo-

    mentos as informaes contidas nos outros dois jornais no se mostraram

    suficientes para fornecer respostas s minhas constantes indagaes e

    inquietaes. Com esse mesmo propsito, e mesmo sabendo dos riscos

    metodolgicos com que eu haveria de me deparar, inclu no material

    coletado algumas matrias de jornais e peridicos do eixo RJ-SP. Aps

    uma exaustiva compilao de dados, que somente em relao aos anos

    setenta correspondia a mais de 500 matrias, classifiquei-as por tpicos

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1423

  • 24 | Joclio Teles dos Santos

    que me levassem compreenso da elaborao de atitudes e prticas

    oficiais para com a populao negra.

    Atentando para o fato de que h um necessrio tratamento diferen-

    ciado das fontes, afinal o discurso tem um lugar de onde produzido,

    realizei entrevistas com militantes negros que fizeram parte de rgos

    oficiais e que participaram da mobilizao poltica quando da elaborao

    da Constituio de 1988, ao mesmo tempo que fazia um levantamento de

    documentos oficiais em rgos pblicos em Salvador e Braslia, com o

    intuito de perceber o modo como as representaes oficiais, com sua

    implementao atravs de aes voltadas para a populao negra, foram

    concebidas e executadas.

    Acredito que, deste modo, a anlise dos discursos e atitudes ofici-

    ais pode nos indicar como permanecem e se transformam as ideologias

    raciais, enquanto sistemas de idias e de valores (cf. DUMONT, 1985), e

    ao mesmo tempo demonstrar os conceitos que os sustentam e a natureza

    dos elementos que os explicitam no plano das aes. Aes que devem

    ser observadas em processo, numa constante reelaborao, na direo do

    que Clifford Geertz (1978) chama de interpretao, a qual envolve aten-

    o particular para o que as aes dizem, ou no dizem, bem como a

    forma em que nela dito ou no dito, o que pretendem. Um olhar sobre

    as aes governamentais para com a populao negra revela, portanto,

    como um sistema oficial de representaes e suas constantes

    ressignificaes aparecem explicitamente numa sociedade que, de modo

    processual, vivendo inicialmente um perodo democrtico, passou por

    um regime militar autoritrio e, a partir dos anos oitenta, retornou de-

    mocracia.

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1424

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 25

    Notas

    1 V., por exemplo, em Abdias do Nascimento, O negro revoltado. Rio de Janeiro, EdiesGRD, 1968, p.31.

    2 V. a viso do Brasil como lugar da democracia racial, por exemplo, em David J. Hellwig(ed.), African-american reflections on Brazils racial paradise, Philadelphia, Temple UniversityPress, 1992; Clia Maria M. de Azevedo, O abolicionismo transatlntico e a memria doparaso racial, Estudos Afro-Asiticos, n. 30, p.151-162; Abdias do Nascimento, O negrorevoltado, Rio Janeiro, Edies GRD, 1968, p.56; Guerreiro Ramos, Introduo crtica sociologia brasileira, Rio Janeiro, Editora da UFRJ, 1995, p. 250.

    3 Esse fato pode ser notado atravs das relaes entre militantes negros brasileiros e norte-americanos, tendo como exemplo maior a volta de Abdias do Nascimento do exlio e a buscade novos smbolos da raa negra; tambm de relevncia a influncia dos trabalhos deintelectuais brasileiros como Carlos Hasenbalg e Nelson do V. Silva nas denncias da discri-minao racial no pas.

    4 V., por exemplo, Lilia M. Schwarcz, O espetculo das raas. Cientistas, instituies e questoracial no Brasil, 1870-1930, So Paulo, Cia. das Letras, 1993; Skidmore, Thomas. Preto nobranco. Raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de J,aneiro, Paz e Terra, 1989.

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1425

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 27

    | O renascimento africanona sociedade brasileira |

    Nos idos de 1961, o professor Agostinho da Silva, um erudito por-

    tugus radicado no Brasil desde os anos quarenta, em razo de um exlio

    provocado pelo regime salazarista, elaborou um documento a ser lido

    pelo presidente Jnio Quadros na Conferncia dos No-Alinhados, pre-

    vista para Belgrado. Em um momento marcado pela diviso do planeta

    entre as potncias, leia-se guerra fria entre o bloco sovitico e os Esta-

    dos Unidos, Agostinho da Silva propunha uma frente de pases no-ali-

    nhados a Iugoslvia de Josip Tito, o Egito de Gamal A. Nasser, a ndia de

    Jawaharlal Nehru e a China de Mao Ts-Tung , sob a liderana do Brasil.

    Por razes que beiram uma ironia da histria, o seu documento tomaria,

    dcadas depois, o mesmo destino que a sua proposta naquele momento:

    perder-se-ia nos caminhos da burocracia institucional. Ainda que a cons-

    tituio da frente no tivesse se concretizado, a sua concepo de uma

    poltica externa em direo ao continente africano haveria de ser adotada

    e implementada pelo governo Jnio Quadros. No mbito do que viria a

    ser denominada a nova poltica externa independente, a frica tornava-se

    o espao histrico e geogrfico, por excelncia, da poltica internacional

    brasileira.

    Desde o final dos anos cinqenta, ainda no governo Juscelino

    Kubitschek, a ao de Agostinho da Silva, aquele que Caetano Veloso

    considera como um cultor paradoxal e heteredoxo como era de sau-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1427

  • 28 | Joclio Teles dos Santos

    dades do catolicismo lusitano medieval e que, nas palavras de Antonio

    Risrio, disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspirao

    pessoana, pode ser visualizada1. Em 1959, Agostinho da Silva chega a

    Salvador propondo ao Reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgar

    Santos, a criao de um centro de estudos voltado para os estudos tanto

    da frica quanto da relao desse continente com o Brasil. Em um ambi-

    ente ainda de resistncias das elites baianas, a inteno se concretizaria

    com a deciso do reitor de criar o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO)

    da UFBA2. Como observa Pedro Agostinho, a fundao do CEAO foi de-

    terminada menos pelo interesse acadmico que pelo desejo de objetiv-lo

    como instrumento poltico no mbito local (iniciou-se um curso de iorub

    para os membros do candombl sem a exigncia de escolaridade compro-

    vada), nacional (o intercmbio entre alunos e professores africanos e bra-

    sileiros) e internacional (uma poltica de articulao com os pases do

    Terceiro Mundo)3.

    Se o fomento dessa proposta poltica estava circunscrito ao mbito

    cultural da Universidade, foi a atitude de Agostinho da Silva, para com o

    recm-empossado Presidente Jnio Quadros, que levaria a poltica exter-

    na brasileira a outros mares nunca dantes navegados:

    [...] eleito, com absoluta e impressionante maioria, foi Jnio, e logo

    disse ao reitor da convenincia que haveria em contatar o Presi-

    dente e lhe falar do trabalho do Centro. Estou, no entanto, em crer

    que o reitor tambm votara pelo vencido [Marechal Teixeira Lott],

    o que afinal haveria de lhe custar o cargo, e no houve de sua parte

    nenhum interesse pela proposta. Tomei ento a liberdade de tele-

    grafar para o Palcio do Planalto, logo que houve a posse, e pedir

    audincia, que me foi concedida e em que se teve perfeita e con-

    tnua colaborao durante os seis meses que durou a Presidncia e

    em que se estabeleceu, pela abertura de embaixadas em frica,

    pelo tratado com o Senegal, que ajudei a redigir, e pela vinda, com

    bolsas, de estudantes africanos que freqentariam os cursos superi-

    ores que escolhessem e os complementariam na Bahia, no Recife,

    no Rio ou em So Paulo com, logo no primeiro ano, cinqenta

    bolseiros, o incio da colaborao que depois se foi firmando e aju-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1428

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 29

    dar, um dia, a que um conjunto jurdico dos pases da lngua co-

    mum contribua para maior humanizao do resto do mundo4.

    Implementava-se, portanto, uma nova fase de relaes internacio-

    nais entre o Brasil e os pases africanos5.

    Esse quadro de aproximaes, at ento no observado como pr-

    tica de uma instituio universitria e, principalmente, como ao do go-

    verno federal, torna-se interessante se visto por outro ngulo. De que

    forma essa poltica foi implementada pelo governo federal? O que ela

    incorporava para atingir o alm-mar africano? Qual a matria-prima sim-

    blica que a sustentava? Quais as suas ressonncias na sociedade brasi-

    leira? O que significava fazer o Brasil conhecido em frica assim como

    conhecer a frica no Brasil?

    O Brasil vai frica e a frica vem ao Brasil

    Em um artigo escrito para a revista americana Foreign Affairs, an-

    tes da sua renncia Presidncia da Repblica, em agosto de 1961, Jnio

    Quadros apresentava em linhas gerais os princpios que norteavam a sua

    poltica externa em direo ao continente africano. O discurso evidencia-

    va o Brasil como uma nova fora no cenrio mundial e afirmava, num

    tom levemente irnico, que o espao ocupado pelo pas no havia sim-

    plesmente ocorrido por mgica ou mero engajamento publicitrio. A ca-

    pacidade brasileira viria pela experincia, potencial econmico e huma-

    no, e representao de uma nao que se mostrava preparada perante um

    mundo dividido entre potncias.

    Com a argumentao de que possuamos liderana para com os

    pases latino-americanos e as naes afro-asiticas, as seguintes caracte-

    rsticas brasileiras eram destacadas: ocupao continental (quase metade

    da Amrica do Sul), proximidade da frica, intenso crescimento

    populacional, rpida industrializao e o maior exemplo de integrao e

    coexistncia racial conhecido atravs da Histria. Seguindo o discurso

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1429

  • 30 | Joclio Teles dos Santos

    de Jnio Quadros, v-se que, em um momento de conflitos mundiais, ele

    apontava o Brasil como o elo entre a frica e o Ocidente; alm disso, penso

    que o mais significativo que toda a sua viso de uma poltica externa era

    manifesta pelo que o pas poderia oferecer ao continente negro: uma pol-

    tica nacional de desenvolvimento, tendo como substrato a total ausncia

    de preconceito racial. Todos esses elementos, sublinhados como necess-

    rios para proporcionar uma nova poltica de reposicionamento, posto que

    nos pases afro-asiticos existiriam relaes comuns, de ordem histrica,

    geogrfica, cultural e econmica, o que torna necessria a formao de

    uma frente nica na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as for-

    mas de opresso, seriam capazes de se constituir em instrumentos de uma

    poltica nacional de desenvolvimento6.

    A concepo de uma nova poltica externa pelo governo Jnio Qua-

    dros pode ser vista em uma perspectiva de distino e reposicionamento

    do pas, em um contexto global de disputas e conflitos entre o bloco de

    pases ocidentais e o sovitico. At ento, a poltica externa brasileira

    tinha sido marcada por um alinhamento pari passu com os Estados Uni-

    dos e a Inglaterra, e uma clara ambigidade com o continente africano no

    que se refere ao processo de descolonizao.

    Se no governo do general Eurico Gaspar Dutra (1946-1950) a diplo-

    macia brasileira buscava dar prosseguimento aos projetos de uma maior

    participao brasileira no ordenamento do ps-guerra, a poltica externa

    do segundo governo de Getlio Vargas (1951-1954) foi uma combinatria

    de nacionalismo e rejeio da desigualdade estrutural do sistema

    econmico internacional associada a um alinhamento com os Estados

    Unidos. E com relao a frica, a leitura de Getlio Vargas, sem nenhum

    apoio descolonizao, era que o continente precisaria se desenvolver

    para a expanso do comrcio mundial7.

    No que se refere ao processo de descolonizao africana, a postu-

    ra brasileira at o incio dos anos sessenta era marcada por uma defesa

    dos interesses econmicos, em vista da concorrncia dos produtos africa-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1430

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 31

    nos similares aos brasileiros, e conciliao de posturas distintas como o

    combate ao apartheid sulafricano, a crtica ao colonialismo e a fidelidade

    a Portugal.

    A postura brasileira diante da questo colonial nesse perodo deve

    ser inserida no contexto de um universo simblico que tem como base

    uma espcie de culto nossa herana lusitana, traduzida pela tradio da

    amizade e condio de ex-colnia portuguesa. Entretanto, se o papel re-

    servado ao Brasil deve ser lido por um vis de interpretao poltica e

    econmica, nas decises sobre a questo africana, como bem sublinhou

    Pinheiro (1989)8, o elemento cultural o mais significativo.

    Mesmo que faltasse ao governo Juscelino Kubitschek (1956-1960)

    uma poltica em direo frica, havia uma preocupao manifesta com

    aquele continente, que pode ser compreendida em duas direes.

    Primeiro, o apoio independncia dos povos coloniais j era algo

    manifesto na sociedade brasileira, desde os anos anteriores sua posse,

    por intelectuais negros e no-negros de diversas tendncias. Observe-se,

    por exemplo, a declarao de princpios do Teatro Experimental do Ne-

    gro (TEM), quando da realizao de uma Semana de Estudos, na Associ-

    ao Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, em maio de 1955. Com a

    participao de intelectuais como Nelson Werneck Sodr, Abdias do Nas-

    cimento (o fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN) e Guerreiro

    Ramos, o encontro teve como objetivo a reviso dos estudos sociolgicos

    e antropolgicos sobre o negro no Brasil; alm das crticas pesadas

    sociologia e antropologia desenvolvidas no Brasil, ditas oficiais e

    alienantes, pois focalizavam a gente de cor, luz do pitoresco ou do

    histrico puramente, como se se tratasse de elemento esttico ou mumifi-

    cado9, o documento expressava posies polticas atravs de palavras-

    chaves como autodeterminao e auto-afirmao, fundamentais para o

    entendimento do lxico poltico dos anos cinqenta e sessenta, e reco-

    nhecia a existncia de uma democracia racial brasileira, porm com res-

    qucios de discriminao:

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1431

  • 32 | Joclio Teles dos Santos

    Declarao de Princpios

    [...] b) considerando as mudanas recentes do quadro das relaes

    internacionais impostas pelo desenvolvimento econmico, social e

    cultural dos povos de cor, o qual se constitui no suporte da autode-

    terminao e da auto-afirmao desses povos;

    [...] h) considerando que o Brasil uma comunidade internacional

    onde tem vigncia os mais avanados padres de democracia raci-

    al, apesar da sobrevivncia, entre ns, de alguns restos de discrimi-

    nao;

    Declara

    [...] 2) legtimo reconhecer que o recente incremento da impor-

    tncia dos povos de cor, politicamente independentes, como fato-

    res ponderveis na configurao das relaes internacionais, tem

    contribudo, de modo benfico, para restaurar a segurana psicol-

    gica das minorias e desses povos; todavia, este fato auspicioso no

    deve transmutar-se em estmulo a considerar como luta e dio en-

    tre raas o que , fundamentalmente, tenso e conflito entre siste-

    mas econmicos.

    [...] 5) desejvel que o Governo Brasileiro apoie os grupos e as

    instituies nacionais que, pelos requisitos de idoneidade cientfica,

    intelectual e moral, possam contribuir para a preservao das sadi-

    as tradies de democracia racial no Brasil, bem como para levar o

    nosso pas a poder participar da liderana das foras internacionais

    interessadas na liquidao do colonialismo10.

    Em segundo lugar, a postura do governo Juscelino Kubitschek re-

    fletia a conjuntura internacional, como pode ser observado na sua mensa-

    gem enviada ao Congresso Nacional, em 15 de maro de 1959: [...]a cres-

    cente importncia que vm assumindo no campo internacional os pases

    da frica e sia, em luta pela independncia e pela melhoria do nvel de

    vida, fato dos mais significativos deste sculo11, ou na sua posio

    refratria ao apartheid da frica do Sul, visualizada a partir do assassina-

    to de negros sul-africanos em abril de 1960. Atravs de um despacho,

    assinado no Palcio do Catete, no Rio Janeiro, e louvado pela imprensa

    como um gesto anti-racista de grande repercusso nacional e internacio-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1432

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 33

    nal, Juscelino Kubitschek retirava o representante diplomtico na frica

    do Sul e aconselhava a equipe Ferroviria de Araraquara a no se apre-

    sentar nos campos de futebol sul-africanos. Atitude semelhante havia sido

    tomada por um outro clube paulista, o Portuguesa Santista, que, anterior-

    mente, se encontrava em excurso naquele pas.

    O despacho de Juscelino Kubitschek revelador da compreenso

    do seu governo no que se refere poltica externa e aos princpios sagra-

    dos da nossa formao social. Caracterizando o princpio de no inter-

    veno como um dos pontos cardeais de sua poltica externa, e

    enfatizando a contrariedade pela existncia de uma mentalidade

    escravista, dizia que a perseguio racial na frica do Sul constitua em

    um atentado menos contra os negros do que contra todo o nosso sistema

    de valores, que repousa sobre o orgulho de uma democracia racial, em

    que todos os homens convivem em harmonia em torno da grandeza naci-

    onal. E assim justificava a contribuio africana para a constituio de

    um esprito nacional:

    Orgulhamo-nos de agora proclamar isto, do muito que devemos

    aos que vieram um dia da frica para participar do engrandecimen-

    to deste pas. Reconhecemos a contribuio do sangue negro para

    a formao do povo brasileiro, como dele nos orgulhamos. Temos

    de agradecer aos africanos no somente o imenso trabalho e ener-

    gia empregados na agricultura, indstria e em todo um esforo

    criador da economia brasileira mas, tambm, a incalculvel contri-

    buio que trouxeram arte, pintura e na formao de nosso esp-

    rito. Nossa dvida com os oriundos da regio africana, e cujos des-

    cendentes so nossos irmos patrcios iguais aos de qualquer outra

    cor ou de origem, durar enquanto durar o povo brasileiro12.

    A postura de Juscelino Kubitschek encontrava ressonncia em ou-

    tros mbitos oficiais. No Senado, Afonso Arinos discursava condenando a

    segregao racial no territrio africano, chamando ateno para a integrao

    racial brasileira e existncia de uma poltica racial anti-discriminatria no

    pas; ministros do Superior Tribunal Militar enviavam mensagens de apoio

    ao presidente da Repblica e pediam alguma interveno, com a justifica-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1433

  • 34 | Joclio Teles dos Santos

    tiva de que vrias aes brasileiras, como a invaso da Argentina para

    expulsar Rosas do poder, o protesto contra o bombardeio de Valparaiso,

    no Chile, pelos espanhis, foram necessrias por no haver neutralidade

    entre o direito e o crime e, principalmente, por estar em sintonia absolu-

    ta com o sentimento da Nao Brasileira13.

    A atitude do governo JK demonstrava um princpio anti-racista ins-

    crito no mbito estatal e se constitua em uma resposta perante uma situ-

    ao considerada vergonhosa para os valores nacionais. A diferena em

    relao ao governo Jnio Quadros que se ambos tinham como substrato

    analtico a cultura para elevar o esprito nacional, expresso de Jusceli-

    no Kubitschek, e, ao mesmo tempo, exorcizar qualquer manifestao de

    carter discriminatrio, seja por essas plagas ou no alm-mar, eles se dis-

    tanciavam na medida em que no governo Jnio Quadros a cultura brasilei-

    ra, mais especificamente, a de origem africana, se tornou um elemento

    prioritrio na implementao da poltica externa voltada para a frica ou

    outros continentes. A cultura afro-brasileira passaria a se constituir num

    bem simblico tratado como assunto de Estado.

    Como observava Afonso Arinos de M. Franco, Ministro das Rela-

    es Exteriores do governo Jnio Quadros, em um artigo publicado na

    dcada seguinte e que teve o objetivo de se defender das crticas sobre

    sua ambigidade e submisso ao governo portugus, a estratgia era con-

    quistar influncia cultural sobre a frica negra, impedindo que sua inevi-

    tvel emergncia para a autonomia tomasse carter radical; a inteno

    manifesta, portanto, era colocar o Brasil como mediador entre as polticas

    do colonizador e dos pases africanos14.

    A falta de uma poltica externa africana do governo Juscelino

    Kubitschek constituiu-se num foco de debates acalorados entre os defen-

    sores da nova poltica do governo Jnio Quadros e aqueles que

    visualizavam essa poltica como um desdobramento do governo anterior.

    Havia o reconhecimento de que o governo Juscelino Kubitschek

    tenderia promoo controlada de um neocapitalismo nacional, resul-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1434

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 35

    tante do seu projeto de uma ideologia do desenvolvimento espiral do

    desenvolvimento, como salientava uma dessas avaliaes positivas, a do

    IBESP surgira como uma resposta ao perodo getulista de incapacidade

    na formulao de uma plataforma programtica que apontasse as suas

    conexes estruturais com o desenvolvimento do processo social e

    econmico brasileiro15.

    Tambm se salientava que a poltica externa de Juscelino

    Kubitschek possua dois eixos: a negociao de acordos regionais e/ou

    internacionais com vistas estabilizao das cotaes internacionais do

    caf e as reivindicaes de ampliao e flexibilizao dos emprstimos de

    entidades internacionais como o BIRD; por outro lado, argumentava-se

    que a Operao Pan-Americana (OPA) deveria ser vista como uma esp-

    cie de ante-sala da poltica externa independente de Jnio Quadros16. Uma

    outra alegao que a reestruturao do Itamaraty, com a criao de Se-

    cretaria e Divises voltadas para a Europa, sia e frica, seria um sinto-

    ma da inteno de transformaes iniciadas no governo Juscelino

    Kubitschek17.

    Entretanto, mesmo tendo esse reconhecimento, os paradoxos no

    governo Juscelino Kubitschek, quanto implementao do reatamento

    comercial com a URSS e a postura em relao descolonizao africana,

    constituam a tnica do debate entre os intelectuais. Alguns usavam o

    argumento de que a autodeterminao da nova poltica externa de Jnio

    Quadros podia ser vista como uma seqncia histrica do quinqunio de

    Juscelino Kubitschek, um plano de metas que propunha realizar em cinco

    anos o desenvolvimento que outros realizariam em cinqenta, e afirma-

    vam que existia um paradoxo profundo entre o programa de metas e a

    linha poltica internacional18. Uma outra postura a de que houve uma

    lenta gestao de interesse pelo continente africano que pode ser obser-

    vado na afirmao e defesa, na dcada de 50, do diplomata Bezerra de

    Menezes: o Brasil visa a um extenso e persistente trabalho de seduo

    das massas africanas e asiticas por meio do uso de nossa principal arma

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1435

  • 36 | Joclio Teles dos Santos

    poltico-diplomtica igualdade racial e social quase perfeita existente no

    Brasil19. Outros, mais contundentes, alm de chamar a ateno para a

    timidez e a submisso aos pases coloniais, exemplificadas em afirmaes

    como votvamos sempre com as potncias coloniais das Naes Unidas,

    cedamos a todas as presses portuguesas, a do governo oligrquico de

    Salazar ou da colnia e, vez ou outra, disfarvamos nosso alinhamento

    colonial com as abstenes, afirmavam haver um duplo ministrio de

    poltica externa: o do Itamarati e o outro localizado no palcio da Alvora-

    da e representado na figura do prprio presidente20.

    As crticas ao governo Juscelino Kubitschek situavam-se em um con-

    texto poltico e intelectual que gravitava do centro esquerda. O seu

    formato era uma proposta poltica de solidariedade histrica do subde-

    senvolvimento associada liderana brasileira no mundo afro-asitico.

    Nessa perspectiva, o Brasil estaria a partir de 1961, ano da implementao

    da postura independente de Jnio Quadros, a encontrar o seu nervo

    certo, como afirmava Cndido A. Mendes de Almeida, a realizar o traba-

    lho pioneiro de penetrao pacfica no continente africano, segundo

    Estanislau Fischlowitz, ou a iniciar o namoro que se faz necessrio como

    uma forma de introduo diplomtica, de acordo com Josu de Castro21.

    A solidariedade dos intelectuais, manifesta aos pases subdesen-

    volvidos, e o seu apoio poltica de autonomia perante os pases ociden-

    tais, centravam-se no distanciamento dos pases latino-americanos da tu-

    tela dos Estados Unidos. Se essa estratgia se inscreve num possvel

    confronto com pases considerados imperialistas, ela no encontrava res-

    sonncia no governo Jnio Quadros. Pelo contrrio, o que seu governo

    priorizava era menos um embate com as superpotncias e mais uma

    reafirmao do potencial brasileiro nas relaes internacionais e na ajuda

    ao desenvolvimento. No por acaso que a poltica exterior janista foi

    anunciada nos Estados Unidos. Destacando as condies econmicas e

    culturais dos pases africanos recm independentes, a embaixada brasi-

    leira ressaltava a significativa presena da populao de origem africana

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1436

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 37

    nos Estados Unidos e no Brasil22. Observa-se, portanto, como o binmio

    economia/cultura perpassava a leitura da insero brasileira na conjuntu-

    ra internacional.

    A anlise econmica foi incorporada pelo governo de Jnio Qua-

    dros e viria a ser uma espcie de mola propulsora da poltica janista,

    inclusive no mbito interno, visto que a carncia de produtos no mercado

    brasileiro, principalmente bens de equipamento, era visvel23. O ponto de

    vista econmico significava ampliao do mercado externo e,

    consequentemente, uma maior insero num mercado cada vez mais com-

    petitivo. Alm de haver um declnio das exportaes brasileiras para o

    continente africano (o saldo em 1958 havia sido de 15,6 milhes e passou

    em 1959 a 12,5 milhes), basicamente um nico pas africano, a Unio

    Sul-Africana, era responsvel por mais de um tero (39,5%) da compra de

    produtos brasileiros no perodo 1958-1962. Os outros pases mais expres-

    sivos no consumo de produtos brasileiros estavam assim distribudos:

    Marrocos, 26%; Arglia, 9,5%; Egito, 8,3% (sendo que os dados incluam

    os relativos Sria, desde 1961 at junho de 1962); Tunsia, 7,7%24.

    nesse contexto que a frica passava a ser um poderoso cliente; alm do

    mais, a preocupao com a esfera econmica tornava-se prioritria, visto

    que o dficit da balana de pagamentos estava em curso, desde os primei-

    ros anos da dcada de sessenta25. Basta observar a concorrncia brasileira

    com os pases africanos, no que se refere exportao do cacau baiano,

    para se visualizar as preocupaes comerciais brasileiras e africanas.

    Farpas e afagos no jogo da competio cacaueira

    Se, no incio dos anos sessenta, surge uma proposta de uma alian-

    a do cacau, visto que o produto brasileiro entrava em crise de exporta-

    o, no final dessa dcada, a produo e exportao do cacau constituam

    o que se poderia chamar de ponto suscetvel nas relaes entre o governo

    brasileiro e pases africanos26. Nesse clima de concorrncia surgem crti-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1437

  • 38 | Joclio Teles dos Santos

    cas, deveras irnicas, das elites baianas, inclusas aquelas produtoras de

    cacau, e da imprensa para com o governo brasileiro e os pases africanos.

    Um editorial do jornal A Tarde bastante revelador dos melindres na

    concorrncia dos produtos exportados:

    A impresso que temos a de que os nossos amigos do outro lado

    do Atlntico adotam o lema amigos, amigos, negcios parte,

    porque o certo que estamos sendo prejudicados pela correo

    com que cumprimos os acordos firmados. Para ns, os pases africa-

    nos produtores de caf e cacau no so concorrentes. So uma

    espcie de companheiros da mesma jornada. Da parte deles h

    uma concepo diferente. lamentvel registr-la. Mas indis-

    pensvel que o faamos e que abandonemos a posio de ingnuos

    em que nos colocou, no particular, o governo passado [ referindo-

    se ao governo Joo Goulart] , com a sua comprovada inpcia tam-

    bm neste campo da Administrao Pblica [...] Estimamos o

    estreitamento de relaes com os pases da frica. Temos no solo

    do continente negro muitas das razes de nossas origens. Com eles,

    portanto, mantemos afinidades etnolgicas, culturais etc. Mas o

    estreitamento dessas relaes no pode chegar a extremos que

    prejudiquem fundamentalmente os nossos interesses, como no caso

    do cacau27.

    Estamos diante de um manifesto em que a proposta aos pases

    africanos de uma subordinao do fator econmico ao cultural no pode-

    ria ser melhor exemplificada.

    E se esse fato se manifesta no discurso das elites produtoras de

    cacau, tambm aparece no discurso das elites polticas baianas, via o

    Governador do Estado da Bahia, Lus Viana Filho, quando da instalao

    da XI Conferncia da Aliana dos Produtores do Cacau, em 1968. A atitu-

    de do governo baiano no era isolada, pois se assemelhava s diretrizes

    traadas desde a implementao da poltica externa janista nos incio dos

    anos sessenta; ou seja, as afinidades com os povos do continente africa-

    no, cuja cultura marcou nossa formao, implicava numa solidariedade

    poltica e tinha como acordo tcito a superao de divergncias entre os

    pases que compunham o chamado Terceiro Mundo. Inscrevia-se nessa

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1438

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 39

    estratgia de ao uma extrema cautela em relao aos pases do Primeiro

    Mundo.

    Como visto no governo Jnio Quadros, para o governador baiano,

    importava salientar a diferena, mas no um confronto, entre pases ricos

    e pobres:

    A nica alternativa para os pases do Terceiro Mundo, a fim de

    conseguirem romper o crculo de pobreza, consiste, basicamente,

    na sua unio. No significa isso, evidentemente, movimento de

    rebelio contra as naes economicamente adiantadas ou a recusa

    da ajuda que eventualmente pretendam as mesmas oferecer. Sig-

    nifica, sim, a conscincia de que os esquemas do auxlio internaci-

    onal postos em prtica no aps-guerra, mostram-se insuficientes

    para a diminuio das distncias que, ao contrrio, aumentam dia-

    a-dia entre os padres de vida das naes mais pobres e aqueles

    conhecidos pelas naes mais ricas28.

    A nfase em uma irmandade envolvendo africanos e brasileiros

    demonstra que esperaramos das relaes econmicas o mesmo compro-

    misso assumido quando do reconhecimento dos laos culturais envolven-

    do o Brasil e os pases africanos.

    Se a formao brasileira, com uma constante reificao do encon-

    tro de civilizaes, foi o substrato da poltica de expanso brasileira, na

    formulao da poltica externa de Jnio Quadros, no discurso de intelec-

    tuais e de rgos da imprensa, vrias eram as leituras do que seria a

    competio econmica com aquele continente. Isso implica dizer que ha-

    via projetos diferenciados. O peso da crtica aos pases africanos, ausente

    no discurso intelectual, j que importava mais a aproximao e a solidari-

    edade com os pases do terceiro mundo, manifestava-se de forma contun-

    dente no discurso das elites baianas, via o editorial apresentado.

    A leitura de nosso dbito com a etnia africana implicava em abar-

    car praticamente todo o continente africano; creio que, se o desconheci-

    mento brasileiro sobre a frica era um fato, relevante refletir o continen-

    te africano atravs de um princpio de desenvolvimento econmico com

    base em uma histria cultural. Em outras palavras, a lgica que se revela-

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1439

  • 40 | Joclio Teles dos Santos

    va na insero de produtos no mercado africano era uma sobreposio de

    aes econmicas tendo como substrato bsico a leitura cultural.

    Com efeito, a nossa histria se reiterava em direo frica, e

    tambm era apresentada como uma histria a ser incorporada por aquele

    continente. Talvez se possa dizer que esse processo de valorao positiva

    do encontro das trs raas, em solo brasileiro, transparea como uma

    variao sobre o mesmo tema, ou que a nossa formao cultural seja um

    mero circunlquio na implementao da poltica externa. No me parece

    que se tratasse de um mero jogo de retrica. Fundamentalmente, estamos

    diante da institucionalizao de um valor para o alm-mar, o que quer

    dizer uma busca de projeo universalizante no campo internacional, em

    que o nosso capital simblico, com prioridade para os elementos de ori-

    gem africana, tomava outros contornos.

    Os intelectuais reiteram a democracia racial

    Sendo a economia o que impulsionava a poltica externa, a leitura

    cultural era o seu substrato; nesse sentido, importante destacar que a

    interpretao governamental encontrava ecos em outras reas. To

    eloqentes quanto as razes de Estado do governo janista foram os

    discursos de intelectuais. Com posturas polticas que gravitavam do cen-

    tro esquerda, muitos deles vieram a ter um papel de estmulo e influn-

    cia no desenvolvimento da nova poltica externa.

    Os temas que se destacam nos textos dos intelectuais so a crena

    no desenvolvimento brasileiro e a defesa da democracia racial. Mesmo

    aqueles intelectuais situados politicamente mais esquerda, e que apon-

    tavam como prioridade a solidariedade com os pases terceiro-mundistas,

    reiteravam a integrao racial como a singularidade da sociedade brasilei-

    ra a ser destacada na relao com os pases de todos os continentes.

    Observemos alguns desses textos.

    Com a preocupao de que a frica representava para o Brasil um

    competidor e um novo cliente, necessrio ao nosso desenvolvimento,

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1440

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 41

    Igncio M. Rangel chamava a ateno para os interesses contrrios a uma

    competio africana, caracterizados por ele como noes pseudo-

    centficas, e afirmava:

    [...] devemos aprender a conhecer a frica, e a amar essa frica

    sofrida, que nos deu grande dose do sangue com que fundiu esta

    extraordinria nao e esta esplndida democracia racial, que o

    Brasil, onde est acontecendo, por caminhos por vezes inespera-

    dos, um dos maiores milagres econmicos, sociais e polticos deste

    sculo de milagres. Sim, a mo que estamos estendendo frica

    no a mo da caridade, mas a do amigo forte, no menos forte,

    momentaneamente prostrado, mas que ningum pode impedir que

    se erga, e que queremos que se erga29.

    de se notar que na leitura intelectual tratava-se, sobretudo, de

    destacar a existncia de uma predestinao brasileira na organizao de

    uma frica dividida pelos pases coloniais; ou seja, ao lado dos Estados

    Unidos, o Brasil constitua-se no nico pas desprovido de qualquer he-

    rana colonial, sem vinculao rgida, de ndole poltica, com as potnci-

    as coloniais, salvo, a rigor, os laos de tradicional amizade sentimental

    com Portugal30, capaz de desempenhar o principal papel na organizao

    interna do continente africano. E para assegurar essa receptividade nos

    pases africanos seria necessrio lanar mo do maior trunfo na elabora-

    o da nova poltica externa: a formao racial. A poltica externa brasilei-

    ra lanava-se, portanto, nas relaes internacionais atravs da mediao

    poltico-econmica e com uma base fundamentalmente cultural. E rele-

    vante que a nossa formao sociocultural fosse interpretada menos como

    um mito constitutivo que como uma doutrina mestra da democracia raci-

    al, o que nos leva a perceb-la como um conjunto de princpios que

    serviriam de base para todo um sistema, fosse ele poltico, econmico ou

    mesmo religioso31.

    A defesa da democracia racial reveladora tanto da essncia de

    uma nao quanto da razo do Brasil ir frica e constitua um poderoso

    argumento que nortearia qualquer tentativa de obstruo da aproximao

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1441

  • 42 | Joclio Teles dos Santos

    brasileira com o continente africano. A democracia racial, lida como o

    princpio cannico da sociedade brasileira, tornava-se a base explicativa

    da nova poltica externa do pas. Ela era capaz de equacionar as prticas

    e interpretaes polticas de intelectuais e servir de alicerce na lgica

    econmica da geopoltica brasileira.

    Tratava-se de qualificar aes que consubstanciassem a lgica do

    desenvolvimento econmico com o canne da integrao racial e, mais

    precisamente, a influncia africana sobre a nossa cultura; afinal de con-

    tas, como observava Josu de Castro, em uma linguagem com matiz nada

    politicamente correto:

    O Brasil s pode receber com entusiasmo esse desmoronar-se do

    monoplio da raa branca em benefcio de todas as raas, desde

    que o Brasil foi um dos precursores desta sbia poltica de fuso e

    de integrao raciais. O que preciso acabarmos com o pedantis-

    mo de nos julgarmos povos ocidentais de raa branca, ocultando

    desajeitadamente as nossas manchas de cor (sic). A nossa posio,

    sob certos aspectos, intermediria entre o mundo branco chamado

    ocidental e o mundo dos povos de cor do Oriente, nos oferece

    naturalmente um papel da mais alta relevncia, no estabelecimen-

    to de contatos e entendimentos fecundos entre esses dois mundos.

    Infelizmente tnhamos at hoje fingido ignorar que tambm somos

    povo de cor, formado pela mistura de vrias raas e que os nossos

    interesses, os mais imediatos e os mais profundos, se confundem

    com os interesses dos povos subdesenvolvidos de economia de-

    pendente em todos os quadrantes da terra [...] s os cegos no

    vem quanto temos a ganhar, ideolgica e materialmente, por essa

    aproximao ao mundo novo que surge das trevas do continente

    negro (sic).

    No haveria grande distncia cultural,

    em suas razes populares entre a frica e o Brasil: [...] a frica man-

    tm at hoje uma grande janela aberta para o nosso Pas, esperan-

    do apenas que algum passe para iniciar o namoro que se faz

    necessrio como uma forma de introduo diplomtica. No somos

    povos latino-americanos e africanos, nem incomunicveis, insula-

    dos nos castelos de marfim de cultura impenetrvel, nem somos

    antagnicos, exceto apenas no campo da produo concorrente

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1442

  • O poder da cultura e a cultura no poder | 43

    dos mesmos produtos tropicais; campo no qual um bom entendi-

    mento poder at criar uma nova forma de melhor defesa da eco-

    nomia comum destes produtos em lugar de se constituir como um

    motivo de guerra econmica32.

    A imagem evocada de um indispensvel namoro com vistas a uma

    conseqente introduo diplomtica no poderia ser mais reveladora. Diria

    que, na lgica do desenvolvimento, nada mais prudente que um cortejo

    com dotes culturais no mbito externo e interno da poltica brasileira.

    No discurso de intelectuais, os significados do nosso capital simb-

    lico devem ser percebidos atravs de trs pontos; primeiro, observa-se na

    sua eloqncia a reiterao do subsdio da etnia africana para o patrimnio

    da cultura nacional; segundo, nota-se na sua ao poltica a sinalizao

    para incorporar personalidades negras brasileiras na execuo da nova

    poltica: quem sabe se no trabalho pioneiro de penetrao pacfica desse

    continente no poderiam ser aproveitados, com real vantagem, os ele-

    mentos esclarecidos da coletividade afro-brasileira? (sic)33; terceiro, no

    aspecto geogrfico e histrico, o Brasil seria um modelo a ser seguido na

    frica tropical, j que era pensado como o mais africanizado dos pases

    ocidentais e o de maior proximidade geogrfica, pela unidade Atlntica.

    Nessa unidade, como defendia calorosamente o historiador Jos Honrio

    Rodrigues, poderia acontecer a vitria sobre o trpico, uma vitria da

    miscigenao e tolerncia raciais, to difamadas pela cincia europia.

    Numa imaginada inverso do processo colonial e sobreposio de forma-

    es culturais, o historiador acreditava que, atravs do Oceano Atlntico,

    o futuro reservaria a criao pela frica de um outro Brasil, ou seja, uma

    autntica comunidade brasileira-luso-africana34. O Brasil, aos olhos de

    intelectuais tornava-se, por conseqncia, um emblema poltico de voca-

    o africana.

    Os discursos e prticas estatais conjugados aos textos de intelectu-

    ais me levam a argumentar que a ao desencadeada pelo governo Jnio

    Quadros provocou mudanas significativas na forma do conduzir a polti-

    ca externa, com conseqncias na gesto da poltica cultural tanto no

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1443

  • 44 | Joclio Teles dos Santos

    nvel da Unio quanto em mbito local, mais precisamente, no estado da

    Bahia. Atravs de um olhar marcado por leituras tradicionais, que indica

    um exotismo novecentista, o descobrimento da frica aportava na socie-

    dade brasileira; por razes que discutirei mais adiante, havia em curso

    uma busca de informaes que se traduzia em reinterpretaes do que

    significava para o Brasil ter um patrimnio nacional com origens,

    prioritariamente, naquele continente.

    Imagens em frica, vises do Brasil

    O interesse brasileiro em ir frica para ampliar os horizontes

    polticos e econmicos teve como resultados imediatos o estmulo coo-

    perao africana. Se no Brasil pouco se conhecia a frica, a recproca era

    verdadeira. O prprio Ministro do Trabalho nigeriano, Joseph M. Johson,

    em entrevista no Rio de Janeiro, dizia que o Brasil se tornara conhecido

    naquele pas aps a eleio de Jnio Quadros35. Ainda que a afirmao

    possua uma dosagem de exagero, de se notar que a falta de uma poltica

    oficial fez com que o continente africano, to reiterado como uma das

    matrizes da nossa formao social, fosse completamente desconhecido na

    sociedade brasileira. Para suprir essa carncia, as visitas oficiais envol-

    vendo pases do continente africano, ou do mundo sio-africano, e cida-

    des brasileiras foram sendo cada vez mais estimuladas36; de fato, a ao

    oficial chegava a se constituir em um apelo, como pode ser observado no

    discurso de diplomatas aos intelectuais e industriais insistindo para que

    fossem frica no intuito de conhecer de perto a influncia brasileira37.

    A falta de informaes sobre os pases africanos era visvel nos

    rgos oficiais, entre os intelectuais e na imprensa brasileira. Os artigos

    de intelectuais, escritos em revistas especializadas e jornais, buscavam

    apresentar a frica atravs de informaes variadas: geogrficas, histri-

    cas, lingsticas, diferenas culturais, a economia e a poltica desenvolvi-

    da nos pases africanos, racismo da Unio Sul-Africana (Apartheid) e da

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  • O poder da cultura e a cultura no poder | 45

    Federao Centro-Africana (Rodsia do Norte e do Sul, Niassa), inclusive

    fazendo referncias problemtica com os governos coloniais, considera-

    dos por alguns como colonialismo clssico38. Conclui-se, portanto, que

    no Brasil pouco se sabia da frica. Um artigo de Edison Carneiro exem-

    plar. Aos leitores, buscava fornecer uma descrio pormenorizada das cida-

    des africanas com informaes que iam das lnguas nativas arquitetura,

    das atividades produtivas s condies de vida da populao e, por fim,

    reafirmava o seu apoio ao processo de descolonizao africana39.

    As informaes trazidas por intelectuais resultavam da participao

    em encontros promovidos por rgos internacionais como, por exemplo,

    o Colquio sobre as Relaes Culturais entre a frica e a Amrica Latina,

    realizado em Daom, sob o patrocnio da UNESCO, e do intercmbio

    fomentado pelo CEAO/UFBA40.

    A produo textual aproximava intelectuais e jornalistas. A partir

    de 1960, as notcias sobre a frica adquiriam um maior espao nos jornais

    dirios. A conseqncia desse processo foi um deslocamento de jornalis-

    tas para o continente africano, que lembra as incurses dos viajantes

    oitocentistas pela Terra Brasilis. Com imagens impressionistas do conti-

    nente africano, os jornalistas produziam textos simpticos aproximao

    brasileira. Fundamentalmente, a sua misso era coletar informaes so-

    bre os costumes dos povos africanos, tidos como desconhecidos, e divulg-

    las em solo brasileiro. Como, at ento, no havia uma preocupao des-

    sa ordem, todos os pases que o Brasil tivesse como ascendente cultural

    e, tambm, com os quais mantivesse relaes econmicas passavam a ser

    prioritrios nas matrias. O Jornal da Bahia chegou a fazer uma edio

    especial, em ingls, The March of Africa Today, com o objetivo de tor-

    nar acessveis maiores informaes e formar uma melhor conscincia so-

    bre a frica, no esprito dos brasileiros, especialmente no povo da Bahia41.

    nesse contexto que ocorreu a visita ao Brasil de um dos smbolos

    da negritude, o poeta Leopold Senghor, ento presidente de um pas re-

    cm-independente, o Senegal. Observe-se que a vinda de Leopold Senghor

    O poder da cultura_FINAL.p65 7/12/2005, 12:1445

  • 46 | Joclio Teles dos Santos

    aconteceu em pleno governo Castelo Branco, cinco meses aps o golpe

    militar que deps o presidente Joo Goulart, e que a postura dos gover-

    nos militares pouco mudou em relao frica, pois o Itamaraty foi um

    dos rgos do aparelho de Estado menos afetados pelo regime militar. O

    seu grau de autonomia pode ser notado pelo pensamento e ao que se

    traduzia na continuidade da poltica dos trs d: desarmamento,

    descolonizao e desenvolvimento, e no lugar de destaque dado pelos

    militares a Arajo Castro, ltimo ministro das Relaes Exteriores no go-

    verno deposto de Joo Goulart, j que as suas idias obtiveram o estatu-

    to de pensamento42. As mudanas verificadas no governo Castelo Branco

    podem ser vistas na restaurao do tratamento privilegiado dado a Portu-

    gal e na leitura do governo militar de que acontecia uma infiltrao do

    comunismo internacional no continente africano. Nessa anlise, o Brasil

    cumpriria um papel de salvar a frica atravs de aes a serem efetivadas

    naquele continente e do incremento de produtos brasileiros para aquele

    continente43.

    As homenagens prestadas a Leopold Senghor durante sua estada

    no Rio de Janeiro, ento, capital federal, e o seu longo discurso em Salva-

    dor representam, a meu ver, o coroamento da nova poltica externa e a

    ressignificao da presena africana na sociedade brasileira. O governo

    publicou um folheto explicativo sobre o Senegal, procurando torn-lo

    mais conhecido dos brasileiros. As informaes iam da geografia hist-

    ria, da economia ao relacionamento diplomtico com o Brasil. Na Cmara

    Federal, proferiu-se discurso e a Academia Brasileira de Letras dedicou-

    lhe uma sesso de gala, pois, como destacou Austragsilo de Athayde, a

    poesia de Senghor tem a independncia viril de uma raa livre44.

    Nada poderia ser mais intercambiante da aproximao brasileira

    com o continente africano que o prprio discurso de Leopold Senghor,

    por ocasio do recebimento do ttulo de Doutor Honoris Causa que lhe

    foi outorgado pela Universidade Federal da Bahia. Com o tema latinidade

    e negritude, Senghor discorreu sobre a nova poltica africana brasileira

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  • O poder da cultura e a cultura no poder | 47

    estabelecida a partir de 1960, o ano da frica. A sua argumentao

    clara acerca das razes que substanciavam a ida do Brasil quele conti-

    nente. Pela leitura do poeta e presidente africano, a aproximao havia

    ocorrido

    por razes mais profundas que as razes polticas ou comerciais;

    por motivos menos mesquinhos, menos mercantis. D-se, bem o

    sabeis, por motivos culturais que eu gostaria, agora, de analisar

    convosco. Isso nos permitir, a um e outros, conhecendo a nossa

    fraternidade, desenvolvermos a nossa cooperao para dela colher

    as flores as orqudeas e tambm, os frutos suculentos.

    O destaque ao universo cultural compreendia uma assertiva a de

    que a mestiagem um louvor civilizao; no por acaso que o poeta

    e presidente senegals, em vrios momentos do seu discurso, apela para

    os exemplos e os argumentos utilizados por Gilberto Freyre para explicar

    a mestiagem pr-existente entre os portugueses e a contribuio dos trs

    elementos culturais na formao da sociedade brasileira.

    Sendo a cultura sublinhada como a categoria de anlise em substi-

    tuio exclusividade racial, ela vislumbrada por Senghor atravs de

    uma metfora: uma simbiose que tinha a indianidade como uma moldu-

    ra explicativa do brasileiro. A indianidade vista como uma planta silves-

    tre em que a lusitanidade e a negritude haviam sido enxertadas. O iderio

    brasileiro de mestiagem no poderia encontrar melhor ressonncia que

    nessa leitura do alm-mar.

    Mesmo que o discurso de Leopold Senghor se insira no ambiente

    de uma visita diplomtica, o que quer dizer uma constante exacerbao

    de elogios aproximao e de clara seduo poltica, h que se destacar

    as analogias e as aproximaes africanas e brasileiras internas ao seu

    prprio discurso. Observe-se, por exemplo, o destaque por ele dado

    ressonncia de valores similares presentes na poesia senegalesa e brasi-

    leira. Lembrando a delicadeza como uma qualidade tipicamente brasi-

    leira no quero dela reter, agora, seno os aspectos de suscetibilidade

    de honra, de gentillese e honntet, tomando essas duas palavras em seu

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  • 48 | Joclio Teles dos Santos

    velho sentido francs de nobreza e de polidez, o poeta e presidente

    senegals citava o etnlogo Leo Frobenius, que chamava ateno para o

    primado da suscetibilidade e honra no continente africano, afirmando:

    precisamente neste continente a regra de ouro da sociedade con-

    siste em manifestar a todo homem, seja qual for sua raa ou condi-

    o, os sinais de respeito devidos dignidade da Pessoa Humana.

    Como diz um poema senegals cantando o honnte homme: Hon-

    raste o Rei/Honraste o Pobre/Honraste os teus inimigos/Se a honra

    fosse co/Vendo-te agitaria a cauda.

    Num imaginado encontro de poesia africana e brasileira, Leopold

    Senghor completa:

    responde a este poema [senegals], da outra margem do Atlntico,

    a Elegia de Vinicius de Morais: Queria tornar-me mendigo, ser mi-

    servel/Para participar da tua beleza, meu irmo/Queria meus ami-

    gos [...] queria meus inimigos/Queria [...]/Queria to exaltadamen-

    te, minha amiga!. (Elegia quase uma Ode)45

    A recepo brasileira a Leopold Senghor e ao seu expressivo dis-

    curso indica uma configurao histrica em que preciso destacar o peso-

    pesado da poltica externa brasileira, a mestiagem, em detrimento do

    que seria considerado o seu calcanhar de Aquiles. Refiro-me ao que po-

    deria denotar a desmistificao do nosso primado cultural, a existncia de

    discriminao racial. Como veremos no prximo tpico, o ambiente de

    receptividade interna nova poltica externa possua outros componen-

    tes que colocavam em xeque o reiterado discurso positivo da nossa

    convivialidade racial em direo ao alm-mar.

    Racismo: de ideologias polticas a leituras residuais

    Com o fomento da poltica de aproximao com a frica, inmeros

    estudantes africanos aportaram em Salvador. Como esse intercmbio apa-

    rece nos jornais, os sentidos do que seria viver no Brasil, mesmo por

    curto espao de tempo, nos revelam uma outra face da poltica externa

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  • O poder da cultura e a cultura no poder | 49

    apoiada pelos mais variados setores da sociedade brasileira. Refiro-me a

    um nvel ideolgico que se encontra subjacente receptividade da impren-

    sa baiana. Se o discurso da convivncia racial ali se reitera como o substrato

    da nossa poltica independente, no plano das ideologias polticas que mar-

    cavam o clima de guerra fria, ele tambm teria que ser reforado.

    S que a maneira de definir as caractersticas da formao brasilei-

    ra, pela convivia