o Planeta Futebol - Luís Freitas Lobo

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Ttulo

O Planeta do Futebol

Autor

Lus Freitas Lobo

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente leitura de pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor, este ficheiro no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

Lus Freitas Lobo

PLANETA

FUTEBOL

Em busca da alma, dos magos e das tcticas que fizeram histria

(As origens e o presente do futebol moderno)

ndice

Introduo

Prefcios

1. Futebol at eternidade

2. Tctica: a evoluo das espcies

3. Mundos paralelos

Danando com a bola, o futebol como ballet

A importncia de ser o centro do mundo

Mulheres de futebol

4. As ltimas fronteiras

5. A serpente e a bola

6. "Wunderteam"/a equipa Maravilha (1931-1937)

7. O Imprio do "WM" (1930-1935)

8. O despertar dos smbolos

Torino (1942-1949)

9. Hungria, as terras do Major Galopante

Puskas, o primeiro Real Madrid "galctico"

10. O estranho mundo do pressing

11. "Transies a terceira dimenso do futebol

12. Tctica e arte

De 1958 a 1970: Do 4x2x4 ao 4x3x3

O Brasil de 1982

A essncia de Pel

Santos, obra divina (Anos 60)

13. Amrica do Sul, o "Novo Mundo"

Diego e os ltimos romnticos

Andrade, a maravilha negra

Os primeiros campees. Uruguai (1930)

14. Futebol-fora: o discurso e o mtodo

Bayern Munique (74-76)

15. Leitura de jogo, o futebol como um bom livro

Treinadores e jogadores, choque de egos

Como explicar a arte?

Balada por futebolistas insubmissos

16. As mil e uma noites do futebol ingls

17. O sorriso do diabo (as tcticas defensivas)

A defesa em "linha" e a tctica do "fora-de-jogo"

18. A pedra Filosofal (Futebol-Total)

19. O futebol cientfico

O careca polaco

20. O penalty de Panenka

A inveno do penalty

21. 4x4x2, o triunfo do meio-campo

O 4x4x2 "losango" ou em dois tringulos

O Milan de Sacchi. A zona pressionante

22. A dimenso fsica

23. O lado mental, "Homens e Mquinas"

Onde param os grandes lderes do antigamente?

24. Os "duplos-craques, talento e formao

25. Os jogadores: habitat e estilo

Os trincos e os pivots-defensivos

Os laterais modernos e o fim dos extremos

Guarda-redes, o jogador solitrio

26. A Bola de Ouro

Stanley Matthews: o Cavaleiro de Stoke

Jogadores Dourados

27. Os novos ritmos e espaos: a "desorganizao organizada"

28. As diferentes faces do 3x4x3

29. A cultura do Futebol

As diversas expresses do futebol latino

Os dias em que o futebol portugus mudou

Existe um verdadeiro estilo de futebol portugus?

As prolas ultramarinas

As lies de Guttmann

30. A pista africana, os caminhos de Drogba

31. O fim dos estilos

32. O ltimo testamento

Bibliografia

Introduo

Todos os dias penso, vejo, falo e escrevo sobre futebol. Por isso, antes de ser escrito este livro foi vivido. No tenho curso, mas no consigo ver um jogo sem o pensar pelo prisma do treinador. Chego a ter alguns problemas no dia-a-dia com isso. comum, por exemplo, ir a conduzir e pensar como punha a jogar o Unio de Leiria ou como faria para o Celta ganhar em Saragoa. Penso nos jogadores, suas caractersticas, na estratgia.

Em termos de periodicidade semanal, o Planeta do Futebol surgiu em 2001, nas pginas de "A Bola". S agora, quando muitas dessas reflexes e outras ideias que surgiram por outras pginas e jornais, ganham forma de livro, sistematizando ideias e temas em diferentes captulos, que se pode identificar uma verdadeira filosofia de pensamento.

Um livro para pensar futebol a partir do nico ponto que o entendo ser possvel conceber: a emoo, cruzando o desejo de viajar no tempo e entrar num espao sagrado onde, desde velhos tempos at ao presente, habitam grandes equipas e jogadores. Mudam os estilos, as tcticas, a velocidade e a mobilidade, mas o ADN do bom futebol quando um jogador tem a bola nos ps permanece.

Revisitando histrias de muitos "Magos do Futebol", descobrimos caminhos para pensar o jogo. Arte, tctica, tcnica e pensamento. A bola, o ritmo e os espaos, a zona e os segredos das transies, o losango e o pressing, a cultura tctica e o perfume dos dribladores. As equipas que dominaram cada poca, de Chapman, Meisl e Guttmann, at Capello, Benitez e Mourinho, passando por Herrera, Happel e Sacchi. O sistema clssico, o WM, os mgicos hngaros, o nascer do 4x2x4, o mrbido catenaccio, a revoluo do Futebol Total, as linhas do 4x4x2. Em cada poca, cada equipa expressou as suas ideias de futebol, escritas pelas botas divinas de poetas como Di Stefano, Cruyff, Puskas, Pel, Maradona, Zidane... at aos mgicos do presente, Messi, Robinho, Drogba, Kak, Fabregas, Henry e o maravilhoso mundo dos Ronaldinhos.

O futebol uma linguagem universal com vrios dialectos corporais. Existem mais de mil maneiras de ganhar ou perder um jogo. A mais educativa aquela que respeita o talento. A mais cruel a que ignora as boas ideias.

Claro que este no um livro para decifrar segredos do futebol. Apenas para falar de futebol. A tcnica a palavra. A tctica um vocabulrio dinmico. As quatro linhas so as delimitaes de cada pgina.

Prefcios

O autor deste livro pediu-me para falar de uma das minhas experincias enquanto jogador de futebol. Como provavelmente devem saber tive a felicidade de jogar em vrios pases, todos eles to ricos como diferentes culturalmente. E viver num pas diferente do nosso cultura, experincia de vida, no tem preo. Poderia aqui falar da louca paixo dos gregos pelo futebol ou da fria mentalidade alem mas optei por escrever sobre a cultura que mais me marcou enquanto jogador de futebol. E essa foi sem dvida o calcio italiano.

Itlia um pas latino, de mentalidade latina e, portanto, um pas de exageros, de extremos. Viver dentro do futebol italiano perder a paz, o descanso, mas tambm viver com entusiasmo, paixo. H presso constante sobre o jogador de futebol, todo o mundo exige; os media, os tiffosi, a direco, o adepto famoso. Para terem uma ideia de como por l se vive o futebol, posso dizer-vos que quando cheguei Juve at Pavarotti falou sobre mim. Imaginem que Berlusconi foi primeiro-ministro de Itlia durante vrios anos e mesmo assim nunca admitiu afastar-se de presidente do seu Milan, de manter comentrios sobre os jogos e sobre os jogadores do clube! Ora isto exemplifica bem o que fazer parte deste mundo fantstico que o calcio. No entanto, essa exigncia que o meio coloca nos jogadores, nos treinadores, nos directores, levou o futebol italiano para um beco de difcil sada.

Difcil sada porque o resultado se tornou numa cultura. E essa cultura foi-se enraizando ao extremo durante as ltimas dcadas. Os interesses econmicos em torno do futebol "obrigaram" as equipas a ganhar e o espectculo passou para segundo plano. Catenaccio, libero, pressing foram algumas das estratgias encontradas pelos italianos para reforar as suas defesas. A fobia do perder ou a fixao pelo obter resultados positivos, resultou no privilgio ao jogo defensivo e ao contra-ataque, que so h vrios anos caractersticas da maior parte das equipas italianas. Esta cultura est to enraizada que se chegarem ao p de um grupo de crianas e lhes perguntarem quem so os seus dolos ou que tipo de jogador querem ser, grande parte vai dizer que quer ser defesa como o Cannavaro, ou stopper como Genaro Gattuso.

Esta obsesso pelo resultado traduz-se num futebol com caractersticas dominantes de anti-jogo, contra-ataque, sistemas tcticos rgidos e

fsicos, renunciando-se ao talento dos jogadores, deixando o espectador e o espectculo para segundo plano. O culto do fsico tambm uma consequncia desta involuo.

Recordo-me bem que os italianos acentuavam imenso o lado fsico. Tanto que s de pensar no incio da pr-poca eu at nem dormia tumultuado por imaginar as cargas que ia levar! Os treinos eram bidirios, duravam uma mdia de duas horas e meia, trs horas. Ginsio, musculao, corrida, carga e mais carga obrigam a que os msculos trabalhem sempre acima do limite. E esta forma de trabalhar causou-me danos srios a mdio/longo prazo. Acredito mesmo que se tivesse jogado em Espanha ou em Inglaterra provavelmente hoje ainda jogava!

Mas o futebol italiano tambm tem o seu lado positivo e do qual sofri influncias marcantes da minha personalidade actual. A organizao extrema, o culto do estudo e anlise do detalhe, o cuidar do lado estratgico do jogo de uma forma interactiva com os jogadores, so marcas na minha personalidade de treinador. Ou seja, em Itlia sentia-me protagonista no campo, mas tambm no treino, no balnerio e no ambiente em torno da equipa. Os prprios treinadores italianos do abertura ao sentimento dos jogadores, permitem que haja interaco, troca de ideias. Isso muito importante pois obriga a que todos os jogadores faam uma constante auto/hetero avaliao. Como foi o meu desempenho? Em que posso melhorar para que a equipa jogue melhor? Que conselhos posso dar aos meus colegas para que o equilbrio funcional da equipa resulte numa maior qualidade de jogo? Toda esta reflexo enriquece o futebol e aumenta o nvel de exigncia.

Tenho a esperana de um dia voltar a este futebol to apaixonante pois acredito que posso contribuir para que o clcio se torne num espectculo mais positivo. Se calhar estou a ser utpico mas confesso que tenho c dentro essa convico...

Por fim importa ressalvar o contributo que este livro e o seu autor trazem ao futebol portugus. O Lus um amigo "do futebol" mas , fundamentalmente, uma pessoa que nos ltimos anos tem acrescentado muito ao dito futebol falado e escrito. Marcou um ponto de viragem no fazer jornalismo futebolstico, tornou-o muito mais especializado, muito mais de encontro ao pormenor, procurando o detalhe sem fronteiras, realizando, enfim, opinio sria, rica e credvel. So pessoas com esta paixo, esta dedicao, que o futebol precisa e fundamentalmente no pode desperdiar.

Paulo Sousa - (Campeo Europeu, Juventus 1996, Borussia Dortmund, 1997)

Enquanto aluno da opo de futebol, da Faculdade de Desporto, da Universidade do Porto, sempre se confrontado com dois exerccios formativos: pensar e falar de futebol.

Nessas apaixonantes tertlias, dinamizadas por ns, muitos nomes por l passaram. Mas um dos residentes, atravs dos seus interessantes e pertinentes textos, foi "Lus Freitas Lobo".

A regularidade das conversas relativas a Freitas Lobo prendiam-se com a sua peculiar viso do jogo de futebol.

A sua permanncia, embora ausente fisicamente, nas aulas de opo tem atravessado geraes, desde Rui Faria (ex - Tcnico do Chelsea e do Futebol Clube do Porto), passando por Carvalhal (Treinador do Vitria de Setbal) e muitos outros, prende-se por ser dos poucos a escrever sem complexos ou preconceitos sobre um tema comum a todos - o jogo de futebol.

Hoje, o Lus um amigo e, frequentemente, aparece na Faculdade para fazer o que mais gosta, falar de futebol, Futebol!

Parabns Lus por mais este valioso incentivo reflexo em volta daquilo que todos ns adoramos, Futebol.

Vtor Frade e Jos Guilherme - Professores Universitrios (Faculdade de Desporto da Universidade do Porto)

1. Futebol at eternidade

No seu tempo fora um jogador fantstico, um defesa implacvel que impunha respeito. Tinha o perfil de um gal de cinema mudo jogando futebol. Duro, mas cavalheiro. Com autoridade. A bola surgia-lhe perto e logo baixava as orelhas. Mas os anos passaram depressa. Fugiram-lhe como areia fina por entre os dedos. Os tempos foram mudando. O futebol tambm. E, com ele, vieram novos costumes, outras ideias que lhe foram retirando o encanto. Os jogadores passaram a ser mquinas. O jogo passou a ser disputado numa. jaula tctica. Desiludido, Jorge Gibson Brown decidiu ento, aps noites vagueando pela casa sem dormir, com um cigarro na mo por companhia ajudando-o a pensar, que era hora de parar e pendurar as chuteiras. J no sentia o mesmo entusiasmo de antigamente. Por isso, na hora de anunciar o fim, deixou a sentena de que se retirava porque aquele futebol j no era o mesmo dos seus velhos tempos. A sim, que existiam grandes jogadores. E bateu com a porta.

Estvamos em 1923.

Todos ns temos aquilo que consideramos o "nosso tempo". Por esta simples histria, percebe-se o efeito que o chamado "futebol do antigamente" sempre causou com os seus ecos nostlgicos. Jorge Brown fora o capito da primeira seleco argentina da histria. Esteve na sua primeira grande conquista, em 1906, na ancestral Copa Lipton, frente ao Uruguai, numa altura em que quase todo o onze era formado por jogadores do Alumni, o grande clube argentino de incio do sculo. Fez os primeiros jogos como avanado. S

depois recuara para defesa, tornando-se o grande chefe da dupla defensiva num tempo em que mandava o 2x3x5, a estrutura que marca o incio tctico da disposio dos jogadores em campo.

Era a idade da inocncia. Cales pelos joelhos, brilhantina no cabelo, atilhos nas golas das camisolas e botas que eram umas travessas. Tudo a preto-e-branco. Os jogadores eram cavalheiros. Portavam-se como tal. Aparentavam como tal. Falta uma mquina do tempo para nos transportar at esses tempos remotos, mas ouvimos falar tanto deles que quase a mesma coisa. E as fotos desses tempos no deixam mentir. Em mais nenhum local, como nas profundezas do ftbol argentino, na Amrica do Sul, ou nos bas de memrias do football ingls, na Europa, se abrigam tantos mgicos esconderijos de lendas.

Visitando o museu do Chelsea, descobre-se, a certo ponto, velhas fotos de 1905. s portas do Estdio, aparentando ento ser todo erguido com pregos e martelos a bater na madeira, a multido move-se como formigas em direco a um buraco. O grande jogo estava para comear. Na foto da equipa, no centro dos onze gentlemen, um gigante guarda-redes, inverosmilmente gordo, quase mais largo que alto: Willie Foulke. Pesava 168kg. Media 1,98m.

Nascido em Sheffield, onde jogou vrios anos e se fez famoso - alinhou na seleco inglesa em 1897 - chegou ao Chelsea j no incio do sculo seguinte. Continuava, porm, imponente. No s pela sua monstruosidade fsica, temida num tempo em que as cargas aos guarda-redes e deles aos avanados eram permitidas, mas tambm pela sua agilidade entre os postes! Bill Fatty (gordo) Foulke foi um dos maiores guarda-redes de fins do Sc. XIX. Conta-se que uma vez, num desses choques, agarrou pelo pescoo dois adversrios e atirou-os para o fundo das redes. Noutra ocasio, ao defender uma bola para canto, obrigou a que o jogo ficasse interrompido longo tempo, aps partir com um soco a barra da baliza. Histrias entre o real e o imaginrio mas que no custam a acreditar revendo a sua gigantesca figura. Foulke morreria novo, com apenas 40 anos, vtima de pneumonia.

No mesmo espao, quando olhamos as fotos de Peter Cech, mais de cem anos depois, inevitvel pensar se existe ainda algum ponto de contacto entre dois tempos to distantes. Gosto de pensar que sim. E penso que o futebol s faz sentido dessa forma, procurando relaes entre as suas diferentes pocas, suas personagens, equipas, treinadores, adeptos, apanha-bolas e vendedores de gelados. Em qualquer era moraram sempre grandes jogadores. Podemos conhecer os antigos, podemos conhecer os clssicos, podemos conhecer os homens do Sc. XIX e at os que marcaram o Sc. XX. Difcil, mais difcil, conhecer os contemporneos. So muitos e o tempo ainda no revelou a sua antologia. No futebol, cada um tem a sua prpria filosofia para interpretar o jogo. Fora, tcnica, jeito e msculo. Criar um modelo de jogo e definir um sistema tctico , em suma, decidir como distribuir a inteligncia pelos jogadores no relvado.

Ao longo dos tempos, o futebol mudou muito, adquiriu novas formas tcticas e estilos, mas em todas as pocas a inteligncia foi o ponto de partida para entender o seu sentido colectivo ao qual at as grandes individualidades se devem submeter. nessa perspectiva que faz tanto sentido falar hoje em "princpios de jogo". Como o prprio nome indica, eles so um "princpio", um ponto de partida para modelar o "jogar" da equipa, traduzindo-se num conjunto de normas e movimentos comportamentais que orientam o jogador em campo na procura das solues mais eficazes em diferentes situaes de jogo. So eles que determinam e balizam o posicionamento e a movimentao dos jogadores. Neste contexto global, pode-se dizer que o primeiro "princpio de jogo" para a construo do dito futebol moderno ter sucedido ainda em finais do Sc. XIX.

A estrutura tctica de disposio dos jogadores em campo remonta aos incios da Federao Inglesa de Futebol. Com a criao da Taa de Inglaterra, a mais antiga competio do mundo, tornou-se mais fcil identificar essas primitivas formaes que marcaram as primeiras grandes abordagens ao jogo do ponto de vista colectivo.

Em 1875, o Royai Engineers, onze amador que deixou marcas nas primeiras edies da Taa de Sua Majestade, surgiu em campo com a seguinte estrutura: um guarda-redes, um defesa central, dois mdios e sete avanados. (1-2-7). Os dois mdios, porm, tambm tinham ordens para defender quando o adversrio atacasse. Ficava assim com trs defesas em campo. Dois vigiavam os pontas (extremos) contrrios, e um outro

permanecia fixo, no centro, perto da baliza. O mais curioso verificar que, nesse tempo, os jogadores no usavam a cabea para jogar a bola. Tudo passava pelos ps. Seria, rezam os registos, esse defesa do Royai Engineers, o alferes Sim, quem primeiro adoptaria esse recurso, o cabeceamento, para cortar a bola. Estava em frente da baliza e, segundo as crnicas da poca, ele valia tanto como um segundo guarda-redes.

Nesse tempo, porm, j comeara a correr por toda Inglaterra os ecos do futebol diferente que uma equipa escocesa, o Queen's Park FC, praticava. Eles foram, historicamente, os primeiros a olhar de lado o jogo directo e desordenado praticado pelos inventores ingleses. Perspicazes, inventaram ento o chamado "dribling and passing game". esta a grande raiz da expresso tctica do futebol moderno: o jogo do drible e do passe. Tudo nasce destas duas simples definies. Progredir no terreno jogando colectivamente, passando a bola uns para os outros, e no com meros pontaps para a frente, tentando colocar a bola o mais rapidamente possvel perto da baliza.

Embora os anos seguintes criassem uma clara diviso entre a escola inglesa (de jogo directo) e a escocesa (de passe e drible), seria, em 1885, uma equipa de Inglaterra, o Blackburn Rovers, a apresentar a inovao em termos de estrutura tctica que traduzia essa maior predileco pelo jogo menos directo, preocupando-se tambm em jogar apoiado. A inovao traduziu-se na adopo de trs mdios puros. Era o nascer do 2-3-5. A pirmide, o chamado sistema clssico. Perduraria, na vanguarda, mais de cinquenta anos.

nesse tempo que comeam a surgir, nos escritos da poca, um conceito que, mantendo-se atravs dos tempos, ainda hoje perdura, embora com aplicaes diferentes, fazendo muita da essncia da anlise futebolstica: "Mostrem-me uma boa linha de mdios e eu mostrar-vos-ei uma boa equipa".

Outros factores foram, no entanto, fazendo a diferena de poca para poca: a condio atltica e o ritmo de jogo. Recentemente, um estudo sobre o tema, demonstrava, estatisticamente, o tempo que um jogador tinha para segurar a bola antes de um adversrio lhe cair em cima para o desarmar:

1958: Garrincha 4"

1962: Garrincha: 3,5"

1966: Eusbio: 3"

1970: Rivera: 3"

1974: Cruyff: 2,5"

1982: Zico: 2"

1986: Maradona: 1,5"

1994 e 1998: Baggio e Zidane: 1"

No Mundial do Chile, em 1962, um jogador corria 5,58 km por jogo. Vinte anos depois j corria 9 km. Hoje, a mdia j vai nos 11,44 km.

O tempo para pensar e executar diminuiu. Basicamente, estes dados so um reflexo de como o futebol evoluiu sobretudo na abordagem colectiva do jogo. Antes, essas grandes individualidades quase viviam num mundo parte; hoje, os seus legtimos sucessores, como Ronaldinho, Kk ou Cristiano Ronaldo, tm, para sobreviver, de se integrar nas manobras de todo o onze e incorporarem, em campo, a chamada dinmica da tctica. Di Stefano ou Garrincha continuariam hoje, naturalmente, pela sua qualidade mgica, a ser grandes estrelas, mas, fisicamente, teriam de ser jogadores diferentes, pois os defesas e seus sistemas de pressing esto hoje muito mais activos. , no fundo, uma questo de velocidade e ritmo. Hoje, o craque obrigado a decidir mais rpido. O tempo e o espao so, em qualquer poca, dois factores fundamentais para entender a evoluo do futebol. No fundo, eles que do a moldura onde a tctica e a tcnica, no final do Sec. XIX como no incio do Sec. XXI, se devem enquadrar e descobrir formas de se exprimirem.

Reflectindo em recentes entrevistas sobre o actual momento do futebol mundial,

e Cruyff concordaram num ponto: h que devolver qualidade tcnica ao jogo. Este apelo arte, vindo de dois smbolos do divino futebol, espelha um sentimento que, desde h algum tempo, vem invadindo o corao dos amantes do beautiful game, como lhe chamou o Rei Pel: a alma do futebol, antes das preocupaes de pensamento colectivo do jogo, reside no talento criador, na capacidade tcnica individual do jogador, e no na indstria muscular que hoje o domina. Depois, h a moldura da tctica, porque no jogo, essa tcnica individual s ganha vida real dentro do conjunto.

Tudo se centra na relao entre um jogador e uma bola. Era por isso que Didi, o Prncipe do Brasil dos anos 50, dizia que "um jogador devia dormir com uma bola debaixo da cama, para logo de manh, ao acordar, a tocar, acariciar, sentir o seu toque e cheiro, ganhar sensibilidade e, assim, criar intimidade com ela..."

Formar um jogador como criar uma personagem. Formar uma equipa como criar um estilo, uma atmosfera. Trata-se, acima de tudo,

de dar uma alma a um conjunto de onze jogadores. um mundo de emoes que a certo ponto parece envolver as personagens futebolsticas, jogadores e treinadores, numa aurola quase mstica ou misteriosa. Por isso, Di Stefano nunca responde questo de "quem foi o melhor jogador do mundo". Ou melhor, para driblar essa questo metafsica fala na parte de uma equipa, a linha atacante do River Plate do incio dos anos 50, com a qual iniciou, ento pibe que chegava ao ftbol adulto, a sua aprendizagem sobre o que "jogar bem".

Chamaram-lhe "La Maquina": Muoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Losteau. Os cnticos que envolviam aquela equipa enquanto jogava expressavam bem a sua, ao mesmo tempo, veia pica e potica: "Sale el sol, sale la luna, centra Muoz, gol de Labruna". Formavam um grupo divinal que jogava de memria e com os olhos fechados. Moreno e Losteau, por exemplo, comunicavam um com o outro em campo atravs de assobios, que era um cdigo para saber quando passar ou trocar a bola. El Charro Moreno, que Di Stefano destaca como a pea principal da mquina, era completo, sabia sempre quando fintar ou passar. Os adeptos adoravam-no, apesar da sua vida bomia. Todos sabiam que aos sbados ele ficava a p at de madrugada. Era visto a danar pelos bares, a fumar e a jogar cartas, at que, muitas vezes com o dia a nascer, olhava para as horas e dizia que tinha de se ir preparar para jogar tarde. Comia ento uma sopa de galinha bem quente, vestia a camisola, entrava em campo e jogava divinamente.

O futebol mudou muito nos ltimos anos mas o que continua a definir a qualidade de uma equipa a sua relao com a bola. Os bons jogadores tambm. A dinmica dos jogadores em campo hoje, no entanto, muito diferente. O tempo para pensar diminuiu. As posies continuam semelhantes, mas a ocupao dos espaos mudou. O segredo, portanto, para as grandes equipas e jogadores do presente dar tanta importncia aos espaos como bola.

O jogador conhece mais relva do que no passado. E tambm mais adversrios ao longo dos noventa minutos. O velho papel de organizador de jogo diluu-se. Ou melhor, ele muda conforme a bola. Esqueam os ancestrais maestros que quase jogavam de mos nos bolsos e treinavam sentados em cima da bola, apenas medindo, com o olhar, os passes que iriam fazer no dia do jogo. Hoje, quem tem a bola quem tem de organizar jogo. Cada passe uma etapa dessa organizao colectiva. Quanto mais jogadores uma equipa tiver com essa conscincia mais forte ela se torna. Mas claro que, em cada equipa, continuam a existir as referncias supremas na construo. A diferena que esse jogador hoje obrigado, para ser um supremo organizador, a ter uma amplitude perifrica de jogo muito maior. Conhecer o campo em toda a largura, correr mais, invadir e controlar outros espaos.

Tambm existe, no entanto, quem exagere nessa ambio de relao perfeita com a bola. Hoje, como antigamente. Nesse estilo, fica imortalizada a imagem e fama de Domingos da Guia, patro da defesa brasileira nos anos 30, dos primeiros a querer "levar a bola para casa" mesmo jogando como defesa-central. Tinha, porm, um forte argumento para o fazer. Dizia que a demorava em soltar porque a amava tanto que custava muito ter de a ver partir dos seus ps. Parava a bola no peito, matava na coxa e colocava-a por cima da cabea dos avanados adversrios indo busc-la mais frente. Eram as chamadas Domingadas. Um caso de amizade sincera, expressa numa declarao emocionada, aps terminar a carreira: "Est aqui, a bola, que me ajudou muito. Ela e as irms dela. So uma famlia a quem tenho uma gratido enorme. Na minha passagem pela terra, ela foi a principal. Porque sem ela, ningum joga. Eu comecei numa fbrica de Bangu. Trabalhando, trabalhando, at que encontrei esta minha amiga. E estive sempre muito feliz com ela a meu lado. Graas a ela, conheo o mundo inteiro, viajei muito, tive muitas mulheres. As mulheres tambm so uma coisa gostosa, no?

O italiano Bagni que compartilhou com Maradona os melhores anos da vida do Npoles, conta que muitas vezes lhe intrigava o facto de, acabado o treino, e enquanto todos recolhiam ao balnerio bebendo gua esgotados, o pelusa ficava para trs e, uma a uma, recolhia as bolas espalhadas pelos quatro cantos do relvado, levando-as, ora com pequenos toques sem a deixar cair, ora brincando com ela, ora acariciando-a e dando-lhe beijinhos, at ao saco que as iria abrigar para a sesso seguinte. Um ritual de arte que intrigava Bagni, at que, ao fim de alguns dias, ganhou coragem e perguntou-lhe porque o fazia se havia tantos ajudantes de campo para o fazer. " s porque gosto de estar sozinho com elas, trat-las com carinho, falar-lhes ao ouvido para que no dia do jogo me obedeam, amo-as tanto que todo o tempo do mundo com elas seria pouco para mim., explicava Diego. Em qualquer poca, de Domingos da Guia a Maradona, a cumplicidade do artista com o seu instrumento de arte, a bola, sempre a essncia suprema do bom futebol.

Nem sempre, porm, vencer produto de uma superioridade moral em campo. Nas histricas estratgias de jogo das equipas italianas, mesmo quando era imperioso ganhar, sempre existiu um espao vazio excessivamente longo entre a linha do meio-campo e o ataque. Uma imensido de relva por onde hbridos jogadores, mdios ofensivos ou segundos avanados, trequartistas ou mezza-puntas, conduzem a bola da mesma forma como algum rema sozinho em mar aberto.

O futebol actual encontra-se dividido em duas espcies de jogadores: os que crem num determinado tipo de jogo e que ficam contentes quando no dia do jogo as coisas saem conforme tacticamente pensadas previamente, de acordo com o imaginado pelo treinador. So os jogadores tcticos, as ncoras e os pndulos da equipa que a agarram ao jogo e lhe marcam o ritmo, onde se inserem, tal como, cada qual na sua poca, jogadores como Schuster, Guardiola ou Makelele; e os que crem em si mesmo, uma espcie irascvel que gosta do imprevisvel e que durante o jogo aconteam coisas nunca imaginadas, apelando, assim, ao seu virtuoso instinto de sobrevivncia, aroma e gnio solta. So os artistas dos dribles mgicos, que marcam golos de bicicleta. Para eles, personagens do maravilhoso mundo dos Ronaldinhos, a palavra tctica soa a amarras.

No fcil descobrir jogadores que, com preciso tcnica e noo tctica, impondo a ordem, conciliem os dois atributos. So craques com a mecnica controlada pela imaginao. Algumas pocas atrs, Raynald Denoueix, quando treinador da Real Sociedad, dissera antes do jogo com o Real Madrid, que a chave seria a posse da bola e como escond-la o mais tempo possvel das estrelas merengues. Essa sbia estratgia iria render-lhe uma goleada histrica, mas, em campo, tudo isso assentou na batuta de um jogador catedrtico que conciliou na perfeio aquelas duas qualidades: Xabi Alonso. A frmula mgica para iluminar a equipa a partir daquela posio central, frente da defesa, habitat das "ncoras e pndulos" do futebol moderno, reside em ler o jogo com preciso, pensar e executar a um, dois ou trs toques, saber gerir ritmos e fazer a bola rodar de flanco para flanco.

Afinal, onde comea o futebol? Na tcnica, na tctica, na condio fsica ou nas emoes do povo? No conjunto, o futebol tudo isto. Mas, sem tctica, perde a sua essncia de jogo colectivo. Fica sem o pensamento.

Mas, pode-se responder a esta questo tendo vrios pontos de partida. Falamos aqui, repare-se, do futebol de alta competio. Por isso, a reflexo nasce a partir da viso de um grande jogo da Liga inglesa. Sucedeu-me pensar nisto quando via, num dos muitos sbados tarde de futebol, o Fulham-Tottenham. Futebol aberto, duas equipas em velocidade, a atacar e o pblico nas bancadas em delrio. O Tottenham chega a 2-0. O Fulham reduz, mas os spurs voltam a marcar, 1-3! O jogo cansa s de ver. Nesta altura, fico ansioso para ver os grandes planos dos treinadores e tentar decifrar as suas ideias nesse momento. O jogo continua igual como o pblico, o povo, queria que ele fosse. As equipas deixam-se levar pelo ambiente eufrico. Penso ento: isto, assim, ainda acaba 1-5 ou.. .3-3. Acabou 3-3. Ou seja, em nenhum momento o Tottenham acalmou e geriu a vantagem. Nem mostrou, alis, inteno de o fazer. Diro que isto que espectculo e que assim que deviam ser todos os jogos. Para o espectador imparcial e romntico, at concordo. Mas, analisando o jogo pelas exigncias do futebol de top, onde obrigatrio controlo emocional, tudo aquilo foge de como, em muitas fases dos 90 minutos, o jogo deve ser pensado.

O futebol abriga todos aqueles elementos referidos, mas, no incio, sendo um jogo colectivo, a base a tctica. Pensar o jogo como equipa. A tcnica importante, claro, mas no existe no vazio. S faz sentido se inserida na ideia tctica colectiva, a essncia do jogo de equipa. A emoo faz parte de todo este processo, mas no pode ser o seu gestor e catalizador. fundamental para motivar a equipa, mas, depois, o treinador tem de a filtrar para que se transforme num factor do processo tctico e tcnico unificador.

Volto a pensar na questo em outros jogos. Vejo o Milan-Fiorentina e, sem as correrias britnicas, vejo um bom jogo, pensado tctica e tecnicamente. E com emoo. A pensar o jogo, dois mdios-centro. E como o futebol, e suas equipas, diferente quando existem dois bons mdios--centro frente-a-frente. No caso, Pirlo e Liverani. O jogo sai pensado e, com dois grandes treinadores no banco, Ancelotti e Prandelli, sai ao mesmo tempo emocional. Repare-se como o Chelsea sem Lampard ou Makelele at fica mais empolgante para o adepto imparcial, mas, simultaneamente, menos cerebral para gerir tacticamente o jogo e control-lo emocionalmente. Mais perto de o perder, portanto. Por tudo isto, a pergunta que muitos gostam de transformar em debate, faz pouco sentido. O futebol tudo aquilo. Mas sem tctica, perde a sua essncia de jogo colectivo. Fica sem o pensamento.

Com a bola nos ps, o jogador livre para criar, mas deve entender que essa liberdade termina quando choca com a ordem colectiva e o modelo de jogo subjacente. A capacidade do treinador - e dos seus jogadores- entenderem e interpretarem estes conceitos que marcam a diferena entre as grandes equipas da actualidade, como o Barcelona muitas vezes to bem explicou nas ltimas pocas. Mesmo o gesto mais mirabolante de Messi produz jogo, pois tem em mente um princpio colectivo.

Cristiano Ronaldo, por exemplo, muito mais jogador de equipa no Manchester do que na seleco portuguesa. Uma prova, afinal, para dizer que mais do que na tcnica ou na tctica, o bom futebol, hoje como nos anos 50, comea na inteligncia tctico-tcnica (por esta ordem) individual e colectiva.

2. Tctica: a evoluo das espcies

Pode-se falar de futebol a partir de vrias formas. Os grandes debates tcticos ou os excessos das discusses de caf. Todas so legtimas. E uma no impede a outra. Em banda desenhada tambm. De forma sria. Como faz o gacho Caloi, em livros profundamente disparatados, mas com grande astcia.

Num deles, conta o dilogo entre um treinador e um jogador na hora da substituio: "Nota bem, joga como mdio recuado mas subindo ao ataque. Fecha no meio e sobe em diagonal. Faz passes cruzados, curtos e longos, e surge de surpresa nas costas dos defesas". O treinador falava, falava, na sua obsesso tctica. "No te esqueas. Pra, acelera e desmarca-te de meia distncia, abre espao para as subidas dos companheiros. Simula e tenta de meia-distncia". O bombardeamento de instrues prolonga-se por vrios quadradinhos. A cara do pobre jogador de algum confuso e assustado. "Mete a bola e joga entre-linhas quando cares na faixa. Entra de cabea nos cantos, e explora as costas dos defesas, quando o teu colega for ao primeiro poste, mas no saias da posio". No ltimo quadradinho, o jogador j est com um p dentro do campo quando o treinador se levanta como uma mola e diz-lhe; "Ah, outra coisa: Joga solto, alegre, sem te preocupares com nadai"

uma boa histria. Exagerada, claro, mas que traduz, em caricatura, a mente de um treinador durante um jogo. O que pretende ele, afinal? Misturar vrios tipos de jogadores. Artistas e rsticos. Disciplinados e rebeldes. Controlar o risco, tornar o jogo previsvel. Um alquimista, portanto.

No acredito em choques de geraes, nem na teoria da nova vaga de treinadores em oposio aos da velha guarda. No faz sentido. Acredito em homens avanados no tempo, que acompanham as evolues, e em homens perdidos no tempo, que vivem presos em "trincheiras" de poca. No futebol, como na vida.

O pensamento sobre o jogo conheceu, atravs dos tempos, diferentes contextos, mas os ensinamentos dos mestres, homens avanados no tempo, so sempre actuais. Nunca aceitei a diviso entre velhas e novas escolas. Quando sinto necessidade de aprender mais, busco esses mestres e seus livros actuais, "modernos". Por exemplo? Em "Footbal Tcnica e Tctica", de 1935, Cndido de Oliveira explica que "Em grandes lances, o jogo oferece aspectos de ser organizado em tringulos, colaborando estreitamente um ala com o mdio correspondente ou os dois interiores com o mdio centro, este sistema ganhou a designao de jogo triangulado ou de triangulao. No diagrama indica-se a formao habitual de uma equipa dentro de tal sistema e as linhas de ligao, ou seja, os passes habituais, como norma de jogo. A progresso no terreno, por regra, feita pelo regresso da bola ao mdio que est no vrtice do tringulo voltado para o prprio campo". Segue-se, depois, o esquema reproduzido em baixo, com tringulos desenhados ao longo de todo o campo numa equipa com cinco linhas.

"O sistema tctico no seno o conjunto de princpios, de ideias ou de esquemas de jogo destinados a combater o adversrio. A anular o seu sistema atacante e destroar o seu dispositivo de defesa". Escritos de Mestre Cndido de Oliveira, no livro "A Evoluo da Tctica no Futebol", datado de 1949. Repare-se nos termos: sistema, ideias, princpios. H quem hoje os rotule de novas terminologias. Tm razo. Por isso, os escritos e ensinamentos de Cndido de Oliveira esto hoje to avanados e actuais, mesmo que expressos h mais de sessenta anos. Hoje, como nesses tempos, so "novos pensamentos" que ajudam a entender o jogo. Em 1949 como em 2007. As "novas" terminologias de mestre Cndido serviram, sobretudo, para melhor sistematizar o conhecimento sobre o jogo e, com isso, criar uma filosofia prpria de interpretao.

O futebol um ecossistema onde cabem todos. Por isso, Capello diz que o melhor treinador do mundo "o maior dos ladres. E explica: "Porque esfora-se sempre em aumentar os conhecimentos. Vejo jogos ou treinos e procuro sempre roubar qualquer coisa. Quando era jogador, roubei e aprendi com todos os treinadores. Roubei a Herrera a ideia de intensidade do treino, e com Liedholm aprendi que nunca se sabe tudo sobre tcnica. contactando com estes homens, directamente ou pelos seus escritos, que se aprende a pensar futebol. Ou seja, no fundo, os que, enquanto jogadores, tiveram conscincia disso, acabaram, indirectamente, tambm por se licenciarem, na Universidade da relva e do balnerio. Ter sido jogador importante, mas s como base para construir o conhecimento. No livro Futebol Total (1975), Kovacs dizia que, no incio, perguntava se era necessrio aprender pedagogia, fisiologia, biologia, etc, quando tudo no passava de dar pontaps numa bola. O tempo iria o esclarecer: "Hoje afirmo que o que faz o treinador moderno e lhe permite julgar os diversos aspectos do futebol, o valor e fora da sua bagagem e no a qualidade do jogador que foi".

Ao longo dos tempos, o futebol conheceu diferentes tendncias tcticas e diferentes ciclos de poder estilsticos. No contexto europeu, a evoluo histrica reflectiu um secular choque filosfico e at morfolgico (joga-se como se vive) entre o latino "futebol da tcnica" e o anglo-saxnico "futebol da fora". Um choque de estilos hoje esbatido em nome da discutida "globalizao".

Todas estas nuances de movimentao que falmos espelham, afinal, "princpios de jogo":

1. "Dribling and passing game" (1872); o jogo do drible e do passe: "princpio de jogar" atravs de dribles e passes.

2. A "Pirmide clssica": (1930) os onze jogadores devem estar em permanente movimento para impedir o adversrio de adivinhar as suas intenes. (2x3x5)

3.WM (1934) recuo de dois dos cinco jogadores do ataque, que assim passavam a ocupar postos que seriam designados por interiores. Ao mesmo tempo, com o recuo de um mdio centro para o meio da defesa, criando o stopper, enquanto os dois mdios ala flectiam no terreno, ficava desenhado um quadrado a meio-campo. Nasce a partir da alterao da lei do fora-de-jogo.

4. A dinmica da tctica (1954) Apresentado ao mundo pela Hungria frente Inglaterra. Um falso ponta de lana recua no terreno, dando passos atrs no campo, obrigava o seu marcador a subir para o acompanhar. Era ento nesse momento que metia a bola nos espaos vazios, nas costas da defesa inglesa, com esse movimento colocada fora do seu posicionamento habitual, onde, aps velozes diagonais, surgiam em velocidade os extremos fugindo s marcaes e entrando no espao vazio criado na zona central da defesa motivada pelo facto do central ingls ter acompanhado o falso ponta de lana hngaro. Em termos de desenho passa-se do WM para um "MM". Era o nascer do 4x2x4, o mesmo esquema utilizado quatro anos mais tarde pelo Brasil no Mundial-58, embora com particulares nuances estratgicas

5. "Nova dimenso fsica do jogo": (1966) A primeira abordagem de um conceito moderno sobre como a forma de uma equipa deve

integrar conjuntamente a noo fsica e tctica, nunca as dissociando da sua preparao. A sua eficaz aplicao depende da correcta interligao das duas em campo.

6. Futebol Total (1974): circulao de bola, com constantes mudanas de flanco, o clebre "carrossel mgico", e aproveitamento dos espaos vazios. Quando, por exemplo, quem conduzia a bola pela esquerda via que no tinha linha de penetrao, passava-a para um elemento recuado, mais para dentro do campo, para esse homem virar o jogo para a direita, at o espao ser criado. A jogada comea num flanco e acaba no outro. Normas que regem o posicionamento e movimentos dinmico-comportamentais dos jogadores em face das diferentes situaes de jogo.

7.4x4x2 (1978). O meio-campo assume-se como o grande centro da questo tctica, pois nessa zona de jogo que se passa a verificar a maior acumulao do nmero de jogadores. O "futebol do centro-campismo" est ainda ligado, em muitos casos, a "jogos de pares", mas com os novos conceitos da zona interligados com o pressing e o encurtar de espaos que as novas tendncias do jogo se estendem. As equipas procuram jogar em largura e em profundidade tendo como sub-estratgia as constantes mudanas de orientao de jogo. Automatizavam-se movimentos defensivos e d-se mais liberdade aos ofensivos.

8. Os blocos do presente (1998-2008). O tempo para pensar e executar cada vez menor. A tcnica s encontra aplicao se cruzada com a preciso e velocidade. a chamada "intensidade" de jogo. Deixa definitivamente de fazer sentido falar-se em futebol defensivo ou ofensivo. O segredo unir as duas fases at que elas sejam indissociveis a olho nu. Quem fizer melhor, de forma mais rpida e precisa, as transies, ganha os jogos. A diferena entre controlar e dominar um jogo, cruza-se com a noo de quantidade e qualidade de posse da bola.

Na actualidade, existem poucos jogadores com nvel para recriar o chamado perfume de outras eras, onde a bola era tratada com carinho, viajava de p para p levitada pela leveza dos magos que a tocavam e quase pedia msica celestial para acompanhar todos os seus movimentos. Hoje, quando surge um poeta da bola a recriar esses gestos, muitos estudiosos pragmticos logo o catalogam de lento. Iluso de ptica. Pensem

em Zidane, Kak ou Baggio. Nunca denotam nervos ou pressa em campo. A aparente lentido apenas esconde a inteligncia capaz de devolver vida a bola ou a jogada mais moribunda. Para eles, a bola um prolongamento do seu corpo. Lembra o chamado "futebol do cuco" que pe os ovos em ninho alheio. No campo, tambm eles pem a bola em espao alheio, onde outros jogadores a transformam em golo.

Mais do que verdadeiros extremos, quem vemos agora encostados s faixas ou so flanqueadores sem profundidade para ir linha, ou, sobretudo, segundos avanados ou mdios ofensivos encostados a um flanco por imperativos tctico-tcnicos. Esta encruzilhada posicional confunde, porm, muitos talentos e pode, a mdio-longo prazo, turvar-lhes a carreira, pois os grandes lderes nascem e crescem no centro do relvado. nessa zona que se organiza todo o onze, como referncia base da circulao de bola. O flanco fica num extremo do campo, de onde impossvel exercer a autoridade como patro da equipa.

Desta forma, quando se pondera um desses caminhantes das faixas flectir no terreno para exercer o papel de organizador de jogo, notria a falta de cultura de lugar que quase todos evidenciam. Figo, por exemplo, construiu, sem os individualismos excessivos dos extremos do passado, o brilho da sua carreira na faixa direita. Recebe, simula, encara o defesa, passa o p por cima da bola, finta, acelera e executa um mortal cruzamento enroscado para a rea. Perfeito. Quando, em Madrid, tentou desafiar a normalidade, flectindo no terreno, procurando zonas mais centrais, descobriu que, nesse espao, j l estava outro lder, desde o bero, por vocao, Zidane, pois claro.

Neste contexto, a nica dinmica tctico-posicional que pode permitir a um flanqueador-extremo converter-se em mdio centro organizador reside, a espaos, nas diagonais executadas a partir do seu flanco, flectindo no terreno em posse de bola, para, depois, a chegado, soltar a sua capacidade organizativa, em passes verticais que rompem pelo meio da defesa e deixam o avanado isolado num espao vazio, em frente baliza. Uma mortal linha de passe celebrada, no passado, por Laudrup.

Para o recolher, na rea, dever surgir o ponta-de-lana ou outro avanado, tambm concluindo, na recepo da bola, um movimento diagonal. Vendo nos ltimos anos jogar muitas grandes equipas europeias, era possvel descobrir a beleza plstica destes movimentos, quase artsticos, feitos por jogadores como Aimar, Del Piero, Seedorf ou Beckham.

Antes do jogo, entendendo o conceito em termos hbeis, uma equipa , em tese, duas equipas: uma quando defende e outra quando recupera a bola e ataca. O objectivo seria ento uni-las o mais possvel na dinmica de jogo, depois de a bola comear a rolar, at elas quase no se distinguirem e, ento, poder sempre, em qualquer momento do jogo, ser apenas uma equipa. Defender bem para atacar melhor. Atacar bem para defender melhor. E o mundo das transies. Em ambos os momentos, porm, h uma elite de jogadores que teimam viver nesse mundo parte. No primeiro momento, buscam posio. No segundo, com a bola, detonam o seu talento.

Mas tambm h o percurso tctico inverso em campo. Sem grandes mdios-centro, os clssicos n 10, o futebol passou a moldar um novo estilo de "regista", plantado nas costas do ponta de lana, sem a liberdade de outrora, mas com uma astcia tctica maior. Um perfil no qual se reviu Zidane, o ltimo maestro dos tempos modernos. Apesar dessa base gentica, tambm o francs sofreu com essa tendncia que coloca esses gnios numa zona rida do terreno, a meio do meio-campo adversrio, onde os espaos se reduzem e o tempo para pensar rareia. por isso que, para encontrar maior liberdade, muitos aproveitam os breves momentos em que a bola est longe e refugiam-se nas bandas, de onde, face extino dos extremos fixos, partem depois, rumo rea, levando a bola atada aos ps, em direco zona de remate, repetindo o movimento diagonal que, h muito tempo, nasceu como desenho tctico profundo.

No incio dos anos 50, fez furor, pela mo do tcnico brasileiro Flvio Costa, a chamada Diagonal, no fundo apenas uma corrente do velho WM, que derivava de uma espcie de asa estabelecida entre um defesa, um mdio interior e o ponta de lana recuado. Era um movimento geomtrico desenhado pela bola, variando todo o jogo da equipa em torno dessa diagonal feita de forma a rasgar meio-campo e defesas contrrias, atravs de uma ou duas sucessivas linhas de passe, efectuada entre trs jogadores: Bigode, Zizinho e Ademir.

Em campo, podia-se observar uma disposio que proporcionava o lanamento de ataques, partindo do defesa-esquerdo e terminando no extremo-direito, com o natural avano do interior-esquerdo. No caso da jogada partir do outro flanco, o esquerdo, dava-se naturalmente o inverso da deslocao dos jogadores. Era como um sentido de passagem obrigatria no jogo. S mais tarde, porm, quando os jornais comearam a publicar desenhos da distribuio dos jogadores em campo que as pessoas passaram a entender melhor este esquema. Ademir e Zizinho estavam apontados em campo para a meia direita, mas depois moviam-se e Ademir fixava-se como avanado centro, enquanto Zizinho ficava como meio-armador. Como defesa-esquerdo, numa linha de "3", ficava Bigode. No era, portanto, bem um sistema, mas antes uma estratgia de movimentao da bola e dos jogadores em campo. Hoje, obra de um jogador sozinho.

3. Mundos paralelos

Danando com a bola, o futebol como ballet.

O futebol uma linguagem universal com vrios dialectos corporais. Cesc Fabregas e Tmara Rojo vivem os dois em Londres. Espanhis famosos na capital da Velha Albion. Ele futebolista do Arsenal. Ela primeira bailarina do Royai Ballet. Pode parecer que vivem em mundos muito distantes. Futebol e dana. Mas estaro estes dois universos assim to separados? O que faz do futebol uma linguagem universal a expresso

corporal dos seus intrpretes. Cada qual com o seu estilo. Quando Cristiano Ronaldo arranca desde a sua rea at adversria, a sua cumplicidade em velocidade com a bola, combina dana, fora, alma, tcnica e instinto. Fabregas, mais cerebral, em vez da velocidade pura, esquiva-se ao choque. Dana mais com o pensamento do que com o instinto. Nunca tinha visto um espectculo de ballet na sua vida. Tmara tambm nunca vira um treino de futebol. Quando o fazem, conhecendo balnerios e diferentes equipamentos, entendem como so mundos que se tocam.

Os dois, Fabregas, futebolista, Tmara, bailarina, baseiam todo o seu trabalho no mesmo instrumento corporal, os ps. O futebolista com "chuteiras". A bailarina clssica com umas sapatilhas prprias. Em ambos os casos, desenhadas em modelos personalizados para os seus ps. Tmara treina nove horas por dia. Fabregas, menos, hora e meia. Diferente, o tratamento das leses. Para uma bailarina partir o metatarso, no nada. Para um futebolista afasta-o por meses. Rooney ia perdendo o Mundial por causa disso. Nessa altura, nos vestirios do Royai Ballet, conta Tmara que as bailarinas riam-se da gravidade dessa leso.

Toda esta histria faz-me viajar ainda mais pelas belezas secretas do futebol. Mozart, Simply Read ou Pixies. Cada jogador ter a sua banda sonora. A est a dana. Com a bola. O maior elogio que vi fazerem a Cruyff foi quando o definiram como o"Nureyev do futebol". Sobre Cristiano Ronaldo, existe quem questione a forma estranha dele correr. Com os ps meios para fora, quase como Chaplin jogando futebol em projeco ainda mais acelerada, como um pato gigante com bola. Faltou ensinar-lhe a correr quando era mido para hoje ser ainda melhor, dizem alguns tericos. Estranho. Garrincha era o desequilbrio perfeito a jogar futebol. Um enigma para muitos mdicos para quem ele nem devia poder andar, quanto mais correr e fintar. Era a negao do corpo de atleta. Mas ningum fintava melhor do que ele. Tinha o joelho esquerdo virado para o lado de fora e o direito virado para dentro. Oscar Scaglietti, mdico desse tempo ops-se ferozmente a que ele fosse operado: "Eu at recomendo uma cirurgia, mas s depois dele abandonar o futebol. Antes, tal s poderia comprometer seus dribles maravilhosos".

Existe uma forma cientificamente correcta de correr? S existe uma forma certa de danar? Talvez, mas cada um fabrica a sua, cada um descobre a sua frmula certa. nica. De forma selvagem. No se trata aqui de movimentos tcticos ou cenogrficos. Fala-se de danar com a bola, onde os impulsos corporais devem fluir cruzados com o atrevimento individual e o instinto do talento. Recordo a histria de Garrincha e penso no nosso mgico. OK, ensinem Cristiano Ronaldo correr, mas s depois de deixar de jogar. Agora, essa correco s podia comprometer o seu futebol maravilhoso.

O futebol, em qualquer poca, esconde muitos rostos. Todos diferentes. Mundos que se cruzam como se fossem um refgio de lendas e sonhos. Uma forma de entrar numa espcie de quinta dimenso, onde real e imaginrio se confundem ou coexistem pacificamente sem ser possvel distinguir um do outro. A velha Inglaterra, com seus mitos, uma das maiores babilnias futebolsticas. Dentro e fora do relvado. Para quem gosta do futebol em estado puro, o seu estilo sempre teve a fora de uma ideia que, atravs das pocas, resistiu aos invasores estrangeiros. O novo sculo chegou, no entanto, com um esprito diferente. O grande feito continua a remontar a 1966, mas nenhum daqueles jogadores tinha a fora da imagem para os tornar em cones. Bobby Charlton era meio careca, algo que tentava disfarar puxando cabelo do lado para o meio, Stiles tirava a dentadura antes de entrar em campo. Perfil de gal, talvez s Bobby Moore, mas, mesmo esse, era demasiado penteado numa poca em que os Beatles ditavam moda. Ver um jogo da Inglaterra , no entanto, um acto de cultura futebolstica suprema.

Alemanha, Mundial 2006. Na tribuna, horas antes do apito inicial, no meio de um opparo buffet, tento encontrar alguma face que, mesmo devorada por alguns anos, me faa regressar ao passado em que o futebol ingls era, para mim, como um mundo de lendas. Mais de quarenta anos depois, Bobby Charlton continua a tentar disfarar a careca da mesma forma. Alan Smith, outra girafa da infinita casta de pontas de lana ingleses inestticos, agora comentador. Olho em volta. A busca estava a ficar menos intensa quando, pelo meio da multido VIP, surge um cone do outro futebol.

Seguranas em seu redor, olhares que se voltam. Gelsenkirchen sente o abalo. Victoria Posh Beckham invade e conquista, com passos elegantes em saltos altos, o territrio do futebol lendrio. Extenses no cabelo, corpo bronzeado esculpido, nariz que parece desenhado com um lpis fininho. Come fruta e bebe coca-cola. o outro futebol ingls. Em campo, o verdadeiro Beckham inicia o aquecimento. Cada gesto seu uma foto de capa de revista. Os seus cruzamentos enroscados que, como dizia Valdano, at permitem ver o preo e a marca da bola quando ela vai no ar so das coisas mais fascinantes do futebol actual, mas a fora da imagem consumiu os novos tempos. Embora em locais opostos, a imagem dos dois continua a fazer parte da mesma encenao. Durante as transmisses televisivas, as suas imagens, um no relvado, outro na bancada, sucedem-se, mas ningum entende essa alternncia como algo que foge do jogo. Eles fazem parte do mesmo jogo iconoclasta.

Durante vrias pocas, Beckham conseguiu o sonho de, ao mesmo tempo, ter o melhor carro, a mulher bonita, marcar a moda e continuar a ser o melhor em campo. Nos ltimos tempos, porm, abandonou a inteno de continuar a conciliar a ltima. Assumiu-se como uma popstar e na hora de decidir o futuro, aos 31 anos, em vez de ouvir Galliani que o queria no Milan, ouviu Tom Cruise e assinou pelo LA Galaxy. Ele e Victoria, claro. Em vez da posio em que vai jogar, fala-se da manso que vai comprar. Em vez dos jogos, fala-se dos locais que vai frequentar. Nas sadas dos treinos, acena e sorri a quem olha para ele. Nem por um segundo perde a noo da imagem. Penteado na moda, calas Dolce e Gabbana e um toque de Versace. O perfil ideal na antecmara de Hollywood. Ainda estar verdadeiramente ali um jogador de futebol? Esqueam. Beckham mais do que isso. Ningum como ele entendeu, na plena dimenso, o que hoje futebol e showbiz. Uma popstar com a bola nos ps. Uma cultura iconoclasta que deixou o futebol puro e selvagem para trs. Uma hora depois do jogo terminar j a caminho do parque, a nova face do outro futebol ingls volta, porm, a invadir o territrio das lendas. So seis, sete, ou oito seguranas. No meio, Posh, agora com uns enormes culos de sol, abandona o estdio. Atrs dela, disseram-me, seguia Pierluigi Colina. No o vi.

Vasculho jornais velhos e vejo, datada de 1958, uma foto de Joy Be-verley, namorada de Billy Wright, antiga estrela inglesa desse tempo, vendo um jogo, na tribuna do Wolverhampton, junto com as suas colegas das Beverley Sisters, onde era vocalista. A relao entre jogadores e popstars no , portanto, nova, mas ningum como o casal Beckham simboliza hoje de forma to perfeita a teoria de Roland Barthes quando escreveu em "Cmara Clara" que o que difere a sociedade actual das de antigamente, que estas, ao contrrio da presente, consumiam crenas e no s imagens.

A importncia de ser o centro do mundo

No fundo, tudo passa sobretudo por entender que uma equipa de futebol um ecossistema onde cabem diferentes espcies de jogadores. Cada qual com a sua forma de vida. Cada qual com a sua misso.

Sacha Guitry dizia que "quando se ouve Mozart, o silncio que se segue tambm de Mozart". Penso nessa frase vendo jogar Cristiano Ronaldo, Messi, Ronaldinho, Quaresma ou outro geniozinho do futebol dos nossos dias, quando, aps cada uma das suas maravilhas com a bola, regressam para trs a passo. o silncio dos gnios depois da msica da sua jogada. Deveria, dizem os crticos, ser da equipa. Ou seja, para alm de atacar, tambm devem defender para crescer tacticamente. Para serem jogadores "completos". Uma definio estranha. Virem a equipa e seus personagens do avesso e pensem no pndulo tctico das equipas, estilo Makelele, Xavi, Assuno ou Carrick. Cortam e passam. Nunca ningum ouviu, no entanto, dizer que para serem jogadores "completos" tambm tm de ir frente fazer golos e fintas fantsticas. Diro que diferente. Que natural exigir a perfeio aos gnios. De acordo, mas como definir essa perfeio no futebol?

No fundo, tudo passa, sobretudo, por entender que uma equipa de futebol um ecossistema onde cabem diferentes espcies de jogadores. Cada qual com a sua forma de vida. Cada qual com a sua misso. na sbia conciliao dessas diferentes formas de expresso tcnicas e tcticas

que cada jogador tem, que um treinador consegue o equilbrio entrelinhas que tanto busca. Basta recuarem para trs da linha da bola e o equilbrio tctico est protegido. por isso que no acredito na diviso entre futebol ofensivo e futebol defensivo. O que existe futebol equilibrado, harmonioso. esse o verdadeiro bom futebol colectivo. Com tcticos e artistas. Com gnios e jogadores normais. Todos "completos" ao seu estilo.

Mozart era um gnio. Ouvimos a "Flauta Mgica" e nos segundos seguintes apetece fechar os olhos e saborear os seus acordes. Como um arrepio que percorre o corpo. Com Cristiano Ronaldo, Messi, Ronal-dinho, Quaresma, igual. Depois de vermos umas das suas fantsticas jogadas, a seguir no combina v-los a perseguir um adversrio para fazer um corte de carrinho a meio-campo. Pensem nisto na prxima vez que os virem jogar e, se possvel, quando eles pegarem na bola, tirem o som da televiso e ouam Mozart. Sejamos realistas. Exijamos a perfeio.

Conta a actriz francesa Juliette Binoche que uma das raras vezes em que discutiu com um realizador foi quando, durante a rodagem de um filme, algum lhe pediu, numa cena, para se deslocar um pouco para o lado de forma a poder ver-se um jarro que estava atrs. "Era s o que faltava comparares-me a um jarro. Se quiseres que ele se veja, levanta-te, pega nele e muda-o de lugarf. No sei o que ter feito o realizador, mas com essa simples resposta, Binoche colocava, afinal, as coisas no seu devido lugar. Quem faz o filme o actor, no a disposio dos adereos, por mais valiosos que estes sejam. At os figurantes o entendem. No futebol h muitos realizadores, isto , muitos treinadores, que confundem o essencial e o acessrio. Move-te antes para aquele espao, para que o trinco possa entrar melhor pelo meio. Cuidado, porque ai eles tem um lateral durinho. Joga antes por dentro. Indicaes e mais indicaes. O jogador, em geral, at aceita, mas, no fundo, est a suceder-lhe o mesmo que bela Juliette. Do-lhe a mesma importncia de um objecto, quando, pelo contrrio, devia ser ele, protagonista essencial, a ditar onde as outras peas, entenda-se jogadores, se deviam colocar. No s coreografia. So questes de personalidade.

Leio uma entrevista de Penlope Cruz onde ela fala de como construir uma personagem, dar-lhe alma e captar bem a sua essncia. Como o papel era de uma mulher de aspecto vulgar, teve de construir a sua forma de andar. Como se trata uma emigrante albanesa em Itlia, teve de estudar o idioma e o sotaque. Para o captar melhor, gravava tudo numa fita e ouvia, ouvia, repetia, repetia. uma construo conjunta com o realizador, mas tem muito de

trabalho isolado. Solitrio. S buscando interpretaes mais complexas e extremas possvel evoluir. Um jogador de futebol tambm passa por processos semelhantes na construo da personagem que representa em campo. Trabalha com o treinador, mas depois h o trabalho solitrio. Como ficar, aps o treino, sozinho, a ensaiar remates. Livres, em arco ou no ngulo. Robert de Niro tambm dizia que na construo de qualquer personagem, primeiro era selvagem e excessivo. S depois, preciso e controlado. O futebolista cada vez mais se afasta destes princpios. Altera-os, mesmo. E com isso, deixa de fazer sentido, quer o papel que representa em campo, quer a sua essncia individual. Em ambos os casos, fala-se em criar hbitos sem os tornar mecnicos. Fala-se em colocar a criatividade na tarefa que se tem de cumprir. O treinador ou o realizador definem o guio. O jogador ou o actor descobrem o caminho.

No filme "Poderosa Afrodite" existe, a certa altura, uma cena em que a personagem de Woody Allen se assusta e foge de uma briga a toda a velocidade. A sua companheira, Mira Sovino, diz-lhe espantada: "No quero acreditar que afinal sejas um cobarde!. Woody Allen fica embaraado, mas

responde-lhe: "Sim, bem, mas, na realidade, s em casos concretos..." Durante um jogo de futebol legtimo que qualquer equipa passe tambm por diferentes situaes. Mesmo as mais poderosas. Numas cheios de confiana, noutras mais receosos. normal. Numa pessoa, como num colectivo. O importante mesmo definir bem quais os momentos concretos em que deve colocar o receio como catalizador das suas atitudes. No final dos campeonatos costume surgir a questo se o campeo deveu-se mais ao mrito prprio do que ao demrito do adversrio. Existe a ideia de que a superioridade moral de um campeo s possvel jogando sempre bem, deslumbrando, sem medos. No verdade. Tambm h tempo para sentir medo. Faltam poucos minutos para o fim e ganha s por 1-0. Em vez de adornar com a bola, sai um chuto para a bancada. "No posso acreditar que aches bem teres feito isso", diro alguns. "Bem, na verdade, s o fao em casos concretos, ouve-se como resposta. O futebol tem, de facto, muitos rostos.

Quando o realizador francs Luc Besson montou o seu filme de fico cientfica "O quinto elemento", o anncio para o casting dizia procurar "Mulher de beleza supraterrena e aparncia csmica" no horizonte de encontrar o ente humano perfeito e redentor. A eleita acabou por ser uma ninfa de beleza perturbante com antepassados eslavos, nascida em Kiev da unio entre uma actriz russa e um pediatra jugoslavo. Durante o tempo em que durou o simples abrir e fechar dos seus hipnticos olhos azuis, Milla Jovovich descobriu as chaves do paraso. Passou a desfilar felinamente a coleco Versace e no filme seguinte incorporou a vida de Joana D'Arc, a herona francesa que ardeu na fogueira. Com apenas duas dcadas de vida, bastou outra forma de olhar para sentir o mundo a seus ps. O mundo do futebol tambm fica mais feliz quando descobre novos talentos. A pressa de descobrir novos heris supra-terrenos e de aparncia csmica enorme. Uma obsesso. Todas as grandes competies deviam ter no seu lanamento o mesmo anncio que o filme de Besson. O problema entender que, nos relvados, raramente esse "casting" de gnios encontra um protagonista ideal para os modernos filmes de futebol.

Os Rolling Stones continuam a rolar. Em grande. Diz Keith Richards que, nos seus piores pesadelos, est no palco e os riffs das msicas confundem-se. Start Me Up torna-se Brown Sugar que, sucessivamente, se torna Jumpin^Jack Flash. Tudo no concerto so s variaes sobre um tema que como que ganha vida prpria em palco e, depois, confunde-se com outros. As tcticas e os sistemas no futebol tambm nascem diferentes. Depois, inicia-se o jogo e comeam a ganhar vida prpria em campo. De repente, o 4x3x3 torna-se num 4x4x2, que, logo a seguir, torna-se num 4x5x1. Tudo em 90 minutos so s variaes sobre um modelo de jogo que no relvado se vai expressando de formas diferentes. No um pesadelo, mas pode tornar-se se essas mutaes no forem bem interpretadas. Diz Keith Richards que o mais difcil descobrir como comear uma cano. Para o treinador, definir a estratgia para o jogo tambm o momento decisivo. Mas se, como diz a alma dos Stones, nove em cada dez vezes inventa qualquer coisa, e no falha, num jogo de futebol, pensando em muitos jogadores e treinadores, essas invenes no tm o mesmo gnio. Nem podiam ter. A capacidade para domar uma arte, passa muito por no recear que ela ganhe vida prpria. De um grande concerto a um grande jogo de futebol. Usar o instinto e a experincia para encaixar nas suas mutaes.

Mulheres de Futebol

Seleco feminina de futebol do Iro, 2005; adepta Iraniana, Alemanha 2006

Quando estive em Frankfurt, tinha as imagens de Sahi e Babri na memria. Imaginava como seriam e se tambm estariam ali. Sem burkas ou chadors, mas em ocidentais mini-saias. Gosto de acreditar que me cruzei com elas. Afinal, todas eram como elas. H quem acredite que a vida um pacto entre o real e o imaginrio.

quase impossvel imaginar uma solido mais terrvel do que a de um homem perdido no deserto sabendo como ser impossvel encontrar a a gua que lhe garanta no morrer de sede. A solido pode ter, no entanto, vrios rostos e atmosferas. Sima Babri tem uma imagem de Winnie the Pooh a danar no seu telemvel, vislumbra-se que usa De-nim jeans e cala tnis, mas o chador, o largo rectngulo que lhe cobre o corpo oculta o resto da sua existncia feminina, expressa numa face em traos de eterna suavidade como o leno que flutua na sua cabea e deixa, cmplice, algum do seu cabelo preto esvoaar livremente.

Teero uma cidade para ser entendida em passos lentos. Babri uma mida de 21 anos. Um dia decide mudar de visual. Por entre 14 milhes de almas, disfara-se com roupas de homem, pinta na cara as cores da bandeira iraniana, verde-branco-vermelho, e ruma ao Estdio Azedi (que significa liberdade em iraniano) para assistir a um importante jogo da seleco do Iro depois de passar os ltimos trs dias atrs do gradeamento, porta do Estdio, na esperana de ver um pouco do treino. Babri podia tambm chamar-se Sima Sahi, e ter s 17 anos, como a personagem do filme Off-side do cineasta iraniano Jafar Panahi. Ambas ousam olhar o mundo com sentimentos indecifrveis luz do Coro. Assistir a um jogo de futebol. Desejo proibido, desde a ecloso da revoluo islmica em 1979, s mulheres iranianas, impedidas de assistir a jogos de futebol, espectculo violento e incontrolvel, nas palavras do supremo lder iraniano Ayatollah Ali Khamenei, onde poderiam ver expostas pernas de homens estranhos e ouvir a linguagem condenvel da multido.

Sima foi descoberta quando estava quase a entrar no Estdio por um jovem soldado mais atento. Depois de largar o telemvel, levada para um espao reservado junto ao Estdio, onde se junta a outras cinco midas com os mesmos sonhos de futebol. Cada uma delas tem uma identidade prpria definida. Uma fuma muito e fala num tom desafiante. Outra, meiga, suplica docilmente que a deixem entrar. Outra avisa que o pai membro com patente superior no exrcito.

Durante o jogo conseguem saber o que acontece em campo atravs de um jovem soldado que o espreita mas, como no gosta de futebol, tem muitas dificuldades em explicar verdadeiramente o que se est passar. No filme, que romanceia a realidade, elas conseguem escapar, perto do final, quando o pr do sol envolve o campo quase num lusco-fusco, e assistir aos ltimos cinco minutos do jogo. Na realidade, apesar da tentativa dos guardas em impedir a entrada, pelo menos cem mulheres, pela primeira vez em 26 anos de histria da revoluo islmica, assistiram, juntas, ao jogo que terminou em festa, com a vitria do Iro sobre o Bahrain e apuramento para o Mundial.

Quando estive em Frankfurt, em Junho de 2006, no dia em que Portugal defrontava o Iro, tinha as imagens de Sahi e Babri na memria. Imaginava como seriam. H quem acredite que a vida um pacto entre o real e o imaginrio. Nas ruas no se vislumbravam, no entanto, burkas ou chadors. Em vez desses longos mantos que lhes cobriam o corpo, as mulheres iranianas exibiam-se em ocidentais mini-saias. Em vez de chinelos, taces altos. Mas havia o olhar... Olhos negros, rasgados por traos de eyeliner preto. A sua beleza hipnotizava porque parecia que nos olhavam desde esse outro mundo, da mesma forma que vemos os olhares daquelas mulheres que, embora sem maquilhagem, penetram-nos com a mesma intensidade por uma brecha do manto negro. Todas abrigam a mesma essncia humana. Embora quase todas elas j no fossem produto desse outro mundo e tivessem crescido partilhando o seu corpo e essncia com a luz do dia, h nelas como que uma metfora da existncia e da beleza escondida de que Sahi e Babri quiseram fugir. Gosto de acreditar que me cruzei com elas. Afinal, todas eram como elas.

Em 1998, Ndia Pizzuti, jornalista italiana, foi a primeira mulher, na histria das terras de Maom, admitida a entrar num estdio de futebol no Iro. Ndia teve, igualmente, de cobrir o corpo de cabea aos ps. Nas profundezas de Teero, as mulheres continuam sem poder assistir a um

jogo de futebol. No ltimo ano, porm, foi criada uma seleco de futebol feminino no Iro. S mulheres podem assistir aos seus jogos ou treinos. O equipamento traduz as mesmas exigncias islmicas em relao ao corpo e jogam, por isso, cobertas da cabea aos ps. Manto na cabea, pernas tapadas, roupas largas e mangas compridas. Um cdigo de vesturio que torna indecifrveis as curvas de um corpo de mulher. Pela primeira vez na sua histria, participaram, este ano, nos jogos asiticos. Ficaram em segundo lugar, atrs da Jordnia, que jogou com equipamento normal, de cales. A derrota na final foi a maior vitria de uma gerao.

Na alvorada do Sc. XXI, as guerras abandonaram as ideologias e passaram a ser um choque de civilizaes que se espelha atravs de diferentes contornos. Das ruas de Teero, com burkas e longos mantos negros, ao calor de Frankfurt, em mini-saia e roupa ocidental, existe um abismo a separar os dois mundos. Um mundo de homens que, como cantou James Brown, no seria nada sem uma mulher ou uma rapariga.

4. As ltimas fronteiras

Ter sido s por breves instantes mas acredito que, no Vero de 2007, o ideal grego que ambicionava a perfeita harmonia entre o corpo e a mente ter sido atingido em Londres durante a apresentao do novo patrocinador do Arsenal, uma conhecida marca de relgios suos de luxo. Lado a lado, uma dupla de sonho, esttica e futebolisticamente falando. Thierry Henry e Gisele Bundchen. Aparentemente personagens de mundos to distantes, aproximaram-se quando a modelo brasileira se levantou e, ao lado do futebolista gauls, ensaiou, de saltos altos, um ou dois pontaps numa bola de futebol. Todos de belo efeito, naturalmente. Quem disse, afinal, que a perfeio era impossvel no futebol? Poucos dias depois, Henry abandonava Londres e assinava pelo Barcelona para se juntar a Ronaldinho, Eto'o e Messi. Todos no mesmo onze. Depois do remate de Gisele, muitos disseram que estava criado o habitat perfeito para o esplendor do sexy football. Mas ser possvel, num prisma tacticamente racional, conciliar estes quatro feiticeiros na mesma equipa? Pois bem, um desafio aliciante. Tornar ganhador um ideal de beleza terico.

Os quatro vivem, no relvado, do meio-campo para a frente. Vagabundos. Mgicos. Experimentem, ao v-los jogar, seguir s a bola. Nos ps de qualquer um deles, ela mais parece uma lebre correndo solta, saltando obstculos por entre a floresta. S assim faz sentido o futebol destas estrelas. difcil dizer em que posio jogam exactamente. Umas vezes so alas, noutras pontas-de-lana, depois extremos, a seguir mdios-ofensivos. Atrs deles, imaginamos os mdios mais defensivos. Estilo Deco e Xavi ou YayaTour, dupla de recuperao e transio frente do quarteto defensivo, com os laterais mais presos. Tento esboar o esquema no papel e lembro-me de uma ideia que ouvira numa palestra de Carlos Alberto Parreira. O futebol caminha em direco ao 4x6x0. Quatro defesas e, depois, seis jogadores, com crebro, imaginao, e, claro, condio fsica, para encher o resto do campo. Com ou sem bola. Continua a existir uma definio de misses mas, em termos posicionais, perde-se rigidez e aumenta a amplitude perifrica. Os adversrios deixariam de ter referncias precisas de marcao. Ser este, com maior ou menor magia, o futuro tctico do futebol? Talvez. Como seria um onze com Rivelino, Tosto Jairizinho e Pel, protegidos por Gerson e Clodoaldo. Nomes familiares? Claro que sim. Eles foram o "6" do Brasil de 70. Afinal, sempre possvel conciliar obras de arte, com razo tctica, emoo tcnica e inteligncia superior com vida prpria. E, nesse admirvel mundo novo, o estilo de Gisele ser sempre mais do que uma utopia do momento.

12 de Outubro de 1937. Estreia de Fernando Peyroteo no Sporting. Est quase a fazer 70 anos. Para comear, um Benfica-Sporting. Nas Salsias. No seu belo livro de memorias, conta a velha gloria leonina, que antes do jogo as pernas lhe tremiam como varas verdes. Todos brincavam com ele, mas um homem mantinha-se calado. O treinador. O velho "Mister" Szabo. Pouco antes de entrar em campo, falou equipa: "Sinhores, a avanado-centro jogar Fernando. Rapaz novo, no ter experincia de jogo. Sinhores mais vlios ajudar ele, bem d clube. No fazerem malandragem. Brincadeira custar dez-per-cente para sinhores." Falava assim mesmo, num portugus desengonado mas engraado, de quem tinha vindo de longe. Depois chama Peyroteo parte: "Sinhor Fernando, no prtubar com jogo. No ter importncia jogar mal. Dificuldades a campo para emendar no treining. Eu ver uns, sinhor sentir outros e tera-feira corrigir dez, cinquenta vezes e tudo ficar bem. Defesas irem dizer coisas muito feitas, jogar com algodn nos ouvidos, no engolir isca. No esquecer principal de avanado-centro: rematar, rematar. Bola junto d poste, longe de guarda-redes, como fazer no treinin!.

Os tempos hoje so outros, mas, vendo bem, a essncia do jogo permanece a mesma. O treinador falar de forma diferente com o seu ponta-de-lana, mas os passes, o controlo emocional, o treino e os remates continuam l. Michael Jordan diz que o melhor treinador que teve na carreira foi Deam Smith, ainda na Universidade, porque lhe ensinou a importncia do bsico. Ou seja, ensinou-o a descobrir os fundamentos do jogo. No futebol igual. Em 1937 como em 2007, a grande preocupao de um treinador deve ser que essas bases, individuais e colectivas, nunca se percam.

Para mim, o futebol superior parte de um conhecimento real do jogo. Os bons jogadores e treinadores percebem esta ideia. Trabalhar a tcnica desde as bases. Controle, passe, remate, desmarcaes. No fundo, um

jogador sente-se melhor numa equipa que lhe permite____jogar, do que

noutra que tem ponto de partida nas amarras e na disciplina tctica prisioneira. Tctica e disciplina so duas palavras que no combinam. Devia dizer-se antes inteligncia tctica. Todos os jogadores, nesse sentido, so livres para, conduzidos pela inteligncia, poder tocar a bola, mudar de flanco, fazer tabelas, inventar jogadas e combinaes. Existe um conceito bsico no qual se determina que quem deve correr quem no tem a bola. Assim, o seu portador nesse momento, olha em seu redor e descobre sempre trs ou quatro opes de linhas de passe. Como o Brasil de 82. Como o melhor Arsenal de Wenger. Ter a bola e toc-la com preciso e mobilidade. Dizem que no tm extremos e por isso ocupam mal os flancos. Pura iluso. Como conhecem e dominam to bem a essncia do jogo, ocupam as faixas alternadamente. L est, a inteligncia tctica outra vez. Se, depois, adicionar a estes princpios dois bons laterais, o bom futebol est desenhado.

Os mdios so fundamentais nesta filosofia. Alargar e encurtar o campo (isto , a distncia entre a linha mais recuada e a adiantada) quando mais oportuno. Recordo-me daquele maravilhoso Real Madrid dos anos 80. O da Quinta dei Buitre. Sanchiz, Michel, Martin Vasquez e Butragueno. Depois juntaram-lhe a Quinta dos Machos, leia-se Gordillo, Maceda, Valdano e 40 golos de Hugo Sanchez. Como jogavam. Como fintava El Buitre. Foi o nico jogador na vida que vi fintar parado. Arrancava com a bola e travava. Voltava a arrancar e voltava a travar. Chegava a faz-lo dentro da rea. Nessa altura fica quase esttico frente ao defesa que o marcava. Braos em baixo, bola a seus ps. Esttico. Tudo suspenso no Estdio. De repente, finta seca, para um lado ou para outro, espao descoberto, remate, passe ou golo. Eram jogadores que gostavam de futebol. De ver e jogar. Cruzando os conceitos do passe e do golo. Por esta ordem. A essncia do jogo est no passe, no no remate. Passes matemticos. Se forem uns centmetros mais ao lado, o defesa intercepta-os. Se tiver de eleger um embaixador deste conceito de futebol, o nome Laudrup. Olhava para um lado, e colocava o passe noutro. Tinha olhos por todo o corpo. A disciplina tctica no permite isto. A inteligncia tctica, sim.

5. A serpente e a bola

O poeta Jaime Gil de Biedma dizia que h duas formas de um homem se fazer notar. Uma fazendo algo de grande, outra fazendo algo de diferente. Quando consegue reunir ambas no mesmo tempo e espao, acaricia a imortalidade.

O driblador, dcil e mrbido, aproxima-se de mansinho. As suas chuteiras parecem feitas de veludo: a bola parada, submissa a seus ps e os defesas fixando-o com a cara aterrorizada pela dvida: ser que vai fintar para a direita? Ou ser para a esquerda? Um dilema imposto por um intruso mgico, impertinente e rebelde, mas que apesar de sempre adorado pelo pblico, hoje como uma ironia nos labirintos do futebol actual, onde, insubmisso, ameaa a ordem colectiva.

H uns tempos, falando sobre futebol, Kopa resolveu assim o eterno debate sobre a sua abordagem esttica: " Um grande driblador e tudo muda . Do alto da sua autoridade artstica, o artista gauls dos anos 50, definia, sublimemente, o buraco da fechadura por onde, atravs dos tempos, a arte, apesar de todas as amarras tcticas, sempre penetrou nos relvados. Um grito de rebeldia de magos do drible, expresso desde Stanley Matthews e Garrincha at Ronaldinho e Cristiano Ronaldo, passando por muitos outros feiticeiros, como o nobre da gambeta Vicente De la Mata, estrela argentina dos anos 30/40, de quem juram os velhos jornalistas, nunca terem visto fazer um passe, sem antes driblar, pelo menos, dois adversrios. Na bancada ou a caminho do Estdio, os adeptos cantavam: A donde va la gente?... A ver Don Vicente!, ou La genteya se mata, por ver a De la Mata!.

Os dribladores sempre cativaram as emoes e o imaginrio dos reais adeptos do futebol feito sentimento. Neles est a mais clara ruptura com o futebol-msculo, o som das trombetas de Jerico que derruba qualquer muralha tctico-defensivo erguida pelos pragmticos treinadores do presente. Mas, atravs dos tempos, o futebol foi reduzindo, progressivamente, o espao para os seus grandes craques, dribladores ou organizadores. Com o tempo, ganhou msculo e mudou de forma. Mesmo assim, ainda h uma elite de mgicos que renem, no corpo, os encantos de dois tempos. Ronaldinho, Messi ou Cristiano Ronaldo. Eles so dribladores dos tempos modernos, treinados para, como toda esta velha casta mgica, no fazerem sempre um drible a mais. Um pedido inglrio, pois como diria Arthur Miller "resiste-se a tudo menos a uma tentao". No contexto modernizado do jogo, seria difcil encontrar hoje um treinador como o saudoso Albert Bateux, que, nos remotos finais dos anos 50, quando em Reims a crtica comeou a dizer que Kopa se agarrava demais bola, logo saiu em sua defesa, ameaando tir-lo da equipa se ele... parasse de driblar. Sbio e apreciador de arte, o pai do futebol francs tinha, pura e simplesmente, percebido que o drible era a arma essencial que moldava o belo futebol do Napoleo da bola.

Quando se fala em grandes dribladores inevitvel falar-se de Garrincha. Conta-se que uma vez, quando treinava o Botafogo, Aimor Moreira chegara ao treino decidido a incutir maior disciplina na equipa que, dizia, "driblava demais". Para tal colocou no relvado uma cadeira assinalando o lugar onde se devia obrigatoriamente centrar. Estavam todos os jogadores a cumprir o pedido quando chegou a vez de Garrincha e logo toda a lgica foi quebrada. Na hora em que chegou perto do objecto, Garrincha driblou a cadeira e tudo, centrou com a perna torta e colocou a bola na cabea do avanado. Moral da histria: apesar da tctica ser a personalidade da equipa e definir o seu estilo de jogo, ser sempre o gnio do jogador a resolver os jogos. Nenhuma vive, porm, sem a outra, dentro do relvado e de um jogo colectivo como o futebol.

O futebol evoluiu, certo, mas no ao ponto de se renunciar magia dos dribladores para lhe introduzir o trao de imprevisibilidade, capaz de levantar o Estdio e desembrulhar o jogo mais fechado. O problema que o dramtico futebol actual j no os entende, pois, num tempo em que todos jogam com o corao nas mos e, usando um termo indispensvel a qualquer equipa, em pressing, eles permanecem relaxados, tranquilos, driblando com a mesma naturalidade como respiram. E, depois, regressam para trs a passo.

Mitos foram Di Stefano, Pel, Cruyff e Maradona. Craques foram Eusbio, Charlton, Platini, Zidane e Romrio. No presente, Ronaldinho vira sozinho jogos de pernas para o ar, mas, em campo, ele muito mais do que um rebelde individualista, pois o seu talento tem subjacente uma ordem tctica nas suas costas. Ele consegue desequilibrar, porque, atrs de si, tem relgios de cuco (Marquez, Deco ou Xavi) que fazem os pilares

- entenda-se segurana- da equipa. Da mesma forma que Zidane era muito melhor jogador quando tinha Makelele atrs de si, Ronaldinho ou Messi podem soltar esse talento com outra liberdade responsvel, porque tm nas costas aquele trio tctico. No jogo de iluses tctico-posicionais, o facto destes talentos jogarem nos flancos trocados, o destro na esquerda, e o canhoto na direita, aumenta o trao de imprevisibilidade. Causa, tambm, maiores dificuldades aos seus marcadores mais directos

- o lateral e o mdio interior do flanco respectivo - pois quando avanam com a bola dominada, em drible ou comeando a flectir, puxam a bola para dentro, onde est o seu p favorito, e obrigam os marcadores a fazerem a cobertura, ou tentar o corte, com o seu pior p, numa posio contra-natura.

O futebol entrou numa era em que o seu factor de evoluo primordial passa, essencialmente, pela interligao de vrias noes conjuntas do jogo. Quer a nvel da posse e do passe, quer a nvel do tempo e do espao. Com ou sem bola. Mesmo assim, difcil filosofar sobre o significado da frase jogar bem futebol. Todos ns, amantes do belo futebol, partilhamos recordaes emocionadas sobre grandes equipas e seus jogadores. Jogos e lances inesquecveis, apenas porque realizaram os nossos sonhos de futebol, a iluso de ganhar e jogar bem. Mas, afinal, como se poder explicar, em tese, e tendo em conta a evoluo dos tempos, esse conceito sagrado de jogar bem?

Menotti, mais do que um simples treinador, algum que desde h muito passeia pelo mundo vendendo uma ideia de futebol belo e ofensivo, pois, como gosta de dizer, "atravs da forma de jogar das minhas equipas, eu falo da sociedade em que gostaria de viver". Por isso, todos se assustaram quando o ouviram dizer que Makelele entendia muito melhor do que Ronaldo o conceito de jogar bem futebol. No fundo, a questo lanada por Menotti girava em torno do futebol enquanto jogo colectivo. Nesse conceito de jogar bem, cabe o controle do tempo e do espao, saber quando jogar curto ou longo, arrancar ou parar, recuar ou avanar, apoiar a recuperao de bola, marcar e desmarcar-se. Ou seja, resolver o maior nmero de aces no menor tempo possvel. Por esse prisma, no h dvida, Makelele joga mais do que Ronaldo. A diferena est em que Makelele aquilo e ponto final, enquanto Ronaldo pode ser todas as coisas diferentes, explosivas e imprevistas, em cada jogo. A evoluo estilstica do futebol brasileiro prova, para o bem e para o mal, esse conceito utilitrio de jogar bem, no qual a preparao atltica e as novas bases tcticas geraram um novo jogador. Sempre tecnicista, mas mais tctico, estilo Dunga, Zinho ou Mauro Silva, campees do mundo em 94. Esse onze no entraria, porm, na nossa memria emotiva.

Em tese, podem-se destacar cinco princpios que definem uma equipa que joga bem futebol: Primeiro: a relao com a bola independentemente da sua utilizao. Vendo a forma como ela tratada, com tcnica e doura, v-se a sua categoria. Segundo: a quantidade de oportunidades de golo criadas atravs de jogadas elaboradas e no por erros do adversrio ou bolas bombeadas. Terceiro: o controle do ritmo de jogo. Saber quando deve acelerar ou reduzir o ritmo, jogando em ataque organizado ou em contra ataque. Quarto: como defende. S a marcao zona, onde todos dobram todos, consagra a solidariedade indispensvel ao esprito de equipa. A marcao individual apenas visa anular o adversrio. Quinto: E o mais importante: a relao entre a ordem e o talento. Em teoria, a ordem colectiva serve para empatar um jogo. O talento individual serve para o ganhar.

O toque, conceito que, num impulso revivalista, ressurgiu nos dias de hoje. A sua origem mora na Amrica do Sul e, no fundo, mais do que definir, numa palavra, um gesto tcnico que na dinmica do colectivo se traduziria num estilo de jogo, antes descrevia a superioridade tcnica e moral de uma elite de jogadores que, com grande viso de jogo, trocavam a bola, tocando, tocando...

Penso nisso quando passeio na tribuna do Estdio em Nuremberga. O tempo passa lentamente enquanto espero pelo incio de mais um jogo do Mundial 2006. Calor sufocante. Meninas simpticas em traje azul claro conferem as cores das pulseiras VIP. Foi ento que, quase annimo para maioria dos presentes, sobe as escadas, com credencial de imprensa, um homem que, embora h alguns anos afastado dos grandes palcos, solta, no meu imaginrio, um intenso aroma a bom futebol: Pacho Maturana, um treinador colombiano que foi autor de um dos projectos futebolsticos mais atraentes dos anos 90. O Toque. Estilo rendilhado que fazia a equipa avanar em campo em toques curtos e apoiados, como que zurzindo uma teia que envolvia o adversrio. A Colmbia de Pacho Maturana era um poema. Quando me cruzei com ele, ainda tinha essa imagem na mente. Est bem mais velho. Parece cansado. Imaginava-o ainda com o vigor dos anos 90, mas o tempo passa. Os seus ideais tambm entristeceram. J no acredita no toque como ideal revolucionrio. Caiu no mundo real e tornou-se mais um, digamos, treinador do regime. Insiste, no entanto, em dizer que continua com a mesma filosofia. O problema foi que "quando tinha todas as respostas, mudaram-me as perguntas!".

Chamaram o Toque a esse estilo, mas, no fundo, tal traduz-se, muito simplesmente, na utilizao de um dos mais bsicos princpios do bom futebol: posse e circulao de bola. Era o que faziam as fabulosas equipas da Holanda e do Ajax nos anos 70, o divino Brasil de 70 e 82, ou o Dre-am Team de Cruyff no Barcelona de incio dos 90.

O futebol actual tornou-se, de facto, num cemitrio de sonhos para os amantes desse "outro futebol" do toque. Sem pestanejar, muitas equipas e seleces atraioaram a sua gentica futebolstica. Esqueam a arte, portanto. Isto o futebol como ameaa. Por isso, muitas vezes penso que a melhor soluo ser mesmo a de seguir a opo do pai de Pacho. Fechar-se numa casa nos arredores de Quibd, na Colmbia, rodeado de rvores que crescem na terra hmida, e seleccionar as imagens na nossa memria. Na parede, logo entrada, a receber os visitantes, um quadro com uma frase que resume a filosofia dos amantes das causas perdidas: "Bem vindos ao recinto de um loco feliz!".

6. "Wunderteam" a equipa maravilha (1931-1937)

No futebol cada um tem a sua prpria filosofia de interpretar o jogo. Fora, tcnica, jeito e msculo. Definir um sistema tctico , em suma, como distribuir a inteligncia pelos jogadores, os actores em campo.

Todas as grandes equipas da histria do futebol, cada qual na sua poca e dentro das circunstncias e correntes que dominaram a natural

evoluo do pensamento futebolstico, tiveram presente a noo de unio entre ordem e talento. Numa simples interpretao literal das palavras elas parecem inconciliveis ou inimigas. A ordem est para limitar o talento. O talento, esse, est para subverter a ordem. Errado. Ambas esto para o futebol como a moldura e a tela para pintura. Desde sempre. O talento, como a tcnica, no existe no vazio. O driblador quando solta a sua arte, solta-a, no num relvado deserto, mas com outros 21 jogadores, colegas e adversrios, em seu redor. O modelo de jogo um conjunto de referncias colectivas e individuais. As referncias so os princpios de jogo definidos pelo treinador. Ora, ao longo dos tempos, desde o Sec. XIX at ao presente, todas as equipas tiveram referncias colectivas e individuais. Estas ltimas, no entanto, devem estar condicionadas pela ordem/estrutura colectiva. A suprema referncia. Com isto no se entenda, porm, que o jogador um mero robot-intrprete desses princpios. Com bola, em campo, o jogador livre para criar, mas essa liberdade est balizada pelo modelo de jogo colectivo e termina quando choca, ou subverte, a ordem das referncias colectivas. Se, por exemplo o extremo deve receber a bola por "fora", isso no o impede, em certos momentos, quando a equipa bascula ou busca desequilbrios, que a receba por "dentro". Esse movimento no deve, no entanto, subverter os princpios colectivos. Se, nesse movimento, detectar que o lateral subiu ao mesmo tempo pelo corredor, o seu movimento "livre" pode impedir e "matar" a efectivao de um dos princpios que faz o modelo de jogo. Eles so, portanto, apenas referncias de aco. S tendo isto sempre em mente, possvel conceber o jogar em equipa.

Estas preocupaes tambm estiveram presentes, na alvorada dos anos 30, na mente de um homem culto, poliglota, capaz de falar cinco lnguas, que gostava de discursar e fazia-se sempre apresentar com o seu inseparvel chapu de coco. Hugo Meisl. Filho de uma abastada famlia banqueira na Viena do incio do sculo, apaixonado por futebol, interessado em descobrir todos os seus segredos. Viveu entre 1881 e 1937. A sua obra confunde-se com as origens do chamado futebol moderno.

Foi um visionrio, mas, na disposio da equipa em campo, nunca abandonou o sistema clssico de 2x3x5, a pirmide, em aluso ao desenho que a distribuio dos jogadores em campo adquiria. Cedo se perceberia que o seu pensamento estava muito para l de desenhos no papel. Dos jogadores que interpretavam a estrutura tctica de Meisl pode-se dizer que apresentavam as seguintes caractersticas:

A construo do jogo ofensivo pertencia, sobretudo, ao mdio-centro e ao avanado centro, atravs de passes longos em profundidade, lanando a bola no sentido dos flancos (tendo como referncia de direc