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4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
“O PICO DA DISCÓRDIA”:
Conflitos na patrimonialização de um conjunto paisagístico em Itabirito na década de 1960
JUNQUEIRA, THAÍS LANNA
Graduada em História e mestranda em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela UFMG. Rua República Argentina 795/201. 30315490.
RESUMO
A ideia de paisagem cultural é recente nas políticas patrimoniais, tendo sido na década de 1990 que a UNESCO e a Convenção Europeia passaram a adotar a categoria formalmente. No Brasil, as discussões em torno do tema ainda estão começando e a insegurança em se lidar com a chancela de bens classificados como paisagens culturais ainda é grande. Contudo, não se pode negar que a ideia de proteger paisagens excepcionais no Brasil é antiga – ela data da publicação do Decreto-lei nº 25/37, que estabeleceu o instituto do tombamento no país, criando, dentre outros, o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Ao analisar a história de atuação do IPHAN, percebe-se, no entanto, que o tombamento de áreas naturais na categoria Conjunto Paisagístico foi pouco utilizado quando comparado ao tombamento arquitetônico. Um exemplo interessante a ser estudado neste campo é o Pico de Itabirito, formação geológica situada na cidade de mesmo nome, distante 55km de Belo Horizonte, considerada marco simbólico da região. Hoje tombado nos níveis municipal e estadual, o Pico carrega uma história de conflitos dentro do IPHAN, marcada pelos processos de tombamento e posterior destombamento, ambos na década de 1960, nos quais a pressão do setor minerário sobre o governo federal foi fundamental para o desfecho da querela. Com o cancelamento definitivo de sua inscrição no Livro do Tombo em 1967, o bem considerado Conjunto Paisagístico acabou tendo grande parte de seu entorno imediato destruído pela mineração ao longo de mais de duas décadas – o que modificou profundamente a paisagem local –, até que o tombamento estadual, realizado em 1989, reestabeleceu um perímetro teoricamente protegido da atividade minerária. Este episódio se mostra fundamental para refletir sobre as disputas de poder que embasam o campo do patrimônio, as dificuldades que o discurso do desenvolvimento coloca às políticas de conservação patrimonial e ambiental, bem como os pontos frágeis do instrumento do tombamento frente aos interesses econômicos privados e à complexidade de certos bens patrimoniais, que exigem instrumentos mais dinâmicos para sua proteção. Tendo isso em vista, este trabalho apresenta resultados iniciais de uma investigação que procura compreender o desenrolar desse conflito ainda mal estudado da história do IPHAN e sua repercussão na imprensa, analisando os valores, atores sociais e ações políticas em jogo, as resistências apresentadas ao destombamento e contextualizando o entendimento e a aplicação do conceito de paisagem feita à época pelos sujeitos envolvidos.
Palavras-chave: Pico de Itabirito; Conjunto Paisagístico; Destombamento; Conflito; Mineração.
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Introdução
Em julho de 2016, a Pampulha, em Belo Horizonte, foi declarada Paisagem Cultural do
Patrimônio Moderno pela UNESCO.1 Muitos brasileiros talvez não entendam o peso de tal
reconhecimento, e outros sequer compreendam o significado da expressão paisagem
cultural, tampouco as formas de se preservá-la. Isso porque esta é uma categoria
relativamente recente nas políticas patrimoniais, tendo sido aceita profissionalmente nos
círculos da preservação somente na década de 1990 – apesar de ter sido formulada já na
década de 1920, no âmbito da Geografia Cultural. (FOWLER, 2003).
A UNESCO passou a registrar bens do patrimônio mundial na categoria Paisagem Cultural a
partir de 1992 e, desde então, vem incentivando seus Estados-membros a criarem
legislações, políticas e mecanismos de proteção de paisagens culturais em seus territórios.
Em 2009, o Brasil, por meio da Portaria nº 127, regulamentou a Chancela de Paisagens
Culturais, criando, dessa forma, um novo instrumento de proteção, ainda pouco utilizado e
mal compreendido pelos técnicos e pela própria população. Em 2012, nosso país teve “a
primeira área urbana do mundo a receber [da UNESCO] a chancela de paisagem cultural”:
(IPHAN, [201-]) a cidade do Rio de Janeiro – a qual veio se somar, agora, o Conjunto
Moderno da Pampulha. Nota-se, portanto, que este é um instrumento recente, ainda pouco
estudado e que precisa ser melhor compreendido para, assim, ser aplicado de forma mais
eficaz.
Mas o que significa, afinal, o termo paisagem cultural? Para responder a essa pergunta é
possível afirmar, simplesmente, a partir de um compilado de autores que tratam sobre este
tema, que o termo se refere a porções do território que foram agenciados de forma singular
pela ação humana, criando, assim, paisagens onde as interações entre a natureza e a
cultura são fundamentais para a sua conformação, constituindo-se, dessa forma, como
testemunhos da relação do homem com seu meio natural. Contudo, parece ser importante
dizer mais sobre o assunto, propondo outras perguntas que podem ampliar nosso olhar, ao
voltarem-se para as origens do termo central – a paisagem – e auxiliarem, assim, no
entendimento sobre sua aplicação nas políticas do patrimônio: o que é a paisagem e o que
significa dizer que ela é cultural? Qual a sua relação com a natureza e a cultura? Como a
ideia da paisagem é trabalhada na categoria Conjunto Paisagístico, estabelecida, no Brasil,
pelo Decreto-Lei nº 25/37? Como e por que paisagens são alvos de patrimonialização?
Quais valores estão envolvidos neste processo e quais conflitos podem daí surgir?
Com o intuito de registrar algumas reflexões sobre estes vários questionamentos, serão
abordadas, neste trabalho, considerações de uma pesquisa, ainda em fase inicial, sobre um
1 Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.
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curioso episódio, ainda pouco conhecido, envolvendo uma paisagem patrimonializada na
história do IPHAN2: o conflito do tombamento e posterior destombamento do Pico de
Itabirito. Para tanto, a análise será precedida de algumas observações sobre paisagem,
bens naturais e patrimônio, e como isso vem sendo tratado pelo IPHAN ao longo de sua
atuação.
Paisagem, natureza e cultura
O termo paisagem não pertence exclusivamente a um vocabulário científico ou técnico, mas
faz parte no senso comum – todos falam de paisagem e entendem algo sobre o que ela
seja. Talvez por isso é tão difícil definir com clareza este conceito, abrangente e impreciso,
cujo significado está comumente atrelado a noções visuais e estéticas, associado à ideia de
“formas visíveis na superfície da Terra” (CABRAL, 2000, p. 35).
Vários campos do conhecimento tratam da paisagem, com sentidos os mais variados e,
dentro de cada um deles, existem abordagens distintas de acordo com as diferentes
correntes de pensamento. A geografia é a disciplina que tem utilizado o termo com mais
frequência, sobretudo para incorporar a dimensão cultural em seus trabalhos, sendo os
geógrafos aqueles que mais se dedicaram a formular teorias sobre a paisagem como um
conceito científico e a definir metodologias para empreender estudos sobre ela. (RIBEIRO,
2007)
Dentro da pesquisa geográfica, duas abordagens se destacam. A primeira é a da Geografia
Cultural, subcampo da disciplina iniciado pelos alemães Otto Schlütter e Siegfried Passarge,
no final do século XIX, e consolidado por Carl Sauer, nos EUA, na década de 1920. Sua
proposta é estudar a configuração do ambiente para além dos processos naturais que o
conformam, descrevendo e analisando as partes componentes da paisagem, as formas
como elas se agrupam e como a atividade do homem ajuda a transformar uma paisagem
natural naquilo que se denomina “paisagem cultural” (Kulturlandschaft). Sauer criou o
método de análise morfológica da paisagem, o qual considera esta uma estrutura orgânica
de unidades componentes que podem ser compreendidas em sua evolução ao longo do
tempo. Para ele, a paisagem é definida como a “área construída por uma associação distinta
de formas, tanto naturais como culturais” (RIBEIRO, 2007, p. 19), ou seja, o que diferencia a
paisagem cultural da natural é o trabalho de transformação empreendido pelo homem sobre
ela.
2 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Neste trabalho, será utilizada sempre a sigla IPHAN para fazer referência ao Instituto que, desde sua criação até hoje, já teve outras denominações, tais como SPHAN ou DPHAN.
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A segunda abordagem, que se auto intitula Nova Geografia Cultural, surgiu nos anos 1980,
herdeira da corrente humanista da Geografia, que, no final dos anos 1960, propunha a
incorporação do estudo da subjetividade das interações do homem com o ambiente nas
pesquisas geográficas. A Nova Geografia Cultural se opõe à primeira abordagem
justamente por não se restringir ao estudo dos aspectos visíveis da paisagem – modelo
proposto por Sauer – e, portanto, considerar sua dimensão simbólica tão importante quanto
seus aspectos materiais. A atenção, aqui, é deslocada do objeto externo – o que se vê –
para o sujeito e o processo de sua interação com o meio – quem vê e de que forma o faz.
(CABRAL, 2000). Afinal, para existir, “a paisagem necessita de um sujeito que a signifique e
dê valor através de um olhar” (PAES-LUCHIARI, 2007, p. 30). Sendo assim, ela passa a ser
estudada como construção social, fruto de um processo de organização mental e atribuição
de sentido que será guiado pelos sentimentos, ideias e valores que influenciam a
percepção.
Seguindo esta linha de pensamento, Cauquelin (2003) afirma que a construção da paisagem
é um processo mental que tem sua origem datada por volta do século XVI, com o
Romantismo, momento a partir do qual as pinturas e descrições de paisagens tornaram
possível sua percepção pelas manifestações sensíveis. Para ela, a paisagem é uma forma
aprendida, porém inconsciente, de enxergar o meio natural, é uma “[...] forma simbólica que
envolve toda tentativa de apresentar a natureza à sensibilidade”. (CAUQUELIN, 2003, p.
26). A relação de identidade que existe entre os dois conceitos, dessa forma, é forjada. É
nesse sentido, portanto, que a autora afirma que a paisagem é inventada.
Sendo assim, coloca-se o questionamento: se toda paisagem é inventada, existe paisagem
que não seja cultural? Pensar em uma resposta nos faz avaliar, necessariamente, até que
ponto é válida a distinção entre natureza e cultura, na medida em que a natureza, percebida
como paisagem, é cultural e cientificamente produzida. Acredita-se que a essa reflexão
venha se somar uma outra, igualmente importante, que diz respeito aos processos de
valorização da natureza como patrimônio, como um bem a ser protegido. Historicamente, há
uma divisão estabelecida entre o patrimônio cultural e o natural, como se eles pertencessem
a campos discursivos (GONÇALVES, 2012) diferentes. No entanto, tal distinção não se
sustenta, pois se a patrimonialização é uma ação política e cultural que envolve “[...]
saberes, interesses e valores advindos das esferas política, econômica e sociocultural”
(PAES-LUCHIARI, 2007, p. 26), todo bem patrimonial é cultural, independentemente de sua
lógica própria. Por esta razão, é mais interessante deslocar o olhar do objeto
patrimonializado para os processos de patrimonialização (GONÇALVES, 2015), com todos
os valores, atores, discursos e interesses que neles estão contidos.
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Paisagem e patrimônio
A paisagem, como as políticas de patrimônio procuram trata-la atualmente, além de
expressar a relação entre o cultural e o natural, o material e o imaterial, abrange uma série
de tipos de áreas: conjuntos urbanos e arquitetônicos, jardins, distritos industriais, parques
naturais, campos de plantação, dentre outros. Nota-se, portanto, que nem sempre ela está
associada a algum espaço natural, como serras, rios, florestas, formações geológicas.
A valorização de áreas naturais como patrimônio, por sua vez, tem sido comumente
associada, desde o princípio, a alguma forma de valor paisagístico e, secundariamente, ao
valor científico. Algumas leis de proteção da natureza, na França e na Suíça, datam do
século XIX, e deixam clara a importância de se preservar certas áreas naturais por elas
serem consideradas paisagens notáveis, de extraordinária beleza ou condição de exceção.
Da mesma forma, o chamado paradigma de Yellowstone – primeiro parque nacional do
mundo, nos EUA – definiu como um importante argumento para a proteção desse tipo de
área os seus aspectos estéticos, sendo, até hoje, um modelo de proteção aplicado em
várias partes do mundo. (SCIFONI; RIBEIRO, 2006).
Apesar dessas inciativas, foi somente a partir da década de 1960 que as áreas naturais
passaram a ser de fato incorporadas nas políticas de proteção do patrimônio cultural, tendo
sido a Conferência do Patrimônio Mundial da UNESCO, de 1972, o momento definitivo
desse processo. Reconhecendo os riscos oferecidos pela industrialização e urbanização do
mundo moderno às áreas naturais do planeta, o órgão reconheceu oficialmente a
importância de se proteger o patrimônio natural, porém o separou do cultural, sendo aquele
representado por monumentos naturais, formações físicas com valor estético ou científico e
lugares de beleza natural notável. Percebe-se, portanto, como o valor paisagístico é central
na trajetória de iniciativas pela preservação da natureza. No entanto, é preciso lembrar que
o que se entende por este valor vem passando por mudanças desde então: se antes
denotava somente excepcionalidade e contemplação da beleza cênica, hoje abrange
significados como afetividade, importância histórica, econômica e biológica, dentre outros.
No Brasil, o interesse pelo tombamento de bens de natureza paisagística possui uma
história semelhante. Com o Decreto-lei nº 25/1937 – que já apontava para uma certa
concepção integrada de patrimônio cultural e natural (PAES-LUCHIARI, 2007), ao equiparar
os bens históricos e artísticos aos monumentos naturais, sítios e paisagens de feição
notável – foi criado o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, o qual, no
entanto, foi negligenciado por muito tempo. Segundo Ribeiro (2007), houve uma
hierarquização dos livros do tombo, sendo o paisagístico usado para bens que não
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alcançavam relevância suficiente para serem inscritos nos demais livros. Dessa forma, entre
1938 e 1946, apenas 1,44% dos tombamentos era de bens paisagísticos.
Talvez pelo fato das primeiras legislações ambientais brasileiras – como os Códigos de
Minas, Águas e Florestas – terem sido criadas externamente ao IPHAN, na mesma época
das leis de preservação do patrimônio cultural, a proteção de áreas naturais nunca tenha
encontrado forte eco nesta instituição. Nos poucos tombamentos de conjuntos paisagísticos
que realizou ao longo do século XX, o IPHAN explorou pouco o dinamismo que a categoria
traz, tendo tratado a paisagem, na maioria das vezes, como ambiência, panorama ou
moldura de bens arquitetônicos, privilegiando, assim, o valor estético e protegendo bens
mais diretamente ligados ao paisagismo, ou seja, aqueles conformados materialmente pelo
homem. Dessa forma, até 1960, o padrão de tombamento de bens paisagísticos, de acordo
com o seu valor, era assim definido: jardins, conjuntos, monumentos ligados a aspectos da
natureza que o circundavam e áreas cujo panorama fosse importante para a população no
entorno. (RIBEIRO, 2007).
Dentro desta última categoria está o caso da Serra do Curral, em Belo Horizonte, analisado
por Ribeiro no livro “Paisagem Cultural e Patrimônio” (2007). A Serra foi tombada no início
da década de 1960 pelo valor de sua vista e por ser considerada um símbolo da cidade.
Contudo, ao longo do processo, embates surgiram, opondo os interesses dos que a queriam
preservada e os interesses da mineradora estrangeira que possuía concessão de
exploração da área, o que acabou modificando a extensão original da proposta de
tombamento para uma área reduzida.
Conforme fica claro no caso apresentado, a paisagem não é somente uma forma de ver o
mundo ou uma imagem de contemplação, mas também um campo de significações e
conflitos, estabelecidos pelo encontro de diferentes sujeitos que se apropriam dela de
formas distintas, cada um com suas intenções e pontos de vista. Como afirma Cabral (2000,
p. 42-43), “[...] a paisagem também se apresenta como campo de sobreposição de
interesses, e, portanto, [é] reveladora de tensões e conflitos socioambientais que são
constituintes dos próprios atores”. Quando patrimonializadas, as paisagens envolvem
conflitos ainda mais evidentes, pois o campo do patrimônio também se constitui como um
“[...] campo de confronto entre interesses e aspirações conflitantes”, uma vez que é formado
por “complexas questões que envolvem emoções, afetos, interesses os mais variados,
preferências, gostos e projetos heterogêneos e contraditórios”. (VELHO, 2006, p. 245).
Os conflitos da paisagem normalmente estão ligados a interesses econômicos, que acabam
estabelecendo com os órgãos de proteção uma disputa pela destruição/preservação destes
locais. Um caso bastante emblemático dessa situação é o do Pico de Itabirito, que,
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curiosamente, não é sequer citado por Ribeiro em sua obra acima mencionada. Além disso,
não há, até hoje, nenhum estudo aprofundado sobre o episódio, que é o único caso de
destombamento de um conjunto paisagístico na história do IPHAN.
Tombamento e destombamento do Pico de Itabirito
O Pico de Itabirito, (Figura 1) situado no município de mesmo nome, na Serra das Serrinhas,
é um ressalto topográfico marcante no relevo, com altitude superior a 1560 metros, formado
por minério de ferro compacto e, portanto, símbolo da riqueza mineral do Quadrilátero
Ferrífero. (ROSIÉRE et al., 2009). Sua importância histórica advém do papel de referencial
geográfico que teve, nos séculos XVII e XVIII, para os bandeirantes e tropeiros que
desbravavam o território e transitavam entre as vilas e arraiais que então surgiam. Por esses
motivos, o Pico é considerado um marco fundamental da ocupação histórica do território
mineiro.
Figura 1: Pico de Itabirito. Fonte: Coleção Digital de Itabirito.
Com um perfil inconfundível, ele sempre chamou a atenção de cartógrafos, naturalistas e
viajantes, que o retrataram e descreveram em diversas obras. Dentre eles, estão José
Códea, 3 Marianne North (Figuras 2 e 3, respectivamente) e o Barão de Eschwege, cientista
e geólogo alemão responsável por definir o termo que, atualmente, dá nome ao Pico. Sua
alcunha original, contudo, era Pico de Itaubira, cujo significado no idioma dos habitantes
nativos da região é Moça de Pedra. Ademais, o Pico já se tornou tema de poesias, canções
e obras memorialistas locais. Percebe-se, dessa forma, que além de ser um marco histórico
3 Pseudônimo do artista que ilustrou várias cenas da viagem do imperador Dom Pedro II a Minas Gerais, em 1881, para publicação na Revista Illustrada, de propriedade de Ângelo Agostini.
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e geográfico importante, o Pico está presente no imaginário social da população que viveu
ou vive em seu entorno, havendo, inclusive, lendas e histórias populares sobre ele.
Figura 2: Retrato do Pico feito por José Códea para publicação na Revista Illustrada, em 1881. Fonte: Google Imagens.
Figura 3: Pintura do Pico feita pela artista britânica Marianne North, na segunda metade do século XIX. Fonte: Google Imagens.
Sua importância econômica remonta ao século XVIII, com a exploração de ouro e a
instalação de fábricas de ferro de pequeno porte em seu entorno. Foi no século XIX,
contudo, que a extração aurífera teve seu apogeu e, também, ocaso: a Mina de Cata
Branca, adquirida na década de 1830 pela empresa de capital britânico The Brazilian
Company Ltda, que explorava ouro em profundidade com grande parte de mão-de-obra
escrava, teve seu auge de produtividade entre 1840 e 1844, ano em que desabou, deixando
vários mortos e constituindo-se como um dos piores acidentes de minas no Brasil.
(HIRASHIMA, 2009). A mina foi, então, fechada e vendida, juntamente com a área do Pico,
para a St. John d’El Rey Mining Company, que iniciou a exploração industrial de minério de
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ferro na mina do Pico na década de 1940, época da criação da companhia Siderúrgica
Nacional. A partir de 1943, a mina foi arrendada e explorada pela Sociedade Indústria e
Comércio de Minério Ltda, posteriormente renomeada ICOMINAS e, depois, reestruturada
como Minerações Brasileiras Reunidas – MBR pela CAEMI em associação à Hanna Mining
Co., dos EUA. (ROSIÉRE et al., 2009).
Conforme exposto anteriormente, a paisagem configura-se como um campo de conflitos,
pois sobre ela estão postos diferentes interesses e aspirações que, por vezes, podem ser
antagônicos. Foi justamente este cenário que começou a delinear-se quando, na década de
1960, o IPHAN oficializou o interesse em tornar o Pico de Itabirito um bem protegido por
meio do tombamento, para evitar a ameaça de sua destruição colocada pela atividade
mineradora. Assim, o Conselho Consultivo do IPHAN registrou-o no Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico em 1962, com o nome de Conjunto Paisagístico do
Pico de Itabirito. A discussão sobre o tombamento, contudo, teve início ainda em 1960,
proposta pelo conselheiro Miran Latif ao diretor do IPHAN, Rodrigo Melo Franco de
Andrade. Assim que notificadas, as mineradoras St. John, Cia de Mineração Novalimense e
ICOMINAS, respectivamente proprietária dos direitos superficiários do bem imóvel,
concessionária do direito de lavra e arrendatária do direito de exploração, entraram com
pedido de impugnação do ato, o que não foi acatado pelo Conselho. Nessa mesma época
iniciaram-se, também, as disputas simbólicas, registradas pela imprensa, entorno do que
seria o verdadeiro garantidor do bem coletivo: a preservação do monumento natural – forma
como as notícias de jornais, cartas de técnicos e demais documentos constantes do
processo de tombamento passaram a classificar o Pico – ou a exploração de sua riqueza
mineral.
No processo de tombamento, (IPHAN, [s.d.]) as justificativas apresentadas para a medida
eram a singularidade do Pico entre os monumentos naturais do Brasil, sua excepcional
beleza paisagística, sua potencialidade turística e sua importância como marco
representativo das jornadas do desbravamento. Ainda que Latif tenha exposto, na proposta
de tombamento, o significado do Pico como “marco expressivo da era siderúrgica” em que o
país ingressava naquele momento e como “símbolo da nossa pujança em minério de ferro”,
no registro do Livro do Tombo estes argumentos não foram citados, tampouco outros que se
poderia chamar de científicos, como a importância do Pico para a história da mineralogia
brasileira. A restrição da justificativa a valores estéticos e, em segundo plano, históricos,
acabou enfraquecendo a legitimidade do tombamento frente à opinião pública e, também, ao
próprio governo.
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Os patrimônios, é importante frisar, não são construídos com base em consensos; muito
pelo contrário, é bastante comum grupos se oporem à patrimonialização de algo, sobretudo
quando isto ocorre sob a forma do tombamento, porque tombar é, além de proteger
juridicamente um bem da destruição ou desaparecimento, limitar o direito de propriedade,
restringindo a utilização do bem. Além disso, como bem observa Paes-Luchiari (2007, p.
33):
apesar da legislação e dos instrumentos de preservação, até a década de 80 a dinâmica da modernização era mais atuante pelo território do que as intervenções para preservação, sobretudo nas regiões onde o crescente processo de urbanização se associava à positividade do desenvolvimento
econômico.
Assim, as mineradoras, se opondo ao tombamento, interpuseram recurso para
cancelamento do ato junto ao Presidente da República, João Goulart. A alegação era que a
decisão do Conselho era incompatível com a exploração do minério no Pico e, portanto,
feria gravemente o direito de concessão de lavra, que seria, sob seu ponto de vista, anterior
e hierarquicamente superior ao ato administrativo do tombamento. É importante mencionar
que o perímetro de proteção delimitado pelo IPHAN não abrangia toda a área sob
concessão, mas somente o cume do Pico até um limite de 1520 metros, a partir de onde
poderia ser extraído minério de “pé de escarpa”, desde que a atividade não comprometesse
as bases do monumento. As mineradoras, contudo, pareciam não se satisfazer com a
decisão, demonstrando, na extensa documentação que compõe o processo analisado, fazer
questão de manter seu direito de minerar o Pico. Caso fosse mantido o tombamento pela
Presidência da República, elas exigiam, então, que fosse feita a desapropriação da área
com justa indenização, para que não perdessem, assim, os lucros relativos à exploração do
minério ali contido.
A partir de então, aprofundou-se uma batalha jurídica e midiática em torno do assunto, que
envolveu vários órgãos públicos, ministérios e chegou inclusive a ser debatido no Congresso
e no Senado. O drama do Pico de Itabirito representou muito bem o pensamento de Rodrigo
Melo Franco de Andrade, presidente do IPHAN, que “[...] acreditava ser o conflito entre
interesses públicos uma das questões mais importantes na política do patrimônio (...) ainda
que o chamado interesse público [se encontrasse] ligado ou misturado a interesses
privados”. (CHACHAM, 2014, n.p.). Ao comentar sobre o papel do Estado frente a tais
conflitos do patrimônio, Velho (2006, p. 246) afirma que ele
[...] oscila em um jogo de interesses, em seus diversos níveis, entre atender
esses valores e essas expectativas preservacionistas e ceder aos
interesses e às motivações de empresas e indivíduos que colocam o
mercado como referência básica, associado aos já citados direito de
propriedade e liberdade individual.
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No caso aqui analisado, não se deve esquecer, ainda, o contexto histórico em que o drama
se desenvolveu. O tombamento do Pico foi registrado em 1962, quando Jango ainda
governava, porém, uma enorme instabilidade política já assombrava o país. Como lembra
Chacham (2014, n.p.), “quando finalmente o SPHAN começa a voltar-se para a proteção,
com os instrumentos disponíveis, para paisagens naturais como as serras, estamos em
vésperas de um golpe de estado”. Assim, em abril de 1964, deu-se início a uma ditadura
civil-militar no país, o que garantiu espaço para práticas autoritárias. Isso significou um sinal
verde para o avanço dos interesses das mineradoras estrangeiras, que estavam em
consonância com a política econômica e as ideias do que seria o “verdadeiro nacionalismo”
reforçadas a partir de então.
Dessa maneira, em junho de 1965 o tombamento foi cancelado por ato presidencial, tendo
como fundamentação as conclusões do parecer do Consultor Geral de República, Adroaldo
Mesquita da Costa, que endossou o condicionamento da proteção à indenização a ser paga
às mineradoras. Para realizar o cancelamento, o Presidente Castelo Branco recorreu a uma
legislação pouco comentada no campo do patrimônio: o Decreto-lei nº 3866 (BRASIL, 1941),
de 29 de novembro de 1941, comumente denominado de lei do destombamento, que tem
como como redação:
Artigo único – O presidente da República, atendendo a motivos de interesse público, poderá determinar, de ofício ou em grau de recurso, interposto por qualquer legítimo interessado, seja cancelado o tombamento de bens pertencentes à União, aos Estados, aos Municípios ou a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, feito no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de acordo com o decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.
Segundo a interpretação da lei, os “motivos de interesse público” que podem embasar atos
de destombamento são o desaparecimento do valor, o perecimento da coisa tombada ou a
necessidade de atendimento a interesse público superveniente. (TELLES; COSTA; SALES,
2014). No caso em questão, bem como na maioria dos outros 13 casos de destombamento
realizados a nível federal desde 1941, foi esta última razão que motivou a deflagração dos
processos de despatrimonialização dos bens.
Isso instiga uma importante reflexão que, apesar de pertencer ao campo jurídico, não deve
deixar de ser feita por todos os profissionais que pesquisam ou atuam no campo do
patrimônio cultural, qual seja, os fatores objetivos e subjetivos envolvidos na hierarquização
de interesses públicos. Bem se sabe que direito não é ciência exata, tampouco a política.
Sendo assim, é importante lembrar que as inúmeras medidas e decisões já tomadas por
autoridades, na história do país, em prol do tão perseguido “desenvolvimento” são sempre
passíveis de questionamento. Tal noção, apesar de se constituir como um conceito de difícil
definição, é comumente equiparada ao crescimento econômico e está associada,
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historicamente, ao discurso do progresso. Como afirma Sanches (2012), as políticas
governamentais indutoras do desenvolvimento, adotadas no país desde a Era Vargas, se
baseiam em planos econômicos estatais apoiados na industrialização como caminho para a
superação do atraso e da pobreza. Nesses planos, a mineração sempre ocupou um lugar de
destaque, devido, principalmente, a outro discurso construído: o da “vocação mineradora”,
sobretudo de algumas regiões de Minas Gerais. Dessa maneira, a autora adequadamente
coloca a seguinte provocação: “É fácil falar de um coletivo genericamente denominado
‘interesses nacionais’, mas estes correspondem aos interesses de quem?” (SANCHES,
2012, p. 87).
Ainda sobre o Decreto-lei nº 3866, Telles, Costa e Sales lembram que esse tipo de
legislação é uma medida típica de regimes de exceção, por se constituir como ato unilateral
e antidemocrático, já que não é discutido previamente com os representantes do povo. O
autoritarismo inerente à “lei do destombamento” já havia sido notado pelo próprio presidente
do IPHAN na época, que deixou registrado que a medida poderia ser aplicada “por simples
despacho do presidente da República”. (TELLES; COSTA; SALES, 2014, p. 4). No caso do
destombamento do Pico, portanto, é possível afirmar que o contexto de ditadura civil-militar
recém instaurada no país tenha favorecido a adoção da medida, a despeito das críticas e
protestos de boa parte da opinião pública. Além disso, não se pode deixar de notar que as
chances de sucesso dos interesses preservacionistas neste contexto eram baixas, uma vez
que, como afirma Sanches (2012, p. 76), a ditadura militar foi o tempo áureo da mineração,
“[...] tanto do ponto de vista burocrático de implementação de leis e códigos quanto de
concessões e permissões”.
Pela análise do processo referente ao caso do Pico de Itabirito, é possível perceber que o
ato de Castelo Branco gerou revolta na população local. Diante da ameaça da perda do
maior símbolo da cidade, muitas vozes se levantaram a favor da manutenção do
tombamento. As fontes indicam o envolvimento, em Itabirito, de associações populares
locais, da Câmara Municipal, de figuras políticas importantes, como o ex-prefeito Dr. Alberto
Woods Soares, do então prefeito Gastão Melillo, bem como de itabiritenses em geral, que se
reuniam para fazer caminhadas ao Pico em defesa do monumento. Tal reação deve ser
compreendida à luz da observação de Velho (2006, p. 244-245), quando afirma, sobre os
conflitos que permeiam os patrimônios culturais, que “a destruição de referências
monumentos, casas, prédios, ruas, cinemas, igrejas, entre outros, tem consequências nos
mapas emocionais e cognitivos dos habitantes de diferentes tipos de localidades”.
A questão, no entanto, não se restringiu ao município de Itabirito: ela ganhou abrangência
nacional. Muitas outras figuras se envolveram em ambos os lados do conflito, dando
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pareceres, opiniões e publicando matérias e entrevistas em jornais de circulação nacional.
Na documentação analisada, constata-se a participação de historiadores, juristas,
engenheiros, técnicos estatais, diretores de museus, ministros, membros do Conselho
Consultivo do IPHAN, funcionários das mineradoras, membros do Congresso Nacional,
clubes excursionistas, população de cidades circunvizinhas, professores universitários e
intelectuais. Dentre estes, destaca-se a atuação do poeta Carlos Drummond de Andrade e
do cronista Rubem Braga, ambos defensores do tombamento do Pico, que expressaram, em
suas colunas jornalísticas, o profundo desapontamento com a possível demolição do
monólito e pressionaram, por meio de seus escritos, a opinião pública e o próprio Presidente
da República pela decisão desfavorável às mineradoras.
Na imprensa, diversos argumentos e justificativas eram utilizados para, de um lado,
defender o tombamento e, de outro, atacá-lo. Os que queriam ver o Pico de pé recorriam, na
maioria das vezes, à ideia da paisagem afetiva de significação única que o Pico conformava
para os itabiritenses. Também se falava, porém com menor frequência, na importância da
preservação de tamanha riqueza mineralógica como forma de se guardar, para as próximas
gerações, uma imagem da história de Minas Gerais. Em alguns jornais, chegou-se a
publicar, na tentativa desesperada de barrar o destombamento, que o Pico era um marco
referencial para a navegação aérea e que sua destruição poderia representar um enorme
fator de insegurança para os pilotos que sobrevoavam a região. Algumas pessoas, ainda,
eram contra o destombamento por considerarem errado, do ponto de vista do interesse
nacional, deixar destruir o Pico para enriquecer alguma empresa estrangeira. Em suma,
vários discursos foram construídos e reforçados com o objetivo de sensibilizar a opinião
pública e fortalecer o argumento jurídico em prol do Pico. Contudo, foi o valor paisagístico,
ligado à memória coletiva e à subjetividade da paisagem, o que mais vezes embasou as
defesas públicas da preservação do Pico de Itabirito.
Foi justamente este argumento que, do outro lado do conflito, foi o mais combatido e, de
certa forma, até menosprezado com jocosidade. Os defensores do progresso da nação por
meio do crescimento econômico a qualquer custo afirmavam não poder, o governo federal,
se submeter à serventia da mera fruição estética, dizendo que contemplar a visão do Pico
não traria mais recursos para o desenvolvimento do país. Falavam em autoritarismo por
parte do IPHAN, que logo após o ato de destombamento, publicado em junho de 1965,
entrou com pedido de reconsideração junto à presidência da República – o que foi acatado e
acabou suspendendo a medida até 1967, quando, no final de seu governo, Castelo Branco
concedeu, finalmente, a decisão em favor das mineradoras.
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É interessante notar como os “[...] trabalhos de esquecimento e destruição apresentam-se
como elementos positivos e decisivos na produção da memória”. (GONÇALVES, 2015, p.
224). O episódio de destombamento do Pico, que significava, naquele contexto, a garantia
de sua completa desaparição – uma vez que o interesse manifesto das mineradoras era
dinamitá-lo, literalmente –, estimulou sentimentos e desejos em relação à paisagem e à sua
preservação. Mais além disso, conforme observou Clímaco (2011), o drama do
destombamento foi fundamental na construção do próprio discurso de preservação
patrimonial em Itabirito, pois a partir daí começou a se pensar no perigo que o crescimento
econômico poderia trazer, não só para o bem natural, mas também para o conjunto
arquitetônico colonial ainda remanescente no município.
Após o ato definitivo de cancelamento do tombamento, o conflito, ao contrário do que se
poderia pensar, não findou. A documentação constante do processo do IPHAN comprova
que o assunto se estendeu pelas décadas de 1970 e 1980, com novas tentativas de
tombamento do bem e algumas notícias sendo publicadas na imprensa a respeito da
destruição que se estava realizando no entorno do Pico. Essa manutenção do conflito ao
longo dos anos foi essencial, ao que parece, para que, com a redemocratização do país, o
“retombamento” do Pico fosse garantido pela Constituição do Estado de Minas Gerais, em
1989. Alguns anos mais tarde, em 1991, realizou-se o tombamento municipal por ato
legislativo. Desde então, não se encontraram indícios de que o tombamento federal possa
voltar a ocorrer, contudo, é possível afirmar que a desagradável experiência do IPHAN com
este episódio serviu para incentivar os tombamentos de outras paisagens excepcionais,
ocorridos no final da década de 1960, como o de alguns morros do Rio de Janeiro. O
motivo, segundo Ribeiro (2007), era a ameaça que a pressão do mercado imobiliário
representava para as áreas naturais da capital fluminense. Teria o drama do Pico se
transformado, de certa forma, em um trauma da paisagem?
Conclusão
Hoje, após tantos anos de exploração de minério de ferro – uma das atividades que mais
impacta as paisagens, degrada os recursos naturais e desestabiliza socialmente as
comunidades –, o Pico apresenta-se extremamente desfigurado. Ele não chegou a ser
dinamitado, talvez porque, como já afirmava o conselheiro Latif (1963) na década de 1960,
as dificuldades técnicas envolvidas na sua exploração não seriam recompensadas pelos
lucros que seu minério poderia trazer. A lavra a céu aberto, que, na década de 1990, atingiu
a quantia de 12 milhões de toneladas/ano de produção para exportação, ao mesmo tempo
em que trouxe crescimento populacional, urbano e de renda para Itabirito, deixou marcas
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profundas e irreversíveis na paisagem, afetando diretamente os recursos naturais e as
ligações afetivas da população com o símbolo maior de sua cidade. (Figura 4). Tendo isso
em vista, algumas tentativas de acordo de recuperação da área vêm sendo feitos por parte
do Ministério Público Estadual com a MBR – hoje controlada pela Vale –, porém é muito
difícil ponderar se essas iniciativas trarão resultado para a efetiva proteção do Pico daqui
para frente.
Figura 4: Cava do Pico de Itabirito. Fonte: Google Imagens.
No município, existe uma demanda de visitação do local, que somente é aberto pela
mineradora ao público no Dia do Pico, comemorado em 15 de novembro. É um tanto bizarro
o fato da empresa, nesta data comemorativa, promover ações de consciência ambiental,
numa tentativa de promover certar distorção da história ao tentar criar uma imagem
“politicamente correta” da empresa. Por isso, é preciso conhecer os conflitos do patrimônio,
saber das experiências falidas de preservação, para se poder, assim, escolher os meios
mais adequados de se proteger o que ainda resta de paisagens como o Pico em nossa
sociedade – que, vale dizer, ainda é regida pelo discurso do desenvolvimento econômico e a
lógica do progresso.
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