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BLIZZARD ENTERTAINMENT

O Pergaminho Branco

por Gavin Jurgens-Fyhrie

— Deixa eu ver se entendi — disse Ziya, afiando as adagas. — Você quer que eu conte uma

história?

Ela sentava-se com Arko contra um penhasco na costa norte de Pandária, abrigada dos piores

ventos. Não podiam se arriscar a acender uma fogueira; os dez esquadrões de saqueadores goblins

espalhados pelo continente vinham saqueando tesourarias, templos e arsenais já havia semanas e,

por algum motivo, não eram muito populares com os nativos.

O esquadrão de Ziya já vira dias melhores. Luki estava na enfermaria com uma ferida de

garrespinha em uma... área sensível. A habilidade de Zuzak com bombas não incluía saber mexer

com pavios. Desobedecendo às ordens de Ziya, Strax tentara roubar um andarilho pandaren

solitário, que se revelara um monge Shado-pan sem nenhum senso de humor.

Arko, que não parava de atear fogo às próprias vestes com seus encantamentos, era o último

sobrevivente. Ziya não entendia como.

— É! — disse o pequeno mago. — Vai ser uma noite longa. Você já viu muita coisa, né? Que tal

uma história de guerra?

— Qual guerra? — bufou Ziya. Um vento gélido varreu a superfície do oceano e a atingiu em

cheio no rosto. Ela olhou para a forma distante, brilhante e tépida do superzepelim do príncipe

mercador Gallywix acima das ondas escuras.

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Gallywix, para surpresa e imediato horror dos seus goblins em Pandária, decidira supervisionar

pessoalmente a Iniciativa Esquadrão Saqueador e "inspirar" suas tropas. A única coisa que ele tinha

inspirado até o momento, como sempre, era desdém. Até de onde estavam era possível ouvir a

música de festa pairando sobre a água.

Tremendo, Arko, aproximou-se dela ao longo da parede, procurando calor. Ziya casualmente

enterrou uma adaga na areia entre eles.

— Como assim, "qual guerra"? — perguntou Arko, encarando a adaga.

Ziya suspirou. Ele era verde demais, até para um goblin.

— Vejamos — respondeu, embainhando a adaga e contando nos dedos. — Eu combati a Aliança.

Os Sectários do Crepúsculo. Elementais. Mortos-vivos. Mantídeos. Os sha. Um dragão, uma vez. Ah, e

Gallywix, quando ele tentou escravizar todos nós... opa, acabaram os dedos.

— Vai ser uma noite longa — repetiu Arko. — Por favor, sarja.

Ziya revirou os olhos.

— Tá bom, mas nada de histórias de guerra.

— Por quê?

— Porque — disse ela, pegando e girando o anel pendurado em seu pescoço — elas são muito

pessoais. Que tal... você conhece a história de Rakalaz?

— Não.

— Você era da superfície, né? Eu cresci em Pyrix, uma cidadezinha de Inframina de que

ninguém nunca ouviu falar...

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— Eu já ouvi falar, sim! — disse Arko, prestativo.

— Ótimo. Pare de falar e escute.

— Há cem anos, o príncipe mercador Leeko estava enviando mineiros de Jakamina para mais

fundo do que jamais se fora. Você tinha que encher um vagonete de minério, e só então os capatazes

deixavam você ir pra casa. Então uma noite, lá embaixo no escuro, um mineiro chamado Miz

atravessou o que ele pensava ser uma parede de rochas e encontrou...

Ziya pausou. Arko não falara nada. Até o vento silenciara. Mas ela pensou ter ouvido o eco

sussurrado de suas palavras meio segundo depois de pronunciá-las.

— Um buraco. N... não — disse Ziya, só então lembrando que sempre detestara aquela história

quando criança. — Um vazio. E no fundo, duas luas, pálidas e redondas. Os olhos de Rakalaz

vigiando-o.

As ondas batiam na praia. Arko engoliu em seco. Lambendo os lábios, Ziya continuou: — Ele

rugiu e começou a escalar...

Ziya se levantara de salto com ambas as adagas prontas antes mesmo de perceber por quê.

As estrelas tinham desaparecido.

— Quê? O que foi?! — gritou Arko.

Ziya teve que sorrir. Arko provavelmente pensou que fosse Rakalaz atacando.

Ela sentiu um calafrio na espinha.

A costa sumira, as ondas soavam abafadas. O ar estava rançoso, gorduroso, e parecia familiar.

Era o cheiro de Inframina.

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Naquele instante, uma mão azul gigante, pálida, de oito dedos, irrompeu do chão a oito metros

de distância e empalmou a areia. Rakalaz se ergueu, e seus olhos reptilianos como lanternas

encaravam ambos.

A mente de Ziya gritou. Mas seu corpo ergueu Arko pelas vestes.

— Faça sinal pro zepelim — cochichou para ele. Forcejando para libertar a perna, Rakalaz

golpeou na direção deles e uivou, atingindo-os com um bafo pior que mil monturos de lixo da

Inframina.

Arko choramingou, mas não se moveu.

— Arko! — gritou Ziya. — Avise ao superzepelim que estamos aqui! Talvez tenha alguém sóbrio

o bastante lá para mandar reforços. Cuidado!

Ela pegou o pequeno Arko, girou e usou o peso dele para se afastarem do caminho. Garras se

enfiaram na pedra sólida bem no local em que eles estavam e arrancaram um bom pedaço do

penhasco.

Tremendo, Arko foi o primeiro a se levantar. Firmou-se e começou a cantar, chamando um

sinalizador arcano, chamando a salvação com as mãos em concha ao redor da boca.

Então ele cometeu o erro de olhar para Rakalaz, que ia em sua direção. Grossos fios de baba

escorriam de sua bocarra aberta.

Arko guinchou, atirou o sinalizador incompleto no ar e correu em direção à praia.

Ziya viu-o se afastar. Então ela olhou para o pequeno fiapo de luz do sinalizador bem a tempo de

vê-lo sumir.

— Ótimo — disse.

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A mão de Rakalaz se fechou quase delicadamente ao redor de Ziya, que forcejava por libertar-se,

e a ergueu em direção à bocarra.

Uma rocha veio zunindo de algum lugar e acertou um dos olhos da lua. A mão que segurava Ziya

se abriu num espasmo e ela caiu…

… em braços peludos.

— Olá — disse a pandarena, depondo-a no chão com força serena. Ela apontou para Rakalaz

com a cabeça. — Acho que não conheço esse aí.

— Hein?

— Esse personagem — disse sua salvadora, com as patas na cintura, observando o pesadelo da

juventude de Ziya com um olho clínico. Grunhindo, Rakalaz virava o olho bom de uma para a outra,

talvez imaginando como faria para devorar as duas de uma só vez. — Você estava contando uma

história e ele surgiu, não foi? Ah, só por curiosidade, como é que a história termina?

— Você tá falando sério? — Ziya olhou para o superzepelim. Para a sua surpresa, ele se voltava

lentamente na direção deles.

— Quase sempre. Rápido.

— Miz joga a última banana de dinamite na garganta do monstro.

O sorriso gentil da pandarena congelou.

— Ah, uma história goblin. Claro que ia terminar com explosões. Não deixe cair.

Ziya deu um pequeno espasmo. Sua mão direita ficou mais pesada de repente. E chiava.

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Uma certeza serena tomou conta dela, a despeito da situação. Tinha crescido ouvindo aquela

história. Ela se imaginara no lugar de Miz, imaginara aquele momento com o terror vívido de uma

mente infantil.

Sem pensar duas vezes, ela se voltou para o monstro e arremessou a dinamite da história na

garganta cavernosa de Rakalaz.

Rakalaz a encarou intrigado e engoliu. Ziya piscou; ela olhava da criatura para sua palma vazia.

— Ahm? — disse ela, astutamente.

A pata da pandaren apareceu perto dos pés de Ziya e a puxou na direção da areia.

Depois de um período interessante de barulho e espatifamento, Ziya ergueu a cabeça. Os restos

queimados estavam desaparecendo. O buraco no chão se enchia de areia. Logo seria como se nada

tivesse acontecido.

Então a ficha caiu.

— Fui eu que fiz aquilo.

— Foi — disse a pandaren, se levantando e batendo o pó com graça precisa. O superzepelim de

Gallywix estava perto o suficiente para que vissem os escorregadores de rum e jacuzzis de pudim

nos andares mais baixos da aeronave. — Você começou uma história. Você a terminou. Isso é contar

uma história. O resto é conversa.

— Mas nós sobrevivemos.

— E...? — disse a pandaren, franzindo o cenho para o superzepelim.

— Miz não sobreviveu à explosão na história.

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A pandarena sorriu. Seus dentes eram afiados e muito brancos.

— Ora, então ainda bem que você não disse isso antes.

***

Havia alguma coisa errada.

O superzepelim pairava sobre as ondas, iluminando Ziya, a pandarena Shuchun e o buraco que

Rakalaz fizera no penhasco.

Shuchun era uma Andarilha das Lendas; Ziya mal compreendia o que aquilo significava.

Andarilhos das Lendas contavam histórias. Procuravam artefatos do passado ancestral de Pandária.

E, a julgar por Shuchun, falavam de boca cheia e sorriam um bocado.

Emoldurada no círculo cegante de luz, a Andarilha olhou para cima, deu outra mordida no

rolinho de ave selvagem e mastigou pensativamente.

— Você realmente devia dar o fora daqui — disse Ziya. — Gallywix está lá em cima. Ele pode

começar a tacar megabombas na gente só de sacanagem.

— É? — respondeu Shuchun, engolindo. — Eu ouvi falar dele. Mas acho que vou ficar.

— Por quê?

— Vamos torcer para que você não descubra.

Ficaram sentadas num silêncio desconfortável. Por fim, Ziya disse: — Obrigada pelo resgate.

Olha, eu acho que devia avisar...

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— Que você está aqui para roubar tesouros e artefatos? — disse Shuchun. — Eu sei. Eu vim para

impedir você.

— Mas você me salvou!

— Eu disse impedir, não matar — respondeu Shuchun, serena.

— Ah. E como foi que eu fiz o Rakalaz aparecer?

— Mágica — disse Shuchun.

— Mágica.

— Isso, mágica — concordou a Andarilha das Lendas. — Que bom que estabelecemos isso.

— Isso não explica nada!

— Você lembra — perguntou Shuchun — quando eu disse que esperava que você não

descobrisse por que eu ainda estou aqui?

— Lembro. Você disse isso há dez segundos.

— Bem, eu falei sério, sério, muito sério.

Uma corda se desenrolou do convés distante em uma lenta espiral até se estirar totalmente por

vários metros. Então um vulto sombrio pulou da amurada e desceu numa velocidade estonteante,

usando apenas uma mão.

Quando o vulto estava na metade do caminho, Ziya xingou. Não se tratava de um assassino, nem

de um marginal, nem de algum matador contratado. Era alguém pior.

Druz, o principal capanga de Gallywix, pousou na areia. Sua armadura de couro era tão bem

cortada quanto um terno. Ele carregava uma maleta esguia sob o braço musculoso.

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Diziam as histórias que ele crescera junto com Gallywix em Kezan. Ele não era infame, pois

jamais fora pego em nenhum ato realmente horrível. Mas, às vezes, coisas bem horríveis

aconteciam aos inimigos de Gallywix, e Druz sempre era um dos primeiros goblins a dar os

pêsames.

— Sargento — disse ele, acenando com a cabeça para Ziya. — Andarilha das Lendas Shuchun.

Um segundo, por favor.

Ele se ajoelhou na areia e abriu a maleta de costas para eles. Houve cliques suaves atrás da

barreira de couro.

Ziya grunhiu baixinho. Aquele era outro detalhezinho assustador: Druz sempre parecia saber

demais sobre todos que encontrava. Nomes. Cargos. Pontos fortes. Fraquezas. Ela não sabia se

aquilo era conseguido com pesquisa, espiões ou magia.

Ela não ficou surpresa do capanga ter chamado a Andarilha pelo nome. Ele provavelmente sabia

os nomes, números dos calçados e bebidas favoritas de todos em Pandária.

— Eu vi Rakalaz do convés — disse Druz, enquanto trabalhava. — Aquilo foi impressionante. Eu

odiava aquela história quando era criança.

Clique. Claque-clique.

— Muito bem — disse ele finalmente. — Obrigado por resgatar nossa funcionária, Andarilha.

Tenha uma boa noite.

Ele esperou. O sorriso de Shuchun ficou maior. Druz acenou e meteu a mão na maleta.

Instintivamente, Ziya agarrou as adagas…

Druz arremessou um enorme saco de ouro (Ziya reconheceu o metal pelo barulhinho delicioso)

aos pés da Andarilha das Lendas.

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— Obviamente, há uma recompensa. Dê minhas lembranças à pequena Fen. Está perto do

aniversário dela, não é?

— Isso foi uma ameaça? — respondeu Shuchun, calmamente. Ela se levantou devagar.

Druz suspirou.

— Não. Isso fui eu sendo educado. Eu ofereci uma recompensa. E me despedi desejando tudo de

bom para sua família. É exatamente o contrário de uma ameaça.

Num borrão veloz, Druz ergueu um rifle enorme, apontou-o para Shuchun e o engatilhou. Peças

de arma giraram umas contra as outras como continentes bem oleados.

— Agora — disse ele —, isso, sim, é uma ameaça. Vou dizer de novo: pegue a recompensa. Vá

para casa.

— Você viu, não viu? — perguntou Shuchun.

— O quê? — disse Ziya.

— Há uma porta dourada atrás daquele buraco no penhasco — disse Druz, apontando para

onde Rakalaz atingira. O peso do rifle em sua mão não parecia incomodá-lo. — E nós vamos ficar

com ela e com tudo o que tiver lá dentro.

— Pode apontar a arma que quiser para mim — disse Shuchun, mudando um pé de posição com

lenta elegância. — Não vou deixar você entrar na câmara das lendas.

— Olha só — disse Druz, racionalizando —, vamos abrir o jogo. Parece que há uma arma lá

dentro que pode criar monstros do nada. Nós a queremos, e ela não vale sua vida.

— Eu o impedirei se for preciso — disse Shuchun.

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— Certo. Vamos supor que você me mate. — Uma das luzes da aeronave passou por ele, que

protegeu os olhos. — O superzep vai detonar essa área com tiros de canhão até arrebentarem a

câmara. Você sai perdendo do mesmo jeito.

Uma adaga apareceu em sua garganta.

— Estou com um pressentimento esquisito — disse Ziya, atrás dele — de que você vai atirar

nela quando ela virar as costas.

— Provavelmente não — disse Druz. Ele não baixou a arma.

— Provavelmente não é bom o bastante. Eu meio que gosto dela. E também tenho outro

pressentimento de que você pretende ir à câmara sozinho.

— Pretendo. E?

— É que tem que ver isso aí da minha porcentagem.

— Seu esquadrão ainda não encontrou nada.

— Exato.

Shuchun observou com curiosidade os dois goblins brigando por causa de obrigações

contratuais e pagamento por serviços de alto risco. Ela se sentou novamente, comeu alguns

bolinhos de curry da mochila e esperou, ignorando o cano da arma.

Finalmente, ela disse: — Não é uma câmara.

Sua voz, rica e firme, interrompeu a discussão como uma lâmina derretida. Os dois goblins

olharam para ela.

Druz a estudou com franca suspeita. — Mas eu pensei...

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— Eu disse que era uma câmara das lendas. Esse lugar usa as histórias pandarianas de

armadilha para proteger artefatos perigosos. Não gosto nem de pensar no que pode acontecer com

quem entrar lá sem um guia que saiba o que está fazendo. Bolinho de curry, alguém? — disse ela,

erguendo um.

— Você está oferecendo seus serviços? — perguntou Druz.

— Em troca de pagamento? De jeito nenhum — respondeu Shuchun. — Mas, sem mim, vocês

dois vão ser devorados. Ou coisa pior. Então eu levarei vocês até lá e farei o meu melhor para

convencê-los de que estão cometendo um erro.

Ela olhou para a arma, depois para a adaga, até que foram baixadas. Então ela sorriu, se

levantou e, com uma voz de contadora de histórias que se erguia sobre o barulho das ondas, disse:

— "A Andarilha das lendas tomara sua decisão" — disse ela. — "Ela voltou a atenção para a

câmara das lendas que a reconheceu e se abriu."

Com um estalo alto, o penhasco se abriu, espirrando areia e pedaços de rocha.

Nas trevas lá dentro podia-se distinguir uma porta dourada redonda grande o suficiente para

um dragão passar. Figuras insculpidas cobriam cada centímetro da superfície, milhares de

personagens em milhares de histórias, um depois do outro. Os reflexos das luzes que passavam pela

porta davam a impressão de que as marcas se moviam…

A porta girou e se abriu, revelando uma escadaria.

***

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A Andarilha das Lendas Shuchun, à frente dos dois goblins, ia descendo a curva suave da

passagem de pedra. Quando ficou claro que ninguém trairia ninguém imediatamente, os goblins

relaxaram. O ar estava frio e parado. Expectante.

Ziya rompeu o silêncio. — Eu não entendo.

— O quê? — disse Druz.

— Você. Você é um cara reservado, é competente. Como você foi trabalhar para um cara todo

"minha fuça está esculpida numa montanha" feito o Gallywix?

— Sr. Gallywix — corrigiu Druz. — Ou príncipe mercador Gallywix. Nunca só "Gallywix". E

talvez você não o conheça tão bem quanto eu.

— Não tem nada pra conhecer — disse Ziya. — Ele é um monstro. Já vi poças mais profundas

que ele.

— Então tá — respondeu Druz. — E, de alguma forma, ele ainda está no comando, quando

quase todos os outros goblins e príncipes mercadores querem a cabeça dele. Até a mãe dele tentou

matá-lo duas vezes, diabo. Faz a gente pensar.

O caminho subitamente virou para a direita. Aos poucos, as paredes lisas sumiram, dando lugar

a tijolos antigos e retorcidos. Um lodo fétido escorria das rachaduras. Nenhum goblin notou.

Shuchun sorriu, olhando para o teto.

— Não, não faz — redarguiu Ziya. — Ele nos escravizou quando saímos de Kezan! Seu próprio

povo!

— Não é culpa dele se você não tinha um barco — disse Druz. — Mas, olha só, você lutou e se

libertou. Bom pra você. E aposto que você agora não sai confiando em qualquer um.

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A descida suave tornou-se uma intersecção de quatro pontas. Shuchun dobrou à esquerda sem

parar e os goblins a seguiram.

— Deixando isso de lado — grunhiu Ziya (pois ele estava certo) —, você quer mesmo dar essa

arma, seja lá o que for, pro Gallywix? Sabendo como ele é puxa-saco do nosso chefe guerreiro

lunático?

— Sr. Gallywix — disse Druz, em reprovação. — E cá entre nós... e nossa guia... nós queremos

moeda de troca, e não poder. Antes a gente queria a paz entre a Horda e a Aliança, mas, depois de

Theramore…

— Paz — disse Ziya. — Gallywix quer que a Horda faça as pazes. Com a Aliança.

— É — disse Druz, erguendo as sobrancelhas ao detectar raiva na voz de Ziya.

— Mas eles são piores que ele! Se voltarmos atrás agora, tudo que fizemos terá sido em...

— Espere — disse Druz. Eles tinham passado por mais algumas intersecções sem parar. —

Andarilha das Lendas, onde nós estamos?

— Em uma história — disse Shuchun. Ela prestava atenção no chão.

— Qual?

— Uma não muito feliz, se eu estiver certa — disse ela, desacelerando para que os goblins a

acompanhassem. — Mas quero ter certeza antes de... deixa pra lá. — Ela apontou. — Agora eu tenho

certeza.

Suas pegadas apareciam diante deles. De alguma forma, tinham andado em círculos, mas havia

alguma coisa estranha.

Havia outras pegadas atrás das suas, tortas e horríveis. E, se estavam andando em círculos...

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— Não se virem — disse Shuchun.

— Mas... — disse Ziya, sentindo um calafrio. Pés ávidos batiam no caminho de pedra atrás deles,

aproximando-se.

— Não se virem — repetiu Shuchun. — Esse é o "Labirinto do Imperador Louco Kun".

— O imperador Kun — explicou a Andarilha das Lendas Shuchun — era dominado por seus

medos. Ele acreditava que os mogus iriam retornar. Em meio à névoa da paranoia, ele enxergava

traição atrás de cada sorriso, um complô atrás de cada juramento de lealdade e armadilhas astutas

por trás das calmas profecias dos parláguas jinyus.

— Por isso, ele ordenou que um labirinto fosse construído sob seu palácio, com uma sala segura

no centro. No ataque de pânico seguinte, Kun fugiu para o labirinto, entrou na sala segura, fechou a

porta e esperou que o terror passasse. Mas nunca passou. O labirinto fora construído tão bem que o

imperador esqueceu a saída.

Mordendo os lábios, Druz olhava de um lado a outro enquanto espichava o braço para pegar

seu...

Sem tirar os olhos do túnel à frente, Shuchun lhe aplicou uma cacholeta na orelha.

— Ai. Para com isso.

— Qual o problema? — respondeu Shuchun calmamente, enquanto os grunhidos da criatura

que se aproximava ficavam mais altos. — Você não está usando seus ouvidos pra ouvir mesmo. Não

É. Pra. Olhar.

— Por quê?

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— Acho que ela está tentando explicar — disse Ziya, de olhos fechados como se orasse ou

estivesse com medo.

— Os grupos de busca às vezes o ouviam chamar — continuou Shuchun. — Mas os anos se

passaram. Às vezes, algum explorador entrava no labirinto e fugia de lá gritando, louco de terror,

pois o tempo que Kun passara lá dentro o transformara em algo horrível de se ver...

— O que vamos fazer? — sussurrou Ziya. Garras arranharam as paredes atrás deles. A boca de

Druz estava firmemente apertada e sua mão pairava sobre o rifle.

— Nós imitamos a história — disse a Andarilha. — Um filhote chamado Li Tao perseguiu seu

bandinim até o labirinto. Ele logo percebeu que estava sendo seguido.

Eles viram pelo canto do olho uma cabeça enorme aparecer. Uma respiração sôfrega, quente e

azeda soprou em seus rostos.

— Embora estivesse assustado demais para olhar, o pequeno Li Tao ainda se lembrava de que

ali estava alguém que tinha ainda mais medo que ele. Então ele voltou...

Ela voltou. Uma garra enorme e deformada se fechou gentilmente sobre a sua.

— … e levou o pobre imperador Kun para fora do labirinto.

Luz do sol, branca e cegante, surgiu à frente. Ziya e Druz, ambos tentando parecer calmos,

avançaram rapidamente naquela direção.

Eles adentraram a região iluminada. Os dois goblins olharam para trás e se encolheram ao

mesmo tempo.

O imperador se fora. Bem como o labirinto. A Andarilha das Lendas Shuchun olhou com tristeza

para sua pata vazia.

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— Medo e paranoia transformam nossos inimigos em monstros — disse ela, calmamente. —

Alguém tem que fazer o primeiro gesto.

***

Eles continuaram a caminhar pela luz, seguindo a Andarilha das Lendas.

— Onde nós estamos? — perguntou Druz.

— Na câmara das lendas — respondeu Shuchun.

— Isso eu já sei — disse Ziya. — Qual história? "A luz do tédio infinito"?

— Eu gosto de tédio — disse Druz. — Raramente se morre de tédio.

— Ah, sim, aposto que sua vida é bem perigosa mesmo — disse Ziya.

Druz ergueu a sobrancelha. — Você tem alguma coisa pra desabafar?

— Já que você perguntou, sim. — Ziya se voltou para ele. — É fácil pra você falar de paz. Você

fica no bem-bom com Gallywix durante anos; já eu, vivo nos campos de batalha. Todo mundo que

entrou junto comigo já morreu. A paz é impossível, Druz. Se você lutasse nas linhas de frente,

saberia disso!

A luz pulsou gentilmente uma vez. A Andarilha das Lendas Shuchun parou de caminhar e

cheirou o ar.

Apertando o anel que levava no pescoço até a mão doer, Ziya esperava que Druz gritasse com

ela. Ela queria que ele gritasse. Em vez disso, ele suspirou.

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— Você se lembra das Guerras do Comércio, Sargento? — perguntou ele.

— N-não muito... eu era muito jovem.

— Eu, não. Era briga entre cartéis. Irmão contra irmã. Eu já trabalhava para o Sr. Gallywix na

época, como você sabe.

"E você está certa. Eu nunca vi as linhas de frente, porque não havia isso nas Guerras do

Comércio. Nós lutamos em túneis e galpões por toda a Inframina. Emboscadas não eram manobras

em pinça chiques em campo aberto, eram algum cretino arrebentando uma parede que você achava

que era sólida. Claro, a Guerra da Paz foi pior."

A luz agora pulsava mais rápido. Druz olhou ao redor e sacou o rifle.

— Você não pode impedir a guerra, sargento. Não por muito tempo. Ela fica voltando. O sr.

Gallywix continua vencendo elas também. Às vezes usando a bomba certa na hora certa. Às vezes

fazendo aliança com um idiota poderoso. E às vezes usando uma arma assustadora como moeda de

barganha.

— E agora o seu mestre estrategista acha que a paz é a melhor jogada — disse Ziya, revirando

os olhos.

— Isso aí — respondeu Druz, calmamente.

— Impossível. Se a Aliança não acabar com a Horda inteira, eles vão nos escravizar, como

fizeram com os orcs.

— Na verdade, eu concordo com você.

— Sério?

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— Sério. Eu nunca vi o Sr. Gallywix errar, mas conseguir a paz é uma chance em cem e olhe lá.

Ele pode voltar as princesas e príncipes mercadores uns contra os outros e sair de fininho inocente

feito um pardal, mas contra os rosadinhos e seus aliados? Eu acho que é pra gente continuar

lutando.

— Parem — disse a Andarilha Shuchun. Embora ela falasse suavemente, o tom peremptório era

perceptível por trás de suas palavras. A luz ao redor deles agora pulsava como um incêndio branco.

O calor se abatia sobre eles como um lençol seco e irritante. O branco tornou-se dunas que se

estendiam em todas as direções. Um deserto infinito.

Uma passagem estreita escavada na areia irrompeu na duna mais próxima. Outra passagem a

seguiu, e depois outras sete.

— Era o que eu pensava — disse Shuchun, com prazer. — Essa é uma das minhas favoritas: "Di

Chen e o deserto".

"O orgulhoso Di Chen era o melhor lutador do seu tempo. Nenhum monge podia derrotá-lo. Ele

pegava flechas no ar com facilidade. As montanhas eram pequenos inconvenientes que ele podia

saltar ou destruir com um chute.

"Ele estava muito entediado. Desesperado, Di Chen pediu um desafio de verdade a Lui Ka, a

bruxa do deserto.

"Divertindo-se com sua arrogância, a bruxa lhe concedeu aquele desejo: ele combateria o

próprio deserto. Cada grão de areia se tornou um guerreiro feroz decidido a matar Di Chen.

"Os guerreiros se aproximaram. Eles pareciam mogus de armaduras de placa, e suas mãos

metidas em manoplas se flexionavam."

— Então esses caras estão decididos a nos matar? — perguntou Druz, com uma careta.

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— Ah, se estão — respondeu Shuchun.

— Ótimo — disse Druz, e disparou. Três cabeças arenosas explodiram. — Estava começando a

achar que tinha trazido a arma à toa. Sargento?

— 'Xá comigo — disse Ziya. Druz se ajoelhou para recarregar e Ziya pulou por sobre seus

ombros largos, enterrando as duas adagas no peito do guerreiro mais próximo, que caiu num jorro

de areia. Ela arremessou uma lâmina em um rosto arreganhado, passou pelo inimigo que se

desintegrava para recuperar a arma, agachou-se e atacou os três guerreiros remanescentes. O aço

brilhou em uma espiral e os soldados caíram um a um.

Uma brisa quente soprava pelo deserto vazio. Sorrindo, Ziya voltou, embainhando as adagas…

Mais trinta guerreiros irromperam das dunas, gritando de ódio e fúria.

— Volta, Sargento — disse Druz, fechando o rifle depois de recarregá-lo. Ziya, rilhando os

dentes, foi até o lado dele e esperou com as adagas prontas.

— Eu não contei o fim da história — disse a Andarilha das Lendas Shuchun.

— Com todo o respeito, Andarilha — disse Druz, disparando outra vez. Dois guerreiros caíram.

Outros três se ergueram. — Agora não é hora disso.

Shuchun deu de ombros e foi se sentar em uma duna próxima. Cantarolando, ela pegou uma

maça da mochila, deu uma mordida entusiasmada e ficou assistindo à luta com interesse. Um único

guerreiro cambaleou em sua direção, grunhindo, e ela mostrou as patas vazias. O guerreiro parou e

se esfacelou na areia. As criaturas não a atormentaram mais.

Por fim, ela jogou fora o miolo da maçã e fez uma careta.

— Tem algo errado — disse ela.

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— Ah, você acha? — As adagas de Ziya socavam a areia rapidamente. — Cai, seu lakratz feioso,

cai!

Shuchun coçou a bochecha, intrigada, e então estalou os dedos.

— Ah, sim — disse, satisfeita. — Na história, os guerreiros do deserto tinham armas.

— Quê? Druz! Abaixe-se! — gritou Ziya. A pesada arma de ferro de um guerreiro zumbiu no ar e

bateu contra a areia.

— Ah, agora sim — disse Shuchun. Agora todos os guerreiros tinham uma variedade

empolgante de espadas, maças e armas de haste. Shuchun apoiou o queixo nas mãos e ficou

assistindo.

— Você fez isso?! — rugiu Druz, entre os disparos.

— Eu, não — respondeu Shuchun. — A história.

— E você! E você!

— Acho que é verdade — disse Shuchun. — Mas eu podia ter mencionado que as armas

estavam pegando fogo...

FUSH!

— Aah!

— Tá, isso foi meio irresponsável — admitiu Shuchun, vendo a luz alaranjada do fogo brilhar no

pelo de suas patas erguidas. — Eu vou ficar quieta. Podem continuar.

Os minutos se passaram, pontuados por grunhidos, arquejos e acrobacias ousadas. Finalmente

Shuchun se levantou e desceu pela duna até o palco da batalha.

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— Cada grão de areia se tornou um guerreiro feroz decidido a matar Di Chen — repetiu a

Andarilha, empurrando os soldados distraidamente. Eles paravam, confusos, como se não a vissem

— A batalha só terminou quando Di Chen admitiu que havia desafios difíceis demais até para ele.

Ela chegou ao centro das centenas de soldados. Druz e Ziya estavam de costas um para o outro,

completamente cercados. Armas flamejantes obscureciam o céu.

— Quer dizer que é pra gente se render? — perguntou Ziya, ofegando.

— É uma opção — respondeu Shuchun.

— Por mim, tá ótimo — disse Druz, baixando a arma. Ziya fez o mesmo imediatamente.

O vento uivou no alto, rico com as risadas da bruxa do deserto, e carregou os soldados grão a

grão. Os goblins os viram sumir.

— Você podia ter avisado — grunhiu Ziya.

— Ela tentou contar o resto da história — disse Druz, sorrindo e se abaixando para pegar a

arma — Mas nós quisemos lutar...

Ele parou e lançou um olhar desconfiado na direção de Shuchun. — Espera. Antes dessa última

confusão, estávamos falando sobre continuar a lutar. E acabamos numa batalha impossível.

O queixo de Ziya caiu. — Estávamos falando de monstros e sobre não haver caminho de volta, e

acabamos sendo seguidos por um monstro em um labirinto!

— Andarilha das Lendas — disse Druz, firme. — Estamos criando armadilhas quando

discutimos?

— Claro que estão — respondeu Shuchun, sem trair seus sentimentos. — Eu achei que vocês

soubessem.

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— Como é que a gente ia saber?

— Quando meu povo se mete em uma discussão muito séria, eles chamam um Andarilho das

Lendas — explicou Shuchun. — O Andarilho escuta os dois lados e conta uma história que contesta

as opiniões de todos. Não era isso que vocês estavam fazendo?

— Não!

— Ahn — disse Shuchun.

— Nós podíamos ter morrido!

— Nunca — disse a Andarilha. — Afinal, Di Chen não sofreu nem um arranhão. Na história.

— O que aconteceu com ele no fim? — perguntou Ziya. — Ele se rendeu também?

O vento ficou forte outra vez, e o círculo alto do Sol se expandiu sobre eles, um lençol estendido

de luz branca. Shuchun sacudiu a cabeça e apontou para um vulto no topo de uma duna distante.

Enquanto observavam, o vulto girou para dar um golpe com um punho cansado, esfacelando um

guerreiro e transformando-o em pó.

— Ele continua lutando até hoje — disse ela. — Sempre há motivos para lutar. O truque é saber

quando parar.

***

Os goblins ficaram quietos, lado a lado, no centro de uma pequena sala branca.

— O que está acontecendo? — disse Druz, pelo canto da boca.

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— A câmara das lendas está esperando que vocês falem para que ela possa criar o último

desafio — respondeu Shuchun, as costas apoiadas na parede.

Druz aquiesceu.

— Foi o que eu pensei — disse ele, e então ficou quieto outra vez. O tempo passou.

Por fim, Shuchun teve pena deles.

— Vocês podiam falar sobre seu amor mútuo por pôres do sol — disse ela.

— Isso pode virar alguma história?

Shuchun pensou.

— Várias — admitiu ela.

Silêncio.

— Eu não entendo — disse Ziya. Druz a cutucou, e ela o ignorou. — Por que os pandarens usam

histórias para resolver problemas?

— Não somos apenas nós — respondeu Shuchun. — Todas as raças têm histórias que são

contadas e recontadas. Nós gostamos delas porque elas têm as respostas fáceis que nos ajudam a

encontrar as difíceis. Mas histórias são perigosas.

— Jura? — disse Druz. A Andarilha sorriu.

— Às vezes, nós esquecemos que histórias quebram as regras — disse Shuchun. — Respostas

simples não se importam com as consequências, e há muitas.

— Eu entendi — disse Druz. — Seu artefato é uma resposta fácil. Mas você é neutra, Andarilha

das Lendas. Nós não podemos nos dar ao luxo de… Nós temos que tomar decisões difí... ah, praga!

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Bem abaixo deles, sob o assoalho branco, antes opaco, algo escuro e terrível se movia.

— Você sabia que isso ia acontecer — disse ele.

Shuchun deu de ombros.

— Eu não forcei você a entrar na câmara das lendas — respondeu ela.

— Qual é essa?

Shuchun observou o horror que se desenrolava lá embaixo.

— Você quer um palpite? Acho que é "As aranhas de Te Zhuo" — disse ela.

Druz e Ziya fecharam os olhos. A nuvem negra abaixo deles se expandiu e milhares de pequenos

— não pequenos o suficiente — corpos subiram em direção à luz.

— Como você é contra aranhas? — perguntou Ziya.

— Não sou muito bom, não. Andarilha das Lendas? Alguma chance de a gente pular para a

moral da história? Alguma coisa sobre ações e consequências? A gente já entendeu.

— Já? — perguntou Shuchun, educadamente. — Elas ainda estão vindo.

As paredes brancas sumiram como nuvens cinzentas em vento forte. Os goblins e a Andarilha

ficaram em cima de uma plataforma de pedra no centro de um grande aposento barulhento.

Milhares de pernas subiam, e sombras pesadas e enormes davam voltas nas trevas ao redor da

plataforma numa velocidade estonteante.

— Bom, então conte o final da história — disse Druz, entredentes. — Faça isso parar.

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— Isso vai ser um problema — admitiu Shuchun. — Nenhum explorador que entrou no templo

perdido de Te Zhuo foi visto de novo. Essa é uma história para meter medo em criança, não é bem

uma história.

— Uma história para as crianças não entrarem no templo onde a gente já está? — perguntou

Ziya, cansada.

Shuchun se alegrou.

— Espera, espera aí — disse Druz. — Ninguém nunca voltou? Então não encontraram nenhum

corpo.

Shuchun virou a cabeça de lado. — E...?

— Então como é que a gente sabe que é um lugar ruim? — perguntou Druz. — Pode ser tão

maravilhoso que ninguém quis sair.

— Olha, é uma possibilidade — concedeu Shuchun enquanto Ziya enterrava o rosto nas mãos.

— Só que o título da história menciona aranhas, e deve ter um bom motivo pra isso.

— É? — disse Druz. Ele e Ziya se aproximaram sem precisarem combinar, juntando os ombros.

— Bom, eu não disse que ninguém nunca ouviu os exploradores de novo. Eles gritam.

— Deixa eu adivinhar. Eles gritam alguma coisa sobre aranhas — disse Ziya.

— Se gritam.

Uma onda de morte negra em incontáveis patas peludas explodiu do fosso abaixo. E parou.

Aglomerados de olhos brilhantes ardiam de fome.

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— Então, se entrarmos nesse templo Te Zhuo — disse Druz depois de respirar calmamente —,

podemos encontrar qualquer coisa. Armadilhas. Aranhas bem impressionantes.

— Servos dos Deuses Antigos, talvez — disse Ziya. — Eles entram em qualquer lugar.

— Uma ação — disse Druz lentamente. — Um resultado: a gente não sai mais daqui.

— Não temos como sair dessa, não é? — perguntou Ziya. — Nossas ações nos trouxeram aqui.

Temos que lidar com as consequências.

— Isso — disse Shuchun, sorrindo. — Muito bem.

As trevas inundaram a plataforma e carregaram os goblins.

***

Ziya abriu os olhos. O frio contra sua bochecha era um chão de mármore, comprido e pálido,

estendendo-se na direção…

… de um pergaminho do lado oposto da parede, em uma câmara estreita e sem portas. Os

fantasmas de palavras passavam pela superfície do pergaminho rápidos feito pensamentos. Era o

branco total de um olho sem pupila, encarando-a, esperando.

Shuchun passou por cima dela e bloqueou sua visão do pergaminho com uma passada tão

precisa que parecia ter sido prevista.

Grunhindo, Ziya se ergueu.

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— Isso é tudo? — grunhiu Druz. Ele se aproximava da parede, parecendo pior do que ela se

sentia.

— É — respondeu Shuchun.

— O que é isso?

— Alguns chamam de arma — disse Shuchun. — Outros chamam de lição ou punição. Tudo o

que eu sei é que os Andarilhos da Lendas o criaram há muito tempo e devem arcar com o fardo de

manter o mundo a salvo das consequências.

— Por que ele é tão perigoso? — disse Ziya.

— Um pergaminho em branco — qualquer pergaminho em branco — contém possibilidades.

Pode se tornar o conto de Rakalaz — explicou Shuchun, e Ziya olhou para o alto. Abriu-se uma

rachadura no teto e caiu areia por ela. Em algum lugar lá em cima, ela contara uma história. Teria o

pergaminho escutado?

— Ou talvez o pergaminho registre a lenda de um exército infinito feito de areia, de uma legião

de aranhas — disse Shuchun — ou coisa pior.

— Então você está dizendo que ele traz personagens à vida, que nem os andarilhos? —

perguntou Druz.

— Não. Você não entendeu. Eu posso evocar Di Chen para discutir com a bruxa do deserto e

combater o exército lendário. Eu não poderia fazer com que ele combatesse meus inimigos.

Druz ergueu a sobrancelha. — O pergaminho pode fazer isso?

Ziya notou a fome em sua voz. Será que Shuchun ouvira?

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— Talvez — disse Shuchun, serenamente. — Nossas lendas dizem que ele pode transformar

palavras em carne. Esperança em realidade.

— Você vai me desculpar, mas pra mim isso tem cara de evocação mágica — disse Druz. —

Bruxos fazem isso o tempo todo. Não tem nada de errado, fora algumas invasões demoníacas.

— Não? — perguntou Shuchun.

Uma arma foi engatilhada.

— Não. Não vou negar que é perigoso — disse Druz, como quem se desculpa, apontando o rifle

para Shuchun. — Mas uma arma é uma arma. Não vai atirar até que alguém aperte o gatilho. Ahm,

modo de falar. Ziya, pegue o pergaminho.

Shuchun olhou para Druz com tanta tristeza que Ziya se perguntou como ele conseguiu

aguentar.

— Eu falei que não deixaria você levá-lo.

— Não é uma discussão. Ziya. Pergaminho.

— Você acha que poderá controlá-lo, quando nós não pudemos?

— Eu? Não. O sr. Gallywix quer o que está guardado aqui. Ele vai conseguir o que quer.

— "E assim os goblins decidiram pegar o pergaminho" — disse Shuchun suavemente.

Suas palavras passaram pelo pergaminho, que pulsou com uma chama branca. As paredes da

sala se racharam e luz branca entrou pelas fendas.

Instintivamente Druz puxou o gatilho.

— "Instintivamente Druz puxou o gatilho e..."

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***

... a bala partiu.

Os goblins partiram levando o pergaminho e adentraram os aposentos do príncipe mercador

Gallywix.

Ziya cambaleou, combatendo a náusea que sentia. Druz cambaleou junto, trombou com ela e se

apoiou em seu ombro.

Como eles tinham chegado ali? A última lembrança que ela tinha era do rifle disparando contra

o rosto solene da Andarilha das Lendas Shuchun, o que parecia ter acontecido apenas alguns

segundos antes.

Agora eles estavam em outra parte. O rugido longínquo dos motores do superzepelim pulsavam

atrás das paredes. Ziya e Druz estavam em um espaço apertado e escuro. A oficina de um faz-tudo

com um banco simples de madeira. Uma bancada. Ferramentas organizadas cuidadosamente.

Jastor Gallywix sentava-se à bancada, desenhando um diagrama a mão livre, e a desorientação

de Ziya passou. Tinha sido um dia longo.

Gallywix estava mais magro do que ela se lembrava, mas não muito. Sua barriga saía de baixo do

colete simples, aberto. Na época ele também usava uma cartola grande demais, anéis brilhantes e

um sorrisinho horroroso de arrepiar canela de sacerdote.

Mas esse Gallywix não usava joias e não estava sorrindo."Talvez você não o conheça tão bem

quanto eu" , Druz dissera...

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Druz se empertigou ao lado dela.

— Taqui, chefe — disse ele, e jogou o pergaminho na bancada. Gallywix não tocou no artefato.

— E a Andarilha das Lendas?

Ziya sentiu uma onda de culpa. Ela vira a bala voar. Shuchun se fora. Não havia dúvida.

— Morta — disse Druz, mas ele soou hesitante.

— Que pena — respondeu Gallywix, e acenou na direção do pergaminho. — O que é isso?

— Parece que é um tipo de portal que torna as histórias reais. As coisas saíram de controle

antes que a Andarilha pudesse explicar melhor.

O príncipe mercador olhou com atenção para o pergaminho. Ziya se preparou para a coisa

terrível que...

— Parece encrenca — disse Gallywix. — Vou guardar no câmara inferior quando voltarmos a

Azshara.

O queixo de Ziya caiu.

— Chefe — disse Druz, quase implorando. — Se o senhor não usar, alguém vai.

— Você sabe o que eu vou dizer — disse Gallywix, olhando para ele.

— Sei, sim — respondeu Druz, suspirando.

— Que bom. A última coisa de que precisamos é de uma arma enorme dando sopa por aí. Tire-a

daqui.

— E é só isso? — As palavras foram ditas antes que Ziya pudesse se refrear.

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Gallywix olhou para ela. Ela podia ver as engrenagens girando na cabeça dele.

— O que você esperava, Sargento? — perguntou ele.

— Eu esperava que você usasse! — grunhiu Ziya. — É o que você faz. Você usa coisas. Você é um

monstro!

Para sua surpresa, Gallywix concordou.

— É, eu sou. Mas não desse tipo.

— É desse o tipo que você é, sim!

— Não — disse Gallywix. — Nós nunca nos vimos antes, Sargento, então permita-me explicar.

Eu não me importo de vender você se você ficar descuidada. Eu mando você para a morte se isso for

ajudar o cartel. Mas eu não quero que você morra por estupidez ou por causa de uma arma grande e

imbecil a troco de nada. Eu não sou assim.

Ele olhou para o anel pendurado no pescoço dela. As mãos de Ziya se fecharam ao redor dele,

protetoras. Uma expressão inescrutável passou pelo rosto de Gallywix.

— De qualquer forma, eu sinto muito pelo que houve com seu marido em Hyjal. Mas não sinto

muito por nada do que eu fiz. Então, sim, eu sou um monstro. Mas eu cuido do que é meu. Sempre

que possível.

— E no momento, isso significa esconder essa arma antes que alguém fique sabendo dela.

Mas é claro que alguém descobriu, sussurrou a voz da Andarilha das Lendas Shuchun, e a sala se

cristalizou, desacelerou ao redor de Ziya. Os rumores correram mundo: Gallywix encontrara uma

arma poderosa em Pandária e a guardara para si.

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Na mente de Garrosh Grito Infernal, o chefe guerreiro da Horda, só podia haver uma explicação

para tal traição: rebelião. Garrosh levou a Horda dividida a invadir o Ancoradouro Borraquilha .

O superzepelim sumiu. Chão sólido apareceu sob os pés de Ziya.

Das alturas frias do palácio de Gallywix, ela viu seu lar em chamas. Druz cambaleava ao seu

lado, com os olhos marcados de cansaço.

— Ponham suas armaduras — disse um capanga atrás deles. — Eles logo estarão aqui.

As forças de Garrosh chegaram ao palácio. Os goblins recuaram para os corredores subterrâneos,

protegendo o cofre e os segredos ali contidos , disse a Andarilha das Lendas Shuchun.

Ziya recuou, com as adagas úmidas nas mãos. Um elfo sangrento ergueu um arco e Druz

empurrou Ziya para o lado, recebendo o projétil no ombro. Ele cambaleou por cima dela grunhindo

e ela o arrastou consigo.

Logo, os poucos goblins sobreviventes já não tinham mais para onde ir , disse a Andarilha das

Lendas Shuchun, calma e implacável.

Uma flecha acertou Ziya e ela se sentou, um pouco surpresa. Druz apoiou-se nela, arquejando. A

antecâmara era uma grande sala de aço repleta de goblins mortos. A Horda, os invasores, se

aproximavam, relutantes agora que o massacre estava próximo. Ela reconheceu alguns deles de

Hyjal e de outras batalhas. Se ela pudesse recuperar o fôlego, sabia que poderia convencê-los de que

estavam cometendo um engano…

A porta da câmara se abriu atrás dela.

A perna de um tanque-aranha passou por cima dos goblins. E outra. E o príncipe mercador

Gallywix avançou gargalhando insanamente contra os invasores. Garrosh abriu caminho por suas

tropas, segurando o machado na gigantesca mão vermelha.

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— Recuem — rugiu o chefe guerreiro. — O traidor é meu.

O duelo não durou muito, mas tampouco correu como se esperava — disse Shuchun.

— Ajude-me — disse Druz, chiando e mexendo no rifle. Ajudando-o do chão, Ziya levantou o

cano da arma, mirando em…

O duelo. O mecano-tanque cambaleou para o lado, recebendo outro golpe do machado e

cuspindo faíscas das juntas enferrujadas. Gallywix estava perdendo. É claro que estava.

Por que ele ainda estava rindo?

Gallywix se ejetou dos destroços do mecano-tanque e se agarrou às presas do orc musculoso,

batendo a cabeça contra o rosto do chefe guerreiro como o lutador de rua que ele fora um dia.

Garrosh caiu com um joelho no chão.

De cabeça pensa, delirando de dor, Druz disparou. Ele errou.

Gallywix estremeceu e caiu.

E Garrosh conquistou os tesouros da câmara, disse a Andarilha das Lendas Shuchun.

Ziya jazia em uma poça crescente de sangue sem saber se era seu, observando Garrosh ajoelhar-

se para pegar o pergaminho.

Meses se passaram, sussurrou a Andarilha das Lendas Shuchun ao ouvido de Ziya. E o mundo

mudou.

Ziya se rendeu à história, fechou os olhos e…

***

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… lutou para abri-los. Sangue escorria para seu olho bom. O elmo tinha aparado o pior do golpe

do orc. Ziya grunhiu, livrando-se da desorientação, e rolou para a esquerda.

A espada do orc cortou o chão onde ela estivera. Ela pulou e fez descer as duas adagas num arco

cruel.

O orc a encarou sem expressão, com as adagas projetando-se de sua garganta, e caiu.

Ele logo se levantaria de novo.

Garrosh acreditava em um mundo governado por orcs. O pergaminho tornara aquilo realidade.

Os orcs afluíam por toda Kalimdor, escravizados por um mestre diferente do sangue demoníaco que

outrora os dominara. Nada poderia matá-los, e o vácuo pálido do artefato que os impelia brilhava

em seus olhos vazios.

Teldrassil, em chamas, caíra no mar. Um fosso calcinado era tudo o que restara de Exodar. Os

taurens e trolls, horrorizados com a devastação, tinham fugido pelo Grande Mar, esperando que

Garrosh ficasse contente com as vitórias obtidas.

Ele não ficou.

Ziya estava perto do Porto de Ventobravo. Uma última batalha ao lado de seus aliados e antigos

inimigos. Uma luta que não podiam vencer.

O som de passos a alertou e ela sacou as adagas.

— Você — disse.

— Eu — disse Druz, enrolando uma gaze esfiapada em uma ferida profunda no braço. —É bom

ver você, Sargento.

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Ele não carregava arma nenhuma. Talvez tivesse se perdido. Talvez ele tivesse desistido

completamente e a deixado cair. Se qualquer maneira, ela não podia culpá-lo.

Eles ficaram lado a lado. A frota de orcs chegou à enseada lotada, despejando centenas de

guerreiros uivantes nas docas. Taurens morreram ao lado de humanos, anões e elfos sangrentos,

mas tarde demais, tarde demais.

O orc aos pés de Ziya se mexeu, e suas feridas horrendas começaram a se fechar.

— O que conta são as boas intenções... né? — disse Druz.

— É tudo culpa sua — disse Ziya, baixinho.

Druz deu uma risadinha. — Pelo menos não vamos viver para nos arrependermos.

Ziya correu para a batalha e Druz a seguiu.

***

Ventobravo caiu. Os orcs reinavam supremos. Por algum tempo.

O Portão Negro, desprotegido, foi reconquistado pela Legião Ardente. Horrores se ergueram do

mar e não encontraram campeões que os rechaçassem.

As montanhas de Azeroth queimaram e derreteram. Os oceanos ferveram até que nada mais

restasse. E tudo era trevas.

***

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Tudo era luz.

Esmaecendo, o pergaminho em branco ainda lançava uma longa sombra na direção da

Andarilha das Lendas Shuchun, transformando os rastros de gotas de água nas paredes da câmara

das lendas em uma rede enfeitada de pérolas brilhantes.

A bala estava parada diante de Shuchun, o último vínculo entre os dois goblins e seu futuro

terrível.

A Andarilha Shuchun esticou o braço, colheu a bala do ar e a depositou com cuidado no chão.

— "A Andarilha das Lendas Shuchun se voltou para o pergaminho" — disse ela. — "De certa

forma, Druz estava certo. O pergaminho era simples como uma arma. Mas armas podem ser

disparadas acidentalmente. Balas podem atingir o alvo errado. Então a Andarilha das Lendas

Shuchun mirou com cuidado e disse…

"'As imagens que os dois goblins viram não eram reais.'

A sala girou, derrubando os goblins no chão. Shuchun não se moveu um centímetro.

— "Nenhum dos horrores que eles testemunharam aconteceu de verdade."

Ziya baixou a cabeça sob o peso das ondas nauseantes de memória, das perdas e velhas feridas

que ela já não carregava.

Ela ouviu: — "E tudo estava como estava."

Ziya olhou para cima em súbita calma. Shuchun guardou o pergaminho bem enrolado atrás do

ombro.

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— Aquilo foi real? — disse Ziya. — Alguma coisa foi?

Shuchun refletiu sobre a pergunta.

— Você vai dormir melhor se eu não responder.

Ela estendeu as patas para ajudá-los a se levantar. Ziya segurou uma delas. Druz, não.

— Você podia ter usado o pergaminho desse jeito a qualquer momento que quisesse? —

perguntou ele. Parecia uma acusação.

— Podia.

— Me fez fazer coisas que eu...

— "Fez"? — disse Shuchun, e já não havia gentileza em seu tom. — Você acredita que a paz é

impossível porque nunca tentou. Você acredita que a guerra continuará porque ela nunca terminou,

e toma decisões difíceis sem temer as consequências.

— Você escolheu seu caminho — disse a Andarilha Shuchun, e respirou fundo. — Eu salvei você

dele.

Druz rilhou os dentes. — Então por que nos levar pela câmara das lendas? Por que não fazer a

gente esquecer que encontrou alguma coisa? — Ziya percebeu seu tom súplice.

O sorriso de Shuchun era bondoso e astuto de maneira inquietante.

— Talvez vocês precisassem descobrir o preço das respostas fáceis — respondeu.

***

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Eles se despediram na praia em meio ao ar fresco e salgado.

— Você tem um lugar seguro onde guardar isso aí? — perguntou Druz, indicando o pergaminho.

Algo quebrara nele; isso era óbvio. Mas fora reforjado em algo diferente. Algo mais forte.

— Tenho — respondeu Shuchun.

— Ótimo. Sargento, tire uma folga. Remunerada, é claro — acrescentou ele quando Ziya abriu a

boca. — Faça a Andarilha chegar aonde precisa.

E ele subiu de volta pela corda do superzepelim sem dizer mais nada.

Ziya e Shuchun se afastaram da costa subindo uma trilha. O superzepelim afastou-se

erraticamente no horizonte como se o piloto estivesse bêbado. Provavelmente estava.

— Pra onde a gente vai? — perguntou Ziya.

— Por aqui — disse Shuchun, apontando. — Temos uma jornada longa pela frente.

Ziya girou o anel pendurado em seu pescoço. Para sua surpresa, ela estava sorrindo. Era bom

proteger em vez de atacar, para variar um pouco. Acreditar que a guerra e seus horrores podiam ter

fim.

Elas viajavam em silêncio.

— Quer ouvir uma história? — perguntou Shuchun.