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1 O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO – PLURALIDADE VENCE EXCLUSIVISMO POSITIVISTA 1 Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Professor Emérito da ECEME. Docente da Faculdade Arthur Thomas, Londrina. [email protected] Não é fácil realizar um balanço da sociologia brasileira ao longo dos últimos cem anos, que coincidem com a vida republicana do país. Mais do que uma enumeração exaustiva dos autores e das suas obras, pretende-se, neste estudo, desenvolver alguns aspectos essenciais da produção sociológica no Brasil. Em primeiro lugar, identificaremos os centros pioneiros de estudos sociais que surgiram no país entre o início do século XX e a década de sessenta, quando se generalizou a ideia de desenvolvimento. Analisaremos, a seguir, a produção brasileira nas ciências sociais, do ângulo das tipologias elaboradas por Wanderley-Guilherme dos Santos e Miguel Reale. A seguir, centraremos a atenção na abordagem sociológica de Oliveira Vianna, que iniciou no nosso meio a análise da culturologia do Estado, e sintetizaremos, por último, as mais importantes contribuições que projetam até os nossos dias o estudo dessa variável. A escolha das tipologias analíticas de Wanderley-Guilherme dos Santos e de Miguel Reale justifica-se na medida em que ambas consolidaram a superação do estreito marco cientificista, de inspiração comteana, que tem empolgado, via de regra, aos estudiosos do pensamento social brasileiro. De outro lado, a importância conferida neste trabalho à culturologia do Estado desenvolvida por Oliveira Vianna e por alguns 1 Artigo publicado na Revista do Pensamento Brasileiro, órgão do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, Salvador, Bahia, Ano 1, número 1, Dezembro 1989, pgs. 26-43. Esta publicação foi feita em comemoração pelos cem anos da proclamação da República no Brasil. Foram atualizados alguns dados bibliográficos e datas que constam do texto original.

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O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO – PLURALIDADE VENCE

EXCLUSIVISMO POSITIVISTA1

Ricardo Vélez Rodríguez

Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.

Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Professor Emérito da ECEME. Docente da Faculdade Arthur Thomas, Londrina. [email protected]

Não é fácil realizar um balanço da sociologia brasileira ao longo dos últimos

cem anos, que coincidem com a vida republicana do país. Mais do que uma

enumeração exaustiva dos autores e das suas obras, pretende-se, neste estudo,

desenvolver alguns aspectos essenciais da produção sociológica no Brasil.

Em primeiro lugar, identificaremos os centros pioneiros de estudos sociais que

surgiram no país entre o início do século XX e a década de sessenta, quando se

generalizou a ideia de desenvolvimento. Analisaremos, a seguir, a produção brasileira

nas ciências sociais, do ângulo das tipologias elaboradas por Wanderley-Guilherme dos

Santos e Miguel Reale. A seguir, centraremos a atenção na abordagem sociológica de

Oliveira Vianna, que iniciou no nosso meio a análise da culturologia do Estado, e

sintetizaremos, por último, as mais importantes contribuições que projetam até os

nossos dias o estudo dessa variável.

A escolha das tipologias analíticas de Wanderley-Guilherme dos Santos e de

Miguel Reale justifica-se na medida em que ambas consolidaram a superação do

estreito marco cientificista, de inspiração comteana, que tem empolgado, via de regra,

aos estudiosos do pensamento social brasileiro. De outro lado, a importância conferida

neste trabalho à culturologia do Estado desenvolvida por Oliveira Vianna e por alguns

1 Artigo publicado na Revista do Pensamento Brasileiro, órgão do Centro de Documentação do

Pensamento Brasileiro, Salvador, Bahia, Ano 1, número 1, Dezembro 1989, pgs. 26-43. Esta publicação foi feita em comemoração pelos cem anos da proclamação da República no Brasil. Foram atualizados alguns dados bibliográficos e datas que constam do texto original.

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estudiosos contemporâneos, prende-se ao fato de ser essa variável essencial à

adequada avaliação crítica dos cem anos de vida republicana brasileira, que viu

consolidar-se um Estado mais forte do que a sociedade.

Para realizar os nossos objetivos, desenvolveremos os seguintes itens: 1 –

Primeiros centros de estudos sociais; 2 – estudos sobre a produção brasileira na área

das ciências sociais: a tipologia de Wanderley-Guilherme dos Santos; 3 – Miguel Reale

e o paradigma culturalista aplicado à sociologia brasileira; 4 - Oliveira Vianna e a

culturologia do Estado; 5 – Hodiernos desdobramentos da culturologia do Estado.

Número especial da Revista do Pensamento Brasileiro, publicado pelo Centro de Documentação do

Pensamento Brasileiro, com motivo das comemorações pelo Centenário da República, em Dezembro de

1989. (Foto: arquivo do autor).

1 – Primeiros centros de estudos sociais.

Wanderley-Guilherme dos Santos, no ensaio intitulado: “Paradigma e história: a

ordem burguesa na imaginação social brasileira”,2 destaca o fato de que até 1919,

quando se cria a Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro, os

estudos sociológicos eram feitos pelas faculdades de Direito. Após a criação da

Faculdade de Ciências políticas e Econômicas, outras entidades apareceram: em 1933,

funda-se a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (entidade particular); em

1934 é organizada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo (entidade

pública) e em 1935 iniciam-se os Cursos de Ciências Sociais na Universidade do Distrito

Federal (entidade pública).

2 O ensaio em apreço constitui o primeiro capítulo da obra intitulada: Ordem burguesa e liberalismo

político, São Paulo: Duas Cidades, 1978, pg. 16-57.

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Sintetizando a evolução institucional do ensino e da pesquisa das ciências

sociais no Brasil, Wanderley-Guilherme dos Santos 3 considera que “(...) Desde os

momentos da Independência até a terceira década deste século [XX], a

intelectualidade brasileira enfrentou o passado e o presente do país e do exterior, sem

o auxílio de instituições especializadas na absorção, geração e difusão de

conhecimentos sociais. A partir dos anos 30, neste século, passou a contar a reflexão

social brasileira com os esforços das Escolas de Sociologia e Política, em permanente

expansão quantitativa e geográfica (...)”.

Esforço significativo de estudo do pensamento social foi empreendido, fora do

ambiente universitário, na década de cinquenta, pelo IBESP-ISEB (Instituto Brasileiro

de Economia, Sociologia e Política – Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e pela

ESG (Escola Superior de Guerra), segundo Antônio Paim. 4 O primeiro, com origens em

1952 e definitiva consolidação em 1955, ocupou-se preferentemente das questões

políticas vinculadas ao desenvolvimento. Embora fosse dissolvido em 64 por ter-se

engajado na luta política, conseguiu popularizar a ideia de um projeto nacional de

desenvolvimento, retirada qualquer conotação político-partidária, tendo sido

preservado o seu acervo na Escola Superior de Guerra.

A Escola Superior de Guerra estruturou-se em 1950 e desenvolveu estudos

sistemáticos de política e estratégia, segurança e desenvolvimento nacionais,

admitindo a possibilidade de uma ciência política que contribua para o bem comum.

“O propósito essencial da Escola – salienta Paim - tornou-se a promoção da

racionalidade na atuação do Estado. Semelhante objetivo é entendido como

correspondendo à velha aspiração da intelectualidade e da elite militar e consiste no

empenho decidido em prol da superação das deformações do Estado Liberal”.

Considerando que ao Estado moderno cabe a realização do ordenamento

econômico e social, a doutrina da Escola acha necessário eliminar toda atuação

improvisada, empírica e emocional, a fim de substituí-la pelo máximo de racionalidade.

Embora a ESG tivesse desenvolvido com êxito significativa elaboração teórica,

notadamente no que respeita à área de atuação do poder que não pode ser objeto de

barganha, por configurar as bases do pacto político (esfera denominada de objetivos

nacionais permanentes), o empenho de atribuir fundamentos morais à ideia de

segurança nacional, dissociando-a de qualquer conotação ideológica, não teve

resultado bem sucedido.

3 Cf. SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história: a ordem burguesa na imaginação social

brasileira”. In: Ordem burguesa e liberalismo político, ob. cit., p. 22-23. 4 Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 117

seg.

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2 – Estudos sobre a produção brasileira na área das ciências sociais: a

tipologia analítica de Wanderley-Guilherme dos Santos.

Considerando os mais significativos estudos sobre a produção brasileira na área

das ciências sociais, W. G. dos Santos arrola os seguintes: Fernando de Azevedo, A

cultura brasileira – Introdução ao estudo da cultura no Brasil; 5 Djacir Menezes, “La

Science Politique au Brésil au cours des trente dernières années”; 6 L. A. Costa Pinto e

Edson Carneiro, As ciências sociais no Brasil; 7 A. Guerreiro Ramos, Esforços de

teorização da realidade nacional politicamente orientados, de 1870 a nossos dias; 8

A. Guerreiro Ramos, “O inconsciente sociológico: estudo sobre a crise política no Brasil

na década de 30”; 9 A. Guerreiro Ramos, “A ideologia da Jeunesse Dorée”; 10 Djacir

Menezes, “La sociologia del Brasil”; 11 Florestan Fernandes, “Ciência e sociedade na

evolução do Brasil”; 12 Florestan Fernandes, “O padrão de trabalho científico dos

sociólogos brasileiros”; 13 Florestan Fernandes, “Desenvolvimento histórico-social da

sociologia no Brasil”; 14 A. Guerreiro Ramos, “A ideologia da ordem”; 15 Nelson

Werneck-Sodré, A ideologia do colonialismo; 16 Wanderley-Guilherme dos Santos, “A

imaginação político-social brasileira”; 17 Edgar Carone, “Coleção Azul, crítica pequeno-

5 AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira – Introdução ao estudo da cultura no Brasil. Volume I da

Série Geral de Recenseamento Geral do Brasil, Rio de Janeiro: IBGE, 1943. As referências bibliográficas constantes nas notas 5 a 21, algumas delas incompletas, foram tiradas do ensaio já mencionado de Wanderley-Guilherme dos Santos, pgs. 24 e 25. 6 MENEZES, Djacir. “La Science Politique au Brésil au cours des trente dernières années”, in: UNESCO, La

Science Politique, Paris: UNESCO, 1950. 7 COSTA PINTO, L. A. e CARNEIRO, Edson. As ciências sociais no Brasil. Rio de Janeiro: CAPES, 1955, Série Estudos e

Ensaios nº 6. 8 GUERREIRO RAMOS, A. Esforços de teorização da realidade nacional politicamente orientados, de

1870 a nossos dias. Conferência no I Congresso Brasileiro de Sociologia. São Paulo, 1955. 9 GUERREIRO RAMOS, A. “O inconsciente sociológico: estudo sobre a crise política no Brasil na década

de 30”; In: Cadernos do nosso tempo, Rio de Janeiro, nº 4, 1955. 10

GUERREIRO RAMOS, A. “A ideologia da Jeunesse Dorée”, in: Cadernos do nosso tempo, Rio de Janeiro, nº 4, 1955. 11

MENEZES, Djacir. “La sociologia del Brasil”. In: GURVITCH, Georges e MOORE, E. (editors). Sociología del siglo XX. (Edición argentina con estudios sobre la sociología en los países latinoamericanos, bajo la dirección de Oreste Popescu), Volume II. Buenos Aires: El Ateneo, 1956. 12

FERNANDES, Florestan. “Ciência e sociedade na evolução do Brasil”, in: Revista Brasiliense, nº 6, 1956. 13

FERNANDES, Florestan. “O padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros”. In: Estudos sociais e políticos, Belo Horizonte, Universidade de Minas Gerais, nº 3, 1958. 14

FERNANDES, Florestan. “Desenvolvimento histórico-social da sociologia no Brasil”, in: Anhembi, São Paulo, nº 75-76, 1957. 15

GUERREIRO RAMOS, A. “A ideologia da ordem”. In: A crise do poder no Brasil, Rio de Janeiro, 1961. 16

WERNECK-SODRÉ, Nelson. A ideologia do colonialismo. Rio de Janeiro: ISEB, 1961. 17

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “A imaginação político-social brasileira”. In: Revista Dados, Rio de Janeiro, nº 2-3, 1967.

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burguesa à crise brasileira de 1930”; 18 Wanderley-Guilherme dos Santos, “Raízes da

imaginação política brasileira”; 19 Bolívar Lamounier, Ideology and authoritarian

regimes: theoretical Perspectives and Study of the Brazilian Case; 20 Hélgio Trindade,

Integralismo - O fascismo brasileiro da década de 30. 21

A situação geral das obras do pensamento social brasileiro é a seguinte,

segundo os estudos arrolados por Wanderley-Gui8lherme dos Santos: “De acordo com

as fontes mencionadas, a história do pensamento social brasileiro é composta pelas

obras de aproximadamente cem estudiosos. Se se exclui da lista de cem os autores que

começaram a produzir mais recentemente, isto é, a partir da década de 40, e também

os críticos literários e panfletários listados por Fernando de Azevedo, sobram apenas

meia centena de nomes, dos quais mais da metade só é reconhecida, ou mencionada

explicitamente, por apenas uma das fontes (...)”. 22

Os estudos em apreço arrolam as obras sobre o pensamento social brasileiro a

partir de três critérios, identificados por Wanderley-Guilherme dos Santos como

“matriz institucional”, “matriz sociológica” e “matriz ideológica”. A primeira é

entendida como “(...) a organização, classificação e avaliação do pensamento social

brasileiro, segundo marcos organizacionais e institucionais”. 23 No sentir do

mencionado autor, fazem parte deste grupo L. A. Costa Pinto, Edson Carneiro,

Florestan Fernandes, Fernando de Azevedo e Djacir Menezes (com o seu texto La

science politique au Brésil au cours des treinte dernières annés, 1950).

W. G. dos Santos considera que a avaliação do pensamento social brasileiro a

partir da “matriz institucional” é insuficiente, porquanto pretende ordenar o passado

em função do presente, inviabilizando, assim, a verdadeira compreensão da

problemática de cada período. A respeito frisa: “As consequências da aplicação desse

esquema são evidentes. Dado que o período científico das ciências sociais no Brasil se

inicia com a criação de cursos superiores, a importação de professores estrangeiros e a

introdução das técnicas de investigação de campo, e dado que isso só se verificou no

segundo quartel deste século, segue-se que a exposição da história do pensamento

político-social brasileiro é extremamente simples: até o segundo quartel deste século

18

CARONE, Edgar. “Coleção Azul, crítica pequeno-burguesa à crise brasileira de 1930”. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, nº 25-26, 1969. 19

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos, “Raízes da imaginação política brasileira”. In: Revista Dados, Rio de Janeiro, nº 7, 1970. 20 LAMOUNIER, Bolívar. Ideology and authoritarian regimes: theoretical Perspectives and Study of the

Brazilian Case. (Ph. D. Dissertation). University of California at Los Angeles, 1974, cap. 9. 21

TRINDADE, Hélgio. Integralismo - (O fascismo brasileiro da década de 30). São Paulo: DIFEL, 1974, 2ª parte. 22

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história: a ordem burguesa na imaginação social brasileira”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 25. 23

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história: a ordem burguesa na imaginação social brasileira”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 25.

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produziram-se ensaios sobre temas sociais, a partir de então produziu-se ciência.

Considerando-se, ademais, que qualquer que tenha sido a quantidade ou qualidade da

produção do primeiro período, ela é irrelevante para o progresso da ciência, torna-se

desnecessário qualquer investigação sobre que autores pertencem ao passado cultural

do país, ou sobre o modo pelo qual pensaram o social. O interesse histórico se

resumiria a catalogar a produção do primeiro período (pré-científico) pela temática e a

explicar de que modo as variações na estrutura da sociedade introduziram

modificações na temática pré-científica. Ora, a historiografia que ordena o passado em

função do presente, assumindo o presente como ‘o moderno’, está desarmada para

entender as exatas articulações do desenvolvimento intelectual da humanidade. A

rigor, está desarmada até para entender o presente, pois ‘on est toujours moderne, à

toute époque, lorsque l´on pense à peu prés comme ses contemporaines et un peu

autrement que ses maîtres’”. 24

A “matriz sociológica” é identificada por W. G. dos Santos com “(...) a análise

que se desenvolve tomando como parâmetro características da estrutura econômico-

social, quer (...) para explicar variações ocorridas, sobretudo no conteúdo das

preocupações dos investigadores sociais, como decorrência de modificações

processadas na estrutura socioeconômica, quer, em casos extremos, para

deduzir os atributos ou dimensões do pensamento social dos atributos e dimensões do

processo social (...)”.25

No contexto da “matriz sociológica” situam-se Florestan Fernandes

(especificamente com os seus textos: Ciência e sociedade na evolução social do Brasil,

1956, e Desenvolvimento histórico-social da sociologia no Brasil, 1957), Edgar Carone,

Nelson Werneck Sodré e Hélgio Trindade. Os textos de Florestan Fernandes

exemplificariam, no sentir de W. G. dos Santos, a primeira variação da “matriz

sociológica”, enquanto que a segunda variação poderia ser ilustrada pela fórmula

cunhada, na segunda metade da década de 50, pelo ISEB, no sentido de que “tudo é

colonial na colônia”. 26

O vício que afeta aos autores inspirados na “matriz sociológica” é o de

pressupor um processo de racionalidade social que é traduzido fielmente para o

terreno político, sem que os cientistas pudessem cometer um erro de avaliação. É, ao

24

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político, ob. cit., p. 26-27. A citação em francês é tirada pelo autor de KOYRÉ, Alexandre. Études d´histoire de la pensée scientifique, Paris: PUF, 1966, p. 6. (“Alguém é sempre moderno, em qualquer época, enquanto pensar mais ou menos como os seus contemporâneos e um pouco também, de forma diferente, como os seus mestres”). 25

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político, ob. cit., p. 27. 26

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político, ob. cit., p. 27.

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nosso modo de ver, o velho arquétipo comteano da “física social”. A respeito, escreve

W. G. dos Santos: “(...) Com frequência, o que se encontra são tentativas manquées

[falhas] de sociologia do conhecimento, onde a simples enunciação e descrição de

atributos dos processos sociais seriam evidências suficientes para demonstrar a

relação de dependência funcional entre o conteúdo do que se pensa e o desdobrar

empírico da história social. Toma-se por premissa exatamente o que incumbe

demonstrar, isto é, que os processos sociais são de racionalidade cristalina, a qual

pode ser captada imediatamente, com escassa possibilidade de engano, permitindo

assim aos atores sociais descobrirem facilmente onde se encontram os seus interesses.

É sintomático que em nenhuma análise desse gênero nos seja apresentado algum

exemplo de pensador que simplesmente se tenha equivocado inteiramente quanto

aos seus interesses de classe, diante das virtualidades do processo objetivo. No

máximo obtêm-se as indicações de que este ou aquele autor falhou no seu

prognóstico porque não percebeu que a defesa ou implementação dos interesses da

sua classe era de todo inviável, ou pelo menos difícil nos termos pretendidos pelo

autor (...). Jamais entretanto admite-se que o autor se tenha equivocado quanto ao

diagnóstico que faz da situação social”. 27

A “matriz ideológica” é caracterizada por W. G. dos Santos como “(...) a

preocupação de analisar os textos brasileiros de reflexão social com o objetivo

explícito de buscar sua caracterização conceitual própria, independentemente dos

azares conjunturais da empiria. Não se trata de afirmar que a empiria histórica é

irrelevante para a formação do pensamento social, nem que esse mesmo pensamento

não se refira em algum momento ao transcurso histórico. Apenas se reivindica a

diferenciação e análise conceitual como procedimentos legítimos e necessários na

apropriação adequada das determinantes estritamente conceituais do presente”. 28

Inserem-se na mencionada perspectiva os trabalhos de Guerreiro Ramos, que

“(...) certamente se constituem como os mais estimulantes até o início da década de

70” 29 e de Bolívar Lamounier, cujo trabalho, no entanto, além de partilhar com o de

Hélgio Trindade “(...) a característica de dissolver as nuances e as diferenças, onde elas

existem, e afirma-las onde elas são irrelevantes”, 30 parece, às vezes, concordar com a

mais estrita concepção determinista, quando diz, por exemplo, que vê a ideologia do

27

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político, ob. cit., p. 28-29. 28

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 31. 29

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 31. 30

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 32.

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Estado, em larga medida, “como o espelho fiel da sociedade e dos conflitos através dos

quais ela é transformada”. 31

Feita a avaliação crítica acerca da forma em que os estudiosos do pensamento

social utilizam a “matriz ideológica”, W. G. dos Santos explicita o modo a partir do qual

pode ser abordado esse objeto, no interior do mencionado arquétipo. Nesse contexto,

a questão do objetivo a ser atingido é fundamental. O autor frisa, a respeito, que “(...)

o ordenamento da história da investigação social, não somente no Brasil, aliás, pode

ser realizado com maior ou menor capacidade de persuasão de acordo com os alvos

que se têm em mente. Assim, se o objeto consiste em descrever os diversos estilos de

análise que se sucederam no tempo, estará bem realizada a história que o fizer de

maneira exaustiva, pertinente e bem articulada. Se, entretanto, a meta for investigar

em que medida a reflexão social acompanhou ou identificou acertadamente os

fenômenos sociais que se propunha analisar, então o critério de ordenamento há de

variar concomitantemente”. 32

No entanto, W. G. dos Santos considera que há, por baixo desta questão, outra

mais radical ainda: “(...) a da unicidade ou multiplicidade dos objetos do conhecer, e a

do estatuto de seu modo de existir”. 33 Resumidamente, ao nosso modo de ver, trata-

se da formulação, no terreno dos estudos sociológicos, da questão das perspectivas

filosóficas: ou adotamos um ponto de vista último transcendente, ou aderimos a uma

perspectiva transcendental. 34 O primeiro alicerçar-se-ia na pressuposição de que por

trás do objeto do conhecimento há uma substância que lhe dá fundamento, enquanto

que a segunda parte do pressuposto de que o nosso conhecimento é apenas

representação do real, sem que tenhamos possibilidade de chegar ate a coisa em si ou

noumenon. Antônio Paim destacou a perspectiva transcendental como característica

do pensamento moderno, nestes termos: “O pensamento moderno consiste,

sobretudo, na busca de uma nova perspectiva, em oposição à transcendente. O ápice

desse processo é alcançado na obra de Kant onde se afirma que a condição humana

está limitada à consideração dos fenômenos. A nova perspectiva denominou-se

transcendental. Recusa toda abordagem das coisas como seriam em si mesmas, fora

do horizonte da percepção e do entendimento humanos, esfera do real que Kant

chamou de coisas-em-si. Ao invés da substância, aqui a categoria fundamental é a de

fenômeno”. 35

31

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 33. 32

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político, ob. cit., ibid. 33

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político, ob. cit., ibid. 34

Cf. PAIM, Antônio. História das ideias filosóficas no Brasil. 3ª edição revista e aumentada. São Paulo: Convívio; Brasília: Instituto Nacional do Livro / Fundação Nacional Pró-Memória, 1984, pgs. 3 seg. 35

PAIM, Antônio. História das ideias filosóficas no Brasil. Edição citada, pg. 5.

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W. G. dos Santos formula claramente as duas perspectivas, transcendente e

transcendental, em relação aos estudos sociológicos. Quanto à primeira, afirma:

“Aceita-se que o significado real dos diversos fenômenos sociais – entre eles o da

reflexão sobre fenômenos sociais, aqui tomado como um fenômeno social ela própria,

isto é, como um objeto posto aí para ser desvendado – é concentrado e único, mais

apropriadamente unívoco, e que compete à história do conhecer articular

conceitualmente esse sentido unívoco e sua evolução temporal. Nesta alternativa, a

história do pensamento social, ou da investigação, ou das disciplinas sociais, possui um

objeto preciso, claro, que ou bem é conhecido ou bem não é, e tudo aquilo que

escapar a esta intenção deixa de ser relevante, por errado, como história das ideias”. 36

Pressupõe-se aqui um substrato ontológico ao qual o conhecimento tem acesso, sendo

a verdade, como diziam os escolásticos, “adequatio intellectus ad rem” (“acomodação

do entendimento à coisa”). O sentido unívoco da realidade histórica depende dessa

possibilidade de adequação à realidade em si. Situamo-nos, destarte, no terreno de

uma objetividade absoluta, indiscutível, geradora de certezas dogmáticas, como as que

engendra a famigerada “física social” saint-simoniana.

Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951), um dos ícones da sociologia brasileira. (Foto: arquivo do

autor).

Outra é a situação epistemológica decorrente da adoção da perspectiva

transcendental, que é caracterizada assim por Wanderley-Guilherme dos Santos:

“Outra premissa consiste em admitir que qualquer conjunto de ideias produzidas em

determinado momento – como é característico dos fenômenos sociais – produz um

complexo feixe de consequências, muitas delas inesperadas. Todo ato social – e a

produção de uma ideia é um ato social – fica ao mesmo tempo aquém e além das

intenções de quem o realizou. Aquém porque frequentemente não se obtém com ele

os objetos buscados, e além porque se produzem efeitos não antecipados pelo autor.

Quando se busca conhecer um ato social, em consequência, não estamos a priori

determinados pela univocidade de um objeto, que marcaria de antemão o único

conhecimento significativo sobre ele, mas, ao contrário, constrói-se conceitualmente

36

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político, ob. cit., p. 34.

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esse objeto, que participa assim de duas ordens: a ordem de articulação dos

fenômenos e a ordem da articulação dos conceitos (...)”. 37

A primeira consequência que decorre da quebra da univocidade ensejada pela

adoção da perspectiva transcendental é, no terreno das ciências sociais, o pluralismo

de planos ou de enfoques que caracteriza a construção dos objetos culturais. A

respeito, anota W. G. dos Santos: “(...) é possível, por exemplo, historiar a história das

ideias com o objetivo de verificar de que maneira esta ou aquela doutrina contribui

para a mudança de percepção sobre os problemas, ou é possível investiga-la buscando

descobrir os sistemas que mais influíram na produção mais frequente do período, ou é

ainda possível analisar de que maneira as ideias serviram ou não ao propósito de

justificar e defender determinada organização social, ou ainda uma vez, que avanços

metodológicos propiciaram. Existe uma distância razoável entre Teorias sobre a mais-

valia, de Karl Marx, O crescimento do radicalismo filosófico, de Ely Halévy e A grande

transformação, de Karl Polany; não obstante, em certo sentido, estão investigando o

mesmo objeto, embora, ao mesmo tempo, não o estejam. Qual deles constitui a

verdadeira história da ideologia capitalista burguesa? E de que modo entender o fato

de que seja possível tratar os três como dimensões equivalentes de um mesmo objeto

do conhecer, não como descrições mais ou menos fiéis de uma mesma realidade,

entre as quais uma será verdadeira e as demais falsas?” 38

Demonstrada a univocidade que decorre da adoção da perspectiva

transcendente e firmadas as ciências sociais na perspectiva transcendental, W. G. dos

Santos passa a ilustrar as várias formas em que se poderia aplicar a “matriz ideológica”

ao estudo acerca da evolução das ciências sociais no Brasil. Tal evolução, frisa o autor,

“(...) pode ser ordenada de acordo com a evidência empírica mais simples, em função

do conteúdo manifesto dos trabalhos publicados. Não é difícil, exercitando este tipo de

ordenação, revelar a coincidência entre o conteúdo de questões discutidas e a agenda

de problemas sociais e politicamente importantes (...)”.39

Destarte, aproxima-se a metodologia proposta por W. G. dos Santos para o

estudo da evolução das ciências sociais no Brasil da utilizada pelos estudiosos do

pensamento brasileiro, 40 consistente em identificar os problemas que preocupavam

ao pensador, a fim de ver a forma em que deu resposta a eles; somente a partir daí

seria válido estabelecer a sua filiação a correntes.

37

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 34. 38

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 34-35. 39

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 35. 40

Cf. PAIM, Antônio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979, p. 98.

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11

Do ângulo da “agenda de problemas sociais e politicamente importantes”, W.

G. dos Santos considera que os nossos cientistas do período republicano, até 1930,

privilegiaram “(...) temas relativos à formação histórica do país, as interrelações entre

a sua estrutura econômica e social e sua estrutura política, os problemas da

oligarquização política, suas condicionantes e efeitos, o jogo das raças, o conflito

potencial entre elas e o tipo de organização social provável em país como o Brasil, a

função do Estado, os limites do privatismo e a definição da legitimidade do poder

público”. 41 Os autores que abordaram esses problemas foram: Alberto Torres (O

problema nacional brasileiro, Rio, 1914 e A organização nacional, Rio, 1914); Oliveira

Viana (O idealismo na evolução do Império e da República, Rio, 1922; O idealismo da

Constituição, Rio, 1924; O ocaso do Império, Rio, 1925; Populações meridionais do

Brasil, 1º volume, Rio, 1918) e Gilberto Freire (Casa Grande e Senzala, Rio, 1933).

O período 1930-1939 é, no sentir de W. G. dos Santos, extremamente rico, do

ângulo da variedade dos problemas debatidos. As profundas transformações sofridas

pelo país nesse período e a formação variada e rica dos autores produzem um valioso

conjunto de reflexões sociais, muitas das quais têm vigência até os dias atuais. Em

relação à problemática discutida no período, frisa W. G. dos Santos: “Entre 1930 e

1939 produzem-se no Brasil as mais argutas análises sobre o processo político

nacional, elaboram-se as principais hipóteses sobre a formação e o funcionamento do

sistema social, e articula-se o conjunto de questões que, em verdade, permanecerão

até hoje como o núcleo fundamental, embora não exaustivo, de problemas a serem

resolvidos teórica e praticamente. Os debates se iniciam pela própria significação da

revolução de 30, envolvem os militares e sua relação com as demais forças sociais,

retoma-se a questão da centralização, investigam-se as origens da crise nas sociedades

modernas, estuda-se o impacto das sociedades avançadas em sociedades de

desenvolvimento retardado, louva-se e critica-se o papel das elites das massas no

desenvolvimento social, esmiúça-se o passado nacional pensando-se a contribuição de

cada agrupamento econômico e social, elaboram-se os mais variados prognósticos

sobre a provável evolução do sistema nacional. A emergência de movimentos

autoritários, nacionalmente organizados, oferece novo material à especulação política

sobre o papel dos partidos, das massas e das elites, enquanto o imediato passado,

com as rebeldias tenentistas e os surtos comunista e integralista, com 1935 e 1938,

descobrirão a temática da violência no processo político”. 42

41

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 37. 42

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 38.

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12

Os autores do período – frisa W. G. dos Santos – “(...) sem preparação

sistemática, embora muitas vezes revelando surpreendente familiaridade com a

produção internacional pertinente, despreocupados quanto aos cânones acadêmicos,

fixaram, entretanto, solidamente o repertório de problemas que, sob roupagens

linguísticas as mais variadas, se vem transmitindo de geração em geração, até hoje”. 43

Figuram entre os mais destacados autores da década em apreço Martins de Almeida

(Brasil errado, Rio, 1932); Azevedo Amaral (A aventura política do Brasil, Rio, 1935; O

Brasil na crise atual, Rio, 1934; O Estado autoritário e a realidade nacional, Rio,

1938); Menotti del Picchia (Questões nacionais, Rio, 1935); Nelson Duarte (A ordem

privada e a organização política nacional, Rio, 1939); Agamenon Magalhães (O Estado

e a realidade contemporânea, Rio, 1933); Virgínio Santa Rosa (A desordem, Rio, 1932;

O sentido do tenentismo, Rio, 1933); Alcindo Sodré (A gênese da desordem, Rio,

1933).

O período 1939-1950 caracteriza-se, no sentir de W. G. dos Santos, pelo

recesso de que foi vítima o pensamento sociológico brasileiro, em decorrência do

Estado Novo (1937-1945). “O golpe de Estado de 1937 – frisa - e as sequências

políticas a que deu oportunidade paralisaram, pela coação e pela propaganda, a

incessante e múltipla atividade intelectual que procurava representar conceitualmente

não apenas o passado, mas em especial as virtualidades do processo político e social

brasileiro. De resto, que poderiam valer as preocupações e pesquisas, após 1937, se as

diretivas de políticas, as interpretações oficiais, os juízos definitivos sobre a verdade

dos fenômenos sociais eram decididas burocraticamente pelos homens no governo e

seus assessores imediatos, segundo as conveniências do Poder? (...) A controvérsia de

ideias cedeu lugar às doutrinas oficiais e, em realidade, até as perseguições e prisões

dos intelectuais rebeldes. Extinguiu-se, desse modo, o debate, a polêmica, e com elas o

estímulo à pesquisa e à investigação. Durante oito anos fecharam-se os canais de

comunicação livre, e após a queda da ditadura de Vargas, em 1945, foram necessários

ainda quase dez anos para que a intelectualidade brasileira, agora alimentada pelos

investigadores e cientistas sociais formados pelas faculdades de Filosofia e escolas de

Sociologia criadas nos anos 30, acordasse da letargia que a tomara entrementes”. 44

As décadas de 50 a 70 caracterizar-se-iam, no sentir de W. G. dos Santos, pela

retomada da crítica sociológica. Na década de 50 foi importante o papel

desempenhado pelo Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), que

logo se transformou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e que contaria,

nessa segunda etapa, com o apoio do Ministério de Educação e Cultura. Foi grande e

43

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 39. 44

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., ibid.

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variada a gama de problemas debatidos neste ciclo. Eis os mais significativos:

condicionantes de uma política de autonomia nacional, o fenômeno do populismo, a

industrialização como passo estratégico em uma política de autonomia econômica, a

independência econômica como requisito indispensável da independência política, a

insistência na nacionalização do processo econômico, a importância da inclusão das

massas urbanas na coligação política. Os mais importantes autores do ciclo isebiano

foram Hélio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, cujos trabalhos, publicados na revista

Cadernos do nosso tempo,45 tiveram grande divulgação entre a juventude

universitária. A maior contribuição do IBESP-ISEB foi – segundo Antônio Paim 46 - a

divulgação da ideia de desenvolvimento como grande desideratum nacional.

W. G. dos Santos caracteriza da seguinte forma a produção sociológica do

período em apreço: “A década de 50, e depois a de 60, testemunhou uma expansão

crescente e acelerada das escolas superiores, o êxodo e o retorno de considerável

número de cientistas sociais que buscaram no exterior maior qualificação, a

especialização dos cientistas sociais e a produção crescente de estudos e

investigações. Hoje, as disciplinas sociais estão relativamente bem institucionalizadas,

as orientações de trabalho, teórico ou metodológico, bem diversificadas e a produção

suficientemente ampla para ser reduzida a um sumário que possa ser útil”. 47

A análise do pensamento sociológico brasileiro do ângulo da “agenda de

problemas sociais e politicamente importantes” não é, contudo, a única que se pode

fazer, no contexto da “matriz ideológica” proposta por W. G. dos Santos. Tal matriz

pode servir também para detectar a forma “(...) em que a realidade social aparece

estruturada na percepção dos analistas sociais do passado”. 48 Como caracterizar,

deste ângulo, a matriz que deu ensejo à produção sociológica do período republicano?

O autor considera que essa matriz foi a dicotômica, que consiste em atribuir a

origem das crises a uma oposição arquetípica de fatores. “Foi talvez Euclides da Cunha

no ensaio Da Independência à República, publicado pela primeira vez em 1900, quem

chamou a atenção para a existência de dois Brasis: um, urbanizado, litorâneo,

desenvolvendo-se com os benefícios da atenção governamental; outro, constituído

pelas populações rurais, estagnado, sobrevivendo por si mesmo, fora do âmbito da

ação ou interesse governamentais (...). Embora este esquema seja apenas incidental

no contexto geral do ensaio, é altamente importante na medida em que estabelece a

45

Acerca desta publicação isebiana, cf. SCHWARTZMAN, Simon (seleção e introdução). O pensamento nacionalista e os “Cadernos do nosso tempo”. Brasília: Câmara dos Deputados / Editora da Universidade de Brasília, 1981, Biblioteca do Pensamento Político Republicano, 6. 46

Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo, ob. cit., p. 117. 47

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 41. 48

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., ibid.

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fórmula intelectual para a análise política que estava por vir, a saber, descobrir uma

dicotomia à qual possa ser racionalmente atribuída a origem das crises; traçar a

formação da dicotomia no passado histórico nacional; propor a alternativa política

para a redução da dicotomia. Tal é a estrutura básica do paradigma”. 49

Wanderley-Guilherme dos Santos considera que “este estilo dicotômico de

percepção permanece indiscutível desde então”, 50 tendo-se tornado o “milieu”

preferido pelos nossos cientistas sociais. A entrada das categorias marxistas na análise

sociológica encaixou-se nesse esquema, que já tinha servido de marco epistemológico

às abordagens de inspiração positivista. Mas antes do advento da dicotomia marxista,

autores como Alberto Torres, Oliveira Viana, Gilberto Amado, Virgínio Santa Rosa,

Martins de Almeida, Azevedo Amaral e Nestor Duarte tinham sofrido a influência do

paradigma dicotómico. W. G. dos Santos considera que a sociologia brasileira do

período contemporâneo continua a se pautar pela “matriz ideológica” dicotómica. Um

autor hodierno como Fernando Pedreira, por exemplo, afirma alicerçado nesse

paradigma: “(...) como novo Santa Rosa ou Martins de Almeida, que as recorrentes

intervenções no Brasil devem-se ao descompasso que existe entre as instituições

políticas e as peculiaridades nacionais (...)”. 51

Pode-se fazer, no contexto da “matriz ideológica”, outro tipo de análise acerca

do pensamento sociológico brasileiro: o que estabeleça a relação entre valores,

instituições políticas e efeitos sociais. Não se trataria, evidentemente, de postular aqui

a validade de uma reificação ética, que defendesse “(...) a realização imediata de

qualquer conjunto de preferências políticas independentemente da mediação

institucional (...)”. 52 A “matriz ideológica” proposta alicerça-se, pelo contrário, na

convicção de que, como frisa W. G. dos Santos, “(...) os valores políticos só se realizam

quando incorporados em instituições cuja operação efetiva é função da ordem

instaurada. Toda sociedade política se constitui segundo uma ordem específica e é

esta ordem que mediatiza não apenas as interações entre os indivíduos que compõem,

mas igualmente as instituições que a habitam (...)”. 53

Ao longo do período republicano podem ser identificadas análises sociológicas

alicerçadas nessa “matriz ideológica integradora”, como a efetivada por Sílvio Romero,

49

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 44-45. 50

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 48-49. 51

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 49. 52

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., ibid. 53

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., ibid.

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que na sua História da literatura brasileira, inspirado no “naturalismo histórico”,

introduziu uma “percepção historicizante dos fenômenos sociais, (...) mantendo-se fiel

à matriz que busca, na formação histórica dos fenômenos, as pistas mais significativas

para seu adequado entendimento”. 54 Inserem-se, igualmente, na “matriz ideológica”

apontada, as críticas dos autoritários de 30 (Azevedo Amaral e Oliveira Viana, por

exemplo) às divergências entre as instituições e a sociedade, bem como a sua procura

“(...) de uma ordem burguesa em uma sociedade não mais escravocrata, mas

oligárquico-latifundiária. Trata-se agora – frisa W. G. dos Santos – de continuar

expandindo a capacidade regulatória e simbólica do poder público e de garantir sua

capacidade extrativa com o objetivo de financiar a expansão do Brasil burguês

moderno (...)”. 55

A tipologia sociológica proposta por W. G. dos Santos para, a partir de

“matrizes ideológicas” variadas, analisar uma realidade que é complexa e

pluridimensional, constitui, sem dúvida, valiosa contribuição à pesquisa sociológica. O

autor termina o seu ensaio Paradigma e história; a ordem burguesa na imaginação

social brasileira, salientando o caráter eminentemente aberto da sua metodologia de

análise, condizente, aliás, com a perspectiva transcendental adotada. “(...) Importante

é reter – frisa nosso autor – que não existe uma única história das ideias políticas e

sociais no Brasil, nem das disciplinas sociais, quando já institucionalizadas, que permita

descartar as demais como falsas. Isso, entretanto, não quer dizer que não seja possível,

ou útil, traçar essas diversas histórias. Tudo depende da utilidade do objeto que temos

em vista. Se nos interessa num refinamento metodológico das reflexões sobre

processos sociais, então é útil; se se está buscando identificar o sentido histórico das

pregações sociais, a despeito da retórica manifesta que exibem, então também é útil.

Se, entretanto, apenas se procuram justificativas científicas únicas para as opções que

se fazem hoje, sejam opções metodológicas, teóricas ou políticas, então é inútil. Quase

sempre é possível provar o oposto”. 56

54

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 52. 55

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 53. 56

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. “Paradigma e história...”. In: Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit., p. 57.

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Miguel Reale (1910-2006), o maior pensador brasileiro do século XX. (Foto: arquivo do autor).

3 – Miguel Reale e o paradigma culturalista aplicado à sociologia

brasileira.

O pensador paulista lançou os alicerces do conceito de experiência cultural na

sua obra Experiência e Cultura . 57 No que tange à aplicação desse conceito ao terreno

das ciências sociais, o seu artigo intitulado: Culturalismo e natureza tropical 58 veio dar

uma contribuição inestimável à sociologia brasileira. Para Reale, o conceito de cultura

pode ser entendido de duas formas: uma, mais pessoal e subjetiva, como

“aperfeiçoamento da sensibilidade e do intelecto pelo conhecimento dos homens e

das coisas” e outra, mais social e objetiva, como “acervo de bens materiais e

espirituais acumulados pela espécie humana através do tempo, mediante um processo

intencional ou não de realização de valores”. 59 Na primeira acepção, o conceito de

cultura estaria a indicar um processo “de enriquecimento subjetivo de valores”,

enquanto que na segunda significaria “um processo objetivo e transpessoal de

valores, consubstanciados em formas de vida”. Das anteriores considerações Reale

deduz o seu conceito de cultura nestes termos: “(...) sistema de intencionalidades

humanas historicamente tornadas objetivas através da história, ou a objetivação das

intencionalidades”. 60

Os aspectos subjetivo e objetivo da cultura acham-se intimamente ligados e

constituem duas faces complementares do mesmo conceito. Enquanto o filósofo se

interessa pelos pressupostos ou condições de realizabilidade do fenômeno cultural

57

Cf. REALE, Miguel. Experiência e Cultura. São Paulo: Grijalbo / Edusp, 1978. 58

Cf. REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, Brasília, I (2): pg. 69-79, janeiro / março 1983. 59

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. p. 69. 60

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., ibid.

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(que constituem “condições transcendentais”), os sociólogos e antropólogos, sem se

esquecerem daqueles pressupostos, “(...) cuidam mais dos valores enquanto tornados

objetivos pelo espírito humano na história, como realidade social e existencial

concreta, em ciclos distintos que, em geral, se denominam civilizações”. 61

A cultura humana não constitui um ens a se do tipo “progressiva objetivação de

uma Ideia” ou “processo do Espírito Objetivo” hegeliano; Reale aproxima-se mais da

concepção de Nicolai Hartmann, quando afirma que a cultura existe porque existe o

homem. Ela não pode deixar de se apoiar no Espírito Subjetivo. No entanto, em virtude

de uma “lei histórica de inércia”, os bens culturais chegam a adquirir uma objetividade

relativa, consistente em que eles tendem a permanecer na sua formulação ou na sua

estruturação original, porquanto integrados em usos e costumes, chegando a

constituir um patrimônio a ser preservado. Todo bem cultural é, assim, um factum

(entendido como particípio passado de facere ou de fieri, como feito ou acontecido)

que condiciona o fazer subsequente da sociedade. Há, portanto, uma espécie de

dialeticidade entre presente e futuro, ou entre o que os homens quiseram e o que

tencionam. Na medida em que o homem vai realizando bens culturais, frisa Reale, “(...)

a – de um lado, ele se vê envolvido por uma trama de fatos, ou seja, de valores

incorporados em bens objetivos, sofrendo, assim, certa limitação em seu arbítrio; b –

e, de outro lado, vê potenciada a sua capacidade de optar e de agir, visto ter à sua

disposição uma plataforma de bens disponíveis que lhe permite proteger-se no

futuro”. 62

O pensador paulista aplica à dinâmica cultural o pensamento de Cícero, válido

no Direito, de que “legum servi sumus ut liberi esse possimus” 63: para que possamos

inovar devemos reconhecer que estamos condicionados por um conjunto de bens

historicamente estruturados. Mas, frisa Reale, existe outro tipo de condicionamento,

além do histórico. É o natural, identificado com “tudo aquilo que a espécie humana

recebeu e recebe ab extra, como conjunto de condições de ordem física (lato sensu)

de suas formas de vida”. 64 O Espírito Subjetivo, no sentir do pensador paulista, “(...) é

também algo de dado ou de natural, de nascido com cada um de nós, com o nosso

indeformável código genético, que nos deve levar a ter sempre presente tanto os

fatores biológicos quanto os fatores físicos que estão na base de todo e qualquer

processo cultural”. 65 Reale concorda com Gilberto Freire quando afirma que “(...) o

biológico e o ambiental condicionam o processo da cultura”, sendo que esse

condicionamento não priva o homem do poder nomotético do espírito, ou seja, “(...)

de sua capacidade imaginativa e sintetizadora que lhe permite inovar, instaurando

61

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., ibid. 62

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, p. 70. 63

Cit. por REALE, Miguel, in: “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. Ibid. 64

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., ibid. 65

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., ibid.

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algo de novo no processo histórico, visando a fins éticos, econômicos, estéticos, etc.” 66

Aplicando os pressupostos culturalistas apontados ao terreno sociológico, para

ver a forma em que o homem brasileiro tem sentido e compreendido “(...) o

relacionamento das suas realizações culturais com a realidade tropical circundante”, 67

Reale considera que (...) está ainda por fazer-se a história da nossa identidade

nacional, levando-se em conta o complexo de seus fatores subjetivos e objetivos, no

espaço e no tempo” 68. A imagem paradisíaca de um Brasil com florestas imensas, rios

caudalosos, luz e calor abundantes, chuvas torrenciais e planícies férteis, não se

circunscreve apenas aos relatos de viajantes (como Spix e Martius) ou ao assombro

dos primeiros povoadores portugueses (como Pero Vaz de Caminha): vem até o início

do nosso século, como revela a História da civilização na Inglaterra de Henry Thomas

Buckle. 69 Paradoxalmente, essa exaltação geográfica vinha acompanhada de um

pessimismo cultural, que se exprimia na frase: “Tudo no Brasil é grande, exceto o

homem”.

O primeiro pensador brasileiro a criticar esse falso binômio: grandeza

geográfica / atraso cultural, foi Pedro Lessa: 70 a nossa geografia não é tão maravilhosa

assim e o nosso homem não é tão atrasado quanto se pensa. As regiões tropicais e

equatoriais trazem, é certo, uma aparência de exuberância: mas submetem os seus

habitantes às doenças endêmicas, às incertezas climáticas, aos acidentes geográficos

difíceis de transpor, etc. Levando em consideração o posicionamento de Pedro Lessa,

Reale conclui: “Não se pense, pois, que o senso realista da sociedade brasileira tenha

nascido ontem, graças a recentes análises sociológicas e políticas, pois estas, a rigor,

dão prosseguimento a uma atitude que vem se desenvolvendo há várias décadas,

desde a recepção das idéias inspiradas pelo naturalismo filosófico, que não pode, pois,

ser sumariamente repudiado sem se levar em conta a sua contribuição crítica, tal como

resulta, para só dar outro exemplo, da obra de Euclides da Cunha”. 71

Reale distingue três momentos na meditação social brasileira, que busca a

identidade de nós mesmos: “a – o de uma intuição filosófica inicial; b – o de uma

explicação científica, sobretudo sociológica, antropológica e histórica; c - e, como

66

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., ibid. 67

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., ibid. 68

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., ibid. 69

BUCKLE, Henry Thomas. História da civilização na Inglaterra. (Tradução de A. Melchert; introdução de Pedro Lessa, nota bibliográfica de J. C. Gomes Pinheiro). São Paulo: Casa Eclética, 1900. Cit. por REALE, Miguel, in: “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., p. 72. 70

Cf. A introdução de Pedro Lessa à obra citada de Henry Thomas Buckle. In: REALE, Miguel, “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., p. 72. 71

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., p. 72.

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desdobramento natural do segundo, o de uma nova compreensão filosófica, de caráter

integrante”. 72 Analisemos rapidamente esses três momentos.

O primeiro, marcado pela presença de uma intuição filosófica inicial, possui

duas etapas: a primeira estende-se do período colonial até 1870. A alma desta fase foi,

no século XIX, “(...) o espiritualismo vago que acalentara as primeiras gerações do

Império, tendo, como seu correlato no plano literário, o movimento romântico”. 73

A segunda fase aparece em 1870 e se estende até a década de vinte. O seu

representante foi Tobias Barreto. Origina-se esta fase a partir dos anos decisivos da

Guerra do Paraguai, “(...) talvez, frisa Reale, sob o impacto deste evento histórico (o

qual veio revelar múltiplos aspectos de nossa fragilidade como povo, abstração feita

de reconhecidos méritos militares e heroicos) foi, desde então, que passamos a olhar a

sociedade brasileira com olhos diversos (...)”. 74 O cerne doutrinário desta fase

consistiu em ajustar as contribuições da cultura do Ocidente às nossas circunstâncias,

num trabalho que o autor chama de “aclimatação aos trópicos” ou “ao mundo

brasileiro”. Não foi por acaso que a dialética natureza / cultura postulada por Tobias

Barreto, surgiu no contexto da realidade nordestina, onde “a natureza não é mãe, mas

madrasta”, 75 nas palavras de José Américo de Almeida. Embora esta fase tivesse como

característica a intuição da problemática da cultura do ângulo filosófico e nessa

intuição se exagerasse a contraposição natureza / cultura, não deixou de cultivar uma

atitude positiva ou pragmática, “(...) na medida em que marcava também uma tomada

de posição ativa visando a superar as distorções da natureza”. 76

O segundo momento, caracterizado por uma explicação científica, sobretudo

sociológica, antropológica e histórica, vai da década de vinte até os nossos dias e os

seus representantes mais significativos foram Euclides da Cunha, Gilberto Freyre,

Oliveira Viana e Sérgio Buarque de Holanda. Em relação ao primeiro, frisa Reale: “(...)

O imortal ensinamento euclidiano foi ter posto frente a frente a terra e o homem, sem

descair para o pessimismo de um conflito irremediável, nem para o otimismo da

adoração fácil. É do grande fluminense (...) que parte a advertência mais gritante de

nosso destino: Ou nos civilizamos, ou desaparecemos”. 77

Este segundo momento científico constitui, no sentir de Reale, “uma nova

forma de tomarmos consciência de nós mesmos (...). A realidade brasileira, em suma,

72

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. p. 73. 73

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit., p. 73. 74

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. ibid. 75

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. P. 74. 76

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. p. 74. 77

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. ibid.

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surgia como um problema (...). Bem poucas vezes um conceito empírico terá tido tanta

carga axiológica, a ponto de converter-se em valor”. 78 Numa posição de nítido sabor

culturalista, embora sem se filiar à Escola do Recife, Gilberto Freire mostrou, com

auxílio de rico instrumental científico, “(...) como é que a sociedade real havia sabido

converter a civilização européia em civilização tropical (...)”. 79 Reale identifica nas

obras do sociólogo pernambucano “uma espécie de sinfonia nacional” que goza de

rara unidade. O autor de Casa grande e senzala e Sobrados e mocambos nos

apresenta a “(...) experiência histórica de nossa sociedade real”. 80

No relacionado a Oliveira Viana, Reale considera que lhe cabe o inegável mérito

de ter “(...) focalizado o contraste entre Brasil real e Brasil legal, visando não retratar

instituições sociais, mas sim as nossas estruturas jurídicas, postas em confronto com a

realidade brasileira (...)”. 81 Nesse estudo contrastante, Oliveira Viana deu muita

importância à nossa cultura jurídico-política. O Direito e a Política foram, para o grande

fluminense, “fontes primordiais na caracterização da identidade nacional”. 82 Oliveira

Viana, pensa Reale, não teve continuadores “no sentido de ver o Direito como peça de

ajuste da nossa civilização (...)”. 83

Sérgio Buarque de Holanda, no sentir de Reale, abordou três questões

fundamentais: a do caráter pragmático e imediatista da colonização portuguesa, a

atinente ao desbravamento do território, “menos como obra imperial” (segundo a

feição hispânica) e “mais como obra individualista de bandeirantes paulistas e

povoadores nordestinos” e a do “mito do paraíso”. Ampliando este último aspecto,

Reale frisa que Sérgio Buarque distingue o mito do paraíso (inspirador da ação dos

conquistadores ibéricos) e o mito da selva e do deserto (que empolgou aos

colonizadores da América Inglesa). “Assim – escreve Sérgio Buarque de Holanda – se os

primeiros colonos da América Inglesa vinham movidos pelo afã de construir, vencendo

o rigor do deserto e da selva, uma comunidade abençoada, isenta das perseguições

religiosas e civis por eles padecidas em sua terra de origem, e onde enfim se realizaria

o puro ideal evangélico, os da América Latina se deixavam atrair pela esperança de

achar nas suas conquistas um paraíso feito de riqueza mundanal e beatitude celeste,

que a eles se oferecia sem reclamar labor maior, mas, sim, como um dom gratuito”. 84

78

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. ibid. 79

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. ibid. 80

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. p. 75. 81

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. ibid. 82

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. ibid. 83

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. ibid. 84

HOLANDA, Sérgio Buarque de. A visão do paraíso. 2ª edição, p. XVIII. Cit. por REALE, Miguel, in: “Culturalismo e natureza tropical”, in: Humanidades, art. cit. p. 75.

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21

Reale considera da maior importância o contraste apontado entre os dois mitos. O

pensador paulista duvida de que tenha havido, nos estudos sobre a integração cultural

brasileira, uma opção em prol da reação ao meio circundante ou em prol da

submissão às suas leis. Parece-lhe, no entanto, que em outros autores como Tobias

Barreto e Gilberto Freire é clara a opção pela segunda alternativa. Em relação ao

primeiro, frisa: “(...) Uma coisa é, com efeito, largar o corpo e ajustar-se, como se

pode, aos rigores do clima; outra, ter a capacidade de inovar culturalmente para

atenuar-lhe ou reduzir-lhe os malefícios. Uma coisa é, em suma, conformar-se com as

compulsões da natureza; outra, como intuiu Tobias, saber aleitá-las em benefício da

sociedade”. 85 Em relação a Gilberto Freire, Reale escreve: “(...) apontou muitos

aspectos positivos de nossa adaptação civilizadora, ao longo de suas obras, mas esta é,

penso eu, uma questão que permanece sempre em aberto, sem o que, não haveria

sequer motivo para se cuidar de Tropicologia”. 86

A contribuição dada pelas ciências sociais no Brasil situa-se num contexto de

abertura à cultura ocidental e de preocupação com a compreensão da própria

realidade. À luz da análise feita, conclui Reale, verifica-se que “(...) a Antropologia, a

Sociologia e a História entrelaçam-se para situar sobre bases científico-positivas o

problema do homem perante a natureza, atuando tanto fatores espirituais como

físicos. Ora, a nenhum cultor das apontadas ciências ocorreu a ideia estapafúrdia de

que, para se conhecer o Brasil, fosse indispensável desconhecer ou repudiar, não digo

só as ciências, mas a cultura toda do Ocidente: a grandeza da investigação científica

repousa antes na capacidade que tem o pesquisador de receber ensinamentos

alienígenas, enriquecendo-os com contribuições próprias, pondo todo esse cabedal de

saber, alheio e próprio, a serviço da interpretação de sua terra”. 87

O terceiro momento da meditação brasileira (que constitui um desdobramento

natural do segundo e consiste numa nova compreensão filosófica, de caráter

integrante), concretiza-se na filosofia culturalista. Nas interpretações antropológicas,

sociológicas e históricas da sociedade brasileira analisadas por Reale, subjaz “uma

compreensão culturalista de cunho filosófico”, que se manifestou primeiro no domínio

da Filosofia Jurídica e que se constitui depois “(...) numa das mais expressivas e

originais correntes de pensamento do Brasil contemporâneo”. 88

O mérito fundamental do culturalismo consiste em permitir superar os

antagonismos que opõem o mundo do ser ao mundo do não-ser, ou a Natureza ao

85

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., p. 75-76. 86

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., p. 76. 87

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., ibid. 88

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., ibid.

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Espírito, visando a uma solução concreta: sustentar o valor do homem enquanto tal.

Essa solução significa “(...) ter ciência das coisas e consciência do homem”. 89 A solução

culturalista, é claro, abarca várias manifestações que vão desde uma concepção mais

próxima de Hegel, passando por um neokantismo enriquecido pelo existencialismo

heideggeriano e chegam até um desenvolvimento autônomo inspirado na

fenomenologia de Husserl, de forma a superar a contraposição entre idealismo e

realismo. De qualquer maneira, o que há de comum a essas várias opções é a

convicção de que o homem é capaz de interferir no processo da natureza para

instaurar um processo humanístico. Esse fato confere ao culturalismo um caráter de

inegável originalidade. Por isso, o pensador paulista não vacila em afirmar que “(...) é

com o culturalismo que a inteligência brasileira oferece algo de novo e original à

problemática filosófica, e, o que é mais importante, sem jactanciosa ou tola ruptura

com as linhas fundamentais do pensamento ocidental”. 90

Não se excluem da resposta culturalista, evidentemente, as influências do meio

tropical que contribuíram para a feição adaptativa das soluções propostas. Este

aspecto, aliás, já tinha sido salientado por Tobias Barreto na asserção de que é

necessário ajeitar a natureza para lhe conferir um caráter menos agressivo ao homem.

A respeito, frisa Reale: “(...) Desde a arte de morar à arte de alimenta-nos ou de

divertir-nos, o nosso sucesso tem dependido do nosso sentido superior de adaptação”. 91

Entre as várias vertentes filosóficas presentes no cenário nacional, Reale

considera que é o culturalismo a filosofia que melhor traduz a alma brasileira. Esta

vertente de pensamento “(...) sem se arvorar numa das tantas filosofias da salvação

que têm caracterizado a nossa imaturidade filosófica, é uma corrente de pensamento

que, além de seus valores universais – enquanto mantém um constante diálogo com o

que se pensa alhures, em termos de Epistemologia, Ética ou Metafísica -, tem a sua

atenção também voltada para a circunstancialidade brasileira, meditando sobre o

nosso destino histórico, a nossa identidade nacional e os planos de ação de nosso

necessário desenvolvimento, desde o nível material ao espiritual. Donde a prioridade

atribuída a certos assuntos, a tônica dada a estas e não àquelas ideias universais ou

gerais, em função do grande cenário envolvente de nossas peculiares circunstâncias:

é como tal que o culturalismo, por seu sentido particular de vivência das ideias, se

89

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., ibid. 90

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., ibid. 91

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., ibid.

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23

apresenta como a filosofia brasileira mais capaz de revelar-nos tais como somos nos

planos da teoria e da práxis”. 92

4 – Oliveira Viana e a culturologia do Estado.

O sociólogo fluminense é responsável pelo arejamento que a análise da nossa

formação política teve a partir da década de vinte do século passado, ao conferir

grande importância à análise dos valores que empolgaram a intelligentsia brasileira,

especialmente nos séculos XIX e XX. A respeito, Antônio Paim frisa: “A inovação

fundamental introduzida por Oliveira Viana na investigação da realidade brasileira,

iniciada pelos predecessores, consiste em ter procurado identificar os valores a partir

dos quais os principais grupos da elite nacional norteiam sem modo de agir. Assim,

estudou a valorização dos grandes proprietários, da cúpula burocrática estatal e das

elites urbanas”. 93 Este fato levou-nos a realizar uma aproximação entre as sociologias

de Max Weber e Oliveira Viana. 94

Os valores são denominados pelo sociólogo fluminense de complexo cultural,

conceito que explica da seguinte forma: “(...) o complexo representa um conjunto

objetivo de fatores, signos ou objetos, que, encadeados num sistema, se

correlacionam a ideias, sentimentos, crenças e atos correspondentes (...). É toda uma

multidão de fatos, objetos, signos, utensílios, etc., que se prendem a usos, costumes,

tradições crenças, artes, técnicas, que, por sua vez, se prendem igualmente a ideias,

sentimentos, condutas, tudo correlacionado com estes tópicos peculiares da atividade

econômica: e cada um destes tópicos forma um complexo”. 95

Em todo complexo cultural encontramos dois tipos de elementos: externos ou

objetivos (fatos, coisas, signos, tradições) e internos ou subjetivos (sentimentos, ideias

emoções, julgamentos de valor, etc.). Os primeiros constituem os chamados

elementos transcendentes da cultura, ao passo que os segundos são os seus

elementos imanentes. A inter-relação desses dois grupos de elementos é complexa.

Oliveira Viana a explica assim: “Estes elementos, conjugados ou associados, formam

92

REALE, Miguel. “Culturalismo e natureza tropical”, art. cit., p. 79. 93

PAIM, Antônio. “Apresentação”. In: VIANA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 4ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987, volume I, contracapa. 94

Cf. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Oliveira Viana e o papel modernizador do Estado brasileiro. (Apresentação de Antônio Paim). Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 1997. 95

VIANA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 3ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1974, vol. I, p. 74. A tipologia sociológica de Oliveira Viana acerca da formação política brasileira encontra-se fundamentalmente nas suas obras: Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras, que foram editadas num único volume (“Apresentação de Antônio Paim”. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983, Coleção Pensamento Político Brasileiro). Cf. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. “Vargas e Oliveira Vianna: o estatismo e seus dois intérpretes”, in: Suplemento Cultura – O Estado de São Paulo, 4/12/1983, ano III, número 182, p. 10.

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um sistema articulado, onde vemos objetos ou fatos de ordem material, associados a

reflexos condicionados, com os correspondentes sentimentos e ideias. Estes

elementos penetram o homem, instalam-se mesmo dentro da sua fisiologia: e fazem-

se enervação, sensibilidade, emoção, memória, volição, motricidade. Os quadros

mentais do indivíduo se constituem de acordo com estes complexos, que lhes dão das

coisas e do mundo uma representação coletiva, como diria Durkheim. Tanto que já se

lançam os fundamentos de uma nova especialização científica: a sociologia do

conhecimento, de que a obra de Mannheim é, decerto, um belo exemplo”. 96

Do ponto de vista psicológico, portanto, um complexo cultural é um sistema

ideio-afetivo, do qual derivam atitudes ou comportamentos com projeção social, numa

sincronia de sensibilidades, emoções, sentimentos, preconceitos, preferências,

repulsões, julgamentos de valor, deliberações, atos omissivos ou comissivos de

conduta. Oliveira Viana chama a atenção para um fato importante: quando se

pretende mudar um determinado complexo cultural, num nível exclusivamente

objetivo ou transcendente (promulgando, por exemplo, uma nova Constituição em

nome de Deus ou do povo), as possibilidades de sucesso de tal mudança são mínimas,

pois a ela opor-se-á o elemento subjetivo ou imanente (sentimentos, crenças,

preconceitos, praxes seculares dessa comunidade humana). Por isso, salienta o

sociólogo fluminense, têm fracassado tantas reformas no nosso meio latino-

americano: porque os reformadores, imbuídos de espírito legalista, acham que

mudando as leis vão mudar os hábitos da população, que permanecem sempre alheios

ao formalismo externo. Oliveira Viana endossa a afirmação de Jung de que os traços

culturais imanentes se transmitem pelo “inconsciente coletivo”, e “tudo é como se eles

se imprimissem ou se contivessem nos genes das próprias raças formadoras”.

O sociólogo fluminense dedicou boa parte da sua obra à análise do complexo

cultural que lhe pareceu mais marcante no Brasil rural: o chamado por ele de

“complexo de clã”. Eis a forma em que caracterizou a presença desse complexo na vida

política brasileira: “Em toda essa sociologia de vacuidade ou ausência de motivações

coletivas da nossa vida pública, há um traço geral que só por si bastaria para explicar

todos os outros aspectos (...). [Este]: a fraqueza da nossa consciência do bem coletivo,

do nosso sentimento de solidariedade social e do interesse público. Esta tenuidade ou

esta pouca densidade do nosso sentimento do interesse coletivo é que nos dá a razão

científica do fato de que o interesse pessoal ou de família tenha, em nosso povo – no

comportamento político dos nossos homens públicos -, mais peso, mais força, mais

importância determinante do que as considerações do interesse coletivo ou nacional.

Este estado de espírito tem uma causa geral (...): e a razão científica é a ausência da

compreensão do poder do Estado como órgão do interesse público. Os órgãos do

96

VIANA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 3ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1974, vol. I, p. 74.

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Estado são para estes chefes de clãs, locais ou provinciais, apenas uma força posta à

sua disposição para servir aos amigos, ou para oprimir os adversários e os interesses

destes”. 97

A perspicaz observação de Oliveira Viana, bem como o seu exigente método de

análise, foram os instrumentos que lhe permitiram reconstruir, a partir de tipos

sociológicos hauridos da nossa história, o intrincado pano de fundo da evolução

política brasileira. Profundo conhecedor da nossa formação social, o pensador

fluminense partiu da análise do “complexo de clã”, que surgiu como produto cultural

do latifúndio. O nosso insolidarismo secular nos fechou, durante séculos, numa visão

que não ultrapassava os limites do clã. Porque foi o latifúndio a primeira realidade

organizacional realmente consolidada que o nosso país conheceu, ao emergir das

sombras do descobrimento e ao se processar o primigênio surto de interiorização

ocorrido com as bandeiras vicentistas. O complexo de clã nasceu ali, ao redor da Casa

Grande, sob a figura protetora do senhor de engenho, única autoridade patriarcal,

inapelável, indelegável, unipessoal, carismática, violenta e paternal ao mesmo tempo.

Poderíamos aproximar, com sucesso, essa autoridade clânica da figura do

paterfamílias tão bem estudada por Weber. Na sua análise sociológica, Oliveira Viana

partiu, inspirado no método monográfico de Sílvio Romero e da escola lepleyana, para

a elaboração de uma “culturologia do Estado”, na qual explicitou o complexo cultural

subjacente aos diferentes momentos da nossa formação política.

A organização política da época colonial consolidar-se-ia a partir da única

realidade social conhecida pelo nosso povo-massa: o clã parental. Era ele quem

realmente garantia a sobrevivência do indivíduo contra a “anarquia branca” que, numa

visão privatista do poder (típica, aliás, da formação política patrimonialista

caracterizada pela sociologia weberiana), enquadrava dentro da órbita centrípeta dos

interesses parentais as instituições formais: câmaras municipais, juízes de paz, etc.

O Estado moderno, de abrangência nacional, deveria construir-se a partir dessa

realidade. As tentativas de passar da atomização clânica a uma democracia formal,

levariam fatalmente ao reforço das antigas formas privatistas de exercício do poder:

isso aconteceu, segundo Oliveira Viana, em 1824, quando da instituição do regime

parlamentar, e em 1891, quando da adoção puramente formal do federalismo

presidencialista de inspiração norte-americana.

Dois momentos-chave identificou Oliveira Viana na tentativa de consolidar o

Estado nacional, superando o “complexo de clã” e fazendo emergir uma mística

nacional: o Segundo Reinado e o Estado Getuliano. Dom Pedro II e Getúlio Vargas

enfeixaram, nas suas mãos, o maior poder até então conseguido por um governante

97

VIANA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras, ob. cit., volume I, p. 297.

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ao longo da história brasileira. A singularidade de ambos decorria do fato de terem

encarnado uma autoridade de cunho patriarcal, mas pondo-a a serviço de um processo

modernizador, que tinha como finalidade a definitiva consolidação do Estado nacional,

que se sobrepusesse aos clãs.

Oliveira Viana teve como cenário para a sua reflexão sociológica o Brasil rural,

que acordava para o primeiro surto de industrialização e de formação das grandes

cidades. Mas os elementos teóricos encontrados pela sua original meditação sobre a

realidade brasileira norteiam a forma em que deveríamos abordar os problemas

atuais. Amante declarado da democracia (é indisfarçável, por exemplo, o entusiasmo

com que descreve a secular luta do povo inglês para construir a democracia

representativa, enquadrando o absolutismo monárquico em limites fixados pelo

costume e pelo direito daí emergente), toda a sua reflexão foi endereçada no sentido

de encontrar o verdadeiro caminho para a democracia no Brasil, que seria o

coroamento do esforço modernizador empreendido pelo Estado intervencionista e

centralizador. E não poupou críticas à retórica liberal, que se limitava a apregoar a

volta oitocentista a um individualismo laissez-fairista.

Preocupado com a feição ética da vida política brasileira, o sociólogo

fluminense não só analisou os aspectos institucionais ligados ao processo

modernizador do Estado, como também se deteve no estudo do conteúdo psicológico

das nossas atividades partidárias e da ausência de “motivações coletivas”. Falando em

linguagem filosófica, diríamos que Oliveira Viana se preocupou com a formação de

uma moral consensual, que alicerçasse o processo de modernização institucional e a

consolidação do sentimento de nação.

5 – Hodiernos desdobramentos da culturologia do Estado.

Segundo Max Weber, 98 os Estados modernos são de dois tipos, de acordo com

o seu processo de formação: contratualistas ou patrimoniais. Os primeiros

correspondem às nações da Europa Ocidental, herdeiras da tradição feudal,

fortemente contratualista e alicerçada no controle moral ao poder. Ao emergirem,

nesse contexto, os Estados modernos, consolidaram-se de forma contratual entre as

classes em pugna, tendo ensejado, ao longo dos últimos quatro séculos, o moderno

parlamentarismo. Os segundos, os Estados patrimoniais, correspondem àqueles em

que um poder centrípeto, de forte tendência patriarcal, se sobrepôs às outras forças

sociais, tratando-as como instâncias domésticas, sobre as quais se estendia implacável

98

WEBER, Max. Economía y sociedad. (Tradução ao espanhol de J. Medina Echavarría et alii). 1ª edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944. A temática relacionada à forma em que surgiram os Estados modernos, ao ensejo das tradições feudal e patrimonialista, encontra-se notadamente nos volumes I e IV.

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a autoridade do rei. Esta foi a feição assumida pelos Estados surgidos na Península

Ibérica, bem como na Rússia. Weber e posteriormente Karl Wittfogel, 99 entenderam o

modelo do Estado patrimonial além das fronteiras do mundo moderno, arrolando

nesse contexto os antigos Estados hidráulicos (o Egito dos Faraós, o Império Chinês,

notadamente sob a dinastia Liao, os califados árabes, os impérios pré-colombianos

inca e asteca, etc.).

A característica fundamental das formações políticas patrimoniais é, segundo

Wittfogel, o fato de constituírem Estados mais fortes do que a sociedade. Neles, o

poder político não é entendido como instância pública que busca o bonum commune,

como res publica, mas como res privata. Há uma confusão radical entre público e

privado. Weber e também Wittfogel anotaram outras características típicas dos

Estados patrimoniais: neles, surge como instância auxiliar do soberano um estamento

pré-burocrático, porquanto não pautado por regras impessoais, mas alicerçado na

fidelidade pessoal. De outro lado, a lei não exprime uma ordenação que valha para

toda a sociedade, mas apenas constitui casuísmo a ser utilizado pela autoridade

central a seu bel prazer. A sociedade, outrossim, comporta-se de forma passiva e

insolidária, sendo a única autoridade atuante a do rei que governa como soberano

absoluto, cuja intervenção é invocada para solucionar qualquer pendência. A religião,

que no seio da Europa feudal constituiu instância de poder espiritual irredutível ao

imperium, no contexto patrimonial passa a ser cooptada pelo poder do monarca.

Alicerçada nessa tipologia weberiana, uma geração de estudiosos desenvolveu,

no Brasil, ao longo dos últimos quarenta anos, original análise da nossa formação

política, ensejando uma versão da culturologia do Estado bem próxima da

desenvolvida por Oliveira Viana. O precursor desta abordagem foi Raimundo Faoro, no

seu clássico estudo de 1958 intitulado: Os donos do poder: formação do patronato

político brasileiro, 100 no qual analisou detalhadamente a forma em que se consolidou

o estamento burocrático da monarquia portuguesa, alicerçado totalmente na

fidelidade pessoal ao monarca, na progressiva substituição da nobreza de sangue pela

de funcionários públicos, na submissão da burguesia à empresa do rei, bem como na

incorporação do direito romano, a partir da ação decisiva do Mestre de Avis.

Herdamos de Portugal a estrutura patrimonial do Estado. Esse fato tem sido

estudado, além de Faoro, por Simon Schwartzman, 101 Antônio Paim, 102 Fernando

99

Cf. WITTFOGEL , Karl. Le despotisme oriental: Étude comparative du pouvoir total. Tradução do inglês de Micheline Pouteau. Paris: Minuit, 1977. 100

FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 1ª edição. Porto Alegre: Globo, 1958, 2 vol. 101

Cf. SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Campus, 1982.

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Uricoechea, 103 Wanderley-Guilherme dos Santos, 104 José Osvaldo de Meira Penna 105

e Ricardo Vélez Rodríguez. 106 O ponto central dessa caracterização é este: consolidou-

se, no Brasil, um Estado mais forte do que a sociedade, em que o poder centrípeto do

Imperador, ao longo do século XIX, ou do Executivo, no período republicano, criaram

forte aparelho burocrático alicerçado no sentimento de fidelidade pessoal, com

elevada tendência improdutiva e familística, de forma a considerar a res publica como

res privata a ser administrada domesticamente, ensejando assim as conhecidas

práticas do empreguismo, do nepotismo e da corrupção sob as suas várias

manifestações.

Em que pese o caráter inexorável assinalado por Raimundo Faoro para essa

tendência patrimonial do Estado brasileiro, Simon Schwartzman e Antônio Paim

salientam um componente modernizador que deu lugar a nova tradição, identificada

por eles como “patrimonialismo modernizador” ou “neopatrimonialismo”. Consiste

este, no sentir de Paim, na incorporação da ciência moderna pelo Estado centralizador,

fato que se realiza em Portugal a partir das reformas pombalinas, que se projeta no

Brasil na geração que fez a Independência (formada, toda ela, na nova Universidade

aberta às ciências e às técnicas) e que organiza os primeiros institutos de estudos

superiores, entre os quais cabe destacar a Real Academia Militar, criada em 1810 pelo

Conde de Linhares, dom Rodrigo de Souza Coutinho. A tendência modernizadora,

vinculada ao cientificismo em poder do Estado, ensejou ampla prática modernizadora

e estatizante, já a partir do ciclo pombalino. O Ministro de D. José I pôs em execução o

modelo de Estado empresário, gerador da riqueza da Nação e da ordem política e

moral, mediante a incorporação da ciência moderna. Longe de ensejar a participação

da sociedade, o modelo pombalino fazia desta um menor de idade submetendo-a à

tutela do soberano e dos seus intendentes.

Inseriram-se no contexto do Estado tutelar e moralizador as reformas

empreendidas por Getúlio Vargas, ao longo das décadas de 30 e 40 do século passado,

inspiradas na filosofia política castilhista que, partindo do princípio de que o regime

parlamentar é um regime para lamentar, baniu o debate político e a representação,

substituindo-os pelo equacionamento técnico dos problemas. 107 Em que pese a

102

Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. Do mesmo autor (em colaboração com Francisco Martins de SOUZA, Reinaldo de BARROS e Ricardo VÉLEZ-RODRÍGUEZ), Evolução do pensamento político brasileiro. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. 103

Cf. URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial. São Paulo: DIFEL, 1978. 104

SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. Ob. cit. 105

Cf. PENNA, José Osvaldo de Meira. O dinossauro: uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. 1ª edição. São Paulo: Queiroz, 1978. 106

Cf. VELEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. “Tradición patrimonial y administración señorial en la América Latina”. In: Estado, cultura y sociedad en la América Latina. Bogotá: Universidad Central, 2000. 107

Cf. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. “Tradição centralista e Aliança Liberal”. In: BRASIL, Congresso, Câmara dos Deputados. Aliança liberal – Documentos da campanha presidencial. 2ª edição. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982, p. 9-43.

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adoção do ideal democrático como um dos objetivos nacionais permanentes pela

Escola Superior de Guerra na década de 50, as reformas modernizadoras deflagradas

após 64 retomaram a tendência estatizante do modelo getuliano. A hipertrofia do

Executivo e o crescimento acelerado do setor estatal da economia foram dois

elementos fundamentais desse processo. Tornou-se necessário, como frisou o general

Golbery do Couto e Silva, na sua memorável palestra da ESG, em 1980, 108 um processo

de descentralização administrativa e de participação política, a fim de controlar o

excessivo centralismo de inspiração autoritária, que ameaçava a sobrevivência do

sistema.

Para os teóricos do patrimonialismo modernizador, o autoritarismo não seria a

sina a que irremediavelmente estaria condenado o Estado brasileiro. De forma

semelhante a como países de tradição patrimonialista – Espanha e Portugal, por

exemplo – se modernizaram, incluindo nesse processo o ideal democrático mediante a

prática da representação política, o Brasil pode se tornar, no sentir deles, uma Nação

plenamente moderna e democrática, em que o Estado cumpra apenas funções que são

imprescindíveis e em que a sociedade participe ativamente do processo econômico e

político, mediante o estímulo à livre iniciativa e ao jogo político partidário.

Conclusão

Foram analisadas neste trabalho duas tipologias interpretativas dos estudos

sociais no Brasil, bem como duas propostas de análise sociológica voltadas para um

aspecto que foi bastante esquecido pela maior parte dos autores, ao longo das últimas

décadas: o Estado patrimonial. Um aspecto salta à vista: a sociologia brasileira soube

superar a tendência monocausalista que marcou, de início, as análises inspiradas no

positivismo. Isso não significa, no entanto, que a estreita perspectiva do cientificismo

comteano não teime ainda em sobreviver em certas análises, geralmente de cunho

marxista, instaladas infelizmente no seio da Universidade e entre os intelectuais. 109

A superação das análises positivistas veio acompanhada de outra característica,

de índole interdisciplinar, que pauta hoje os mais criativos estudos sobre a realidade

brasileira, a partir de Gilberto Freire e Oliveira Viana, chegando até os nossos dias com

as contribuições de sociólogos da talha de José Arthur Rios, de jusfilósofos como

108

Cf. SILVA, Golbery do Couto e, general. Conjuntura política nacional: o Poder Executivo e Geopolítica do Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. 109

Cf. PAIM, Antônio. Marxismo e descendência. 1ª edição, Campinas: Vide Editorial, 2009. Nesta obra, o eminente historiador das idéias faz uma detalhada análise acerca de como o cientificismo pombalino pervive ainda hoje, no seio da cultura estatizante que anima aos docentes de ciências sociais no seio da Universidade brasileira. O processo seguido pela versão ideológica das ciências sociais que terminou vingando no seio da cultura francesa, como programa para instauração de um vaporoso socialismo, encontrou terreno abonado no cientificismo positivista brasileiro, o que conduziu ao deserto de ideias em que se converteu a produção acadêmica de ciências sociais no Brasil hodierno.

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Miguel Reale, de juristas-sociólogos como Paulo Mercadante e Djacir Menezes, de

juristas como Raimundo Faoro, de historiadores das ideias como Antônio Paim e

Vicente Barretto, ou de cientistas políticos como Wanderley-Guilherme dos Santos,

Simon Schwartzman, José Osvaldo de Meira Penna, Ubiratan Macedo, etc.

Nesse esforço interdisciplinar em prol do resgate da imagem polimórfica da

nossa realidade, ocupa lugar de importância o Centro de Documentação do

Pensamento Brasileiro em Salvador-Bahia, que constitui hoje, sem favor, o mais

importante acervo do país no gênero. Graças ao empenho dos fundadores do Centro,

notadamente do professor Antônio Paim, os estudiosos de hoje e das futuras gerações

contam com preciosa fonte de informação que incentiva e enriquece, cada vez mais, a

compreensão da realidade brasileira.

A obra de Karl Wittfogel sobre o Despotismo Oriental (1951) marcou forte influência entre os sociólogos

de inspiração weberiana no Brasil que estudaram o Patrimonialismo. (Foto: arquivo do autor).

BIBLIOGRAFIA

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A obra do professor Antônio Paim, Balanço do Marxismo e Descendência (2009) marcou uma etapa

importante na análise crítica do positivismo marxista no seio da sociologia brasileira. (Foto: arquivo do autor).