O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph...

15
O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger BRUNO FERNANDES MAMEDE Introdução Neste artigo faremos uma análise das características do pensamento político do então Cardeal Joseph Ratzinger (futuro Papa Bento XVI), quando este ainda ocupava o cargo de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, entre os anos de 1981 e 2005. Consideramos este estudo relevante para compreender melhor as relações entre catolicismo e política no final do século XX, tendo em vista a importância do papel que Ratzinger ocupara na Cúria Romana durante o período, a vasta formação intelectual e respeitabilidade acadêmica que possuía e, evidentemente, o fato de ter alcançado o Papado e governado a Igreja Católica ao longo de oito anos (2005-2013). Nossa análise partirá de uma conferência, dada pelo cardeal, em um congresso realizado em abril de 1984 na cidade de Munique, intitulada Cristianismo e Democracia Pluralista. Em seguida, faremos uma leitura da terceira parte do livro Igreja, Ecumenismo e Política (1987), onde Ratzinger observou a prática religiosa cristã, e suas implicações teológicas, em relação ao surgimento e consolidação das democracias a partir da segunda metade do século XX. No mesmo ano, o cardeal escreveu um artigo chamado Política e Salvação, onde fez uma crítica à Teologia da Libertação latino-americana, procurando demonstrar seu caráter milenarista. No ano 2000, a cidade de Berlim recebeu o "Ciclo de Conversas sobre a Europa", do qual Ratzinger participou pronunciando uma conferência chamada Europa, Política e Religião, a qual tivemos acesso graças à publicação espanhola da revista Communio de 2001. A partir destes quatro documentos e, eventualmente, de análises feitas por filósofos e teólogos, traçaremos um perfil do pensamento político de Ratzinger nos anos em que este ocupou a Prefeitura da Doutrina da Fé. Ao final deste estudo, poderemos oferecer um subsídio valioso para a maior compreensão das relações entre catolicismo e política no final do século XX. Palavras-chave: Ratzinger, Igreja Católica, Política, Religião. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo.

Transcript of O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph...

Page 1: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger

BRUNO FERNANDES MAMEDE

Introdução

Neste artigo faremos uma análise das características do pensamento político do então

Cardeal Joseph Ratzinger (futuro Papa Bento XVI), quando este ainda ocupava o cargo de

Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, entre os anos de 1981 e 2005. Consideramos

este estudo relevante para compreender melhor as relações entre catolicismo e política no final

do século XX, tendo em vista a importância do papel que Ratzinger ocupara na Cúria Romana

durante o período, a vasta formação intelectual e respeitabilidade acadêmica que possuía e,

evidentemente, o fato de ter alcançado o Papado e governado a Igreja Católica ao longo de oito

anos (2005-2013). Nossa análise partirá de uma conferência, dada pelo cardeal, em um

congresso realizado em abril de 1984 na cidade de Munique, intitulada Cristianismo e

Democracia Pluralista. Em seguida, faremos uma leitura da terceira parte do livro Igreja,

Ecumenismo e Política (1987), onde Ratzinger observou a prática religiosa cristã, e suas

implicações teológicas, em relação ao surgimento e consolidação das democracias a partir da

segunda metade do século XX. No mesmo ano, o cardeal escreveu um artigo chamado Política

e Salvação, onde fez uma crítica à Teologia da Libertação latino-americana, procurando

demonstrar seu caráter milenarista. No ano 2000, a cidade de Berlim recebeu o "Ciclo de

Conversas sobre a Europa", do qual Ratzinger participou pronunciando uma conferência

chamada Europa, Política e Religião, a qual tivemos acesso graças à publicação espanhola da

revista Communio de 2001. A partir destes quatro documentos e, eventualmente, de análises

feitas por filósofos e teólogos, traçaremos um perfil do pensamento político de Ratzinger nos

anos em que este ocupou a Prefeitura da Doutrina da Fé. Ao final deste estudo, poderemos

oferecer um subsídio valioso para a maior compreensão das relações entre catolicismo e política

no final do século XX.

Palavras-chave: Ratzinger, Igreja Católica, Política, Religião.

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo.

Page 2: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

2

Cristianismo, Democracia e Liberdade

No dia 24 de abril de 1984 o Cardeal Joseph Ratzinger participou de um congresso na

cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”, onde fez uma

reflexão sobre os principais elementos que ameaçavam a democracia daquele período1.

1. Os limites da democracia e a necessidade da Igreja: Ratzinger identificou três

“raízes da atual ameaça à democracia”, sendo a primeira delas “una incapacidad para aceptar

amigablemente la constitutiva imperfección de las cosas humanas” (RATZINGER, 1984: 817);

a relutância em aceitar a fragilidade e insegurança que a moral humana possui levaria a uma

parcela importante da população, sobretudo os jovens, a adotarem posturas anárquicas ou à

apreciação de regimes totalitários; tratava-se, segundo ele, de uma confiança cega na dialética

hegeliana que prometera a síntese final:

Se ha introducido muy profundamente una especie de mesianismo profano. (...) No se

sabe cómo, pero se ha asentado en la conciencia general la idea de Hegel de que la

historia misma nos traerá al final la gran síntesis. La idea de que toda la historia ha

sido hasta ahora historia de la no libertad (Unfreiheit), pero que ahora finalmente

puede y debe ser construida la sociedad justa. (RATZINGER, 1984: 817)

Era a crença de que a própria História em curso traria a redenção, antes concentrada na promessa

cristã. Este neo-messianismo vinha acompanhado de uma inversão, da confusão entre ethos e

estrutura, “no es el ethos el que sostiene las estructuras, sino las estructuras son las que sostienen

el ethos; y ello, porque el ethos representa lo frágil y quebradizo, mientras las estructuras son

lo firme y seguro” (RATZINGER, 1984: 818), ou seja, Ratzinger percebia o profundo desprezo

dos valores individuais e do próprio indivíduo, enquanto, por outro lado, supervalorizava-se o

Estado, era muito clara a confiança de que suas estruturas poderiam trazer um mundo perfeito;

se este não fora alcançado, não poderia haver outro motivo, senão as falhas nas estruturas do

Estado, as quais deveriam ser aperfeiçoadas até o advento da sociedade ideal. O cardeal

apontou, neste contexto, que “la permanente expectativa de ese mundo, el jugar con su

posibilidad o proximidad, constituye la más seria amenaza de nuestra vida política y de nuestra

sociedad", e destacou que “para la consolidación de la democracia pluralista (...) es urgente

tener la valentía de reconocer la imperfección y la constante amenaza que caracterizan las

1 Utilizaremos uma versão espanhola do texto feita pelo Prof. Pedro Rodríguez da Universidade de Navarra, um

dos participantes do congresso. O título original da conferência pronunciada por Ratzinger é: Christliche

Orientierung in der pluralistische Demokratie? Ueber die Unverzichtbarkeit des Christenstums in der modernen

Welt. Tradução livre: “Orientação cristã na democracia pluralista? Quanto à indispensabilidade do cristianismo no

mundo moderno”.

Page 3: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

3

realidades humanas (RATZINGER, 1984: 819). O maior inimigo da democracia era, portanto,

a superstição materialista do paraíso na Terra.

A segunda ameaça ao espírito democrático provinha da “unilateralidad del moderno

concepto de razón, tal como fue formulado por primera vez por Roger Bacon y que después

triunfó plenamente en el siglo XIX” (RATZINGER, 1984: 819); o racionalismo e,

posteriormente, o positivismo de Comte, teriam limitado a razão às ciências experimentais,

portanto a ética e a política, para serem consideradas “racionais”, deveriam ser reduzidas à

física, à razão quantitativa. A suposta objetividade da moral conduziria à consequências

desastrosas segundo Ratzinger, a primeira mais evidente é que “la moral en cuanto tal queda

liquidada. Porque lo bueno en sí y lo malo en sí ya no cuentan, sino sólo la proporción de

ventajas e inconvenientes” (RATZINGER, 1984: 820), e a segunda que

El Derecho pierde toda fundamentación objetiva, (...) no se protegen ya bienes

jurídicos, sino que se trata tan sólo de evitar el choque de intereses contrapuestos

(...). Esta situación inerme de la razón moral tiene como consecuencia que el Derecho

ya no puede encontrar su punto de referencia en una idea fundamental de la justicia

y pasa a ser tan sólo el reflejo de las ideologías dominantes. (RATZINGER,

1984: 820).

Se a moral, enquanto tal, já não possui valor em si mesma, mas apenas em seu sentido prático,

e se o Direito já não tem como base um ethos, graças à inversão citada, mas somente uma

estrutura que garante, em primeiro plano, a ordem social, justificada a partir da compreensão

das estruturas estatais, caso estas percam seu valor prático e se mostrem ineficientes, o caminho

lógico é substituí-las por estruturas mais promissoras. A democracia, como se sabe, demonstra

tal ineficiência, pela lentidão da sua burocracia e pela falta de credibilidade transmitida pelos

seus representantes. A queda do Ocidente nas mãos do nazifascismo e/ou das ditaduras militares

teria esse elemento como determinante.

Por fim, o terceiro elemento seria a chave para a compreensão dos anteriores, Ratzinger

afirmou convicto

Yo estoy convencido de que la herida del hombre, de la que en sentido propio le vienen

todas las demás enfermedades, es precisamente la ruptura con la trascendencia. (...)

Marx nos enseñó que había que eliminar la trascendencia para que el hombre,

liberado de falsos consuelos, pudiera finalmente construir el mundo perfecto. Hoy

sabemos que el hombre necesita de la trascendencia para poder configurar su mundo,

siempre imperfecto, de una manera que permita vivir en él con dignidad humana.

(RATZINGER, 1984: 821)

Page 4: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

4

As ideias de Bacon, Hegel e Marx teriam, portanto, minado as bases da democracia atual, mas

sobretudo a contribuição marxista, já que esta implodiu uma dimensão da existência humana,

a transcendência, e lançado os homens na busca pela perfeição imanente, a qual se mostrou

inútil e vazia segundo o cardeal. Percebemos claramente que o alvo de Ratzinger era a URSS;

o Papa João Paulo II, ao longo de toda a década de 1980, realizou uma verdadeira cruzada

contra o comunismo soviético, e Ratzinger, como seu braço direito, adotou naturalmente a

direção da política vaticana. Voltaremos a esse tema mais adiante.

O que Ratzinger procurou demonstrar é que as estruturas estatais de uma democracia

possuem apenas parte das soluções para os problemas da vida humana, e isto não indicava uma

reforma destas estruturas, mas apenas que elas tinham, em si mesmas, esta característica de

insuficiência. O cardeal queria, portanto, indicar a profundidade da religião cristã como

suplemento necessário à democracia, para que esta não caísse em descrédito e não tivesse que

carregar obrigações indevidas como a felicidade ou plenitude humanas.

Apesar de reconhecer, através de uma autocrítica, os limites da interpretação cristã como

influência positiva à vida política, afirma que “sigue siendo algo indiscutible que esta

democracia es un producto de la mutua interacción de la doble herencia griega y cristiana; y,

por tanto, sólo puede sobrevivir reconectando a fondo con estas raíces fundamentales”

(RATZINGER, 1984: 824-825). Segundo o Cardeal, a teologia cristã e a política se encontram

em âmbitos diferentes, mas o ethos, a moral no Ocidente, tem como fonte necessária a religião

cristã, e o Estado não poderia se manter, como demonstrava a crise estrutural vivida naquele

contexto, sem esta base fundamental: “Donde el humus cristiano desaparece del todo, ya no

queda nada que se tenga de pie”; esse elemento não prejudicaria as demais confissões religiosas

existentes, já que não se tratava de criar um estado teocrático, mas pelo contrário, a convivência

harmoniosa da sociedade em toda a sua variedade seria beneficiada pois

La razón que se cierra sobre sí misma se hace irracional y el Estado que quiere ser

perfecto se hace tiránico. La razón necesita de la Revelación para poder actuar como

razón. La relación del Estado a su fundamento cristiano es insustituible precisamente

para que el Estado siga siendo tal y pueda ser pluralista. (RATZINGER, 1984:

827)

A Igreja seria, dessa forma, condição sine qua non para a sobrevivência da democracia nos

estados liberais, frente ao avanço do comunismo soviético e do islã, este último já tratado como

uma preocupação crescente, avesso ao estado laico e democrático.

2. O Conceito de liberdade vinculado ao cristianismo: assim como a sustentação dos

princípios democráticos apareciam como fundamentais para impedir o avanço de novos

Page 5: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

5

totalitarismos, o conceito de liberdade também é colocado como dependente de um referencial

cristão. No livro Iglesia, Ecumenismo y Política (1987), no qual o texto anterior compõe um

trecho da sua terceira parte, Ratzinger faz uma longa reflexão sobre esse tema. Segundo o

cardeal: “Hay que añadir aún que precisamente esta separación entre la autoridad sagrada y la

estatal, este nuevo dualismo, significa el comienzo y el fundamento permanente de la idea

occidental de la libertad” (RATZINGER, 2005: 179); a separação a qual ele se refere é a

separação que Jesus fez ao dizer “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”

(Mt 22: 21), única citação de Jesus que se referia ao Estado. O fundamento do que nós

compreendemos por “liberdade” estaria nesta alocução de Jesus, pois foi através dela que o

Estado deixou, aos poucos, de ser uma autoridade religiosa, deixou de ser uma entidade “que

penetra hasta el último rincón de la conciencia”. Surgiu, em contrapartida, uma comunidade

cujo pertencimento seria voluntário e cujas sanções seriam apenas espirituais pois esta não

estenderia seu domínio mais além. “De este modo, cada una de estas dos comunidades tiene

limitado su radio de acción, y la libertad mutua se basa justamente en el equilibrio de esta

relación” (RATZINGER, 2005: 179). Ratzinger reconhecera que nem sempre esse equilíbrio

pôde ser mantido, mas justifica com esse fato sua necessidade.

Para o cardeal, as sociedades modernas não podem esquecer que as raízes das suas

democracias estão na Grécia e no conceito de liberdade cristão, caso estas perdessem este

referencial cairiam em ditaduras e regimes fechados, ele dá um exemplo: “la idea de libertad

no es separable del ámbito cristiano ni es transplantable a cualquier otro sistema, como puede

constatarse hoy claramente en el renacimiento del islam” (RATZINGER, 2005: 180); mas não

só o islã representava um ataque à liberdade prezada pelo Ocidente, o marxismo lido em chave

religiosa pelos teólogos da libertação, também apresentavam “un peligro que acecha siempre

al hombre” (RATZINGER, 2005: 184), pois embora não fosse condenável que o cristão

almejasse uma liberdade maior do que os sistemas democráticos ofereciam, pelo contrário, não

era admissível que tal liberdade fosse buscada através da ação política, pois esta só poderia vir

com a “cidade de Deus”, só poderia vir através da fé e da esperança religiosa. Era, portanto,

“errónea también la reducción de la esencia del hombre a la dimensión de lo político”

(RATZINGER, 2005: 212). A Igreja, segundo Ratzinger, era necessária pois fazia com que o

Homem transcendesse os limites do meramente “político”. Tratava-se de um conceito muito

reduzido de política.

Por fim, ser “livre” para o cardeal tinha um significado muito mais grego do que

moderno, “libre es el que, dondequiera que esté, se siente como en su casa. La libertad tiene

mucho que ver con el sentido de la casa y de la patria. Ser libre equivale a tener todo derecho

Page 6: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

6

y la plenitud de la propia dignidad” (RATZINGER, 2005: 214). Ao contrário da teologia da

libertação, defensora de um conceito de liberdade que associava “libertação” ao fim da miséria,

Ratzinger propunha uma noção mais interiorizada e próxima da tradição grega. Analisaremos,

em seguida, alguns aspectos da crítica do Cardeal a essa corrente teológica que marcou,

sobretudo, a América Latina.

Política e Salvação

Em 1987, ainda preocupado com as relações entre política e fé, Ratzinger escreveu um

artigo intitulado Política y Salvación: Acerca de la relación de la fe, lo racional y lo irracional,

en la llamada Teología de la Liberación2, no qual pretendeu fazer uma análise da Teologia da

Libertação3, mas que na realidade se limitou à análise do livro Teologia da Libertação do

teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, considerado seu sintetizador graças a esta obra. Ratzinger

classificou a TdL como “marxismo teologizado”; não deixou de reconhecer, apesar disso, a

legitimidade da crítica feita por estes teólogos, ou seja, a contradição não resolvida pela teologia

tradicional de reconhecer na morte e ressurreição de Jesus um elemento salvífico universal, mas

de, contudo, testemunhar em todo o mundo a miséria na qual vivem milhões de pessoas, cristãs

e não-cristãs; onde estaria, portanto, a salvação trazida por Deus aos homens? A crítica dos

teólogos da libertação era legítima, mas suas respostas não.

Ratzinger começou por definir a “opção fundamental” que Gutiérrez utilizou para a sua

análise: “la fusión entre la razón política y la teológica, entre la acción política y la esperanza

en el Reino de Dios, que deben convertirse en esperanza activa y político-revolucionaria”; a

distinção reconhecida desde a patrística entre ordem natural e sobrenatural, entre Igreja e

Mundo, estava anulada. Chegava-se, através de uma reflexão teológica, não mais à esperança

de uma teofania, mas sim de uma “antropofania”, da manifestação do Homem como ser

integralmente livre e feliz na Terra. Os conceitos de “revolução” e “redenção” estariam

intimamente ligados, a teologia e a política eram interdependentes, conclusões absolutamente

destoantes da teologia tradicional e da opinião que Ratzinger possuía sobre o tema: “la teología

y la política no son completamente coincidentes; cada una de ellas tiene una extensión que va

más allá que la otra. Sin embargo, ambas coinciden en un campo medular muy propio"

(RATZINGER, 1987: 8).

2 In: Revista Tierra Nueva 60, (1987) p. 38-51. A versão do texto utilizada neste artigo foi retirada da Internet.

Disponível em: https://www.aciprensa.com/apologetica/teologia/salvacion.htm. 3 Faremos a citação desta através da abreviação TdL.

Page 7: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

7

O fato de Gutiérrez conseguir unir, de forma muito natural, política e teologia, e

Ratzinger enxergar nisto uma dificuldade insolúvel está nas escolhas distintas de ambos sobre

o ponto que as une. Segundo Gutiérrez, o processo de libertação humana seguiria três passos:

a libertação econômica, política e social, a libertação para a construção do “homem novo” em

uma sociedade solidária e a libertação do pecado, o que traria a união entre Deus e Homem.

Portanto, em primeiro lugar a libertação precisaria da racionalidade científica, em segundo

lugar da utopia e em terceiro lugar da fé. Ratzinger analisou esses três momentos da teologia

de Gutiérrez e identificou um problema fundamental, o primeiro e o terceiro passos são inúteis.

O terceiro passo seria dispensável pois “lo que en él puede reclamar algún interés, a saber, la

comunión con los demás, ya se anticipa, en realidad, amplia y suficientemente, en el segundo

plano - el de la utopia” (RATZINGER, 1987: 8) e o primeiro sofreria o mesmo problema:

Ya en el primer paso de la reflexión, la economía es reemplazada por la sociología,

y la sociología es totalmente leída desde la utopía. Debemos, pues, comprobar que el

primer plano - el de la racionalidad científica - se derrumba casi por completo, y los

contenidos que se le adjudican - la liberación económica, social y política - están casi

totalmente absorbidos por el tipo metodológico del segundo plano, es decir, por la

esfera de la utopía. (RATZINGER, 1987: 9)

O elemento central na teologia de Gutiérrez seria, portanto, a utopia. Ao redor dela, teologia e

política se vinculam e se interdependem. Ora, se a utopia, nesse contexto, fosse em si negada e

retirada da equação chegaríamos ao pensamento de Ratzinger. O cardeal não considerou válida

a análise da TdL de Gutiérrez pois existiria outro elemento, outro ponto de contato entre

teologia e política, que evitaria a confusão entre os dois âmbitos, a ética.

Ratzinger manteve a ideia de que a ética era a única forma de fazer com que a fé católica

se relacionasse com a política, e isto estava ligado de maneira muito clara à dogmática católica:

“Las obras no justifican, es decir, la política no salva, y si reclama para sí semejante

prerrogativa, se torna en esclavitud” (RATZINGER, 1987: 16); mas, a esta reflexão, adicionou

um segundo elemento, a educação. Segundo ele:

En efecto, lo que cambia las cosas humanas es, en último término, sólo la educación,

que incluye estos dos aspectos: formación e instrucción, aprendizaje del poder y

purificación del ser. La fe es formación que le viene al hombre a partir de Dios, y de

la cual necesita por cuanto, en ningún momento de su historia, él puede crearse, como

hombre, a sí mismo. (RATZINGER, 1987: 16).

Se a ética não marcara adequadamente a vida política no Ocidente não era por ineficiência ou

fragilidade, mas porque “el diálogo entre la razón moral y la razón empírica no ha sido llevado

en forma lo suficientemente enérgica” (RATZINGER, 1987: 15), o que ainda pode acontecer

Page 8: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

8

com a maior presença cristã na sociedade, não apenas quantitativamente mas qualitativamente

falando. Ir além destas possibilidades seria extrapolar os limites naturais da situação humana.

A partir dos trechos destacados podemos concluir que o pensamento ratzingeriano se

enquadra no que costumamos classificar como antiutópico, mas com elementos adicionais, com

uma espécie de pensamento apolítico (ou semipolítico), catequético, pois atribui à Igreja a

incumbência do ensino e com mais tendência à ortodoxia do que à ortopráxis. Essa linha

intelectual que Ratzinger segue se preocupa, novamente, com o tema da liberdade. Podemos

destacar a citação:

El ordenamiento de la política a la doctrina del ser y el tratamiento del ser según el

prototipo del ser físico y de su capacidad de ser realizado con una máquina, son

característicos de un proyecto que convierte la libertad en un acontecimiento

colectivo y procesual en el que, con la seguridad y la determinación de una máquina,

se fabrica el producto “hombre nuevo”. (RATZINGER, 1987: 13)

A negação da utopia, a educação ortodoxa e a diminuição da importância da política (ou

podemos falar em reconhecimento do que verdadeiramente lhe cabe) seriam imperativos para

manter a liberdade, não só da Igreja, mas da sociedade como um todo. Não é, podemos notar,

a prática política que garante a liberdade, mas a ética cristã que, mesmo de forma velada,

mantém distante a “ganância” estatal.

Europa, Política e Religião: Algumas questões históricas

No dia 28 de novembro de 2000 o Cardeal Ratzinger voltou a falar sobre os temas

abordados anteriormente, mas desta vez através de uma perspectiva historiográfica4, baseando-

se, sobretudo, em Arnold Toynbee e sua teoria sobre o nascimento, desenvolvimento e queda

das civilizações5. Ratzinger compreende a Europa não apenas como uma expressão geográfica,

mas também como um conceito cultural e histórico, e é este último aspecto que o cardeal utiliza

para fazer sua análise.

Assim como Toynbee, Ratzinger iniciou sua reflexão apontando a quebra que o islã

causou na antiga unidade mediterrânica, construída pelo Império Romano, e mostrou como a

partir desta fissura surgiram particularidades entre as culturas do norte da África, do Oriente

Médio e da Europa. Após esta ressalva, observou que o conceito de “Europa” ficou melhor

delimitado com Carlos Magno, depois desapareceu durante um determinado período da

4 Na primeira parte o tema se restringiu à democracia e a segunda foi uma crítica à teologia latino-americana. 5 É compreensível que Ratzinger recorresse a Toynbee, considerando a importância atribuída, por este último, à

religião.

Page 9: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

9

linguagem popular e só ressurgiu no século XVIII como contraposição ao Império Turco. A

Europa, a partir daquele momento, compreendia-se como uma unidade cultural cristã6.

A divisão entre religião e política na Europa, cuja origem Ratzinger considerou ter

amadurecido no século V, surgiu como contraponto à realidade dos “reis-sacerdotes”

bizantinos. O Imperador deveria submeter a todos nas questões temporais, mas nas questões

espirituais deveria submeter-se à Igreja. Mesmo com a diferença clara entre os impérios do

Ocidente e Oriente, Ratzinger percebeu na coexistência cronológica do Império carolíngio com

a resistência bizantina a fundação do continente europeu. Após a queda de Constantinopla,

Moscou teria se tornado a “nova Roma” e a Rússia, até então mais identificada com o Oriente,

europeizara-se até a fronteira com a Sibéria. Neste momento, a delimitação cultural do que era

ou não parte da continente europeu estava concluída. Nada teria abalado essa realidade até a

Revolução Francesa.

A Revolução Francesa secularizou o Estado e ignorou a religião: “el Estado se considera

algo puramente secular, basado en la racionalidad y en la voluntad de los ciudadanos”

(RATZINGER, 2001: 243). O processo revolucionário foi seguido da diluição da ideia de

“império”, enquanto as “nações” passaram a ocupar o lugar como “verdaderos y únicos sujetos

de la Historia” (RATZINGER, 2001: 244). As novas circunscrições políticas assumiram, como

novos sujeitos históricos, diversas “missões”, estas causadoras dos conflitos bélicos e das

perseguições no século XX. A partir de 1789, portanto, a Europa passou a abandonar suas forças

morais e espirituais, enquanto o islã renascera no século XX como força política determinante.

Ratzinger queria demonstrar como fora arriscado deixar as energias religiosas do cristianismo

e como este abandono colocava em risco até mesmo a unidade étnica dos europeus, segundo

ele, “em vias de extinção”. O cardeal, visivelmente alinhado com o pensamento de Toynbee,

cita-o diretamente quando expõe que o Ocidente “se encuentra en una crisis, cuyas causas

descubre en la apostasía de la religión para rendir a la técnica, a la nación y al militarismo. En

última instancia, la crisis tiene para él un nombre: secularización” (RATZINGER, 2001: 246).

Estas reflexões são seguidas de dois elogios, um aos Estados Unidos e outro ao chamado

“socialismo democrático”, estratégia comum da Igreja que se autocompreende como adaptável

6 No ano de 2004 Ratzinger se colocou pessoalmente contra a adesão da Turquia na União Europeia: "Seria um

erro fazer dos dois continentes um só, significaria uma perda de riqueza, o desaparecimento da cultura em favor

dos benefícios no campo econômico. (...) As raízes que formaram e permitiram o crescimento deste Continente

são as do Cristianismo, isto é um fato histórico. Por isso, tenho dificuldades em compreender as resistências

manifestadas contra o reconhecimento do mesmo”.

Matéria disponível em: http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/vaticano/cardeal-ratzinger-contra-a-entrada-da-

turquia-na-uniao-europeia/

Page 10: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

10

a qualquer modelo político7, manter-se próxima tanto do liberalismo quanto do socialismo,

sempre com as devidas ressalvas. Sobre os Estados Unidos, Ratzinger apontou que o “momento

religioso”8 vivido por este teve “un peso público importante, que podía llegar a ser decisivo

para la vida política, como fuerza prepolítica y suprapolítica” (RATZINGER, 2001: 247); seria

uma explicação para a solidez político-econômica daquele país; já o “socialismo democrático”

apareceu em seu discurso como uma postura mais próxima da Doutrina Social da Igreja (DSI)

e como um auxílio notável para a formação da consciência social. Mas enquanto elogiava este

modelo de socialismo, condenava ao mesmo tempo o que classificou de “socialismo totalitário”,

vertente materialista, ateia e revolucionária segundo o cardeal.

O “socialismo totalitário” deixara não apenas uma catástrofe econômica, segundo

Ratzinger, mas também gerou “la desolación de los espíritus, la destrucción de la consciencia

moral” (RATZINGER, 2001: 249). A destruição da fé e da consciência de certos valores morais

gerada pelo marxismo9 seria o verdadeiro problema da atualidade que consumia a consciência

europeia. Portanto, a maior questão para a diluição da identidade europeia era a influência deste

marxismo desagregador e anticristão; para recuperar sua herança cultural era necessário,

segundo o cardeal, reaver elementos esquecidos do cristianismo fundante: “Ese fundamento

existe, y descansa en la herencia cristiana de lo que el Cristianismo había hecho nuestro

continente” (RATZINGER, 2001: 249).

Considerações Iniciais

Após a exposição destes quatro documentos podemos identificar que Ratzinger destacou

três elementos que seriam prejudiciais à vida política ocidental: o laicismo10, o marxismo e o

crescimento do islamismo. Mas quais consequências sociais estes elementos acarretariam se

adotados na dinâmica política? Analisemos, com a ajuda de outros estudiosos do pensamento

ratzingeriano, detidamente cada um deles.

1. O laicismo: a ausência absoluta da religiosidade da vida pública, fruto de perseguição

deliberada ou de sanções legais, seria um risco para a vida política das nações pois atingiria um

núcleo existencial importante para ser o humano. O historiador Dante Gallian, em um artigo a

7 Conferir a Carta Encíclica Libertas Praestantissimum (1888), 32, do Papa Leão XIII. 8 Expressão de Arnold Toynbee. 9 Ratzinger utiliza as definições “marxismo” e “socialismo totalitário” como sinônimas. 10 Ao contrário da “laicidade”, princípio considerado positivo por Ratzinger, o conceito de “laicismo” foi definido

pelo Papa João Paulo II da seguinte forma: “No âmbito social está a difundir-se também uma mentalidade inspirada

no laicismo, ideologia que leva gradualmente, de maneira mais ou menos consciente, à restrição da liberdade

religiosa a ponto de promover o desprezo ou a ignorância do âmbito religioso, encerrando a fé na esfera privada e

opondo-se à sua expressão pública”. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/john-paul-

ii/pt/speeches/2005/january/documents/hf_jp-ii_spe_20050124_spanish-bishops.html.

Page 11: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

11

respeito das análises de Ratzinger sobre a cultura contemporânea, demonstrou como o então

Papa Bento XVI percebia a desumanização dos costumes na atualidade, resultado da ausência

de sentido gerado pelo vácuo da secularização do cotidiano:

Concomitantemente com os inegáveis progressos no campo científico-tecnológico e

no econômico-social, o homem da civilização pós-moderna experimenta,

paradoxalmente, um sentimento de solidão e abandono (Bento XVI, 2008, 12 de

setembro), característico do nosso mundo globalizado. Se, por um lado, as

desigualdades e a exploração econômica explicam a desolação de milhões, por outro,

a carência de valores e sentido de vida acabam por lançar outra importante parcela

da humanidade na “angústia que conduz ao desespero” (Bento XVI, 2006, 3 de

novembro). (GALLIAN, 2011: 251)

Não era um mundo mais igualitário que a política laicista estava promovendo, mas, segundo

Bento XVI, uma sociedade de desesperados e angustiados pelo vazio da existência. Mas este,

apesar de sério, não era o problema mais grave, as consequências do laicismo político iriam

além de meros efeitos psicológicos. Quando Bento XVI foi convidado para discursar no

Parlamento alemão em 2011, este chamou a atenção para uma tendência arriscada:

Uma concepção positivista de natureza, que compreende a natureza de modo

puramente funcional, tal como a conhecem as ciências naturais, não pode criar

qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas apenas

funcionais. (...) Onde vigora o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em

grande parte, o caso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas de

conhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. (BENTO XVI, 2011:

4)

Portanto, a própria ética e o direito estariam em risco com a exclusão da visão cristã do âmbito

público. O historiador e sociólogo chileno, Fernando Mires, analisando este discurso, destacou

que o Papa pretendia demonstrar a necessidade da “dialogicidad de la política”, que o bem-estar

de uma democracia dependeria da lógica de confronto inerente à vida política:

La política es una práctica agónica (de lucha) y por lo mismo necesita de la

antagonía. Ahora, el antagonismo político no sólo requiere de la libertad política. Es,

además, su condición. Es por eso que el proyecto final de toda dictadura es suprimir

los antagonismos políticos, eso es, a la propia razón política. Luego, toda dictadura

es políticamente irracional, y por lo mismo –siguiendo las tesis de Benedicto XVl –

antinatural. (MIRES, 2011: 5)

Os resultados de uma política laicista seriam, necessariamente, o risco de supressão do direito

individual, a desvinculação de ética e direito, o vazio existencial e a ausência de contraponto,

fundamental segundo a lógica exposta, entre a moral política e a religiosa.

Page 12: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

12

2. O marxismo: a ameaça que o marxismo representava à política, segundo a visão cristã de

Ratzinger, estava no fato de que a necessidade social de espiritualidade fora “compensada” por

esta ideologia. O filósofo e sociólogo, Rudy Albino Assunção, resumiu como Ratzinger

interpretava o marxismo:

Uma forma de “messianismo” baseado na esperança bíblica. Essa canalização –

inversão – do fervor era possível justamente graças ao “parentesco” entre o clamor

que o marxismo apresentara e a esperança bíblica. Esta última encontrava na

esperança marxista uma “opositora” que não visava a eliminar a esperança em si,

mas, sim, estabelecer uma substituição do agente realizador dessa esperança:

eliminar Deus, colocando o homem no seu lugar. (ASSUNÇÃO, 2012: 1045)

O marxismo, segundo a definição de Ratzinger, era uma ameaça ao cristianismo pois tomava

algumas de suas bases de forma invertida. Era um concorrente espiritual da religião, pois fazia

alusão a um futuro mundo perfeito que, no entanto, não seria edificado por ação divina, mas

sim pela revolução tramada pelos homens oprimidos. Por ter, supostamente, um caráter

religioso, o marxismo teria princípios dogmático-ideológicos aplicados à dinâmica política e à

História: “El marxismo creía conocer la estructura de la historia mundial, y, desde ahí, intentaba

demostrar cómo esta historia puede ser conducida definitivamente por el camino correcto”

(RATZINGER, 1996: 2); se o marxismo estava seguro do como a história deveria ser

conduzida, então faria todo o necessário para fazê-lo, passando por cima, inclusive, de direitos

fundamentais. Segundo Ratzinger, no campo político, para manter uma sociedade liberal, certo

relativismo era necessário, pois “no existe una opinión política correcta única, pensar así era

precisamente el error del marxismo” (RATZINGER, 1996: 3). O marxismo se configurava

como risco para a liberdade das sociedades atuais, como absolutização de uma determinada

visão política, autoritária e violenta que tentava, além disso, sugar as energias religiosas do

cristianismo.

O grande problema, portanto, era a função que o marxismo atribuía à dinâmica político-

econômica, sendo esta não apenas prática mas messiânica, acima de Deus ou de qualquer outro

princípio. O colombiano, Euclides Eslava, da Universidad de la Sabana, estudioso do

pensamento de Ratzinger, expôs a visão que este possuía do mal que Marx também fizera à

teologia, e através desta à sociedade em geral:

Marx asumió el papel que en el siglo XIII se le había dado a Aristóteles. Lo malo es

que Marx no es Aristóteles, añade Ratzinger con ironía. Y asumir el marxismo o el

neomarxismo no es asumir una filosofía, sino sobre todo una praxis. Una praxis que

“hace” la verdad, no que la presupone. Y quien convierte a Marx en el filósofo de la

teología admite entonces la primacía de lo político y de lo económico sobre Dios, que

Page 13: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

13

no es práctico ni real en el sentido de histórico-material (Ratzinger 2009a 19-21).

(ESLAVA, 2012: 99)

Uma ideologia que “cria” e não “pressupõe” a verdade não poderia ser capaz de plasmar a vida

política com justiça e ética.

3. O Islamismo: quando se trata de islamismo e Ratzinger, devemos nos lembrar do mal-estar

causado pelo recém-eleito Papa Bento XVI em 2006, durante sua viagem apostólica à

Alemanha, quando realizou um discurso na Universidade de Regensburg. Bento XVI fez

referência a uma reflexão do Imperador bizantino, Manuel II Paleólogo, onde dizia: “Mostra-

me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas tais

como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava”; ao discurso, disponível

no site do Vaticano, tiveram que adicionar uma nota de rodapé esclarecendo que aquela não

retratava a opinião pessoal do Papa após vários protestos feitos nos países de maioria islâmica.

Mas, apesar de acreditarmos que esta não era a posição de Bento XVI, depois de expor as razões

pelas quais os cristãos não evangelizavam pela força, ele concluiu:

Nesta argumentação contra a conversão através da violência, a afirmação decisiva

está aqui: não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. E o editor,

Theodore Khoury, comenta: para o imperador, como bizantino que cresceu na

filosofia grega, esta afirmação é evidente; mas não o é para a doutrina muçulmana,

porque Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não está vinculada a

nenhuma das nossas categorias, incluindo a da razoabilidade. Neste contexto,

Khoury cita uma obra do conhecido islamita francês R. Arnaldez, onde este assinala

que Ibn Hazm chega a declarar que Deus nem sequer estaria vinculado à sua própria

palavra e que nada O obrigaria a revelar-nos a verdade. Se fosse a sua vontade, o

homem deveria inclusive praticar a idolatria. (BENTO XVI, 2006)

O islamismo, portanto, apresentava um problema similar ao do marxismo; por um lado não

poderia existir a “verdade” em sentido absoluto, pois esta dependeria da vontade de Allah,

sempre mutável e independente de qualquer coisa, inclusive de sua própria palavra, enquanto o

deus cristão não poderia, por escolha, voltar atrás com suas determinações ou contrariar a

racionalidade que ele mesmo criara. Tal postura explicaria porque nos países de maioria

islâmica a democracia é tão dificilmente adotada, pois se um militar rebelado conseguisse

derrubar o governo e chegar ao poder, automaticamente isto passaria a ser interpretado como

vontade de Allah, não como desrespeito às regras previamente estabelecidas. O Prof. Faustino

Teixeira da UFJF, em uma resenha do livro do vaticanista Marco Politi, Joseph Ratzinger: crise

di un papato, disse: “Politi indica que as dificuldades de Bento XVI com o mundo muçulmano

vinham de longe, e que a tendência em curso seria a de reduzir o lugar do diálogo com o Islã a

Page 14: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

14

um diálogo de culturas e civilização (pp. 69-70)” e citou o lamento de Politi: “em uma hora,

em Regensburg, rompe-se em frangalhos vinte anos de política wojtiliana no confronto do Islã”

(TEIXEIRA, 2012: 756); a relutância pessoal de Ratzinger em aceitar a admissão da Turquia

na União Europeia, a concordância parcial deste quanto a associação do islã com a violência e

a referida tendência de seu pontificado em se relacionar com o islã como se fosse uma

civilização e não uma religião, demonstram como Ratzinger não interpretava o islã estritamente

como religião, mas como força política e cultural negativa.

Considerações Finais

O pensamento político de Ratzinger dirigiu parte significativa das ações da Igreja

Católica neste âmbito ao longo de mais de trinta anos. A análise feita acima sobre sua visão

quanto ao laicismo, marxismo e islamismo são apenas os principais aspectos das suas

complexas posturas acerca das relações entre a Igreja e o Mundo, cujos detalhes serão

pesquisados em um trabalho mais extenso. Porém, podemos depreender deste breve estudo que

Ratzinger percebe a Igreja e a religião cristã não como agentes políticos, mas como inspirações

fundamentais para a dinâmica política, sem as quais esta cairia em erros como os citados

anteriormente. O cristianismo seria, dessa forma, uma espécie de ponto de equilíbrio que

evitaria tornar a política um elemento social mais importante do que realmente é, de maneira

que esta pudesse cuidar de suas obrigações sem ultrapassar os seus limites. Mas Ratzinger não

estaria, com tais conclusões, apenas justificando a existência da Igreja no interior de uma

sociedade cada vez mais apática à prática religiosa? Não seria apenas uma afirmação de poder

em detrimento de certas formas de pensar? Acreditamos que se Ratzinger está preocupado com

a ação de vertentes sociais que considera intolerantes, não quer dizer que ele mesmo não o seja,

mas que ao menos a Igreja e sua Hierarquia não aprovam mais suas próprias antigas pretensões

de exclusividade, recentemente abafadas. Se a Igreja direcionou críticas severas ao laicismo,

não fizera o mesmo com a laicidade, se condenou o socialismo totalitário não se colocara contra

o socialismo democrático e, apesar das críticas ao islamismo, na atualidade defende que os

países europeus recebam imigrantes muçulmanos de países em situação de conflito. Não

podemos deixar de notar a suavização do antigo rigorismo católico sobre tais questões e a

análise do pensamento de Ratzinger é uma ferramenta importante para compreender essa

mudança.

Page 15: O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger · O Pensamento Político do Cardeal Joseph Ratzinger ... cidade de Munique intitulado “A Herança Europeia e seu Futuro Cristão”,

15

Referências Bibliográficas

ASSUNÇÃO, Rudy Albino. O Papa precisa do marxismo? Bento XVI e a incompatibilidade

entre a fé cristã e a fé marxista. Revista Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 1042-1059,

jul./set. de 2012.

ESLAVA, Euclides. Poder, Justicia y Paz. El Pensamiento Político de Joseph Ratzinger.

Escritos/Medellín – Colômbia, v. 20, n. 44, p. 83-119, jan/jun. de 2012.

GALLIAN, Dante Marcello Claramonte. A cultura contemporânea na clínica de Joseph

Ratzinger: as patologias da modernidade e a terapêutica da humanização. Memorandum, v.

21, p. 249-260, novembro de 2011. Disponível em:

http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a21/gallian02. Acesso: Fevereiro/2017.

MIRES, Fernando. Una clase de filosofía política, 2011. Disponível em:

http://prodavinci.com/2011/09/26/actualidad/una-clase-de-filosofia-politica-por-fernando-

mires/. Acesso: Abril/2017.

RATZINGER, Joseph. Cristianismo y Democracia Pluralista: Acerca de la necesidad que el

mundo moderno tiene del Cristianismo. Revista Scripta Theologica, v. 16, n. 3, p. 815-829,

1984.

RATZINGER, Joseph. Política y Salvación: Acerca de la relación de la fe, lo racional y lo

irracional, en la llamada Teología de la Liberación, 1987. Disponível em:

https://www.aciprensa.com/apologetica/teologia/salvacion.htm. Acesso: Abril/2017.

RATZINGER, Joseph. Situación actual de la fe y la teología, 1996. Disponível em:

http://www.unav.edu/matrimonioyfamilia/observatorio/documentacion_imprimir.php?cmd=se

arch4&id=27281. Acesso: Março/2017.

RATZINGER, Joseph. Europa, Política y Religión: los fundamentos espirituales de la cultura

europea de ayer, hoy y mañana. Revista Communio. Trad. Carlos Fortea, v. 23, n. 3, p. 238-

253, abr/jun. de 2001.

RATZINGER, Joseph. Iglesia, Ecumenismo y Política. Trad.: Bartolomé Parera (Parte 1), José

Luis Legaza (Parte 2) e Gonzalo Haya (Parte 3). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,

2005.

TEIXEIRA, Faustino. Joseph Ratzinger e a Crise de um Papado. Uma avaliação pontificado

de Bento XVI – por Marco Politi (Resenha). Revista Eclesiástica Brasileira (REB), v. 72, n.

287, p. 754-758, julho de 2012.