O Pecado Original Da República - Revista de História_ Carvalho

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 26/02/2015 O pecado or i gi nal da Repúbl i ca - Revi sta de Hi stóri a http://www.revistadehi stor i a.com.br/secao/capa/o- pecado-original-da-republica 1/3 O pecado original da República Como a exclusão do povo marcou a vida política do país até os dias de hoje José Murilo de Carvalho 19/9/2007 De acordo com os dados do censo de 1920, teremos uma população total, representada pelo círculo maior, de 30,6 milhões. Este é o povo do censo que, pelo menos em tese, possuía direitos civis. Mas quantos desses cidadãos civis eram também cidadãos políticos, quantos pertenciam ao corpo político da nação? Para calcular esse número, temos primeiro que deduzir do total os analfabetos, proibidos por lei de votar. O analfabetismo, na época, atingia 75, 5% da população. Feito o cálc ulo, restam 7,5 milhões. Depois, é preciso descontar as mulheres. Embora a lei não lhes negasse explicitamente o direito do voto, pela tradição não votavam. Ficamos com 4,5 milhões. Os estrangeiros também não tinham o direito do voto. Nosso número cai para 3,9 milhões. Finalmente, os homens menores de 21 anos também não votavam. Ficamos reduzidos a míseros 2,4 milhões de brasileiros legalmente autorizados a participar do sistema político por meio do voto. A terceira corrente era a positivista, também de filiação francesa, não da Revolução, mas do filósofo Augusto Comte. Os positivistas eram os únicos que não previam papel ativo para o povo na República. Os protagonistas do regime seriam, no campo espiritual, os próprios positivistas, no campo material, os empresários. Os positivistas não admitiam direitos, apenas deveres. O dever do povo, ou dos trabalhadores, era trabalhar, o dever dos empresários e o do Estado era cuidar do bemestar do povo. Prometida pelas duas principais correntes da propaganda, cabe perguntar como a democracia política, a incorporação do povo, foi posta em prática pelo novo regime. A primeira década republicana foi marcada pela presen ça de mil itares no g overno, por ag itações, revoltas, guerras civis. O povo fez sentir sua presença durante o governo do marechal Floriano Peixoto, apoiado pelos jacobinos. A participação jacobina atingiu o ponto máximo na tentativ a de assassinato do presid ente Pruden te de Morais, em 1897. A partir do próximo presidente, Campos Sales, a corrente liberalfederalista, sob a hegemonia de São Paulo, passou a predominar, cada vez mais federalista, cada vez menos liberal. Até 1930, podese dividir o povo da República em três partes. Imaginemos um grande círculo contendo em si círculos menores. O grande círculo representa o total da população do país; os círculos menores, as parcelas dessa população dividida de acordo com sua participação política. Movimentandonos do centro para a periferia, chamemos o círculo menor de povo eleitoral, isto é, aquela parcela da população que votava; o círculo seguinte, um pouco maior, representa o povo político, isto é, a parcela da população que tinha o direito de voto de acordo com a Constituição de 1891; o círculo seguinte é o do povo excluído formalmente da participação via direito do voto (ver desenho abaixo). Ano de 1889: cem anos da Revolução Francesa. A corrente jacobina dos republicanos brasileiros julgava ser essa a ocasião ideal para a proclamação de nossa República, que deveria, segundo ela, ser feita revolucionariamente pelo povo lutando nas ruas e nas barricadas. O principal portavoz dessa corrente, Silva Jardim, pregava abertamente o fuzilamento do conde d’Eu, o marido da princesa Isabel. Sendo o conde um nobre francês, seu eventual fuzilamento daria à revolução brasileira um sabor especial, pois lembraria a morte na guilhotina do rei Luís XVI. Um ponto central da propaganda republicana era a idéia de autogoverno, do povo governando a si mesmo, do país se autodirigindo, sem necessidade de uma família real de origem européia e de um imperador hereditário. Das três correntes principais da propaganda, a jacobina era a que atribuía maior protagonismo ao povo. A corrente mais forte era a liberalfederalista, de derivação angloamericana. O liberalismo vinha do lado anglo, da Inglaterra; o federalism o, do lado norteamerican o. O liberal ismo predom inou no Manifesto Republicano de 1870, mais bem representado por Saldanha Marinho, e o federalismo, no projeto de constituição dos republicanos paulistas de 1873, cujo representante mais influente era Campos Sales. Por sua ascendência liberal, oriunda dos liberais do Império, ela admitia participação popular, embora sem lhe atribuir o primeiro plano, como faziam os jacobinos. Pelo lado federalista, no entanto, não havia muita simpatia pelo povo. Interessavalhe, sobretudo, o autogoverno estadual a ser conquistado pelo federalismo.

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    http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/opecadooriginaldarepublica 1/3

    O pecado original da RepblicaComo a excluso do povo marcou a vida poltica do pas at os dias de hoje

    Jos Murilo de Carvalho19/9/2007

    De acordo com os dados do censo de 1920, teremos uma populao total, representada pelo crculo maior,de 30,6 milhes. Este o povo do censo que, pelo menos em tese, possua direitos civis. Mas quantos dessescidados civis eram tambm cidados polticos, quantos pertenciam ao corpo poltico da nao? Para calcularesse nmero, temos primeiro que deduzir do total os analfabetos, proibidos por lei de votar. Oanalfabetismo, na poca, atingia 75,5% da populao. Feito o clculo, restam 7,5 milhes. Depois, precisodescontar as mulheres. Embora a lei no lhes negasse explicitamente o direito do voto, pela tradio novotavam. Ficamos com 4,5 milhes. Os estrangeiros tambm no tinham o direito do voto. Nosso nmero caipara 3,9 milhes. Finalmente, os homens menores de 21 anos tambm no votavam. Ficamos reduzidos amseros 2,4 milhes de brasileiros legalmente autorizados a participar do sistema poltico por meio do voto.

    A terceira corrente era a positivista, tambm de filiao francesa, no da Revoluo, mas do filsofoAugusto Comte. Os positivistas eram os nicos que no previam papel ativo para o povo na Repblica. Osprotagonistas do regime seriam, no campo espiritual, os prprios positivistas, no campo material, osempresrios. Os positivistas no admitiam direitos, apenas deveres. O dever do povo, ou dos trabalhadores,era trabalhar, o dever dos empresrios e o do Estado era cuidar do bemestar do povo.

    Prometida pelas duas principais correntes da propaganda, cabe perguntar como a democracia poltica, aincorporao do povo, foi posta em prtica pelo novo regime. A primeira dcada republicana foi marcadapela presena de militares no governo, por agitaes, revoltas, guerras civis. O povo fez sentir sua presenadurante o governo do marechal Floriano Peixoto, apoiado pelos jacobinos. A participao jacobina atingiu oponto mximo na tentativa de assassinato do presidente Prudente de Morais, em 1897. A partir do prximopresidente, Campos Sales, a corrente liberalfederalista, sob a hegemonia de So Paulo, passou apredominar, cada vez mais federalista, cada vez menos liberal.

    At 1930, podese dividir o povo da Repblica em trs partes. Imaginemos um grande crculo contendo em sicrculos menores. O grande crculo representa o total da populao do pas; os crculos menores, as parcelasdessa populao dividida de acordo com sua participao poltica. Movimentandonos do centro para aperiferia, chamemos o crculo menor de povo eleitoral, isto , aquela parcela da populao que votava; ocrculo seguinte, um pouco maior, representa o povo poltico, isto , a parcela da populao que tinha odireito de voto de acordo com a Constituio de 1891; o crculo seguinte o do povo excludo formalmenteda participao via direito do voto (ver desenho abaixo).

    Ano de 1889: cem anos da Revoluo Francesa. A corrente jacobina dos republicanos brasileiros julgava seressa a ocasio ideal para a proclamao de nossa Repblica, que deveria, segundo ela, ser feitarevolucionariamente pelo povo lutando nas ruas e nas barricadas. O principal portavoz dessa corrente, SilvaJardim, pregava abertamente o fuzilamento do conde dEu, o marido da princesa Isabel. Sendo o conde umnobre francs, seu eventual fuzilamento daria revoluo brasileira um sabor especial, pois lembraria amorte na guilhotina do rei Lus XVI.

    Um ponto central da propaganda republicana era a idia de autogoverno, do povo governando a si mesmo,do pas se autodirigindo, sem necessidade de uma famlia real de origem europia e de um imperadorhereditrio. Das trs correntes principais da propaganda, a jacobina era a que atribua maior protagonismoao povo.

    A corrente mais forte era a liberalfederalista, de derivao angloamericana. O liberalismo vinha do ladoanglo, da Inglaterra; o federalismo, do lado norteamericano. O liberalismo predominou no ManifestoRepublicano de 1870, mais bem representado por Saldanha Marinho, e o federalismo, no projeto deconstituio dos republicanos paulistas de 1873, cujo representante mais influente era Campos Sales. Porsua ascendncia liberal, oriunda dos liberais do Imprio, ela admitia participao popular, embora sem lheatribuir o primeiro plano, como faziam os jacobinos. Pelo lado federalista, no entanto, no havia muitasimpatia pelo povo. Interessavalhe, sobretudo, o autogoverno estadual a ser conquistado pelo federalismo.

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    Movimento semelhante ao de Canudos foi o do Contestado, localizado em terras disputadas entre Paran eSanta Catarina. O monge Jos Maria deralhe incio ainda no Imprio. Proclamada a Repblica, seu sucessorreagiu contra o que chamava de lei da perverso, o equivalente da lei do co do Conselheiro. A partirde 1911, outro sucessor de Joo Maria, Jos Maria, lanou um manifesto monarquista e nomeou imperadorum fazendeiro analfabeto. Criou uma sociedade assemelhada ao comunismo primitivo, sem dinheiro e semcomrcio. Canudos e Contestado foram combatidos e destrudos com violncia pelo Exrcito, que nohesitou em usar canhes contra sertanejos pobremente armados.

    No Cear, padre Ccero organizou uma comunidade sertaneja que, poca de sua morte, em 1934, contava40 mil pessoas. Padre Ccero no contestava o sistema, como o Conselheiro e Jos Maria. A seu modo,agindo mais como coronel poltico, fundou uma Repblica paternalista muito prxima da populao.Manipulando valores tradicionais e colocandoos a servio da modernidade, reduziu a distncia entre o legale o real, aproximou da populao o poder. Alguns de seus seguidores, como os beatos Jos Loureno,Severino e Senhorinho, fundaram comunidades radicais ao estilo do Contestado. Padre Ccero entendeusecom os poderes da Repblica e foi tolerado. Os trs beatos foram massacrados juntamente com seusseguidores.

    Nas cidades, sobretudo nas maiores, a tradio de protesto vinha de longe e manifestavase o mais dasvezes nos quebraquebras. Ela se intensificou a partir da proclamao da Repblica, atingindo o pontomximo no protesto contra a vacinao obrigatria em 1904. A novidade republicana ficou por conta domovimento operrio em fase de organizao. Foram inmeras as greves que atingiram a capital da Repblicae So Paulo, alm de outras capitais. Seu auge verificouse durante a Primeira Guerra Mundial e nos anosque a seguiram. Calculouse que 236 greves foram feitas na capital e no estado de So Paulo entre 1917 e1920, envolvendo cerca de 300 mil operrios. Em torno de 100 mil operrios participaram da greve geral de1917 no Rio de Janeiro. Outra novidade republicana foi a participao poltica dos militares, jovens oficiaise praas. A mais conhecida e mais dramtica dessas manifestaes foi a revolta dos marinheiros contra ouso da chibata, em 1910, em que se destacou o marinheiro Joo Cndido.

    O efeito poltico das manifestaes urbanas foi limitado porque elas se davam fora dos mecanismos formaisde representao. O prprio movimento operrio, na medida em que era orientado pelo anarcossindicalismo,sobretudo em So Paulo, fugia da participao eleitoral e nunca organizou um partido poltico duradouro atque fosse fundado o Partido Comunista, em 1922.

    No mundo rural, foi igualmente intensa a participao do povo. A tambm havia uma longa tradio que foiintensificada pelas mudanas polticas introduzidas pelo novo regime. As figuras centrais das agitaesrurais eram beatos e cangaceiros. O mais dramtico de todos esses movimentos, pelo nmero de mortos, foisem dvida o de Antnio Conselheiro nos sertes da Bahia. A seu modo, os beatos do Conselheiro agirampoliticamente, ao recusar o pagamento de impostos, ao rejeitar mudanas nas relaes entre Igreja eEstado. Lutando contra a lei do co do novo regime, os rudes sertanejos humilharam o Exrcito, quecontra eles lanou quatro expedies, e deram um exemplo nico em nossa histria de fidelidadeincondicional s crenas adotadas.

    Ficam fora do sistema, excludos, 28,2 milhes, 92% da populao.

    Se eram poucos os que podiam votar, menos ainda eram os que de fato votavam. Nas eleies presidenciaisde 1910, uma das poucas em que houve competio, disputando Rui Barbosa contra o marechal Hermes daFonseca, a absteno foi de 40%. Os votantes representaram apenas 2,7% da populao. No Rio de Janeiro,capital da Repblica, onde 20% da populao estava apta a votar, compareceu s urnas menos de 1%. Votarna capital era at mesmo perigoso devido ao dos capangas a servio dos candidatos. Quem tinha juzoficava em casa. Como disse Lima Barreto de sua Repblica dos Bruzundangas: [Os polticos] tinhamconseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador o voto. Aeliminao do voto completavase com a fraude. Ningum podia ter certeza de que seu voto seria contado afavor do candidato certo.

    Significa isso que o povo da Primeira Repblica no passava da carneirada dos currais eleitorais e da massaaptica dos excludos? Seguramente que no. Por fora do sistema legal de representao havia aopoltica, muitas vezes violenta. Entre os poucos que votavam, os que escolhiam no votar e os muitos queno podiam votar, havia o que chamo de povo da rua, isto , a parcela da populao que agiapoliticamente, mas margem do sistema poltico, e s vezes contra ele. difcil calcular o tamanho dessepovo. Podemos apenas surpreendlo em suas manifestaes. E podemos tambm dizer que ele existia tantonas cidades como no campo.

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    O grosso do povo excludo era mantido sob controle pela prpria organizao social do mundo rural, baseadana grande propriedade. O povo eleitoral era enquadrado pelos mecanismos de cooptao e manipulao. Opovo da rua era quase sempre tratado bala, nas cidades ou no campo.

    Mas a Repblica usou tambm mtodos menos violentos para lidar com seus excludos. Produziu missionriosdo progresso que se puseram a catequizar os cidados incultos e tratar os doentes. Foram missionrios doprogresso Pereira Passos, reformador do Rio de Janeiro, Osvaldo Cruz, saneador da cidade, Artur Neiva eBelisrio Pena, saneadores dos sertes. O maior de todos eles, no entanto, foi o general Rondon, positivistaortodoxo, que dedicou boa parte da vida proteo dos indgenas. Muito superiores pelos mtodos aos quedestruam pela fora os movimentos populares, esses missionrios no estiveram imunes a uma visotecnocrtica e autoritria. O povo para eles era massa inerte e analfabeta a ser tratada, corrigida ecivilizada. De certo modo, eram messias leigos, com a diferena de que no tinham o apoio popular dosmessias do serto.

    A Primeira Repblica, em seus 41 anos de existncia, no fez jus s promessas da propaganda de promovera ampliao da participao poltica, o autogoverno do povo. No unificou os trs povos, no os incorporou.No transformou em cidados o jeca doente de Monteiro Lobato e dos higienistas, o spero sertanejo deEuclides, os beatos de Canudos e do Contestado, o bandido social do cangao, o anarquista do movimentooperrio.

    A ausncia de povo, eis o pecado original da Repblica. Esse pecado deixou marcas profundas na vidapoltica do pas. Quando, em meio crise de nossos dias, assistimos ao aumento da descrena nos partidos,no Congresso, nos polticos, de que se trata se no da incapacidade que demonstra at hoje a Repblica deproduzir um governo representativo de seus cidados?

    Jos Murilo de Carvalho professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Acidadania no Brasil: o longo caminho (Civilizao Brasileira, 2001).

    Os cangaceiros, frutos do mesmo meio social que gerou os beatos, mantinham, como padre Ccero, contatosestreitos com os poderes da Repblica. Mas fugiam ao controle dos coronis e dos governos estaduais.Foram tambm combatidos sem trgua e destrudos. Beatos e cangaceiros representavam formas deorganizao e de reao construdas margem do sistema poltico. Canudos, Contestado, e mesmo oJuazeiro do padre Ccero, eram modelos alternativos de Repblica. Apesar de inviveis por serem produtosdo isolamento geogrfico e da imensa distncia cultural entre a populao e o mundo oficial, essasRepblicas foram destrudas a ferro e fogo e s deixaram traos na memria popular. A exceo foiCanudos, que foi imortalizado por Euclides da Cunha, no por acaso um intelectual estranho no ninho daselites.