O Patriotismo Nos Estados Unidos - Publicado Em Tensões Mundiais 2012

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WORLD TENSIONS | 119 O patriotismo nos Estados Unidos IRLENA MALHEIROS MONALISA LIMA ANDRÉA CAMERINO Resumo: Na formação da sociedade estadunidense, influenciada por valores de igualdade e liberdade, o “amor à pátria” tornou-se fundamental articulador das relações internas e externas. Atualmente, as decisões econômicas, políticas, sociais e bélicas continuam permeadas pelo ideal patriótico da Independência que cumpre o papel de sustentáculo da unidade nacional e do poderio internacional. Palavras-chave: Patriotismo; Democracia; Relações internacionais; EUA. Abstract: In the formation of American society, influenced by values of equality and freedom, the “love of country” has become key articulator of internal and external relations. Currently, economic, political, social and war decisions continue to be permeated by the patriotic ideal of Independence that fulfills the role of mainstay of national unity and international power. Keywords: Patriotism; Democracy; International Relations; U.S. Patriotism in the United States IRLENA MALHEIROS MONALISA LIMA ANDRÉA CAMERINO Discentes do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade da UECE.

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Patriotismo, EUA, Tocqueville

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    O patriotismo nos Estados Unidos

    IRLENA MALHEIROSMONALISA LIMA

    ANDRA CAMERINO

    Resumo: Na formao da sociedade estadunidense, influenciada por valores de igualdade e liberdade, o amor ptria tornou-se fundamental articulador das relaes internas e externas. Atualmente, as decises econmicas, polticas, sociais e blicas continuam permeadas pelo ideal patritico da Independncia que cumpre o papel de sustentculo da unidade nacional e do poderio internacional. Palavras-chave: Patriotismo; Democracia; Relaes internacionais; EUA.

    Abstract: In the formation of American society, influenced by values of equality and freedom, the love of country has become key articulator of internal and external relations. Currently, economic, political, social and war decisions continue to be permeated by the patriotic ideal of Independence that fulfills the role of mainstay of national unity and international power.Keywords: Patriotism; Democracy; International Relations; U.S.

    Patriotism in the United States

    IRLENA MALHEIROSMONALISA LIMAANDRA CAMERINO

    Discentes do Mestrado Acadmico em Polticas Pblicas e Sociedade da UECE.

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    IRLENA MALHEIROS, MONALISA LIMA E ANDRA CAMERINO

    1 INTRODUO

    O liberal Alxis Charles Henri Maurice Clrel de Tocqueville nasceu em uma famlia tradicional e aristocrtica francesa em 1805. No incio de 1831, conseguiu autorizao do governo do seu pas para, ao lado de Gustave de Beaumont, estudar e analisar o sistema penitencirio dos Estados Unidos da Amrica, onde per-maneceu por nove meses. Aps seu retorno Europa, publicou em 1933 a referida pesquisa e dois anos depois a primeira parte do seu mais conhecido livro A democracia na Amrica. Somente em 1840 a segunda parte deste publicada.

    A democracia na Amrica, um dos grandes clssicos da cin-cia poltica mundial, utiliza-se de uma rica metodologia como, por exemplo, entrevistas e documentao histrica. Seu autor descre-veu e analisou profundamente a sociedade poltica e civil do que hoje apenas uma parte dos EUA que conhecemos.

    Ao discursar criteriosamente sobre a liberdade e a igualdade, o autor remete questo central da sua obra: ser possvel a liber-dade sobreviver com a presena da igualdade? No entendimen-to tocquevilleano, a igualdade a base da democracia e, como defendia a importncia da liberdade na sociedade, ele procurava discutir os vigores e as debilidades advindos do regime democrti-co, sendo sua preocupao maior a possibilidade de um equilbrio entre igualdade e liberdade.

    Este clssico apontado por muitos estudiosos como uma obra-prima que ainda hoje fornece subsdios para a compreenso das relaes de poder internacionais da nossa poca. Neste senti-do, a partir da viso tocquevilleana e do dilogo com outros auto-res, pretendemos compreender as relaes entre a democracia e o patriotismo nos EUA e que influncias essas relaes trazem para o resto mundo.

    2 ALXIS DE TOCQUEVILLE E A DEMOCRACIA NORTE-AMERICANA

    Pensar as revolues burguesas no sculo XVIII implica ve-rificar transformaes no referente no s economia como poltica, ao universo das leis, da religio, da cincia, da cultura, ou seja, mudanas nas mais diversas esferas da sociedade ocidental.

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    Entre elas, pode-se observar o renascimento da democracia como regime poltico ideal, porquanto as exigncias decorrentes desse novo contexto, cujos princpios bsicos eram as ideias de igualda-de e liberdade, impunham novos modelos de interao homem--homem assim como homem-Estado. Interaes sociais estas que priorizavam o tratamento igual para todos, diferentes daquelas ba-seadas nos privilgios feudais, caractersticos do Antigo Regime.

    Entretanto, aps a Revoluo Francesa em 1789, observou-se que a disseminao dos ideais burgueses de liberdade e igualdade por toda a Europa no foram suficientes para a implantao do regime democrtico nas mais diversas naes. Isso ocorreu por-que, aps as revolues burguesas e a conquista dos direitos de igualdade entre os cidados, houve, segundo a anlise feita por Tocqueville (1998), a ascenso de governos monrquicos/auto-ritrios. Tem-se como exemplo a prpria Frana que, como cone dos ideais burgueses, mesmo depois de implantar a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, viveu o perodo conhecido como O Terror1 seguido pelo governo de Napoleo Bonaparte. Dentro desta perspectiva, como foi possvel o estabelecimento da democracia nos EUA?

    Em sua estada nos EUA, Tocqueville percebeu um fenmeno singular: todos os norte-americanos se sentiam iguais e livres. No havia privilgios herdados e ttulos de nobreza. As leis eram vli-das para todos independentemente de sobrenome, boa educao ou riqueza e todos poderiam frequentar os mesmos ambientes so-ciais. As atitudes individuais poderiam ser srias e graves, mas nunca eram arrogantes ou constrangedoras. No havia jogo de interesses e as relaes sociais internas eram mais pacficas. E co-mo no havia desigualdade herdada, cada um se preocupava com suas prprias necessidades e se sentia livre para supri-las, desde que no ferisse as leis.

    1 O Reino do Terror (ou O Terror) foi um perodo da Revoluo Francesa, com-preendido entre 1793 e 1794, no qual as garantias civis foram suspensas e os opo-sitores foram perseguidos para garantir a manuteno do governo revolucionrio. O apoio da populao foi conquistado com a promulgao de leis de assistncia e de preservao dos direitos humanos estabelecidos pela Revoluo (liberdade, igualda-de, fraternidade) (COTRIM, 2005).

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    interessante destacar que, na tica tocquevilleana, a aborda-gem de conceitos como igualdade e liberdade substancialmente importante no referente ao nascimento de uma sociedade impes-soal: as relaes polticas, econmicas, religiosas sociais no so mais patrimoniais, baseadas na tradio ou nas relaes pessoais e/ou de intimidade, tpicas do perodo medieval e/ou monrqui-co. Essa nova sociedade que emerge traz como caractersticas o individualismo e a racionalidade, onde esta racionalidade permeia os mais diversos aspectos da vida social americana, inclusive a religio, conforme ser abordado a seguir.

    As leis, exigncias dessa nova ordem social essencialmente burguesa e impessoal, existiam para garantir que todos se sen-tissem livres e iguais. Esse sentimento influenciou tambm as re-laes de trabalho. Havia menos distino e menor distncia en-tre patro e empregado. Quaisquer desigualdades que surgissem estavam relacionadas acumulao de dinheiro. Por essa razo, o empregado compreendia que pelo trabalho poderia enriquecer como o seu patro, conquanto sua ambio fosse compensada com atitudes ticas. Se ainda houver grande diferena entre traba-lhador e patro por causa dos resqucios aristocrticos, que na democracia logo se extinguiro.

    Julgo que, no todo, pode-se asseverar que o aumento lento e gradual dos salrios uma das leis gerais das comunidades de-mocrticas. medida que as condies sociais se tornam mais iguais, os salrios sobem e medida que os salrios tornam--se mais elevados, as condies sociais tornam-se mais iguais (TOCQUEVILLE, 1969, p. 262).

    Tambm os contornos da famlia foram igualmente delineados de acordo com o sentimento de igualdade e liberdade. A necessi-dade de criar filhos independentes e trabalhadores enfraqueceu a autoridade paterna. Por isso, quando a criana comeava a com-preender o mundo sentia-se vontade para traar seus prprios caminhos, tendo inclusive o aval dos seus pais sem precisar de qualquer luta domstica (no havia ento adolescncia). Isto fru-to da Lei de Herana que exterminava o benefcio da herana da primogenitura, rompendo com o sentimento aristocrtico de fam-lia e, consequentemente, com a preservao da propriedade. Os fi-lhos (homens ou mulheres) e os demais residentes partilhavam da

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    mesma terra que se tornava cada vez menor em suas dimenses aps o falecimento do seu respectivo proprietrio.

    Essa noo de independncia individual surgiu principalmen-te com a igualdade entre os sexos. Como percebeu Tocqueville, as mulheres cresciam conhecendo os perigos do mundo. Com exceo de algumas localidades do pas onde a escravido era legitimada,2 os EUA tinham apreo pela igualdade entre todos os cidados. Homens e mulheres eram iguais perante a lei. Isso no significava que os papis sociais eram os mesmos, mas que todos deveriam cumprir as normas estabelecidas naquela sociedade se-gundo o que lhes competia. A mulher nascia livre e aprendia desde cedo a se defender. Somente com o casamento essa liberdade era restringida. Na igualdade a tendncia de homens e mulheres se individualizar cada vez mais.

    O individualismo uma marca da sociedade moderna ocidental e funda-se na igualdade e na liberdade. Para o antroplogo Louis Dumont (1992), existem dois significados para o termo indivduo: o indivduo como um sujeito da espcie humana e o indivduo pro-duzido pela ideologia moderna. O primeiro diz respeito ao ser hu-mano emprico que fala, pensa, deseja e associa-se ao mundo. Ele extramundano e est ligado ao pensamento social tradicional e hierrquico. O segundo o ser autnomo, elementar, indivisvel, independente e no-social. intramundano e teve influncias da Reforma Protestante, quando a salvao passou a ser buscada no prprio mundo material. Enquanto o primeiro o ser holista da so-ciedade tradicional indiana (ou catlica europeia), o segundo o ser individualista da sociedade moderna democrtica ocidental.

    As transformaes sociais modernas fizeram as posies so-ciais hierrquicas baseadas na tradio ceder seu lugar liber-dade e igualdade de uma vida social individual. Assim, valores, crenas, ttulos de nobreza so abolidos e em troca surgem as necessidades e conquistas pessoais. Os indivduos desagregam--se da sociedade, habituam-se a pensar que esto sozinhos, que dependem de si prprios, e imaginam que tm o destino em

    2 Os Estados do sul, onde a colonizao foi de explorao, tinham maiores resqu-cios do regime aristocrtico. Como a sociedade era tradicional e escravocrata, dificul-tou o estabelecimento da democracia.

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    suas prprias mos (TOCQUEVILE, 1969, p. 224-225). O que se chama ainda de sociedade o meio, a vida de cada um o fim (DUMONT, 1992, p. 57). essa independncia firmada na igualdade que est presente na sociedade norte-americana.

    A igualdade de condies, segundo Tocqueville, um dos alicer-ces da democracia. Em um sistema democrtico, todos os indivduos precisam sentir-se socialmente iguais (mesmo sendo naturalmente diferentes), compartilhando uma slida base moral racionalizada, sacralizada e ensinada no seio da famlia, na escola e nos outros ambientes sociais. No caberia, ento, ao Estado a imposio das normas sociais ticas, pois elas simplesmente se fazem presentes.

    Nos EUA, a base moral capitalista e democrtica est intimamente relacionada tica protestante. Nesse prisma, o mandamento Amai ao teu prximo como a ti mesmo fundamentou a igualdade de con-dies nos costumes e nas instituies sociais (todos so iguais pe-rante Deus, mas somente os merecedores tero o reino dos cus). J a vocao para o trabalho como ddiva divina e, por isso, um dever a ser cumprido com dedicao e tica ajudou a desenvolver o esprito capitalista (WEBER, 2004), no qual regem dois princpios fundamentais: acumulao e individualizao.

    Cabe aqui refletir sobre o que Tocqueville entende como a inter--relao entre democracia e religio. Na medida em que a democra-cia fomenta nos homens sentimentos de igualdade faz com que sua relao com o mundo seja mediada pela racionalidade. Dogmas, explicaes baseadas no sobrenatural no so mais aceitos e a pr-pria religio acaba por se impor limites e admitir, em certo grau, a racionalidade. Em sua tica, passa a reconhecer a busca pelo bem--estar (e a riqueza) como um prmio de Deus aos que cumprem seu dever e sua vocao profissional com dedicao e merecimento. Assim, uma das maiores contribuies de Tocqueville para a an-lise sobre a democracia o fato de perceber a complementaridade entre o mundo poltico-social e religioso, em uma relao quase simbitica entre religio e regime poltico. Dessa forma, consoante afirma, o sucesso da democracia na Amrica se deu, em parte, pela aliana entre os ideais da democracia e a tica protestante.

    Ao tecer um paralelo entre a tica protestante americana e a tica crist brasileira (ou mesmo a catlica europeia), possvel

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    observar que a primeira cresceu junto ao esprito democrtico da sua nao. Logo, at a maneira de externalizar o amor ao prximo tem como referncia o indivduo parte de um indivduo para outro. Dessa maneira, tal auxlio prestado de modo indireto, pragmtico e quase annimo. O fruto do bom trabalho do protestante ir bene-ficiar por si s, segundo sua tica, outrem. No caso brasileiro, a tica crist (principalmente a catlica) prega a ideia segundo a qual o amor ao prximo deve ser realizado de maneira direta, por meio da esmola, da caridade. Assim, o franciscanismo da doutrina catlico--crist brasileira se realiza na pessoa.

    Tocqueville, em sua obra, demonstra um temor ao que denomi-na de os males da igualdade extrema. Sua preocupao decorre do fato de que uma extrema igualdade poderia conduzir os homens ao individualismo. Na sua perspectiva, em perodos de igualdade, to-dos os homens buscam, pelo esforo do seu intelecto, as respostas em si. Isto faz com que acabem se fechando em seu prprio mundo, se isolando do resto da sociedade e deixando a cargo do Estado (ou da maioria que no se afastou do convvio dos seus semelhantes) a responsabilidade de decidir sobre todos os assuntos relativos vida pblica. Por conseguinte, leva a sociedade inteira ao despotismo (por parte do Estado) ou tirania da maioria.

    Entretanto o individualismo, de acordo com a concepo a nor-tear este artigo, inerente s democracias modernas. O indivduo o lugar que comporta as peculiaridades da sociedade ocidental capitalista. uma construo social, filosfica, poltica, religiosa, econmica e como tal o ponto central da elaborao ideolgica da nossa sociedade (DAMATTA, 1997). Comporta o anonimato ca-racterstico de um universo de estranhos, isolado em seus mundos particulares j que independentes e autnomos. E referidos aspec-tos podem ser notados tanto no tocante ao mundo secular quanto ao transcendental, pois o prprio culto religioso (protestantismo americano) no depende mais do intermdio de sacerdote. Da o Estado atuar impessoalmente, porquanto servir a essa sociedade composta por seres annimos e iguais em direitos e deveres.

    Nossas ideias cardinais chamam-se igualdade e liberdade. Elas supem como princpio nico e representao valorizada a ideia do indivduo humano: a humanidade constituda de ho-mens, e cada um desses homens concebido como apresen-

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    tando, apesar de suas particularidades e fora dela, a essncia da humanidade. [...] esse indivduo quase sagrado, absoluto; no possui nada acima de suas exigncias legtimas [da deriva a concepo do indivduo como um corpo, sendo o Estado pen-sado/criado para servi-lo]; seus direitos s so limitados pelos direitos idnticos dos outros. Uma mnada, em suma, e todo grupo humano constitudo de mnadas da espcie sem que o problema da harmonia entre essas mnadas se coloque vez alguma para o senso comum (DUMONT, 1992, p. 52-53).

    O receio de Tocqueville que a igualdade ao extremo provo-que o que Sennett, no sculo seguinte, identificou como o es-vaziamento dos espaos pblicos (1988). Em outras palavras, a massificao dos homens (ou os males da igualdade ao extremo, parafraseando Tocqueville) provocou um grande trauma social, s evitvel no isolamento do/no domnio privado. O recuo esfe-ra particular fez com que os espaos pblicos deixassem de ser lugares de interao social (e aqui pode-se acrescentar, lugar de exerccio das atividades polticas) para se transformar em (meros) ambientes de passagem.

    Contudo, mesmo fundamentando seu conceito de democracia na igualdade, para Tocqueville, essa igualdade, quando toma pro-pores extremas, pode fortalecer demais o poder central, formar uma massa de cidados servis ao Estado e inibir a liberdade. Eis o perigo da criao de um governo desptico3 em uma democracia:

    Acima dessa corrida de homens, ergue-se um imenso poder tu-telar que, sozinho, toma a si o encargo de garantir a satisfao de seus desejos e de prestar vigilncia sobre seu destino. Esse poder absoluto, minucioso, regular, providente e brando. Seria uma autoridade de um pai [...] tal governo trabalha com prazer, mas reserva-se de ser o nico agente e o nico rbitro dessa felicidade [...]. Depois de ter assim apoderado, sucessivamente, de cada um dos membros da sociedade com sua imensa fora e de os ter moldado vontade, o poder supremo estende ento seu brao sobre a sociedade inteira. Cobre a superfcie da socie-dade com uma rede emaranhada de pequenas regras complica-das, minuciosas e uniformes, atravs das quais os espritos mais originais e os caracteres mais enrgicos no podem penetrar, para se erguerem acima da multido. A vontade do homem no despedaada, mas amaciada, dobrada e guiada; raras

    3 A espcie de opresso que ameaa as naes democrticas diferente de tudo que jamais tenha existido no mundo [...] as velhas palavras despotismo e tirania no so apropriadas; a coisa em si mesma nova (TOCQUEVILLE, 1969, p. 348). Mas Tocqueville no havia encontrado uma nova palavra para o fenmeno.

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    vezes so os homens forados a agir voluntariamente, mas so constantemente impedidos de agir; esse imenso poder no des-tri, mas impede a existncia; no tiraniza, mas comprime, ener-va, extingue e estupidifica o povo, at cada nao ficar reduzida a no ser nada melhor do que um rebanho de animais indus-triosos e tmidos, cujo pastor o governo (TOCQUEVILLE, 1969, p. 349).

    Porm, esse poder centralizado, segundo o autor francs, deve intervir apenas nos grandes negcios. Em geral, no h espao pa-ra a interveno na vida privada dos indivduos. Entretanto, dian-te de qualquer sentimento de ameaa nao, o governo central autoriza-se a prender, intimidar e invadir a intimidade de qualquer cidado. A liberdade, nesses casos, ficaria ameaada em nome da proteo nacional.

    Ento, como fazer a liberdade emergir em sociedades demo-crticas? Que espcie de governo livre seria possvel em um povo de condies sociais to iguais? Dividindo o poder supremo, diz Tocqueville, e atribuindo parte desse poder a corpos pblicos se-cundrios compostos por cidados privados com mandatos ele-tivos e temporrios. exatamente para proteger as sociedades democrticas dos malefcios da igualdade que o autor destaca a importncia das associaes polticas (onde os indivduos unir--se-iam em favor dos interesses de pequenos crculos sociais), da liberdade de imprensa (que denunciaria injustias) e do Poder Judicirio (defensor das leis). importante ressaltar, inclusive, que essa liberdade observada por Tocqueville nada tem a ver com a escravido existente nos EUA naquela poca. Pelo contrrio, o cientista francs, ao observar a escravido na contramo das ten-dncias norte-americanas, afirmou que tal prtica seria um grande problema futuramente, mesmo quando os negros fossem liberta-dos. Ele previu a guerra entre norte e sul e a posterior cultura dis-criminatria contra negros naquele pas.

    Ainda conforme Tocqueville, ao mesmo tempo em que a demo-cracia torna todos os indivduos socialmente iguais, ela os divide naturalmente. Isso acontece porque:

    [...] as instituies podem mudar, mas o homem no; seja qual for a tentativa geral da comunidade tornar os seus membros iguais e indistinguveis, o orgulho pessoal dos indivduos tenta-r sempre subir acima da linha e criar de alguma maneira uma

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    desigualdade em seu prprio benefcio [...]. Assim, seja qual for o progresso da igualdade, nas naes democrticas haver sempre um grande nmero de pequenas associaes privadas dentro do palco geral da sociedade poltica, mas nenhuma dela ter qualquer semelhana nas suas maneiras com a classe mais elevada das aristocracias (TOCQUEVILLE, 1969, p. 285).

    A importncia desses grupos secundrios de poder seria, en-to, a fiscalizao do governo central, a segurana do cumprimen-to s leis e a garantia da liberdade das minorias. Em Tocqueville, a democracia representativa.

    Os EUA foram fundados alheios ao sistema aristocrtico euro-peu. Portanto, apesar da colonizao inglesa, eles se formaram sem as influncias dos privilgios de nascimento e de riqueza. Todos os indivduos eram livres e iguais. Como o autor afirma, a democracia tornava a convivncia entre os norte-americanos simples e fcil.

    Contudo, enquanto a democracia cria uma convivncia inter-na mais pacfica, fortalece a vaidade em suas relaes externas. Como os EUA se tornaram o primeiro pas no mundo a vivenciar profundamente os ideais democrticos (os pases europeus ainda lutavam pelo estabelecimento da democracia) e como os indivduos sentiam-se responsveis pelos rumos da sua terra (consequncia da soberania popular), o amor ptria teve terreno frtil para pros-perar. Nessa tica, o orgulho nacional confundia-se com o orgulho individual.

    Nos Estados Unidos, a ptria faz-se sentir por toda parte. ob-jeto de anseios desde a aldeia at a Unio inteira. O habitante liga-se a cada um dos interesses de seu pas como aos seus pr-prios. Glorifica-se na glria da nao; no triunfo que ela obtm, julga reconhecer a sua prpria obra e nela se eleva; rejubila-se com a prosperidade geral da qual tira proveito. Tem por sua ptria um sentimento anlogo quele que experimentamos pela famlia, e ainda por uma espcie de egosmo que se interessa pelo Estado (TOCQUEVILLE, 1998, p.79).

    A democracia despertava nos cidados forte sentimento de pertena e unio. O patriotismo era ardente, ciumento e vingativo. Em face de uma ofensa honra nacional, os indivduos esqueciam qualquer diferena interna e uniam-se para o fortalecimento do governo central e a defesa da sua ptria. Eis o motivo pelo qual o governo federal agia diretamente nos assuntos internacionais: a defesa dos interesses do pas diante do mundo.

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    Mesmo com essa tendncia patritica, as sociedades democr-ticas tendem naturalmente, segundo o autor, a preferir a manu-teno da paz. Isso se d pelo princpio da igualdade: na medida em que a democracia se espalha pelos pases, os interesses so-ciais, econmicos, polticos e culturais entre as naes se tornam semelhantes. Assim, ficaria mais difcil haver hostilidade entre as naes. Mas tambm quando h hostilidade entre duas delas, a tendncia as outras serem arrastadas por conta de interesses co-muns (formao de blocos). As guerras tornam-se, portanto, mais raras, mas quando eclodem, espalham-se por um campo maior (TOCQUEVILLE,1969, p. 327).

    3 AS INFLUNCIAS DO PATRIOTISMO NAS RELAES DOS EUA COM O MUNDO CONTEMPORNEO

    Ao longo do tempo, o patriotismo tem sido uma das caracters-ticas mais visveis nas imagens que nos so passadas sobre os EUA e surgiu com grande frequncia nos questionamentos advindos da leitura do livro A democracia na Amrica, j que para Tocqueville o amor ptria era extremamente relevante na formao da socie-dade norte-americana.

    Em O prncipe, Maquiavel (1992) j sinalizava para a importn-cia do patriotismo (embora no utilizasse esse termo). Nas instru-es que ele faz a Mdici sugere a formao de uma fora militar composta por cidados (em oposio aos exrcitos mercenrios), onde os soldados defenderiam os interesses do Estado por amor, chegando a ponto de entregar sua vida pelo pas.

    Definido como a unio de sentimento de afeto e compromisso moral em relao a um determinado territrio, a partir da qual surge uma aspirao de defend-lo contra qualquer perigo externo mesmo antes dele existir, o patriotismo estimulado nos norte--americanos desde o seu nascimento, tendo como smbolo mxi-mo sua bandeira.4 Essa caracterstica to marcante se faz presente desde a poca da formao colonial e, segundo Tocqueville, foi fundamental na construo e manuteno de tal sociedade, por ter dado o nimo necessrio para um desenvolvimento

    4 Pintada com as cores da Revoluo Francesa.

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    social, econmico e poltico. O amor ptria fazia com que os norte-americanos acreditassem ser seu pas uma famlia e que to-dos os habitantes eram irmos por terem origem semelhante e o mesmo ideal: fazer a Amrica construir um pas prspero e rico, mediante muito trabalho, disciplina e f (puritanismo).

    O sentimento nacionalista que mantm a dinmica social es-tadunidense ultrapassou o tempo e ainda cultivado por meio de discursos polticos, pela mdia, o ensino nas escolas. Transformou-se em um dos principais mecanismos de manuteno da ordem social vigente a servio de interesses polticos internos como, por exemplo, a tentativa de formar (ou manter) uma identidade nacional, de fomentar a autoestima norte-americana em pocas de crises e de justificar a poltica externa. por isso que o amor ptria tem aparecido nos principais marcos histricos do pa-s, como na Declarao de Independncia (1776) e na Guerra de Independncia (1776-1783), por exemplo. Para fins deste artigo, discutiremos as questes norte-americanas da atualidade.

    A decadncia do regime comunista no final da dcada de 1980 consolidou a emergncia dos EUA como a grande liderana mun-dial. O sistema capitalista e o regime democrtico, simbolizado pelo American way of life, tornaram-se hegemnicos, o que trouxe ao mundo profundas mudanas sociais, culturais e polticas. Esse estilo americano de vida expressa um suposto comportamento t-pico dos cidados norte-americanos. Existe desde a formao na-cional, mas foi bastante utilizado pela mdia durante a Guerra Fria e, principalmente, logo aps a queda no regime comunista com o objetivo de difundir uma identidade nacional baseada na ideia de democracia e liberdade. Influenciou profundamente o chamado American dream, ou seja, o sonho da felicidade se realizava so-mente na adeso ao estilo de vida americano. como se, segundo Jameson Fredric e Slavoj Zizek (1998), a identidade ideolgica de ser americano superasse a tenso existente entre as diferenas tnicas individuais e a identidade coletiva (ideal de igualdade). Foi a partir da que o pas se tornou o tio 5 protetor do mundo.

    La clave de la Ideologa Americana estndar radica en que in-tenta transustanciar la fidelidad que se tiene hacia las races de

    5 Tio Sam um dos smbolos mais famosos dos EUA.

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    la etnia propia en una de las expresiones del ser americano: para ser un buen americano, uno no tiene que renunciar a sus propias races tnicas los italianos, los alemanes, los negros, los judos, los griegos, los coreanos, son todos americanos, es decir, la particularidad misma de su identidad tnica, la forma en que se aferran a ella, los hace americanos (FREDRIC; ZIZEK, 1998, p. 19).

    Durante a dcada seguinte, enquanto o estilo de vida america-no era imposto como moda, as diferentes identidades espalhadas pelo mundo reagiam ora pelo dio ora pela servido. E, em 11 de setembro de 2001 quando avies foram sequestrados e utili-zados para atacar o World Trade Center e o Pentgono os EUA sentiram o peso da resistncia do mundo rabe ao American way of life. Tais atentados instalaram novas perspectivas para o mundo e desde ento a crise social, poltica e econmica norte-americana s se agrava.

    O discurso patritico marcou a ecloso da guerra contra o ter-ror. O ento presidente George W. Bush liderou um movimento de vingana sob a justificativa de que os EUA, a partir daquele momento, libertariam o mundo da opresso e do chamado terro-rismo. Em pronunciamento analisado por Feitosa (2008, p. 157), Bush afirmou que

    [] America speaks anew to the peoples of the world: All who live in tyranny and hopelessness can know: the United States will not ignore your oppression, or excuse your oppressors. When you stand for your liberty, we will stand with you.

    Desse modo, assumia uma postura, visivelmente patritica, de principal liderana mundial e de exemplo do caminho correto.

    Abalados com os atentados, os norte-americanos demonstra-ram divergncias nas opinies sobre a vingana proposta pelo governo. Surgiram no pas tanto movimentos de apoio guerra (que seria iniciada contra o Afeganisto ainda em 2001) quanto paz (MARTINS, 2006). A postura de Bush obteve apoio interno na me-dida em que seu discurso atuou sobre a memria discursiva da po-pulao norte-americana: a utilizao cuidadosa em seus pronun-ciamentos de palavras-chave da Declarao de Independncia, evidenciando os valores do American way of life como democra-cia, liberdade, igualdade, confiana nas instituies e patriotis-mo (FEITOSA, 2008). Entretanto, tornava-se cada vez mais clara

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    a insatisfao dos norte-americanos com o estado de guerra em que o pas vivia. Essa restrio ao discurso de Bush se dava: 1) pela crescente ideia de pacificao mundial, principalmente em decorrncia das experincias negativas de guerra anteriores co-mo Vietn; 2) pelo desgaste, citado por Fredric e Zizek (1998), que a ideologia americana tem sofrido desde o desenvolvimento dos Estados-nao e da globalizao.

    Esta transustanciacin por medio de la cual se supera la ten-sin entre mi identidad tnica particular y mi identidad como miembro del Estado-Nacin hoy se ve amenazada: es como si se hubiese erosionado seriamente la carga positiva que tena la pattica identificacin patritica con el marco universal del Estado-Nacin (Norteamrica). La americanez, el hecho de ser americano, cada vez despierta menos el efecto sublime de sentirse parte de un proyecto ideolgico gigantesco, el sueo americano, de manera que el estado americano se vive cada vez ms como un simple marco formal para la coexistencia de una multiplicidad de comunidades tnicas, religiosas o de esti-los de vida (FREDRIC; ZIZEK, 1998, p. 19).

    Tambm como destacamos, apesar desse aparente racha inter-no, a populao estadunidense demonstra ainda profunda unio em busca de melhorias para seu pas. Contraditoriamente, deixa transparecer as diferenas internas no pas, indicando as tenses latentes dentro da identidade coletiva de ser americano, apesar de ser tambm judeu, mulumano, cristo, latino, negro, etc.

    Conhecedor das divergncias internas e da dificuldade de conseguir apoios externo, sobretudo da Organizao das Naes Unidas (ONU), ao anunciar a guerra contra o terror, Bush fez a seguinte observao: Ou esto conosco ou esto contra ns. Tal frase descreve a realidade de um planeta dividido simbolica-mente entre dominantes (cujos interesses da cultura ocidental capitalista so representados pelos EUA) e dominados (minorias tnicas orientais e ocidentais submetidas a processos de domina-o cultural, econmica e poltica, representadas por terroristas afegos). O prprio presidente chamou esse fenmeno de guerra entre Eixo do Bem e Eixo do Mal ou a cruzada contra o terror (FEITOSA, 2008).

    Os EUA convocaram todo o mundo civilizado para lutar ao seu lado contra o terrorismo e em favor da liberdade. O objetivo

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    lutar pela civilizao e manter o estilo de vida desfrutado pe-los pases livres. Em nome dos ideais democrticos, os soldados norte-americanos invadiram o Afeganisto e, posteriormente, o Iraque, smbolos do chamado Eixo do Mal.

    Para Zizek (2001), todo esse embate se explicaria pela com-preenso das relaes conflituosas entre dominantes (Exterior pu-ro) e dominados (Exterior brbaro). Segundo ele afirma, o modo individualista com que os norte-americanos agem, na busca de-senfreada pelo poder, teria levado destruio para muitos povos espalhados pelo mundo. A resoluo desse conflito passaria ne-cessariamente pela compreenso dos norte-americanos de que o Exterior brbaro apenas o reflexo deles mesmos e no um mal separado e independente, pois nos ltimos cinco sculos a prosperidade e paz (relativas) do Ocidente civilizado foram com-pradas pela exportao de impiedosa violncia e destruio ao Exterior brbaro: a longa histria desde a conquista da Amrica ao massacre no Congo (ZIZEK, 2001, p. 3). E, ainda:

    As frias da histria dos EUA foram um embuste: a paz ame-ricana foi comprada por meio de catstrofes que aconteceram em outros lugares. A reside a verdadeira lio dos atentados: o nico modo de assegurar que no acontecero novamente evitar que aconteam em qualquer lugar (ZIZEK, 2001, p. 4).

    Ao retornarmos o pronunciamento de Bush citado anterior-mente, percebemos como ele caracterizava esse Exterior brba-ro (ruim, incorreto, extinguvel), estabelecendo um contraponto ideologia americana (boa, correta, multiplicvel) marcada pelo discurso de Abraham Lincoln:

    The rulers of outlaw regimes can know that we still believe as Abraham Lincoln did: Those who deny freedom to others de-serve it not for themselves; and, under the rule of a just God, cannot long retain it. The leaders of governments with long habits of control need to know: To serve your people you must learn to trust them. Start on this journey of progress and justice, and America will walk at your side. And all the allies of the United States can know: we honor your friendship, we rely on your counsel, and we depend on your help. Division among free nations is a primary goal of freedoms enemies. The concerted effort of free nations to promote democracy is a prelude to our enemies defeat (FEITOSA, 2008, p.157).

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    Em artigo escrito no mesmo ano dos ataques aos EUA, Zizek (2001) lanou uma dvida que somente o tempo responderia: Qual o rumo que os EUA tomariam a partir daqueles acontecimentos? A pergunta do filsofo tem a ver com as reflexes do prprio pas so-bre as relaes de causa e efeito dos atentados: os EUA admitiriam que a guerra nos outros pases a guerra neles ou radicalizariam a paranoia do Exterior brbaro ameaador? A resposta veio logo em seguida com a invaso ao Afeganisto.

    Como podemos perceber, o discurso norte-americano para justi-ficar a invaso do territrio afego era a defesa nacional. Bush cons-truiu uma srie de elementos simblicos em busca da legitimao da seguinte ideia: Os EUA seriam um modelo de nao livre, prspera e feliz atacados por povos selvagens reprimidos por governantes agressivos. Mais uma vez, o patriotismo revelou-se fundamental.

    Na mesma tendncia, Frantz Fanon (1995) analisou a colo-nizao francesa na Arglia e demonstrou como imposies ge-ram as resistncias. Consoante o autor, um dos mais marcantes smbolos da resistncia argelina durante o conflito foi o vu uma das vestimentas femininas mais tpicas de pases de cultura rabe. Aos olhos de um observador, o vu caracteriza a mulher argelina e, muitas vezes, produz uma espcie de curiosidade pelo que existe por trs daqueles tecidos. Para os franceses, tal vestimenta era o smbolo da opresso feminina e, por isso, sua primeira atitude na Arglia foi abolir o vu das ruas com o objetivo de trazer a mulher para o seu lado (j que ela tinha grande importncia na sociedade argelina). Contudo, a proibio transformou aquela vestimenta em um dos principais smbolos de resistncia: as mulheres usavam o vu em defesa dos seus valores e passaram a participar de conflitos armados contra os invasores.

    Outro smbolo da resistncia a processos colonizadores o Tibet. Entretanto, ele optou por uma forma diferente de resistncia dos de-mais exemplos aqui citados. Os tibetanos escolheram a no-utiliza-o da violncia, aderindo a uma espcie de dispora, com vistas a plantar sementes da sua cultura pelo mundo enquanto buscavam, por meio da figura do Dalai Lama e do apoio de outros povos, obri-gar a China a permitir que os tibetanos vivessem de acordo com seus costumes.

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    O sentimento de superioridade norte-americano conduz su-as atitudes interna e externamente. Todas as resolues tomadas no pas caminham no sentido da preservao da sua prpria paz e prosperidade, pouco importando as consequncias que os outros podero sofrer. O resultado disso a resistncia dos oprimidos.

    Conforme vimos em Tocqueville, o patriotismo surge da igualda-de. Segundo Dumont (1992), os preconceitos que permeiam a so-ciedade americana para com a diferena surgem, principalmente, da igualdade, pois, quando um povo acredita na existncia do igualita-rismo em sua sociedade, as diferenas naturais no ser humano per-dem seu espao e, por serem inevitveis, so vistas como algo no pertencente ao que comum (da a viso preconceituosa).

    A ideologia norte-americana igualitarista ao mximo. O Credo norte-americano exige a livre competio, que, do ponto de vis-ta da estratificao social, representa uma combinao de duas normas de base: igualdade e liberdade, mas aceita a desigual-dade como resultado da competio (DUMONT, 1992, p. 307).

    A discriminao surge quando a diferena se revela em uma sociedade baseada no ideal de igualdade, mas com tendncia a desenvolver um raciocnio dual eu e outro. Isso porque a pres-suposio de serem todos iguais faz o diverso ser visto como algo ilegtimo e, consequentemente, discriminado. assim que o autor explica o preconceito sofrido pelas minorias nos EUA. A igualda-de seria, ento, malfica em sua prpria essncia, contrariando a perspectiva de Tocqueville de que somente a forma exacerbada daigualdade a tirania da maioria que seria prejudicial,6 j que a diviso desencadeada pelas diferenas ditas naturais se resolveria com a formao de associaes polticas capazes de fortalecer as minorias e evitar a tirania da maioria.

    Tratando-se de poltica interna, nos tempos de crise, como j previa Tocqueville, os rgos de controle da tirania da maio-ria cedem aos discursos patriticos e podem desviar sua fun-o em nome de um ideal. As associaes polticas, a imprensa e o Poder Judicirio ficam merc de acusaes antipatriticas

    6 Como dito anteriormente, segundo Tocqueville, a democracia divide os indivduos naturalmente, pois os homens so naturalmente diferentes. Mas essa diviso se re-solveria com a formao de associaes polticas capazes de fortalecer as minorias e evitar a tirania da maioria.

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    caso faam crticas s polticas do governo, caracterizando assim o cerceamento da liberdade das minorias. O jornalismo, por exem-plo, acaba servindo mais ao ideal nacional do que ao seu ofcio comprometido com a verdade:

    Fere-o o mais leve reproche, a menor verdade picante o enfure-ce; e preciso que se louvem desde as formas de sua linguagem at as suas mais slidas virtudes. Nenhum escritor, seja qual for a sua fama, pode escapar a essa obrigao de incensar seus concidados. A maioria vive, pois, numa perptua adorao de si mesma; somente os estrangeiros ou a experincia so ainda capazes de fazer chegar certas verdades aos ouvidos dos ame-ricanos (TOCQUEVILLE, 1998, p. 198).

    Por isso, as crticas nacionais no so aceitas em tempos de crise. Muitos jornais locais e internacionais informam apenas os dados tcnicos da guerra em favor do prprio pas e os discursos que do aos EUA a misso de livrar o mundo do terrorismo. Os mortos aparecem apenas como uma consequncia da luta pela liberdade.

    Podemos questionar se a divulgao de fotos e vdeos onde aparecem soldados norte-americanos humilhando seus prisionei-ros no seria uma forma de resistncia da prpria imprensa dian-te da inibio do seu ofcio de informar. Sim. Ao mesmo tempo em que a imprensa confirma a legitimidade de discursos patriti-cos em favor da guerra, ela age como o que Tocqueville chamou de corretivo da igualdade, dando voz parcela que se declara contra a guerra. Percebemos ento uma imprensa livre e ao mesmo tempo presa aos valores morais do seu pas.

    Uma parte desse nacionalismo tambm incentivada pe-la propaganda. O poder da mdia e do marketing grandioso. Evidentemente, a sociedade americana no a perfeio que apa-renta tem problemas como todas as outras sociedades mas o grande papel da mdia est exatamente em trabalhar nessa apa-rncia, que tanto ilude a comunidade estrangeira como impulsiona o patriotismo dos seus habitantes. Atualmente, por exemplo, em poca de grave crise econmica, o discurso do amor ptria tem sido utilizado para impulsionar o mercado interno. Somado a is-so, a crise nas polticas interna e externa fez do presidente Barack Obama o poderoso salvador, mais um mito criado pela sociedade norte-americana (especialmente pela mdia).

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    As tentativas de reformas internas, a morte de Osama Bin Laden e o anncio da possvel retirada das tropas norte-americanas do Afeganisto so exemplos dos jogos polticos internos para fa-vorecer a ideia de serem os EUA capazes de enfrentar crises e proteger seus cidados. Sem a produo desse lder intelectual negro considerado representante de diversas minorias a manu-teno da ordem interna teria sido mais difcil, pois simbolizava a aspirao de unidade nacional em um pas de imigrantes e ex--escravos, profundamente dividido e desigual (MARTINS, 2009, p. 1) mesmo que na prtica tambm legitime uma poltica de falsa igualdade, negadora das diferenas e desigualdades histricas, tal qual mencionada por Fredric e Zizek (1998).

    O pronunciamento de Barack Obama a continuadade [sic] desta viso daltnica sobre a Amrica. Ao tempo em que ho-menageia o movimento pelos direitos civis, claramente ofere-ce uma viso no-racial dos EUA, alinhada com a perspecti-va conservadora. Por fim, um poltico negro pode absolver a Amrica da culpa pelo legado de escravido e da segregao. Obama no ameaa a Amrica branca confirmando a viso de que os EUA so agora racialmente neutros. Afinal, se os EUA tm um presidente negro, isto no significa verdadeira igual-dade de oportunidades? (FRANK, 2008, 323).

    Na poltica internacional, evidenciamos claramente o enfra-quecimento dos EUA como lderes mundiais quando o prprio Obama precisou reafirmar em discurso a hegemonia norte-ame-ricana no mundo, fato no qual nem ele acredita. O medo est exatamente em que as crises norte-americana e europeia fortale-am ainda mais pases emergentes, como Brasil e China, a ponto de terem legitimidade para reivindicar papis mais importantes em organismos internacionais como, por exemplo, cadeira per-manente no conselho de segurana da Organizao das Naes Unidas (ONU).

    Outro exemplo das influncias atuais do patriotismo exacer-bado na liberdade nos EUA a dificuldade do Poder Judicirio ga-rantir que a intimidade dos moradores do pas em discusso seja preservada. Se a igualdade nos EUA deve ser assegurada pelas leis e estas aplicadas a todos igualmente, como fica a democracia em um pas onde pessoas so monitoradas, presas e at tortura-das em nome da defesa nacional? Seriam os EUA atualmente a

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    democracia temida por Tocqueville pautada na tirania da maio-ria? Estaria Dumont (1992) correto em afirmar que o ideal de igualdade funda as desigualdades que tanto combatemos? Estas questes merecem reflexes futuras.

    4 CONSIDERAES FINAIS

    A compreenso dos conceitos de Alxis de Tocqueville acer-ca da democracia norte-americana de fundamental importncia para algumas anlises sobre a atual conjuntura social, poltica e econmica mundial. Liberdade e igualdade, pilares da democracia ideal tocquevilleana, continuam no imaginrio influenciando as formas de agir, pensar e sentir dos norte-americanos. O patriotis-mo aparece como uma das principais ferramentas para a manu-teno do sistema simblico da democracia.

    Em Tocqueville, o grande problema da democracia a igualda-de extrema, pois provocaria um profundo processo de individuali-zao do cidado, a ponto de afast-lo do convvio social e minar sua liberdade poltica. Entendemos, ento, que a individualizao funcionaria como uma fora centrfuga, empurrando o indivduo para fora da sociedade. Em sentido complementar, conforme ob-servamos, o amor ptria agiria de maneira inversa, como uma fora centrpeta na medida em que mantm o indivduo ligado sociedade.

    Discutir o patriotismo como elo entre os cidados e a p-tria ajuda a compreender os mecanismos de manuteno da ordem social vigente (a servio dos interesses internos) seja num momento de crise para explicar uma poltica estatal seja para fortalecer a identidade e a coeso nacionais.

    A poltica externa tambm influenciada pelo patriotismo. Nesse caso, o amor ptria o meio pelo qual os EUA justificam a interveno social, poltica, econmica, cultural e militar em ou-tros pases. Em nome da democracia, ferem soberanias nacionais, matam pessoas, dominam culturas. Em contrapartida, os movi-mentos de resistncia agem na tentativa de diminuir os impactos da dominao norte-americana em seus pases. Esses jogos pol-ticos internacionais fundam-se nessas relaes conflituosas ora mediante guerras ora por legitimaes simblicas.

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    IRLENA MALHEIROS, MONALISA LIMA E ANDRA CAMERINO

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