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O paradigma mediológico (Dissertação de Mestrado) José António Domingues Universidade da Beira Interior Setembro de 1998 Índice 1 Apresentação 1 2 Genealogia da ideia de Mediação (10) 4 3 Notas 18 1 Apresentação Na sequência do mito de Epimeteu e Pro- meteu (1), o homem obtém uma essência específica depois de o segundo dos deuses lhe entregar os artefactos técnicos que rou- bara a seus pares. Aparte a filantropia de Prometeu, desencadeada por força do esque- cimento de Epimeteu de guardar uma qua- lidade distintiva para a raça humana, o que importa reter é que, originariamente, o ho- mem era de condição deficiente. Superou- se no momento em que se exteriorizou. O mito presta auxílio à compreensão da natu- reza humana, ao facto insondável de colocar a técnica no coração da sua existência, como seu suporte, sem o que esvaeceria. Régis De- bray assinala:“O meu cérebro morrerá, não estas notas escritas a tinta num papel que du- rará mais que eu”. (2) Para além desse facto, o mito esclarece porque há inerência do in- orgânico relativamente ao orgânico, porque é que é em modos artificiais que o natural humano se projecta e se identifica. Origi- nalmente, o homem é um ser de mediação técnica; para interagir com o mundo da vida constrói ambientes artificiais e move-se den- tro deles. Surpreendentemente, o homem cria e é também criado pelo que cria. Cria a escrita e é criado nele um certo tipo de ra- cionalidade. Homem e técnica não coabitam um com o outro, simplesmente; a técnica não está face ao homem como o objecto face ao sujeito. O facto de encontrar na técnica a identidade é avesso a uma interpretação dua- lista do caso: “Eu sou o meu carro, o meu telefone” (3), expressa, segundo Régis De- bray, o que a técnica acaba por ser: o lugar onde o humano habita, a sua morada (oikon). Afinal, o exterior é o interior e o interior é o exterior. O fora é o dentro e o dentro é o fora. O homem “é construído pelo nicho que ele próprio construiu” (4). Assim que as téc- nicas são exteriorizadas, fenómeno eminen- temente humano este em que o que se separa assume vida própria, passam a dar forma ao homem e à sociedade onde emergem. Confi- guradas, reconfiguram. Pelo modo como se interrelacionam com a vida do homem só podem estabelecer com ela uma relação biónica. Influem ao nível

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O paradigma mediológico(Dissertação de Mestrado)

José António DominguesUniversidade da Beira Interior

Setembro de 1998

Índice

1 Apresentação 12 Genealogia da ideia de Mediação (10)43 Notas 18

1 Apresentação

Na sequência do mito de Epimeteu e Pro-meteu (1), o homem obtém uma essênciaespecífica depois de o segundo dos deuseslhe entregar os artefactos técnicos que rou-bara a seus pares. Aparte a filantropia dePrometeu, desencadeada por força do esque-cimento de Epimeteu de guardar uma qua-lidade distintiva para a raça humana, o queimporta reter é que, originariamente, o ho-mem era de condição deficiente. Superou-se no momento em que se exteriorizou. Omito presta auxílio à compreensão da natu-reza humana, ao facto insondável de colocara técnica no coração da sua existência, comoseu suporte, sem o que esvaeceria. Régis De-bray assinala:“O meu cérebro morrerá, nãoestas notas escritas a tinta num papel que du-rará mais que eu”. (2) Para além desse facto,o mito esclarece porque há inerência do in-orgânico relativamente ao orgânico, porqueé que é em modos artificiais que o natural

humano se projecta e se identifica. Origi-nalmente, o homem é um ser de mediaçãotécnica; para interagir com o mundo da vidaconstrói ambientes artificiais e move-se den-tro deles. Surpreendentemente, o homemcria e é também criado pelo que cria. Criaa escrita e é criado nele um certo tipo de ra-cionalidade. Homem e técnica não coabitamum com o outro, simplesmente; a técnica nãoestá face ao homem como o objecto face aosujeito. O facto de encontrar na técnica aidentidade é avesso a uma interpretação dua-lista do caso: “Eu sou o meu carro, o meutelefone” (3), expressa, segundo Régis De-bray, o que a técnica acaba por ser: o lugaronde o humano habita, a sua morada (oikon).Afinal, o exterior é o interior e o interior é oexterior. O fora é o dentro e o dentro é ofora. O homem “é construído pelo nicho queele próprio construiu” (4). Assim que as téc-nicas são exteriorizadas, fenómeno eminen-temente humano este em que o que se separaassume vida própria, passam a dar forma aohomem e à sociedade onde emergem. Confi-guradas, reconfiguram.

Pelo modo como se interrelacionam coma vida do homem só podem estabelecer comela uma relação biónica. Influem ao nível

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da consciência e acção. Compelem, frutode uma espécie de feed-back. O espírito hu-mano cria e o que cria torna-se independente,passando a conceber, “nas nossas costas, semnos pedir, sem nos informar, um mundo, umespaço-tempo, uma cidade que se impõe atodos” (5). Os artefactos técnicos libertam-se do espírito, quais obras de Dédalo, e de-vêm condição da existência do mesmo. Ohomem habita uma experiência técnica, estáno interior dela, é por ela processado, ou de-finido. É no âmago da técnica que o ho-mem é constituído. Nada do que lhe digarespeito é deixado fora do mundo dela. Oque é mais íntimo e o que é mais público, oque é crer e o que é saber intersecta-se coma técnica, modifica-se por ela. Portanto, éa partir das mediações técnicas que a cul-tura se compreende. E se a cultura é, basi-camente, comunicação, então o automóvel,a televisão, a pintura, o livro, a imprensa,a fotografia e o cinema, são mediações dacultura. Práticas insignificantes, singular-mente consideradas, inscrevem a mediaçãonuma grande corrente, preenchem-na coma participação de elementos diversos e he-terogéneos. Historicamente, nem todos osmeios humanos de visar a experiência se in-stituíram como meios culturais, somente aspalavras, as imagens, os objectos e os sonsfortes entram no seu receptáculo. Medeiaculturalmente o que manifesta, em termosnietzschianos, aptidão a controlar, a totali-zar a constituição da experiência. Ademais,tem-se permitido que a cultura se leia por in-termédio, apenas, de alguns objectos, algunssons, algumas palavras. Irrompem nela osmeios que desempenham papel polarizador,que organizam a realidade imediata e a diver-sidade em que está mergulhada. A existênciacentra-se na actualização de algumas figu-

ras. Numa perspectiva de emergência das fi-guras em apreço, verifica-se que começarampor ser utilizadas as figuras que privilegiama interacção natural: um povo, que surge emlugar soalheiro e tem nas costas uma serraque o protege das nortadas, é um exemplo.Com a passagem à agricultura e à domesti-cação dos animais entra-se numa nova etapade constituição do universo humano artifi-cial, acelerado com a escrita, os projectos ur-banísticos e os meios de transporte mecâni-cos. A mediação digital, na actualidade, anossa nova pele, culmina, por ora, este pro-cesso. As novas técnicas, os instrumentosque produzem, que fazem, nomeadamente,que cada ser humano prolongue a existêncialocal numa existência global, levam a crerem formas diferentes de comunicação doshomens uns com os outros e com o meio.O fascínio pode ir à transfiguração do vivo.A mediação digital representa uma ecologianova. É um meio ambiente recente, uma pai-sagem onde o humano começa a inscrever oseu estar-aí e a completar-se, nas mais diver-sas facetas. Neste espaço vislumbra-se quese prescinda de experimentar o real directa-mente. Tem poder, diríamos, ontológico, tala capacidade de simulação de um real novo.É a mediação “no estado puro, identificando-se quase com a Physis”, adianta Bragançade Miranda. (6) Donde, é importante re-flectir a questão da mediação na actualidade,compreendê-la, sob pena de cairmos no “ab-surdo e no desmesurado”. (7)

Dada a imersão de todos os domínios ex-perienciais humanos na mediação técnica dehoje, é importante pensar se o meio aindafunciona como meio - a não ser que esteja-mos demasiado narcotizados, de modo quesomos insensíveis ao problema. Os proces-sos de mediação contemporâneos impõem

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que estejamos de sobreaviso, que sejamoscríticos quanto à possibilidade de os meiosse transformarem em lugar de vida. Osmeios podem liquidar a a experiência ime-diata, substituírem-se à relação do homemcom o mundo, passarem a ser fins. A me-diação aparece como uma ideia que guia ohomem confrontado com a alteridade da ex-periência. Pensar a mediação é pensar noliame dos seres. Consiste em pensar noque une a experiência, no que lhe dá or-dem, sentido. A questão da mediação é umaquestão de aferição da comunicação do quecompõe a vida. Apetece dizer que enquantohouver vida o problema de a mediar põe-se;e que ela só é, realmente, se for afectadapor alguma forma mediadora. A linguagemfoi, no panorama mediológico, a forma quepor direito próprio emprestava às coisas noestado bruto o molde que as convertia emcoisas reais. O mínimo fragmento de expe-riência recebia a sua luz da força mediadorada linguagem. Por ela passava toda a questãoda mediação e toda a questão da constitu-ição da experiência. A mediação reduzia-sea um problema gramatológico. Trabalhadano âmbito teológico cristão e pensamento fi-losófico grego, a mediação ganhará autono-mia, dignidade de ser, mas aos poucos é des-viado o seu sentido originário. Valoriza-se aconexão dos seres, no entanto ela pressupõeo afastamento progressivo do plano concretorumo ao plano abstracto. A mediação torna-se uma projecção da vida em formas ideais.O natural exila-se e perde carne. Foi as-sim na fase antiga da cultura e também nadesignada modernidade. A cultura técnico-científica prolonga os efeitos da redução domundo real a um mundo ideal na mediação.A cosmovisão maquínica é fruto do entendi-mento da mediação no sentido mais instru-

mental e dominador. A extensão humanaprivilegiada, a linguagem, toma o banho daracionalidade e passa a configurar as restan-tes mediações. As características da objec-tividade, univocidade e funcionalidade nãosão apenas válidas para a razão, transbordampara a linguagem e da linguagem para as coi-sas. A máquina recebe dela a lição de racio-nalidade. É uma tecno-logia. O mundo vistopor este prisma moderno aparece como umconjunto de artefactos susceptíveis de mani-pulação e transformação, inclusive o corpohumano. A mediação ocupa o cenário tododo vivo. Não há nada que sai fora, está tudosob o efeito da mediação. É ela que domina.Já não será meio, será fim. A base de sus-tentação da teoria moderna da mediação éa representação. A vontade de controlar, deunificar a experiência à volta de um quadrointeligível e produzido pelo homem, é fun-damentada na capacidade de representação,ou seja, capacidade de operar numa segundapresença da realidade (re-presentar). Nestamodalidade de presença a realidade estariana ’leveza do ser’, dotada de propriedadesontológicas, de realidade realmente real. Arepresentação devém visível por intermédioda capacidade que o homem tem de signifi-car os objectos com determinadas imagens,signos, por sua vez, meios de o sujeito seapropriar da experiência da representação.Constituído o signo, encontra-se constituídaa experiência, restando comunicá-la aos ou-tros. É na base de signos que fundamos aconvivência social. O signo, reflexo da cul-tura, remete para todo o exercício de abstrac-ção efectuado sobre o real e que o assemel-hou, proporcionando-se a significação. Opredomínio do signo equivale ao predomínioda mediação técnica, mas de essência perfor-mativa, fiel ao ideal antigo da poiesis, que

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atribuía ao homem a faculdade de criar a rea-lidade e de manter a sua ordem. O desenvol-vimento técnico e científico lê-se a essa luz,liberta o homem da sua finitude, elevando-o a senhor da natureza. A cultura humanaé préproduzida segundo o modelo maquí-nico, foi invadida pela objectividade e for-malidade. Aos poucos, deveio uma imensacolónia de tecnologias, para as quais não en-contra finalidade hoje.

A linguagem, de protagonista ganhou opapel de serva, foi invadida, maquinou-se. Osigno é exemplo desse estado de petrificaçãoa que a linguagem chegou. Guy Debord,atento a esta problemática, explica que paraa sociedade que repousa na representação “ofim não é nada, o meio é tudo”. (8) Inquietaque o mundo se faça ver por diferentes me-diações e não se dê por isso. Se a ligaçãodo mundo com a existência humana acontecepor mediação artificial, e se esta transforma osujeito, então o poder está todo na mediação.

É pelos meios que os acontecimentos eos sujeitos são realizados no mundo. Nesteteor, o meio técnico maquinal acelerou oprocesso, devém mais rapidamente uma se-gunda pele e uma segunda consciência; o ór-gão de contacto com a realidade aumentou avelocidade de realização de uma existência,outrora aberta ao devir histórico. Na sendade Debord, a vida “degradou-se”, mais rapi-damente, diríamos nós, “em universo espe-culativo”. (9) O homem tem utilizado a di-ficuldade de lidar com a alteridade da ex-periência para se desligar dela. A sua uni-dade tem sido organizada pelo próprio meio,o que, dadas as circunstâncias, tem reveladouma experiência como se de uma unidadeestruturada se tratasse, muito semelhante aum discurso, cujas partes se conectam se-guindo leis lógicas. O quadro não é feito a

partir do real, é o inverso, logo, a cosnciênciaque se tem do mundo e as existências singu-lares põem-se em risco. São momentos inte-grantes da estrutura geral formal da culturada representação. A seguir àquilo a que sepode chamar de desontologização do real, afavor da ontologização da representação, su-cede o apreço pela uniformidade universal,que com Adorno daremos conta.

O tema mediológico ganha, pelo exposto,mais importância, e mais hoje, que se procu-ram desenvolvimentos novos, eventualmentemais profícuos em termos de correspondên-cia com a libertação do humano de constran-gimentos que o abafaram durante a moder-nidade. O novo é aqui perspectivado comomanifestação de vitalidade criadora, de con-tinuação da premissa de que a cultura é sinó-nimo de criatividade, para no final aparecercomo autêntica obra de arte. A tarefa do fu-turo fica entregue a cada um, não fica nasmãos de um qualquer programa de acção ouuma qualquer ética. Ocorre-nos, com a pará-bola do trigo e do joio, que no cuidado deeliminar o mal eliminemos descuidadamenteo bem.

2 Genealogia da ideia deMediação (10)

Mediação, messianismo e redenção sãoideias afins. (11) Depreende-se delas que oconceito ganha todo o sentido perspectivadona relação entre o divino e o humano, factoque as formas mais antigas de religião re-gistam. (12) Aliás, que é ele o pano defundo do messianismo e da redenção cristãs- o cerne da mensagem bíblica do Antigo edo Novo Testamento - por outras palavras, opano de fundo de uma figura que livremente

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seja vítima expiatória dos pecados dos ou-tros e imolada para os resgatar (13). Tam-bém, de uma comunhão entre o crente e oseu salvador, que representasse um renascerpara o primeiro ( 2o Coríntios 5, 17). Ca-berá perguntar: porque é a mediação um con-ceito tão importante, ou mesmo fundamen-tal, na questão da fé? E estamos em crer quesó num horizonte de ruptura ela é possível,tornando-se esse o fundamento. E o livroda Sabedoria confirma-o: “Deus criou o ho-mem para a imortalidade e o fez à imagemde Seu próprio Ser; mas a morte entrou nomundo por inveja do demónio e os que lhepertencem passarão por ela.” (Sabedoria,2, 23-24) Por obra do diabólico, o homemexperimentou a confusão, gerou-se, e comoque se disseminou, o caos, sendo necessáriolivrar-se dele.(14)

Parece que nem sempre assim foi. A se-melhança (homoiesis) original de Deus como homem, no contexto criacionista, não foiposta em causa por Adão, primeira cópiaviva de Deus (15). Nem tão pouco seriaquebrada quando “Adão com cento e trintaanos gerou um filho à sua imagem e semel-hança, e pôs-lhe o nome de Set.” (Génesis5,3). Inclusive no pecado! A questão damediação iniciar-se-á, desta forma, no mo-mento em que a questão da imago Dei perdea conotação natural, mantendo-se a exigên-cia “da reprodução radical da realidade di-vina”, conforme palavras do teólogo Bar-baglio, ou “da identidade perfeita entre o ei-kôn e o protótipo”, conforme as de Kittel.(16)

Ao povo de Israel, a quem Deus falou(Êxodo 19, 3-6), coloca-se, nitidamente, aexigência de mediação. Se existe a necessi-dade de a criatura procurar protecção, existeigualmente a impressão de que entre ela e

Deus há um abismo. Contudo, a aliança, deiniciativa divina, sublinhando a distância in-finita que separa os dois termos que se pre-tendem conjugar, abre uma via de acesso.(17) É de um mediador que o povo precisa,dá a entender Job: “Entre nós não há árbi-tro que se possa interpor entre nós dois. Queretire a Sua vara de cima de mim, para quenão me assombre com o terror que me causa.Então falar-Lhe-ia e não O temeria, pois eunão sou culpado aos meus olhos.” (9, 33-35) À primeira vista precisa de uma figuraque não permaneça apenas na esfera do hu-mano, mas entre na esfera do divino, recebade Deus mandamentos. (18) A primeira fi-gura a materializar esse conceito é Moisés.Ele é tido como o mediador da aliança deDeus com o povo de Israel que teve lugarno monte Sinai. Relata o cronista: “Moisésdesceu do monte Sinai, levando na mão asduas tábuas da Lei. Não sabia, enquanto de-scia o monte, que a pele do seu rosto res-plandecia, depois de ter falado com o Se-nhor. Quando Aarão e todos os filhos de Is-rael o viram notaram que a pele do seu ro-sto se tornara resplandecente e não se atre-veram a aproximar-se dele. Moisés, porém,chamou-os, e Aarão e todos os chefes daassembleia foram ter com ele, e ele falou-lhes.” (Êxodo 34, 29-31). Pressente-se namediação mosaica o caminhar para uma vidainstruída por Deus, sob a sua autoridade, oque mais tarde será designado de coinonia(I Coríntios 1, 9). Há, porém, neste está-dio do devir histórico algo que impede que setenha alcançado o fim. É que, como denun-cia S.Paulo, a obra de Moisés é conforme aomodelo que lhe foi mostrado no monte (He-breus 8, 5). Por isso, considera, a aliançade Moisés não está isenta de defeitos (He-breus 8, 7). Tratar-se-á de uma aliança im-

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perfeita, onde a marca do intermediário émuito forte. O factor humano, presente, rela-tiviza a mediação e torna-a caduca, valida-aprovisoriamente (Gálatas 3, 19), concluindo-se que só as intervenções directas de Deussão perfeitas e definitivas. (19) Outros me-diadores povoarão o devir histórico de Israelcomo agentes da libertação que Deus preco-nizou, desde o rei David, “tomado dos apris-cos das ovelhas”, homem eleito pelos outroshomens (II Samuel 3, 17-18), os quais re-presenta diante de Deus (Deuteronómio 17,18-20). (20) Os sacerdotes, por seu turno,desempenham uma mediação institucional,proclamam a Torâh (I Crónicas 16, 40) easseguram o louvor a Deus (I Crónicas 16,8-36). O profeta, ao contrário do media-dor anterior, íntimo de Deus, caso de Jere-mias, repete fielmente a ordem que lhe é con-fiada .(21) Apaga a sua personalidade ante amissão. Ao falar não segue o seu próprio es-pírito, como o falso profeta, segue o espíritoda fonte .(22) Nem rei nem profeta, o Servo,se ele é mediador é entrando livremente nosofrimento. É uma vítima humana inocenteque voluntariamente é tornada culpada porDeus dos pecados do seu povo e imoladopara os resgatar (Isaías 53, 9-12). (23)Nunca a mediação espiritual do Antigo Tes-tamento terá ido tão longe, segundo Feuil-let, realçando este na mediação sacrificial doServo a antecipação do que se passará qua-tro séculos depois com Cristo. (24) Comotraços marcantes da mediação que se acabade expor, dir-se-ia tratar-se de uma mediaçãoexercida por homens que se tornam capazesde pensamento e acção junto de outros ho-mens porque se elevam, sobem, para pers-crutar em Deus esses mesmos pensamentose acções. Para além disso, vinca as matri-zes das crenças do meio oriental. Como ex-

plicar que este conjunto de mediação assina-lada declare que é sob a impulsão do EspíritoSanto, sob a sua assistência e autoridade, queas suas obras são realizadas?! Vejam-se asdeclarações de Moisés (Números 11, 17, 25,26), dos reis Saúl e David (I Samuel 16, 13,14), do Servo (Isaías 42, 1), ou dos profetas(Isaías 48, 16; 11, 12; Ezequiel 2, 2; 3, 12,14; Oseias 9, 7; Miqueias 3, 8; Zacarias 7,12). Tais declarações colocam-nos peranteuma mediação que desce, que vem de cimapara baixo. O que inverte o processo. Parale-lamente às funções do Espírito Santo, são co-locadas as atribuídas à Palavra. Ela revelou-se no Sinai a Moisés e revelou-se aos profe-tas. O que acontece exactamente com a Sa-bedoria, no papel que desempenha na almahumana (Sabedoria 9, 7; 8, 9; 9, 10; 1, 4; 7,27) e no mundo material (9, 9; 8, 4; 7, 22-23;7, 27; 8, 1).

Não cumprirão claramente as três noçõesuma função mediadora descendente? Relati-vamente à Sabedoria, as imagens empreguesem 7, 25-26; 8, 3 e 9, 4, 10 para um ser pes-soa, engendrado e residente em Deus. Domesmo modo a Palavra, que nos Salmos éassimilada a um ser vivo que se mantém noscéus, de lá impõe a sua autoridade aos hu-manos e às coisas, criando por todo o lado aharmonia (Salmos 119, 89). Também o Es-pírito é personificado (Isaías 53, 10; Ageu2, 5; Salmos 143, 10; Sabedoria 1, 5, 7; Ju-dite 16, 14). Serão hipóstases, no sentidoem que não se podem dizer que sejam a pri-meira das criaturas, ou uma espécie de inter-mediários, que participam simultaneamenteda natureza divina e da natureza das coi-sas criadas. Não se confundem com Deus,exercem a sua acção ao lado de Deus. (25)Dado este carácter, haveria toda a pertinên-cia em considerá-las mediadoras, não fosse

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as funções atribuídas ao Espírito não diferi-rem das que são atribuídas à Palavra (26),por um lado, e a indiferenciação de activi-dades atribuídas ao Espírito e à Sabedoria,por outro (Sabedoria 1, 4-5; 7, 22-25; 9, 17).Assim, deixa-se de colocar-se a questão dahipóstase e, por consequência, a de uma me-diação propriamente dita. São três realida-des, efectivamente, mas representam a acçãodirecta de Deus (Números 11, 29) .(27)

Em conclusão, a investigação sobre a si-gnificação descendente da mediação destastrês noções culmina no fracasso. Salvar-se-ános anjos? No livro do Génesis, o patriarcaJacob vê uma escada que une a terra ao céu,ao longo da qual os anjos sobem e descem.Sobem para levar homenagens e os votos doshomens, descem carregados de favores divi-nos (28, 12). Pensa-se: este é um papel queconvém mais à qualidade de enviado que demediador, e que o anjo é simplesmente in-strumento, auxiliar, ministro de uma comu-nicação feita de cima para baixo, mas jamaisum mediador. Em Daniel 10, 13 ainda sepoderá reconhecer o anjo Miguel nessa qua-lidade de mediador, quando intercede peloshomens e por Deus para que se mantenha apaz de Israel .(28) Temos, assim, a propó-sito dos elementos contidos no Antigo Tes-tamento sobre a ideia de mediação, uma va-riedade rica, porém dispersa, o que complicaa tarefa de síntese. A concepção neotesta-mentária do problema que nos ocupa, exclu-sivamente por mérito da teologia de S.Paulo,concentra em Cristo o papel de mediadorduma nova aliança, fundada sobre promessasmelhores (Hebreus 7, 22; 8, 6-13; 9, 15; 12,24) (29). À multiplicidade opõe a unidade demediação. Por nenhuma outra via o homempode aceder a Deus. O destaque para a figurade Cristo como mediador único é assimilável

à ideia de um Deus também único (I Timóteo2, 5). Exclui-se, consequentemente, toda apanóplia de intermediários - anjos, profetas,sacerdotes, etc. - criados pela especulaçãoreligiosa anterior, bem como se altera a qua-lidade da mediação.

Com Cristo, realmente, a mediação entraao serviço da obra de salvação, da reconci-liação dos homens com Deus (Gálatas 2, 20),de todos (I Timóteo 2, 5-6), evocando a uni-versalidade desta.

Uma perplexidade: como chega Cristo areceber o conceito de mediador se na NovaAliança as leis hão-de ser impressas no es-pírito e gravadas no coração dos que per-tencem à casa de Israel? (Hebreus 8, 8-12) Não representa esta passagem a inter-venção directa de Deus, consequentementea negação do mediador? A justificação daCarta aos Hebreus reside no facto de Cristoser Filho de Deus. A encarnação de Cristoé a explicação fundamental (30). EnquantoFilho de Deus, é a imagem (Eikon), ou oexacto reflexo de Deus, o que lhe dá auto-ridade e o torna chefe de toda a economiade salvação (Colossenses 2, 9). Ora, destaforma, Jesus Cristo não está, como Moisés,entre Deus e o homem (31). Em Cristo, nasua pessoa, une-se o homem e Deus. O pa-pel de Cristo é descrito como sendo mais ode um fiador (Hebreus 7, 22) (32) de um tes-tamento (33) em que é necessário que se dêa morte do testador (Hebreus 9, 16) (34). Osangue do próprio mediador transcende qual-quer tipo de mediação havida. Reflecte umasoberania e uma eficácia que nenhuma outracriatura pode colaborar com ele ou ser su-plemento na sua obra (35). Em “O Verbofez-se carne” assinala-se a passagem de ummodo de ser a um outro. Mas como deveio?Pergunta-se. Como é que em Cristo se rea-

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liza a união de Deus e dos Homens? Per-manece um quebra-cabeças. O que é teste-munhado é que a divindade reside nele deum modo permanente e fixo (Actos 9, 22;11, 29; 13, 27; 22, 12), tornando a sua me-diação sempre actual (Hebreus 7, 3; 24) eestável (Eclesiástico 29, 14), relativamenteao acesso e alcançar dos bens prometidos.Cristo é para os cristãos o lugar de encon-tro, o agente de comunicação puro. Assume-se como a via e a verdadeira via (João 14,6). É como se fosse a ponte entre dois rios,que o mediador permite passar de um a ou-tro. A sua mediação tem por meta supri-mir qualquer antilogia inicial e impor a co-munhão de um mesmo modo de ser e deagir. Vislumbra-se que o fim é o de abo-lir todas as diferenças de raças ou de naçõese constituir um povo único (Efésios 2, 14-18). Reduzir todos os seres sob um só, re-staurar a harmonia inicial da criação, comCristo a ser a síntese, tanto das realidadesvisíveis como invisíveis, tanto das coisas daterra como das coisas do céu (36). Subjaza ideia de uma coinonia (Koinonia), atravésde uma vida em e por Cristo (I Coríntios 1,9), o que designa uma pertença ontológica,mais profunda que a comunhão psicológicade pensamentos e sentimentos realizada naprimeira aliança (37). Para os cristãos, Cri-sto ao mesmo tempo revela o plano da sal-vação e realiza-o (38), o que significa que asua mediação é a sua acção mesma. E depoisdele? Que valor de mediação os apóstolos, asorações têm? S. Paulo responde a essa perg-unta em I Timóteo. Responde que a vontadesalvífica é universal (2, 4) e que a Igreja par-ticipa na mediação de Cristo por meio dasorações, das súplicas, petições e acção degraças que se hão-de dar (2, 1), assim comoa pregação apostólica (2, 7) (39). Exclui a

ideia de a Igreja ter uma existência indepen-dente, poder ser tomada como um efeito pro-duzido por uma causa. Posto isto: o con-ceito de mediador expressará de modo ade-quado a função de Cristo? (40) Atendendoao sentido original de mediador, este desi-gna o que ocupa um lugar intermediário oucentral, que fica no meio. Situa-se a igualdistância dos extremos (41). O seu papel é ode se intrometer numa negociação (42). As-sim sendo, e dada a identidade entre Pai eFilho, porque sempre que Cristo fala é Deusquem fala, e seguir a Cristo é seguir a Deus(I Coríntios 6, 11; Romanos 8, 18-30; Colos-senses 1, 13-14), há um sentido de mediaçãoque é descoberto. Se Cristo não está entreDeus e os homens, e no entanto ele realiza amediação salvífica, por mediar só se pode vira entender o consumar de uma união. Cristoacaba por ser a figura por excelência, pola-rizadora de todas as mediações, contudo é-ode um modo paradoxal, parecendo não ser,não existir sequer como mediador (43). Dainstância compreensiva da palavra mediaçãofará parte apenas a especulação teológica?Não haverá uma concepção extra-bíblica damediação? Com efeito, não se trata de umanoção especificamente religiosa, a especu-lação filosófica aplicou-se igualmente a pre-cisar o vasto campo da sua aplicação (44).Citando J.Moller, que precisa a significaçãofilosófica do termo: “Mediação significa, emprimeiro lugar, a redução das coisas opostasa umponto central ou a partir deste. (...)Aoposição contrária distingue-se da contra-ditória no sentido em que permite achar umponto de equilíbrio, portanto, uma mediação.(...) Mas também na oposição contraditóriaexiste uma ’mediação’ no sentido em que ohomem pode pensar, por intermédio da suarazão tal oposição. Todavia, esta mediação

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não se dá no ser.” (45). Assim sendo, otrabalho filosófico da mediação tem por ta-refa buscar a entidade que estabeleça a ponteentre opostos, cujas modalidades dos mes-mos se circunscrevem, no autor, à oposiçõescontrárias e contraditórias. Para além disso,J.Moller chama a atenção para a abordagemdos opostos como facto de razão e comofacto de ser. Ora, parece que para equacionara mediação em filosofia se tem de explicitara questão das oposições conceptuais, sendodestas que aquela emerge.

O pensamento por opostos, sendo cate-gorial, é um pensamento que evidencia atensão, o contraste, a negatividade da expe-riência (46). Ao mesmo tempo, os opostostornam-se peças mestras de um pensamentoordenador da mesma experiência - como se acognição começasse com o estabelecimentode rupturas e descontinuidades, se fizessecom a produção da diferença. Os conteú-dos da experiência sofrem, por assim dizer,um “regime de separação”, uma “conduta decorte e de cisão” (47). Começam por apare-cer recortados binariamente (48). E porquê?

“Universalmente”, respondeJ.J.Wunenburger, “a dualidade está as-sociada à saída da unidade, à produçãoda primeira diferença.” (49). A dualidadeliga-se à alteridade e à heterogeneidade,rompe com a homogeneidade de uma uni-dade primordial (50). O dois representa umaforma de organização primitiva de inteligiro real. É o mínimo exigido para se falar demutação. O movimento da história nestaquestão tem revelado que se passou de umdesdobramento do dado em dois para umdesdobramento em modalidades superioresa dois. A morfologia ternária abriu, porassim dizer, a porta para a inteligibilidadedo complexo e, simultaneamente, afinou as

leituras das diferenças: dois elementos arti-culados em torno de um terceiro desenrolammelhor as propriedades da diferenciação.Pela introdução de um terceiro percebe-semelhor se dois elementos são disjuntosou se são confusos, pela razão de que adualidade retrocede para a unidade, nãoconsegue desfazer-se dela como se de umseu prolongamento se tratasse. Com a tríadedesenvolve-se a necessidade de assentara diferença num espaço intermediário àsentidades distinguidas. Entre elas tomaforma um estado específico que faz comque identidade e alteridade coabitem e queprocura resolver os problemas postos pelospontos de encontro e de separação entreduas coisas (51). O princípio da diferen-ciação justifica, assim, um pensamentoque doutra maneira confundiria todos osgéneros no ser (52). As formas de opo-sição conceptual que se desenharão a partirdele significarão modulações suas, que ospares não se organizam segundo a mesmamatriz. Quais as principais? Seguindo aelucidação formal do assunto por FernandoGil, em Mimesis e Negação (53), as figurasde oposição organizam-se em pares nãoantagónicos e antagónicos, distinguindo-seum do outro, respectivamente, pela nãoexclusão mútua dos termos ou exclusãomútua, e pelo conjunto de ocorrências ounão ocorrências implicado na ocorrência deum. A simetria, a dualidade e a complemen-taridade encontram-se entre o primeiro dospares, sendo o segundo configurado pelosparadoxos, contrariedades e contradições.Observando um exemplo de simetria (diae noite) (54), o que salta à evidência éque não há antagonismo. Os elementosopostos constituem como que uma disso-ciação do idêntico, a reduplicação de uma

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mesma estrutura (55). Nas dualidades,(grande-pequeno) (56), por seu turno, existehomogeneidade entre os termos, existe umacontinuidade, coesão. Passa-se de um termopara o seu contrário por continuidade. Osopostos compreendem-se como limites deuma variação contínua. Nestes é facilmenteaplicável o princípio platónico segundoo qual a transformação dos contrário emgeral se baseia na geração recíproca de cadaum deles em direcção ao outro (57). Asimbólica da linha recta, encontrando cadatermo o seu correlativo, esclarece muitobem esta oposição (58). A outra das figurasnão antagónicas, a complementaridade,reporta-se a disjunções que se apresentamtal qual faces heterogéneas de um mesmodomínio (par-ímpar nos pitagóricos) (59).Nas complementaridades levanta dificulda-des aplicar o princípio platónico enunciado,porque se se aceita que a morte nasça davida, como explicar que a vida provenha damorte? Havendo ruptura, descontinuidade,uma geração em linha recta não seria possí-vel, requer-se, sim, um percurso circular. Ageração dá a volta, diz Platão, através de umprocesso de compensação que as coisas queexistem se dão umas às outras (60). A voltaé indispensável nas circularidades, ficandopor descobrir a lei da articulação, já que elasfazem emergir um princípio de alteridadeforte. O dispositivo de conhecimento queopera em cada um dos elementos difere,as metodologias de estudo da res cogitanssão diversas das metodologias do estudoda res extensa (61). As figuras antagónicasmais importantes, que são a contradição ea contrariedade, produzem-se a partir danegação de cada termo pelo outro, querdizer, a presença ou a verdade de um implicaa ausência ou a falsidade do outro. Lendo

exemplos de contrariedades (branco-preto)(62), e deslocando a atenção para cadaestado do leque de possibilidades que existeentre um e outro (todas as cores), constata-seque ela re-introduz o multivalente. Racio-cinando com o Tratactus de Wittgesntein,cada facto positivo representa um só de entreo conjunto de estados de coisas virtuais(63). A imagística de que a contrariedadeestá impregnada é a do contínuo, por isso ageometria da contrariedade não é a da linha,invocada no Fédon, mas a da superfície oudo volume (64).

Na ciência da modernidade, precisamente,onde a contrariedade é a figura por excelên-cia, as leis visam estabelecer interacções ad-mitidas e os limites duma compossibilidade.A abertura para o regime das contradiçõesbem pode ser dada por Heraclito, quandoafirma: “As coisas em conjunto são o todoe o não-todo, algo que se reúne e se separa,que está em consonância e em dissonância;de todas as coisas provém uma unidade, ede uma unidade, todas as coisas.” (65).Acompanhado das forças motoras, o Amore a Discórdia, de Empédocles, Heraclito re-vela o quanto o conflito é um elemento in-dispensável à justificação da existência, todaela incompatível e afecta de pluralidade an-titética. Ele é que provoca as mudanças (66).Assim não pensa Aristóteles, para quem opensamento só pode aceder à inteligibilidadee à coerência à custa de uma submissão aosprincípios de identidade, de não contradiçãoe terceiro excluído (67). Um ideal conce-bido pela conformidade com um jogo de re-gras antecipadamente fixadas pode fixar umindicador de certeza (68). Trata-se de umaposição inversa da descrição prolixa das for-mas e das forças do cosmos (Empédocles eHeraclito) e das inversões vertiginosas que

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se inflige à palavras e aos conceitos (Sofis-tas). Nestas, sem qualquer dúvida, o postu-lado da economia do pensamento não é se-guido. A posição aristotélica empenha-se navia de uma estabilização substancial dos da-dos, abandonando o devir à contrariedade-ela só existe no seio de um mesmo género(justiça-injustiça) e não entre seres que di-ferem em espécie. Segundo Aristóteles, oscontrários protagonizam a diferença perfeita,estabelecendo que não pode haver duas ex-tremidades, porque para cada coisa não podehaver senão um só contrário (69). Por con-tra, a representação da contrariedade deveelevar-se ao plano de uma quididade queobedece à estrita identidade (70). Qualquersubstância só pode ser compreendida comoquididade simples. Daí, a verdade assentana unilateralidade do dado, limita-se à alter-nativa do sim e do não (71). Ora, o pensa-mento está prisioneiro de uma representaçãohomogénea, em última análise, encerra-se natautologia segundo a qual o que está vivoestá vivo (72). As contradições que Aristóte-les visa, saídas da elucidação dos princípios,referem-se a dois juízos antinómicos, nosquais a afirmação e a negação incidem so-bre o mesmo determinante particular. A cla-rificação filosófica parece incidir antes sobreas paridades de raciocínio, das quais pode-mos dar o exemplo das antinomias da razãopura kantianas (73). Que é da complexi-dade? Que é do emaranhamento de pro-cessos opostos que levam a um facto posi-tivo? Que é da interacção entre a criação e adestruição? Abrir a porta ao contraditório,tolerar a sua positividade, favorecia o des-controlo do conhecimento, entrar-se-ia numdomínio de indeterminação. É por essa ra-zão que eles são submetidos ao paradigmada identidade (74). Que escapa a este para-

digma? “Não acha lugar para pensar a aurorae o crepúsculo em que se chocam e conju-gam a noite e o dia, ou a divindade andróginana qual se compõem os opostos do macho eda fêmea.”, responde J.J.Wunenburger (75).A diferenciação ficou contida na figura chã,o que corresponde a uma hipertrofia (76) dovalor do homogéneo. Deixa por legislar asrelações dinâmicas do Mesmo e do Outro.Só com Hegel a contradição ganha direitosfilosóficos; apresenta-a como o conceito quepermite pensar o real como movimento oudevir (77). Categoria conceptual, a contra-dição é a charneira na dinâmica também doser (78). Tanto o pensamento quanto a rea-lidade estão implicados nesta forma de pro-gredir (79). Hegel procura solucionar a velhoproblema da “consumação ôntica do ser”, naexpressão de F.V.Pires (80), formulado porPlatão desta maneira: como obter do Ilimi-tado um advento à existência? (81)

Trata-se, claramente, de uma aporia, jáposta pelos pré-socráticos, que se pergunta-vam como é que o determinado se obteriado indeterminado. Não terá de pressupor-se princípios de organização e de diferen-ciação no seio da indistinção originária?(82)Sob que procedimento se pode articular ostermos diferentes em sua qualidade mesmade diferença? É que pensado o Ser na econo-mia do Mesmo ele teria de retirar-se do devir,e este está dado (83). Como o tornar inte-ligível? - pergunta-se agora. Como integrarnuma representação completa todas as deter-minações heterogéneas do concreto? Eis oque abre para uma razão móvel, que deixaa possibilidade de postular uma coextensi-vidade lógica e ontológica entre o Mesmoe o Outro. Enquanto movimento, a Razãoproduz os conteúdos negativos, as determi-nações (84). Temos, portanto, um ser que

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é posição e negação. Dialéctica é o termoque abarca a força que remete o ser na suaforma vazia para um conteúdo, e que abarcatodos os encadeamentos nos quais o pensa-mento se envolve gradualmente, sem se de-ter em nada de satisfatório antes de uma úl-tima etapa (85). A forma(dialéctica) é de-finida pelo próprio Hegel como um “passarpara outro” (86).

Ser e Não-Ser, identidade e diferença,estão ligados, assim, por uma relação dialéc-tica; e a negação é o conceito central dessarelação. Em termos lógicos, a primeira po-sição da negação surge na lógica do ser(negando o ser puro, fazendo-o equivalerao nada), reaparecerá na lógica da essência(pressupondo uma alteridade diferenciadoraintrínseca à identidade do ser), por último aonível da lógica dos conceitos (encontrandoo particular no percurso de concretização douniversal em individual) (87). A negaçãoafectará posteriormente a realização do realsob todas as formas, inanimadas e animadas(88). Presidirá, ulteriormente, ao apareci-mento de cada figura da consciência, de cadaforma institucional (89). A negatividade tra-duz, em Hegel, a dinâmica do espírito, doseu surgimento (90). Cada forma, cada fi-gura, que é a contradição do Espírito, pre-para o acesso à sua verdade. A alteridadeé colocada no centro do dispositivo lógicoe real. É esse processo de alteridade queHegel pensa (91). Como se instala a dife-rença na unidade? Para abordar o problema,o pensador alemão cruza dois trajectos, umque afirma que a alteridade surge como pro-cesso de alienação, segundo uma exteriori-dade, outro que afirma que a alteridade seprende a uma divergência interna. Sobre oedifício dialéctico caem como que duas car-gas ambíguas. A primeira vem no prolonga-

mento de uma teologia crística, centrada nomistério da Encarnação (92); a segunda vemno prolongamento de um vitalismo e biolo-gismo românticos, provenientes de uma Fi-losofia da Natureza (93). De acordo como primeiro dos paradigmas, a diferença de-pende de um movimento de dilaceração daidentidade, exprime uma espécie de dupli-cação de si mesma, de projecção fora de sinum reflexo.

No segundo paradigma este tornar-se emoutro é mudado para uma visão centrada nacissiparidade do Absoluto em determinaçõesduais. A prová-lo temos a imagem do botãoque gera a flor e a flor o fruto. Em todaa flor está contida o botão segundo a suaidealidade, ela não é senão a explicitaçãodo conceito de botão (94). O botão realizaa sua finalidade intrínseca contando com osseus próprios recursos. É, em sentido estrito,causa sui. É ele próprio que concede a simesmo a existência (95). Nesse caso, a opo-sição é vista como uma duplicação, uma es-pécie de desdobramento do Mesmo (96). Oprocesso da alteridade explicado pela saídade si para se tornar numa figura completa-mente nova submete-se a uma finalidade te-leológica, a um plano que desloca a causa dodevir da origem para o fim, ao passo que ex-plicado segundo uma performação do Outrono Mesmo, o Outro já não é produzido, masé actualização daquilo que está em botão, empotência. Os dois esquemas oscilam a com-preensão da diferenciação entre a alienaçãoe a alteração, como acabámos de ver. Deacordo com J.J.Wunenburger, a oscilação é,no entanto, suprimida na negatividade e nacontradição. A negação e a contradição to-mam a vez dos esquemas teológicos e bioló-gicos e elevam a diferença à sua máxima am-plitude. Como? Pensando que a identidade

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em Hegel implica a diferença, que implica,ela própria, a contradição, que implica, elaprópria, a oposição, temos que não há identi-dade sem diferença e sem contradição. O queé que isso significa? Hegel verte a identi-dade do Absoluto na contradição, e a potên-cia do negativo alimenta-se na integração su-cessiva de todas as figuras da diferenciação.Assim, a oposição e a diferenciação são mo-mentos que preparam o culminar da contra-dição (97). A negatividade abisma-se emcontradição, realiza-se nela (98).

O processo dialéctico conduz a diferençapara a contradição, seu desvio maior. O queprossegue o processo de negação? Outra fi-gura de negação? (99) Em Hegel, poder-se-ádizer, a contradição é racionalizada a partirde premissas aristotélicas, daí a pergunta: acontradição abarca todas as disputas, todasas diferenças? Abarcará as que se repor-tam a ordens de realidades afastadas umasdas outras ou desniveladas? (100) Se pen-sarmos em pares contraditórios do tipo ana-logia e digital (101), verificamos que estesinstauram ou suscitam choques entre ordensde realidades diferentes; eles não se mantêmno interior do mesmo tipo de nível. Estetipo de oposição que faz apelo a um mundofortemente diferenciado designa-se de para-doxal (102). Lendo, por exemplo, as Penséesde Pascal deparamos com uma reflexão quese desenha em torno da diferença de Deuse do homem (103). O mesmo tipo de dis-curso se encontra em Kierkegaard (104). De-les concluímos que a inteligibilidade dos ele-mentos em presença é afectada pela recusada lógica da univocidade, da continuidade,da homogeneidade (105) e salvaguarda doque Pascal decidiu chamar ’Razão dos Efei-tos’ (106) e Kierkegaard aut-aut existencial(107). A contradição ressurge sempre, inver-

tendo o por no contra (108), ou através dosalto do contra para o por (109), que a na-tureza do homem não consiste em ir, sem-pre, tem as suas idas e vindas (110). Será,assim, possível um ponto de equilíbrio entreos opostos ou, dada a natureza diversa dasdeterminações, não há um ponto de apoioespecífico mas cada ponto é, em potência,um ponto de apoio?! A geometria do pa-radoxo resvala para a segunda hipótese. Oparadoxo não é já pensável em termos deesfera ou de balança, antes em termos decone. É que o movimento à volta do coneé no sentido ascendente e convergente, or-dena para um fim, único, os pontos de vistadiversos. Mantém, simultaneamente, juntose separados os opostos. A ironia, por con-seguinte, associa-se à tarefa de desapossa-mento de uma posição absoluta em favor daassociação com o seu contrário (111) e quepode pôr tudo do avesso, exteriorizar o in-terior, interiorizar o exterior. Como notouPascal, Cristo revelou que os pobres hão-seser ricos e os ricos, pobres, que os primei-ros hão-de ser os últimos e os últimos os pri-meiros. A ironia a que aqui se faz referên-cia manifesta a trágica impossibilidade dedesfazer a contradição, tornando esse factomatéria para pensar. O mistério pascalianoe o escândalo kierkegaardiano são definidospor esta ironia. Nenhum conhecimento denós mesmos podemos ter sem conhecermoso mistério da transmissão do pecado, diráPascal. E que a transmissão do pecado é oque há de mais impenetrável ao nosso con-hecimento, de modo que o homem é incon-cebível sem este mistério e este mistério éinconcebível ao homem (112).

Para Kierkegaard, o escândalo consiste emcrer que o pecado pode ser perdoado e ainda

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em desesperar de os pecados não serem per-doados (113).

Perante tão rica modulação da diferençacabe perguntar se chegaremos a responder aoproblema que temos entre mãos, e que é ode saber em que termos é a mediação forne-cida, se a filosofia, efectivamente, é lúcidaquanto à forma de tornear a diferença. Ou senão vamos deparar com uma teia de soluçõesque velam mais que desvelam, ganhando-seem amplitude o que se perde em acuidade,fruto do refinamento do que as problemáticasda oposição e da mediação foram alvo. Re-lativamente à simetria, e face ao analisado,a mediação é incorporada nas próprias coi-sas, dispensa um terceiro. A distinção é re-solvida em termos de equilíbrio entre partescontrastantes (114). O dia e a noite, constitu-indo transformações de um mesmo não mo-dificam a estrutura dele, asseguram a estabi-lidade (synthesis) do mesmo.

Ora, isso é assumir um grau zero na me-diação, um seu limiar inferior; a partir deleoutras mediações se subentendem. Nas dua-lidades o problema da organização do múlti-plo não se põe, ela é auto-suficiente. A inte-ligibilidade destas não invoca uma mediaçãopropriamente dita, porque passa-se do aque-cimento ao resfriamento de um corpo poruma geração recíproca. Cada um dos con-trários origina-se no outro (115), não há rup-tura, há uma coesão patente, o que faz as coi-sas acabem por revestir a mesma figura.

As complementaridades suscitam aquestão da união e da organização (116). “Éimpossível combinar bem duas coisas semuma terceira: é preciso entre elas um elo queas aproxime, e o elo melhor é o que esta-belece a mais perfeita unidade entre o queele une e ele mesmo”, refere Platão (117).A terceira coisa, o misto, é o responsável

pela união. A natureza deste misto é demodo a fazê-lo participar das qualidadesdos extremos, só assim podendo fundi-lose possibilitar qualquer comunicação, vida,acção, entre eles. Daí, vai além deste mistoo papel de participação e conexão, exige quese estabeleça ordem, proporção e harmonia(Koinonia) (118), nem que para isso tenhade implicar violência, como no caso dodemiurgo para unir o Mesmo ao Outro,porque o Outro era rebelde à mistura (119).

Haverá limites à intervenção desta causaexógena?

A avaliar pelos exemplos, o metaxo plató-nico intervém tanto no plano físico, inte-lectual, moral, social, como religioso (120).É um conceito que Platão aplica para desi-gnar a relação entre o fragmentário, o contin-gente, e o uno, o todo. Platão visa observar apassagem da unidade do infinito à multipli-cidade do finito (121). Aristóteles é, igual-mente, tributário desse esforço, bem comoPlotino (122). Afinal, qual a origem do mi-sto? Será causa sui? Ou a complementari-dade é dada nas partes, são estas a fornecer oprincípio de complementação? Ou, ainda, acausa do misto vê-se no fim? (123) Repondoa abordagem aristotélica do carácter contin-gente dos seres e dos acontecimentos, no es-sencial defende que o regime da contrarie-dade refere-se ao ser que existe, podendo nãoexistir. Refere-se, por conseguinte, à existên-cia dependente de outra existência.

Natural, pois, que o ’sentimento de ser’não seja garantido à consciência, o senti-mento de uma subsistência, o que agudiza ofantasma do acaso. Como é servida, então,a mediação num mundo onde as ocorrênciassão imprevisíveis? Pensamentos vários ten-taram fornecer uma resposta a essa pergunta,como o de Leibniz, aqui interpretado por Mi-

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chel Serres:“A mónada, como tal, encontra-se constantemente designada como o suportede características inversas, como o são asdo mundo que elas constituem...(ela) é umaunidade, repetida uma infinidade contínuade vezes; é fechada e aberta, sem janelasnem lacunas, mas representa a totalidade domundo...:original, irredutível, insubstituívelmas harmónica e entre-expressiva segundotodas as inter-relações imagináveis” (124).A mediação (ordem) da contingência vê-se atribuída apenas a um conceito; apenasum conceito fixa as condições de ocorrên-cia de cada termo. A mónada é mediaçãoentre os contrários, é ela que fornece a re-gra ao devir. Outras mentes reagiram à con-tingência, ora expulsando as qualidades se-cundárias do âmbito das qualidades apreciá-veis, reduzindo-se, obviamente, uma feno-menologia aparente a uma mais uniforme;outras buscaram num cogito pré-reflexivo ena experiência ingénua do mundo os actosfundadores, mas esquecidos, como a feno-menologia husserliana. Outros, ainda, segui-ram diferentes sínteses, começando pela sín-tese que se dá no plano da sensibilidade, me-diante as formas puras da intuição - espaçoe tempo - passando pela do entendimento,em que a síntese será unificação dos elemen-tos da representação, mediante as categorias,até à que se observa no plano da razão, combase nas ideias. Tal ponto de vista sobre amediação pertence a Kant, que o designoude síntese transcendental. O inatismo car-tesiano elucidou, igualmente, esta configu-ração. Assenta na ideia de que a alma possui,desde o princípio da sua existência, ideiascongénitas, criadas por Deus ao criar a natu-reza do homem. A ideia de Deus e da suaimutabilidade, substância, pensamento, es-paço e movimento, princípios de identidade

e causalidade e as verdades matemáticas e asleis mais universais da natureza constituemcomo que o património originário da razão,que só esperam pelo estímulo exterior parase desenvolverem.

Ora, o que resulta? Uma mediação comoser de razão, extrapolando-se desta para aordem real de modo a obter uma imagemdo mundo essencialmente continuista, isentade conflitos (125). No fim encontra-se umaestrutura que procura recuperar a organici-dade primordial, mediadora de diferenças. Oplano em que é colocada é o de um idealregulador (126). Passando à abordagem dacontradição, e tal qual foi dito sobre isso esobre Hegel, é a partir da proposição ’Sere Nada são o mesmo’ que o jogo da buscade mediações começa (127). A identidadeencontra-se posta assim porquanto o ser semadiatiza através da negatividade - o seré referência si enquanto é referência a ou-tro (128), implicando-se um movimento deaparências, vistas na função mediadora - atéque o absoluto se re-conheça unidade depensar e ser (129). Como é visível, a me-diação, ou seja, segundo a definição lógica,“o ter partido de algo de primeiro para um se-gundo e um sair da diferença” (130), é maisuma automediação, a partir do momento queé o Absoluto que põe ele próprio a si o Ou-tro e se concilia consigo. O Espírito encontraa sua identidade no movimento de oposiçãoà imediatidade que ele inclui; imediatidadeesta cumprida na diversidade de aparênciassobre as quais o ser se recolhe sem se deixaresvanecer.

Aquilo que é o ser devindo é ao mesmotempo imediatidade e mediatidade, que serásuperada pelo pensamento de tudo unir. Éa especulação que tudo transforma em me-diação. Contradição, negatividade e aufhe-

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bung constituem, em suma, a tradução silo-gística do pensamento especulativo. Onde,efectivamente, com o desenvolvimento epor meio dele, tudo encontra mediação éa história. É para ela que Hegel remetea reflexão do facto de o homem comoindivíduo só adquirir um significado realapós um desenvolvimento milenário de me-diações (131). Encontramo-nos, por conse-guinte, face à natureza política da mediação,cujo pressuposto declara que o homem ésempre membro de uma comunidade, estásempre exposto à relação com outro, numarelação de oposição. A mediação aparecerácom o propósito de interligar uma relação in-tersubjectiva (132).

Central na análise da categoria de me-diação intersubjectiva vem a ser, mais umavez, e coerentemente, a contradição, comose o sistema fosse um círculo. O que signi-fica que o desenvolvimento para a igualdaderealiza-se por meio de uma desigualdade cre-scente (133). Para se alcançar, por exem-plo, a autoconsciência, cada resultado con-creto das mediações precedentes foi extinto.Porém, as mediações precedentes, quer di-zer, as formas aparentes da consciência cons-ciente de si como livre e universal, perman-ecem constitutivas da nova realidade (134).A autoconsciência é criada no desenvolvi-mento das mediações; a natureza origináriaenriquece-se (135), conserva em si um carác-ter intrinsecamente mediato (136). Num pri-meiro momento, a alteridade entra apenasnegativamente na constituição do homem,seguindo-se daí que o homem faz a experiên-cia não da própria independência do mundo,mas da sua dependência. É que se o mundofosse anulado, a autoconsciência perderia asua essência. À partida existe uma experiên-cia de mediação inadequada que, contudo,

resulta adequada assim que o ’outro’ da au-toconsciência se eleva a si mesmo a univer-sal, com dignidade igual àquela do ’eu’ ori-ginário. Só o encontro com um ’outro’ inde-pendente pode elevar a autoconsciência. Sóuma alteridade que seja diferente mas que,mesmo na negação, se mantenha, sem se ex-tinguir, pode realizar uma mediação inter-subjectiva autêntica (137). O enfrentamentoimediato (138) de duas autoconsciências é ocomeço de um novo desenvolvimento da au-toconsciência. A acção seguinte consiste emcada uma das duas rebaixar a outra a umamera forma de vida imediata. Consiste, en-fim, no desprezo pela vida e pelo ’outro’.Cada uma das duas procura infligir a morteà outra, contudo a contrariedade presente fazcom que isto signifique também arriscar aprópria vida. Chegados aqui, avizinha-se aanulação da mediação, porque a morte é in-adequada para ser meio. O aniquilamentonão é solução, antes o manter dos extremos,ainda que seja um manter desigual. Logo,o enriquecimento depende de quando se en-frenta a morte, não de quando a mediação étruncada pela morte. Temer perder a vida si-gnifica não se resignar a afundar-se na coisa-lidade do mundo. A consciência que ignorao temor é consciência dependente, a essên-cia é ser para um ’outro’, ao contrário, aconsciência que enfrenta o temor é cons-ciência independente, reconduz cada alteri-dade sob si. Uma representa o servo, a pri-meira, outra representa o senhor, a segunda(139). Oposição paradoxal: que figura demediação ela poderá conceber? Nenhuma,prestando atenção à crítica de Kierkegaardpara com a pretensão à mediação hegeliana,que em Post Scriptum considera negadora daexistência singular, esta caracterizada pelaangústia, tensão, dilemas, alternativas, ca-

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racterísticas resultantes da condição de es-colha, decisão. E essa condição só residena subjectividade, domínio onde não pene-tra a reflexão sistemática (140). Em Temor eTremor declara que o paradoxo não se prestaà mediação. O Indivíduo, que é “exclusiva-mente Indivíduo”, desde que quer tomar con-sciência do dever e realizá-lo reconhece queestá em crise e, embora resista à perturbação,não consegue sintonizar a consciência do de-ver com a realização do dever. Não há me-diação possível na angústia de Abraão, per-sonagem que sabe que deve obedecer a Deuse sacrificar Isaac; tem renitência em cumpri-lo por amar a Isaac. Pensar paradoxalmentenão é, vistas as coisas, procurar uma terceiravia de conciliação, fora dos opostos, que se-ria externa, será mais pensar os contráriosjuntos e mobilizar a razão no ’entre’ eles.Desse ’entre’ é que poderá brotar uma so-lução.

Em vez de superar os opostos, procura-se escavá-los e, em vez de os conciliar, oparadoxo absorve o seu conflito. Ao modopascaliano, qualquer compreensão exaustivados elementos em causa é tarefa impossível,que assim que se consegue uma perspectivaglobal dos contrários gera-se de novo a in-stabilidade, e assim por diante. Conforme opróprio Pascal: “Nós ardemos de desejo deencontrar um lugar firme e uma última baseconstante para aí edificarmos uma torre quese eleve até ao infinito, mas todos os nos-sos alicerces estalam e a terra abre-se até aoabismo.” (141) Não nos podemos libertar dacontradição. Não existe a possibilidade de seproduzir uma síntese, através da qual finitoe infinito, aparência e realidade, presença eausência, se confundem. A nossa condiçãode homens é “estar ao meio entre dois extre-mos” (142). Existimos, pensamos, afastados

dos extremos e de um ponto último de equilí-brio. Em suma, as formas contrárias são pon-tos de partida e pontos de chegada das meta-morfoses, das mudanças na experiência, dasdiferenciações fenomenais que ocorrem sobo tempo. Porque razão as contrariedades? Éque se as formas fossem idênticas não have-ria transformações, mas também se fossemsimplesmente diferentes resultaria daí umaexplosão de metamorfoses possíveis, com aconsequente deliquescência dessa noção.

Assim, as mudanças ligam entre elas di-ferenças reguladas, que é o que as formascontrárias são (143). Qualquer mudança sevê atribuída a uma par-tipo, que ou constituios dois únicos estados possíveis (par-ímpar,limitado-ilimitado) ou os dois extremos deum campo de variações que se produzem noseu intervalo (quente-frio, grande-pequeno).A actualização desta ou daquela forma vê-se posta em relação com a acção correla-tiva inversa. Por conseguinte, as unidades doreal já não são simples e homogéneas, dota-das de propriedades unilaterais, mas organi-zações polares, acolhem uma espécie de co-existência dinâmica de polaridades opostas.De modo que, em vez de distinguir duas na-turezas de corpos, uns vivos outros mortos,pode-se admitir a existência de constituiçõesque comportem ao mesmo tempo destruiçãoe criação. As determinações extremas dosfenómenos ligam-se entre si por forças an-tagónicas que produzem misturas de proprie-dades. Quebra-se a visão de um mundo in-erte, formado de partes independentes contí-guas e expostas a perturbações externas queo animariam de um movimento (144). Aquestão do modelo que pode apreender oencontro de forças contrárias faz nascer aproblemática do equilíbrio dos contrários, oponto de junção. E a esse respeito agrupa-

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mos em duas as maneiras de tratar do pro-blema, uma a maneira arquimédica, a ou-tra a maneira hipocrática (145). De acordocom a primeira, o equilíbrio assenta no usode artefactos (balanças) procurando definiridealmente e abstractamente um centro degravidade e as condições de uma imobili-dade (146). As teorias saídas deste para-digma privilegiam, na maioria, a figura daanulação das forças opostas. De acordo coma segunda maneira, o equilíbrio caracteriza-se pelas pequenas oscilações em torno de umcentro de gravidade fictício (147). A ma-neira arquimédica segue o modelo de equilí-brio do fiel da balança, procura explicar aestabilidade num mundo em devir instável,e a maneira hipocrática segue o modelo dopêndulo oscilante, pressente sob a ordemuma alteridade em movimento. Uma propõeum equilíbrio de repouso, se assim se podedizer, que resulta da igualdade constantede duas forças que actuam continuamentesegundo direcções diametralmente opostas,outra o equilíbrio de movimento, que resultada acção simultânea de forças iguais masque prevalecem uma sobre a outra, alterna-damente, à causa de agentes exteriores (148).Conforme se verificou, as posições seguido-ras do equilíbrio arquimédico organizam-seem posições que ora desligam os opostos(149), ora os igualam, fundindo-se os aspec-tos diversos numa unidade superior (150). Oesquema da compensação, nutrido por umcomponente normativo, generaliza-se e é co-locado no centro de todas as coisas, porquetudo na natureza está submetido a uma har-monia geral, garantida por um Deus previ-dente e generoso (151). O equilíbrio dasforças, nesta situação, assenta numa finali-dade providencial, externa, portanto, aos ele-mentos que se compensam (152). A com-

pensação leva os extremos para o centro, asextremidades para o meio, os excessos paraa medida. Nessa medida, as filosofias dacompensação acabam por ser um monismoda ordem, valorizam o equilíbrio como lu-gar da reconciliação, como forma de atin-gir uma média, introdutória de uma espé-cie de forma ideal justa e dissuasora de seconceder qualquer eficácia ao desequilíbrio(153). Idealiza-se o estável. Curiosamente,o paradigma arquimédico, moldado no Di-reito e na Economia, vai ser substituído pelatecnologia no séc.XIX. A máquina permiteque se transfira para sistemas artificiais oprocesso de restabelecimento do equilíbrio.A providência transcendente é substituídapor um automatismo imanente. Mais tarde,com a cibernética, os mecanismos de re-stauração de uma constância tornam-se flexí-veis e mais autónomos e automáticos (154).De Arquimedes à Cibernética, a finalidadeé a de garantir a igualdade, a supressão deuma diferença. Através destes modelos so-mos colocados perante a valorização de esta-dos homogéneos, desconflitualizados e esta-bilizados. A alteridade dissipa-se numa si-tuação em que não existe antagonismo vivo,os extremos tocam-se e repousam, apagam-se para dar lugar ao vazio.

3 Notas

1. PLATÃO, Protágoras, 320c-322d.

2. Régis DEBRAY, Cours de MédiologieGénérale, Paris, éditions Gallimard, 1991,p.75.

3. Régis DEBRAY, Manifestes Médio-logiques, Paris, éditions Gallimard, 1994,

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p.141.

4. Ibidem.

5. Régis DEBRAY, Cours de MédiologieGénérale, p.76.

6. José A. Bragança de MIRANDA, Notaspara uma abordagem crítica da cultura, p.11(Texto policopiado).

7. Idem, p.14.

8. Guy DEBORD, A Sociedade do Espec-táculo, Trad. Francisco Alves e AfonsoMonteiro, Lisboa, mobilis in mobile, 1991,p.14.

9. Idem, p.16.

10. Seguindo a advertência nietzschianade Genealogia da Moral, como poderemosesquecer o “acto de autoridade que emanados que dominam” e encontra o nome paraa ideia que perseguimos?! Eis, justificada,a remissão histórica do começo do nossotexto. Cf. Friedrich NIETZSCHE, Genealo-gia da Moral, Lisboa, Guimarães Editores,1992, p.21.

11. CSPICQ, “Médiation”, Dictionnairede la Bible, Supplément, Tome V, 1957,p.983.

12. Nas religiões da Mesopotâmia amediação é protagonizada pelo rei. Orei representava o povo no culto e con-stituía o meio através do qual a vontadedos deuses era transmitida e suas bênçãoseram concedidas. Existiam outros me-diadores, seus subalternos, os sacerdotes.

Na religião egípcia, o faraó encarnava osdois mundos, era como deus e como homem.

13. Os quatro poemas do servidor sãoprova disso: Poema I, Isaías 42, 1-4;6-7;Poema II, Isaías 59, 1-6; Poema III, Isaías50, 4-7; Poema IV, Isaías 52, 13-53, 12.

14. Miguel Baptista PEREIRA opõea experiência dia-bólica à experiênciasim-bólica, utilizando como referênciasa Torre de Babel, para a primeira, e oencontro do Cenáculo, para a segunda. Cf.Miguel Baptista PEREIRA, “Comunicaçãoe Mistério”, CENÁCULO, XXXV, 136,(1995/96), p.163-182.

15. Génesis 1, 26-27. Como se equaciona,neste caso, a relação do homem com Deus?A tese de Soggin é a de que a relação é igualà que a cópia mantém com o original. Queristo dizer que a criatura não tem autonomiaprópria, depende sempre do Criador, a quemrepresenta. Cf. J.A SOGGIN, “Ad imma-gine e somiglianza di Dio”, Varios (Atti delsimposio per il XXV dell’ABI), Brescia,1975, p.75-77 (referência encontrada emG. BARBAGLIO, “Imagen”, DiccionarioTeologico Interdisciplinar III. Salamanca,Ediciones Sigueme, 1982, p.133).

16. G. BARBAGLIO, op.cit., p.137.

17. O hebreu significa a situação deduas maneiras. Quando aparece na SagradaEscritura significa intercessão ou oração, eveja-se I Samuel 2, 25; Génesis 20, 7; Nú-meros 21, 7; Deuteronómio 9, 20. A mesmasignificação em Job 31, 1-11, com o sentidode Juiz, e em Êxodo 21, 22, com o sentidode árbitro. O outro significado guarda

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uma ressonância mais forense. Exprime adecisão imposta por aquele que tem autori-dade. Veja-se em Génesis, 31-42, como seespera a arbitragem de Deus, equivalente auma sentença. O facto de que se trata daintervenção de um terceiro encontra-se emGénesis 31, 37, com os companheiros deLabão e Jacob a desempenharem esse papel.Em Job 9, 33 é Deus o árbitro. O mesmopensamento aparece em Job 16, 21.

18. Abraão pode ser citado como exem-plo de uma mediação que permanece naesfera do humano, ora para salvar Sodoma(Génesis 18, 22-23), ora para justificarAbimelec (Génesis 20, 1-17). Moiséstambém representou esse tipo de mediação.Veja-se quando as tribos saídas do Egiptodeparam com Amalek (Êxodo 17, 11-13), oepisódio do vaso de ouro (Êxodo 32, 7-14) eo episódio da serpente de ouro (Números 21,7). São passagens que oferecem de Moisésa imagem de um intercessor. O principalobjectivo era obter o perdão de Deus para opovo, tão só. Contudo, Moisés ultrapassaráAbraão, ultrapassará a mediação sob a formade intercessão.

19. Eis a posição de S. Paulo relativa-mente à intervenção de Moisés. Não é omediador último. Será, no entender doapóstolo, um delegado, um intérprete davontade de Deus, um Seu agente subalterno.Alguém eleito pelo seu carisma, mas apenaspara manter o plano de salvação previstopara o povo de Israel. Um peão no jogode Deus! Posição partilhada por Fílon deAlexandria e pelos rabinos judaicos. Oprimeiro não o considera mais que umintercessor, conciliador e protector do seupovo; os segundos assemelham Moisés a um

negociador ou intérprete. Cf F.J.SCHIERSE,“Mediador”, Conceptos Fundamentales dela Teologia, Tome II, Madrid, EdicionesCristandad, 1966, p. 620.

20. O rei israelita, Saúl, David ou Sa-lomão, não tem nada da divindade do faraó,nem tão pouco da qualidade sobre-humanaque naquela época se apresentava nos mo-narcas da Mesopotâmia.

21. Jeremias 2, 26-3,5; Isaías 6; Jeremias1; Ezequiel 1-3; Amós 7, 15.

22. Em termos estritamente teológicos, odomínio próprio do profeta é a escatologia,o anunciar o reino de Deus e o adventomessiânico.

23. O Servo tem outras particularidades,comparáveis às do Sábio grego, é queapenas ensina. É simplesmente um mestrede sabedoria, sem necessidades de sair daPalestina para cumprir sua missão. Nãose pronuncia em público, deixa de fora asquestões políticas, não questiona as insti-tuições tradicionais, concentra-se apenasna moral e tem uma doutrina humanista.Não foi esta a imagem de Sócrates dada porPlatão na Apologia? Como o Servo, tambémSócrates recebe de um espírito revelações.É óbvio que o daimon socrático não é omesmo que o Espírito do Servo. O Servo éintegrado, como o profeta, numa perspectivaescatológica. De salientar que, na Babiló-nia, nos cultos e na magia, usava-se esteprincípio de substituição a que o Servo dáexpressão bíblica.

24. C.SPICQ, op.cit., p.1015. Confronte-

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se com os poemas do Servo.

25. Atente-se em Provérbios 8, 22-36, orelato da origem da Sabedoria.

26. Confirme-se em II Samuel 33, 2:Isaías 49, 21; Zacarias 7, 12; Salmos 33, 6;Provérbios 1, 23; Judite 16, 14. Os hebreusnunca as distinguiram perfeitamente.

27. A ideia da presença do Espírito nomeio do povo, para o guiar e renovar osseus sentimentos, é uma ideia que temconsistência após o exílio. Cf. Isaías 4, 4;63, 10, 11, 14.

28. O livro de Daniel é de um judaísmotardio. A concepção do anjo como mediadornão é eminente nos primeiros livros doAntigo Testamento, devendo ser chamadomais de intermediário que de mediador.

29. A interpretação de S.Paulo é a de que,na aliança sinaítica, os homens ficaram sob acustódia da Lei e não da Revelação (Gálatas3, 23). Demarca o que mais adiante dirá serda ordem da pedagogia (24) do que é daordem da promessa (29). A primeira temorigem no ’negócio’ entre Moisés e Deus, asegunda tem origem em Cristo.

30. A questão da imagem, da verdadeirae autêntica imago Dei, é uma inquietaçãoque vem da igreja primitiva e que S.Joãoexprime, afirmando:“A Deus ninguémjamais o viu.” (João 1, 18). Na Cartaaos Colossenses, S.Paulo escreve:“Ele é aimagem de Deus invisível.” (1, 15). EmCristo Deus dá-se a ver. Foi em Cristo que aPalavra se fez carne (João 1, 14), se realizoua união das duas naturezas, divina e humana

(Efésios 3, 9). A Encarnação constitui umdos elementos capitais do cristianismo e temsido um dos mistérios divinos onde maisesforço racional foi feito.

31. Mesites (Mesites) é a palavra gregaque designa a situação de ’estar entre’.Faz parte de um grupo de palavras comomesiteia (mediação), com o significadode posição central, mediana, garantia, emesiteo (mediar), com o significado de serintermediário, estar no meio, arbitrar. Otermo mesites só aparece na era cristã, juntocom a Coinonia (séc.IIIA.C.). No NovoTestamento é utlizado seis vezes: Gálatas3, 19-20; I Timóteo 2, 5; Hebreus 8, 6;9, 15 e 12, 24. E como se verifica, relevaexclusivamente do vocábulo paulino.

32. Eggos é o termo grego para fiador.É um termo do direito muito frequentenos papiros egípcios e no direito grego.Refere-se ao que toma sobre si as obrigaçõesjurídicas num contrato de garantia. O fiadorpodia mesmo pagar a caução com a própriavida. O termo integra-se, perfeitamente,no âmbito dos fiéis cristãos que, comoperegrinos, avançam e perseveram sobrea cidade celeste unicamente apoiados empromessas.

33. Anunciado em Jeremias 31, 31-34 eredito em Hebreus 8, 8-12.

34. Cristo ratifica a aliança com o seusangue (Mateus 26, 28). Nenhuma uniãopode ser concebida sem efusão de sangue(Hebreus 9, 22).A morte é necessária paraque os herdeiros de Cristo recebessemem herança os seus benefícios. A mortetem valor de sacrifício, oferecê-la é acto

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essencial da sua mediação (I Timóteo 2, 6).

35. Mesmo os anjos o adoram. Cf.Hebreus 1, 6.

36. Perspectiva teleológica da mediação.Cristo é a causa eficiente, exemplar e final detodos os seres, utilizando-se uma linguagemaristotélica. Tudo nele recapitula. A ideia dearbitragem que comporta etimologicamenteo termo mesites esfuminha-se em proveitodo poder e soberania detidos por Cristo.

37. Na linha da missão do dialéctico,sublinhada em Fedro 266b,c, Cristo dis-tingue a unidade na multiplicidade. Realizaa coinonia, a comunicação amorosa entreseres contrários. Como na música, ainda se-gundo Platão, (Sofista 253b), da combinaçãode graves e agudos é que resulta a harmoniaconciliadora.

38. “O Cristo mediador é a nossa sabedo-ria, simultaneamente especulativa e prática”,confirma C.SPICQ, op.cit., p. 1080.

39. Os santos passarão a desempenharo papel de medianeiros da Igreja. Homensconsagrados e silenciosos, representam as“boas formas da Igreja, as etiquetas ceri-moniosas do gosto hierático”, nas palavrasde Nietzsche, que impedem que se faledirectamente com Deus. Lutero empreendeucontra eles uma autêntica guerra. Cf. F.NIETZSCHE, op.cit., p.121.

40. Como o conceito de Filho, ou oconceito de Homem.

41. C.SPICQ, op.cit., p.1022;F.J.SCHIERSE, op.cit., p.620; AAVV,

“Mediação, Mediador”, Dicionário Bíblico,São Paulo, Edições Paulinas, 1984, p.596-597.

42. As situações mais frequentes são:recomendar conselheiros a princípes; re-gular o que um contrato ou uma aliançadeve estipular; conciliar contrários; servir deárbitro numa transacção jurídica; negociara paz entre forças beligerantes procurandocessar as hostilidades. Cf. C.SPICQ, op.cit.,p. 1022-1023.

43. Fílon de Alexandria (n.20?a.c.-m.50?d.c.) é um filósofo e teólogo dojudaísmo helenístico que recorre a Platão,Aristóteles e aos estóicos para apresentaruma filosofia em que o papel de interme-diários e mediadores é entregue a serestranscendentes, como o Logos (pensamentodivino criador), a Sabedoria (meio decriação do universo), Pneuma (une a almacom Deus), as Potências (seres mitológicos,figuras, símbolos), anjos (embaixadores deDeus entre os homens) e os padres. Sãoentendidos como extensões de Deus; éatravés deles que Ele estende o seu poder àsextremidades do universo, contendo todosos seres o seu domínio. Neste sentido, ocrente é convidado a progredir de imagemem imagem até alcançar o ser simples, queo entendimento não pode ver por defeitode subtileza. O judaísmo palestiniano, àsemelhança da teologia anterior, reconhecetambém uma multiplicidade de seres in-termediários: Sabedoria, Torâh, Espíritode Deus, Memra, Métatron (qualidades danatureza divina mas que não se distinguemrealmente dela) e Shekinah (marca e pre-sença de Deus, da sua imanência, que todosconhecem mas ninguém está autorizado a

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dizer). Esta última tende a atenuar o quehá de perigoso e de pouco decente numaapreensão directa da face de Deus.

44. Os textos herméticos e astrológicos,posteriores à era cristã, são outras dasformas que exploram o conceito. Vejam-seas revelações de Hermes Trimegistro a Tat apropósito da influência sobre a alma humanaque os demónios dos planetas exercem.É devido a eles a mudança dos reis, asublevação das cidades, as pestes, as fomes,o fluxo e o refluxo do mar, os tremores deterra, etc.. Os planetas, em número de 36,designados os Decanos, são os mediadores.A medicina astrológica egípcia, por sua vez,defende que cada parte do corpo humanoestava sob a dependência de um deus ou deum génio e era necessário conciliar-se comele para que tal órgão permanecesse são ourecuperasse a saúde. À situação medianaprendia-se uma significação moral ou mé-dica. Cf. C.SPICQ, op.cit., p. 1027-128.

45. Cf. J.MOLLER, “Mediación”, Con-ceptos Fundamentales de la Teologia, TomoII, Madrid, Ediciones Cristandad, 1966,p.614-615.

46. O termo Categoria (Categoria), naetimologia, aponta para as duas perspectivas,significa afirmar, predicar, mas também, nalinguagem dos tribunais, acusar, falar contra.Cf. Michel RENAULD, “Categoria”, Logos,Vol.1, Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo,1989. A bipolaridade semântica da palavraem apreço encontra semelhanças com outraspalavras, como o termo egípcio Ken, quedesigna o forte e o fraco, os termos latinosSaltus, que exprime ao mesmo tempo o altoe o profundo, e Sacer, ao mesmo tempo

positivo e negativo. Remeterá a palavrapara dois objectos distintos ou antes para arelação e diferença entre os dois? A culturabarroca do séc.XVI gerou o poético fazendorenascer uma prática linguística que procuraexprimir a simultaneidade dos contráriose a impossibilidade de basear a realidadeno unívoco. Qualquer forma não pode servista isolada, sim ligada ao seu oposto. Nosextremos desta cultura, pode observar-seo risco de a diversidade antagónica passara ser vista como um jogo de inversão deformas, o que pode levar ao enfraquecimentoda diferenciação dos opostos. E exemploa obra de Montaigne, que apresenta, se-gundo os seus críticos, a reversibilidade doscontrários e o consequente isomorfismo eindistinção. Cf. J.J.WUNENBURGER, ARazão Contraditória., p.146-149.

47. As expressões pertencem ainda aJ.J.Wunenburger, que as associa à semânticada ferida.

48. Confirme-se através de Alcméon(“(...)a maioria das coisas humanasanda aos pares: branco-preto, doce-amargo, bom-mau, grande-pequeno”. Cf.ARISTÓTELES, Metafísica, A,5,986 a31-32; 35-36; KIRK e RAVEN, Os Filó-sofos Pré-Socráticos, Lisboa, FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1982 p.235-239) eda tábua pitagórica, composta de 10 paresde opostos (Limite-Ilimitado, Ímpar-Par,Um-Múltiplo, Direita-Esquerda, Macho-Fêmea, Repouso-Movimento, Rectilíneo-Curvilíneo, Luz-Obscuridade, Bom-Mau,Quadrado-Oblongo. Cf. ARISTÓTELES,op.cit., 986 a 22-26). Estas são posiçõeselementares de um trabalho filosófico sobreos opostos. Essa elementaridade será motivo

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de fortes críticas por parte de Aristóteles.Veja-se em Metaf., A,5, 986 a 36-37; Cate-gorias, 10, 12a ss.

49. J.J.WUNENBURGER, op.cit., p.32.

50. No pitagorismo a plenitude do serestá conferida no Uno, este é a figura daigualdade perfeita; a Díade introduz aprimeira forma de indeterminação.

51. Sendo o dual uma oposição que sófavorece o triunfo de um só, a tríade ganhavantagens porque traz em si um jogo dealianças e de oposições graças ao qual doispodem agir contra um, um contra dois. Sóna tríade podem existir ligações e repulsões.É, realmente, expressão do holon e não já deuma reunião segundo o pan. A problemáticada alteridade ímpar rompe com a simetria dodois e devém, verdadeiramente, a primeiraforma complexa. O dois havia já fixado umaprimeira diferença mas, dado o seu carácterespecular, é mais de uma indiferença que setrata. Com a tríade, a dualidade rebenta ecada elemento vê-se confrontado com doisoutros, chegando a adquirir violência (odemiurgo de Platão). A vida não é redutívela um ou a outro dos elementos, não se de-cide numa lógica de inclusão ou de exclusão.

52. Princípio refutado por Parménides, deacordo com o argumento de que o que é éincriado, extinguindo, por consequência, aideia de geração e mudança. Isso é impensá-vel, abrindo para um horizonte especulativoque não encontra ponte entre a Unidade e aMultiplicidade. As primeiras cosmologias,pelo contrário, associam o princípio dadiferenciação à explicação da génese domundo. Tales, Anaximandro e Anaxímenes,

ainda Heraclito, estabelecem um regime decausas entre os opostos. Derivam da acçãodos opostos uns entre outros a geração, algoque para Aristóteles é um erro. É um errosupor que os opostos sejam a causa de todasas coisas sem a existência de um substrato(hypokeimenon). A este substrato caberia afunção de mediação.Cf., Met., L, 10, 1075 a25-30.

53. Fernando GIL, Mimesis e Negação,Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda,1984, p.173-194.

54. Outros exemplos: alto e baixo,direita e esquerda, frente e atrás, côncavo econvexo, avesso e direito, uma forma e suaimagem especular.

55. O mito toma a simetria como um dosprincipais critérios organizadores:“Eram,no princípio o Espaço e o Companheiro;o espaço, no alto Céu, que Tananoa re-matava; Ele governava o Céu, e Mathueienvolvia-o.”Trata-se de um excerto de ummito polinésio da criação. O suporte básicoda criação é atribuído ao acoplamento deelementos, dependendo deste a estabilidadedo todo. Cf. Ernst CASSIRER, Linguagem,Mito e Religião, Porto, Edições Rés, 1976,p.83.

56. Outros exemplos: doce-amargo,rápido-lento, belo-feio, justo-injusto, forte-fraco.

57. PLATÃO, Fédon, 71b.

58. Aristóteles, no esclarecimento sis-temático que faz, designa este tipo deoposição por oposição relativa. Cf. Cat., 7,

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6b 20ss; 8, 10b 25 ss.

59. Outros exemplos: essência-aparênciaem Platão, Yin-Yang no pensamentochinês, extensão-pensamento em Des-cartes, sujeito-objecto na epistemologiamoderna, númeno-fenómeno em Kant,onda-corpúsculo na mecânica quântica,vigília-sono, vida-morte, imortal-mortal.

60. PLATÃO, op.cit., 72 a-b.

61. A filosofia grega parece interessar-semais pela descontinuidade das complemen-taridades que pelas variações contínuas dasdualidades. Como provas podemos referirHeraclito, os opostos pitagóricos e a físicaestóica. O esbatimento das descontinuidadesserá um problema que transitará até ao séc.XVII, altura em que a matemática é uminstrumento decisivo.

62. Outro exemplo: vil-honesto, Ser-Outro. Cada elemento é tudo o que o outronão é.

63. Ludwig WITTGENSTEIN, TratadoLógico-Filosófico, Lisboa, Fundação Ca-louste Gulbenkian, 1987, proposições 3.411e 3.42.

64. Frequentemente, entendem-se as con-trariedades como dualidades, porque os doispontos, considerados extremos, condensamo sentido de uma variação contínua.

65. KIRK e RAVEN, op.cit., p. 193,fr.10, e também o fr. 67:“O deus é dia-noite,inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome;passa por várias mudanças do mesmo modoque o fogo, quando misturado com especia-

rias, é designado segundo o aroma de cadauma delas.”

66. Heraclito e Empédocles serão casosraros no panorama filosófico grego, emgrande parte dominado pelo paradigmaidentitário

67. Aristóteles, ao mesmo tempo queelucida o regime das contradições demonstrao princípio da não contradição e do terceiroexcluído, e as conclusões que retira são asde que as doutrinas tradicionais sobre o sere a verdade não estão de acordo consigopróprias ou conduzem a conclusões inaceitá-veis. Refere como exemplos: Protágoras(Met., G, 4-6), Heraclito, Anaxágoras (Idem,G, 7-8) e Empédocles (Idem, B, 4, 985 a 23;B, 4, 1000 a 25ss.).

68. Duas ideias: a)a razão julga encontrarem si, nas suas produções conceptuais, umfundamento insuperável, antes mesmo de tera certeza de poder atingir o fundo das coisas;b)as regras vêm antes da preocupação dealcançar a textura complexa do devir e domúltiplo.

69. ARISTÓTELES, op.cit., I, 4, 1055 a20-33.

70. Aristóteles esclarecerá (G, 4 )que éimpossível que o mesmo atributo pertençae não pertença ao mesmo tempo, ao mesmosujeito, sob o mesmo aspecto (Princípio daNão Contradição, estreitamente ligado aoPrincípio do Terceiro Excluído (Idem, G, 7),porque “uma coisa é ou não é”).

71. A afirmação e a negação do mesmoestão desunidas. Um organismo não pode

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estar senão morto ou vivo; a quididade dohomem não é a quididade do não-homem(Idem, G, 4, 1007 a 20 ss.)

72. É o que o Princípio da Identidadeenuncia, que uma coisa é, o que é!

73. Antinomias matemáticas: o mundotem/não tem um começo no tempo; o mundoé/não é limitado no espaço; o mundo é/nãoé composto de partes simples; antinomiasdinâmicas: liberdade/causalidade; necessi-dade/contingência.

74. Aristóteles recusa-se a pensar odevir dos fenómenos e o Terceiro Excluídoé disso prova, condenando o pensamentoà disjunção, obturando qualquer terceiraposição que permitisse pôr a coexistênciados contrários.

75. J.J.WUNENBURGER, op.cit., p.158.

76. A respeito da longevidade da lógicaclássica e da conotação pejorativa da ló-gica contraditória que aquela lhe atribui,J.J.Wunenburger adianta que o pensamentoidentitário tomou para si a aura da nor-malidade. Reforçou-se por meio de umapatologia, enfim. Divulgou o seu ideal aoassegurar que o respeito pela normalidadeassegurava a normalidade psíquica. Acontradição, ao invés, permanecia associadaa uma monstruosidade lógica, a uma sub-versão racional. Tal versão surgia da partedas psicopatologias centradas no primado asdesconflitualização. Carrear a perspectivado contraditório era sinal de desestruturaçãodos quadros mentais, de uma alienação daconsciência e a uma total incapacidade de seinserir numa linguagem comum. Portanto,

sempre foram apresentados fortes motivospara dissuadir a concepção da contradição,até que a psicopatologia da esquizofrenia ea psico-sociologia dos grupos distinguirama contradição patogénica da contradiçãocriadora. Em si, concluem, a contradiçãonão é patogénica, só o é porque o sujeitoé incapaz de dinamizar a contradição. Eque se a contradição pode avivar sintomasneuróticos a não contradição também o podefazer; o emprego generalizado do esquemaidentitário pode levar a uma espécie deracionalismo mórbido, dissolvendo todasas diferenças no homogéneo. Além disso,repelir a alteridade pode veicular ideologiasdiabólicas. Cf. Idem, p. 161-167.

77. Jacob Boehme, uma figura alemãda especulação teosófica, preludia Hegel apropósito da ideia de que o infinito pres-supõe o finito, sendo este o fundamentodaquele. A intuição de Boehme formulauma diferenciação contraditória no Absolutodivino. Conjectura que Deus não se mani-festa senão num fundo de Ser e de Nada, desim e de não. Estende a lei da polaridade atéao absoluto. Segundo ele, o divino acha-seexposto a um conflito de dois poderes.Para uma visão resumida desta posição, Cf.Alexandre Fradique MORUJÃO, “Boehme(Jacob)”, Logos, Vol.1, Lisboa/São Paulo,Editorial Verbo, 1989 Para além da intuiçãoda contradição no coração do Ser, Hegelherda o conceito de uma realidade que éactividade, processo, movimento, auto-movimento do “eu penso” kantiano e doidealismo de Fichte e Schelling.

78. Tomando que a substância é sujeito,Hegel retoma o aforismo parmenidianosegundo o qual a mesma coisa é pensar

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(noein)e ser (einai).

79. O espírito jamais está em repouso:“vai arrancando um após outro os pedaçosda fábrica do seu mundo precedente; o seutitubear insinua-se por sintomas solados, afrivolidade e o aborrecimento que mordemno existente, a vaguidão do desconhecido,são presságios de algo de novo. O paulatinodesmoronar-se, que não altera a fisiono-mia do todo, interrompe-se e, como umraio, produz de golpe o acontecer do novomundo.” Hegel descreve o começo doespírito como sendo o produto de uma re-volução ampla nas mais diversas estruturas,o galardão de uma carreira multiplamenteintrincada e de esforços e fadigas tambémmúltiplas. Cf. HEGEL, Fenomenologiadel Espíritu, Madrid, Revista de Occidente,1935, p.15-16. Quanto à progressão, elaterá uma configuração em espiral. O mo-mento abstracto ou intelectual, o dialécticoou negativo-racional e o especulativo oupositivo-racional marcam o ritmo dessaconfiguração. Cf. HEGEL, Enciclopédiadas Ciências Filosóficas em Epítome, Vol. I,Lisboa, Ed.70, 1988, §79-82.

80. Cf. Francisco Videira PIRES,“Dialéctica”, Logos, Vol.1, Lisboa/SaõPaulo, Editorial Verbo, 1989,

81. PLATÃO, Filebo 26d.

82. Anaximandro propõe o gonimon, quese introduz entre os contrários e o infinitoprimordial, o apeiron. Em Anaxímenes, oscontrários, que são a raridade e a densidade,exprimem mudanças intrínsecas do ar, quesão a rarefacção e a condensação. Para Par-ménides, o advento e a individualidade dos

entes permanecem um mistério. Em Platão,a individuação e a organização relevam dachora e da ideia (instâncias descoordena-das); do to pan (tudo) fisiscista, entendidocomo elemento primordial de onde procedeo que é, e do to holon (todo) metafísico. Cf.PLATÃO, Sofista 242 d. Em Aristóteles, omundo dá-se, originariamente, como umamultiplicidade das substâncias (a unicidadepertence à definição de substância). Cf.Met., G, 2, 1003b27-28.

83. O devir da natureza, o lugar de onde oespírito retorna à sua identidade, é reveladopelo espírito, consiste na revelação de que élivre. Põe a natureza como seu mundo, “umpôr que (...)é ao mesmo tempo um pressuporo mundo como natureza independente”.Cf..HEGEL, op.cit., Vol.III, Lisboa, Edições70, 1992, §384.

84. Hegel retoma a fórmula de Espinosa:“Omnis determinatio est negatio”.

85. Esta ideia de dialéctica liga-se à deinquietude, explorada por Kierkegaard.

86. HEGEL, op.cit., vol. I, §84.

87. Idem, Primeira, Segunda e TerceiraSecção da Lógica.

88. Âmbito da Filosofia da Natureza.

89. Âmbito da Filosofia do Espírito.

90. A essência do espírito é negar-seimediatamente idêntico. Apesar disso,não deixa de manter-se afirmativo. Tem aliberdade de suportar a negação. Ele contémo negativo de si mesmo, a contradição. Cf.

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Idem, Vol.III, §382; Vol I, §214.

91. Veja-se que Hegel reconhece emprimeiro lugar o primado da identidade. Talfaz surgir uma perplexidade: a ser assim,o trabalho da contradição não terá outrofim que o de restaurar, de renovar umaunidade no interior da qual todas as coisastêm consonância, apesar de o próprio Hegelsugerir que se trata de uma consonânciaviva e não imóvel como a dos medievais,que simplesmente inclui. A este respeito,J. MOLLER afirma:“(...)Hegel (...)intentauma mediação tal entre o pensar e o ser queas realidades que se comunicam constituemuma verdadeira vida e não uma unidadepetrificada.” op.cit., p.616.

92. A religião cristã, no seu modeloluterano, é uma das fontes principais, aliás,uma espécie de ilustração antecipadora dasua doutrina idealista.

93. Escreve Hegel no prólogo à Fenome-nologia do Espírito que o botão é refutadopela flor, esta declara falsa a existênciadaquele, assim como o fruto declara falsa aexistência desta. Em lugar da flor apareceráo fruto como a verdade da planta. Cf.HEGEL, Fenomenologia del Espíritu, 1935,p.5.

94. Hegel reata com a oposição dapotência e do acto aristotélica, como que aanunciar que o conceito não tem de ir buscarfora de si o alimento fundamental ao seudesenvolvimento.

95. Cf. M.M. COTTIER, L’Athéisme dujeune Marx: ses origines hégéliennes, Paris,

Vrin, 1959, p.93.

96. A versão do infinito no finito obedece,neste paradigma, a uma perspectiva conti-nuista.

97. Entendendo a contrariedade hegelianacomo o processo que designa a dilaceraçãodo Mesmo segundo um par de extremos e aoposição o processo de instalar o Outro noMesmo, a corrosão do Mesmo pelo Outro.

98. A negatividade diz da dinâmicaque afecta todas as figuras no processo dediferenciação.

99. Se o positivo devém negativo, só podeentender-se a aufhebung como continuaçãodo processo de negação.

100. A oposição contraditória, visto queincide sobre objectos idênticos ou semelhan-tes, explicita uma diferenciação fraca.

101. Outros exemplos: natureza e cultura,finito e infinito, relativo e absoluto, homeme Deus.

102. O paradoxo afigura-se, neste sentido,situar-se além da razão identitária.

103. “Todo este mundo visível não émais que um traço imperceptível no amploseio da natureza. Nenhuma ideia se lheaproxima. (...) enfim o maior rasgo sensívelda omnipotência de Deus é que a nossaimaginação se perca nesse pensamento (...)Que é o homem no infinito?”. Cf. BlaisePASCAL, Pensées, Paris, Librairie GénéraleFrançaise, 1972, frag.199.

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104. “A paixão paradoxal da inteligênciaesbarra portanto sempre com este descon-hecido que certamente existe, mas que nãodeixa por isso de ser menos desconhecido,e a este título menos inexistente. A inte-ligência não pode ir mais longe: mas o seusentido do paradoxo leva-a a aproximar-sedo obstáculo e a ocupar-se dele; porquepretender exprimir a nossa relação como Desconhecido negando a sua existêncianão é correcto, visto que o enunciado destanegação implica precisamente uma relação”.Cf. KIERKEGAARD, As Migalhas filosófi-cas, III, “O paradoxo absoluto: uma quimerametafísica”. Citado de Pierre MESNARD,Kierkegaard, Lisboa, Ed.70, 1986, pág.54.

105. Essa tem sido a lógica das di-versas escolas filosóficas (materialismo-espiritualismo; idealismo-realismo;racionalismo-empirismo; dogmatismo-cepticismo)que se encerram em visõessempre desmentidas por uma escola oposta.Instalam-se num ponto fixo, válido comoponto absoluto, ignorando a contradição.Tomam o aspecto de uma antinomia, adjudi-cando a verdade a cada um dos opostos, doseu ponto de vista, como em Kant.

106. A Razão dos Efeitos, ou dasproposições, na qual desempenha papelde relevo o esprit de finesse, traz à luz anatureza paradoxal do homem. O homemé, simultaneamente, grande e miserável,e que qualquer doutrina que considereapenas um destes aspectos é falsa e perigosa(B.PASCAL, op.cit., frag.121). Nessa me-dida, são falsos o dogmatismo de Epicteto eo pirronismo de Montaigne (Idem, frag.109).

107. Não haver lugar para o "ou-ou"é su-

primir a existência. “quando faço abstracçãoda alternativa na existência isso significaque faço abstracção da existência(...)”.Cf. KIERKEGAARD, Post-Scriptum auxMiettes Philosophiques, Paris, Gallimard,1949, p.207-210.

108. Cf. B.PASCAL, op.cit., frag.93.

109. A existência é marcada por umaoscilação. Equivale a uma vibração da alma,na imagem de JANKÉLÉVITCH (Le pur etl’impur, Paris, Flmmarion-Champs, 1979,pág.228). Um acontecimento instantâneonão é um acontecimento quase-nada?!

110. PASCAL, op.cit., frag.27. Contra otédio do repouso, incita:“É preciso sair delee mendigar o tumulto”.(frag.136)

111. A ironia, neste contexto, revelaráque o finito estético se abre ao infinito ético,e que o vazio da interioridade torna possívela confrontação com a plenitude de Deus.

112. Perante a resistência da razãoem admitir um mistério para explicaroutro mistério, Il faut parier!, já que esta-mos lançados na vida. PASCAL, op.cit.,frag.131.

113. Indicação encontrada em PierreMESNARD, op.cit., Lisboa, Ed.70, 1986,p.61.

114. Convém distinguir a mediaçãosimétrica aristotélica da de Anaximandro.Para Aristóteles, segundo o exemplo:“asaúde é uma simetria de calores e de frios”(Física, VII, 3, 246b5), a simetria implicadiferença; o que é distinto da simetria a

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que Anaximandro alude para explicar aimobilidade da terra no centro do universo(op.cit., II, 13, 295b11), esta uma simetriana indiferença.

115. PLATÃO, Fédon, 71d.

116. Simetrias e dualidades são morfolo-gias elementares, modelizadas, a primeira,segundo a inteligibilidade da duração, docontínuo, sem nenhuma secção, e a segundasegundo a inteligibilidade da dobra, comcomeço e fim. A estas subjazem outras,como a ruga, que modeliza o engendra-mento, a união e a desunião. Os géneros Ser,Repouso e Mesmo apresentados no Sofistacontam-se entre a primeira das morfologias,e a emergência do cosmos em Anaximandroé uma dobra. A Concórdia e a Discórdia emEmpédocles pode representar-se como umaruga, como as demais complementaridades.Cf. Fernando GIL, Mimesis e Negação,p.169-170.

117. PLATÃO, Timeu, 31c.

118. PLATÃO, Político, 284b.

119. PLATÃO, Timeu, 35c.

120. Vários exemplos: a água e o arservem de transição entre o fogo e a terra(Timeu, 31b-32c); a medula é o meio termoentre a alma e o corpo (Timeu, 73d); emRetórica, a perfeição consiste em discursarentre o demasiado conciso e o prolixo(Protágoras, 338 a), entre o demasiado curtoe o demasiado longo (Fedro, 267b); Eros éo intermediário entre o mortal e o imortal(Banquete, 267b), é um auxiliar da alma,ajuda-a a elevar-se acima do mundo sensí-

vel, até à contemplação da ideia (Banquete,211 a,b), facilitando-lhe a ascensão até aoBem (República); o virtuoso é o que semantém na justa medida(Protágoras, 346d);em política o ideal será entre a servidãoe a liberdade (Leis, 694 a). O metaxointervém também na religião, sob a forma dedaimones e de oráculos, sobretudo oráculode Delfos, onde Apolo é o exegeta do direitosagrado (República, 738b-d; 427b,c). Osdaimones, por seu turno, servem de traçode união entre os deuses e os homens(Banquete, 203 a). De entre os principaisaspectos da sua intervenção, destaca-se opapel que têm de transmitir aos deuses oque vem dos homens e aos homens o quevem de Deus, completar o vazio que existeentre uns e outros, unir o Todo a ele mesmo(Banquete 202e), proteger dos males dainjustiça, cupidez, violência, loucura (Leis,906 a). Atribuído a cada homem logo pelonascimento, vela por ele durante a vidaterrestre e condu-lo diante do tribunal ondese julgam as almas. É assim uma espéciede aliado ou génio tutor (Fédon, 107d-108b;113d; República, 617d-e; 620d-621b).

121. Platão afirmará no Filebo:“(...)um emuitos (...) circulam por todas e cada umadas coisas que dizemos.” (15d) A unidade ea multiplicidade informarão uma lista vastade outras figuras conceptuais: parte-todo,simples-complexo, Mesmo-Outro, Discreto-contínuo, finito-infinito, absoluto-relativo.

122. Não desempenhando um papel tãopreponderante como em Platão, o mistopara Aristóteles tem também uma causaexógena à experiência; refere-o comosendo da mesma natureza que os extremos(Metafísica,1057 a 26). Na lógica, o termo

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médio do silogismo reúne os extremose torna a conclusão possível (SegundosAnalíticos, 81b, 31, 35; 82 a, 2, 21, 28, 30,31, 33); o contínuo espacial ou temporalnão pode conceber-se sem intermediário:“a linha é intermediária entre dois pontos,como o tempo entre dois instantes” (Física,VI, 231b, 6-10); o movimento produz-seentre termos opostos ou contrários (Idem,V,III,236h, 23; Metafísica, 1068b, 27); anoção é utilizada em moral para definir omeio termo virtuoso (Met., 1023 a 7); nareligião, o motor imóvel fonte primitiva detodas as forças motoras, faz seguirem-lhedeuses de segunda ordem, condutores dosastros, a quem o Primeiro motor entregao governo do mundo; a forma, definidorae configuradora do ser concreto, serve demediadora entre o ser e o conhecer; poroutro lado, o conhecer, que não se podeexplicar a partir do homem, remete para oser que é pura ousia, pura energeia, puranoésis. Pode aludir-se, ainda, ao papeldos intermediários nos relativos e dentroda contrariedade. Plotino multiplica ashipóstases mediadoras (Enéades, V, 1, 4). Atodos os níveis há um movimento de retornoà unidade mais elevada da hipóstase anterior- da Alma ao Nous e deste ao Uno (Idem,VI, 7,17). No topo está o Uno, que fazremontar a si o que de si procede (Idem, V,4, 1; 2, 1; 2, 2). Este movimento de retornoresolve-se graças ao Nous (Inteligência),que forma uma unidade com a pluralidadedos seus objectos (eide), descrevendo-secomo um uno múltiplo, e graças à Alma,cuja unidade se desdobra na diversidade dosentes (Idem, V, 1, 8, 25-26). Em conclusão,a dialéctica uno-múltiplo joga-se nos planosda Inteligência e da Alma. Quanto ao Uno,dele só é lícito dizer que está para lá do

ser, não exprime um ’isto’ determinadonem sequer é possível exprimir o seu nome.Comporta só uma tese negativa: ’não é isto’(Idem, V, 6, 10-12). Toca-se o Uno peloêxtase, o que sugere uma imediação no seuacesso, a não discursividade.

123. A filosofia grega, atraída por estaquestão dos complementares, apresentasoluções variadas. A propósito da primeirahipótese, o fogo (pyr)de Heraclito estabelecea medida dos complementares. Representa,por conseguinte, uma lei cósmica, comoconstitui a alternância entre a dominaçãoda Concórdia e a dominação da Discórdiaem Empédocles. A solução de Anaxágoras,segundo a qual os spermata contêm umamistura inicial válida para todo o sempre, épartidária da segunda hipótese. Os elemen-tos de Anaxágoras transportam consigo umaconstituição originária e os princípios da suaorganização. Solução também de Leucipoe Demócrito e os Estóicos (Cf. Met.,A,4,985b5). Aristóteles partilha da terceirahipótese. A perenidade das espécies, diz ele,é um efeito da tendência da Natureza paraDeus (De Generatione, II,10,336 a 35-337 a1; Gener. Animal,II,1,731b 18ss; De Anima,II,4,415 a 29 -b 3). Em Aristóteles há umareorientação teleológica do problema dageração dos seres. Tal processo naturalde reprodução existe para os seres vivosparticiparem no eterno e no divino (DeAnima, II,4,415 a 28).

124. Citação encontrada em F.Gil, op.cit.,p.185.

125. A significação da solução da me-diação dos contrários como facto de razãovem prejudicar a análise aristotélica da dupla

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pertença que os opostos gozam, ao ser e aopensamento. Não possuem só um estatutológico, também ontológico. Valorizando oscontrários no estatuto, eminentemente, defactos de razão, estão Platão, Plotino, SantoAgostinho, São Boaventura, Malebranche,Leibniz e Kant, entre outros.

126. Marx conta-se entre os grandescríticos desta ideia de mediação. Aceitaráa procura da harmonia, da coesão, daigualdade, do equilíbrio, mas tomandocomo ponto de partida os sujeitos reais. Ocunho humanista deste pensador leva-o adepreender que os conceitos apenas con-stroem outros mundos, que apenas alienamas relações do homem com as suas obras;provocam a desorientação do homem: nareligião, na filosofia, no Estado, na classesocial, no produto do trabalho. E dissiparesse outro mundo é o papel da crítica filosó-fica. Cf. MARX, Contribution à la critiquede la Philosophie du Droit de Hegel, Paris,Aubier-Montaigne, 1971, p.79.

127. O Ser está no começo contidono Nada (“Nada ainda é e (já) é precisoque algo seja”), como o Nada sobrevemna interioridade do Ser, marcando-lhe oprogresso. Cf. HEGEL, Enciclopédia dasCiências Filosóficas, §87.

128. Cf. HEGEL, op.cit., §112.

129. Através de Hegel, o aforismo parme-nidiano encontra-se posto dialecticamenteem movimento.

130. Cf. HEGEL, op.cit., §86.

131. A história é, como opina Enrico

Rambaldi, o crisol da mediação, o seu lugarpor excelência. Cf. Enrico RAMBALDI,“Mediação”, Enaudi, Vol.10 (Dialéctica),Porto, Imprensa Nacional/Casa da Moeda,1988, p. 145.

132. Natureza e cultura enfrentam-se nahistória; as relações entre indivíduos são opalco onde o choque se torna visível.

133. Por oposição à mediação radicalde Hegel, surge a mediação não radical,segundo a qual a desigualdade é fruto deuma incompleta arte social.

134. As mediações precedentes cor-respondem a articulações de diferenças. Àautoconsciência elas não aparecem significa-tivas, mas constitutivas. Sublinha-se, destamaneira, uma mediação em dois sentidos,negativo e positivo.

135. Rambaldi não tem dúvidas de quea Fenomenologia do Espírito hegeliana éo maior incunábulo moderno da reflexãosistemática sobre este aspecto enriquecedorda mediação. Cf. E.RAMBALDI , op.cit.,p.157.

136. O momento originário, totalmenteimediato, do ’eu’ e do ’outro’ desdobra-seem mediação. O ’eu’, como pura consciên-cia, destrói o ’outro’, nega-o. E teríamosa tautologia do ’eu sou eu’. Mas porque o’eu’ é constrangido a mover-se no mundo,o comportamento do homem é, antes dodesenvolvimento das mediações, de negaçãoda alteridade do mundo, esforço por subsu-mir o mundo sob si mesmo. Neste momentoas diferenças de si própria são nulas, o queconduz a uma concupiscência que jamais se

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Page 33: O paradigma mediológico · viado o seu sentido originário. Valoriza-se a conexão dos seres, no entanto ela pressupõe o afastamento progressivo do plano concreto rumo ao plano

O paradigma mediológico 33

satisfaz. Razão para que a sua acção sejamera destruição.

137. O desenvolvimento do encadea-mento entre mediação e imediatez gerouuma nova totalidade, a duplicação da auto-consciência.

138. Imediato porque as duas não sãoreconhecidas reciprocamente pelo que sãoem si.

139. Para uma abordagem sucinta do textohegeliano sobre a dialéctica da senhoria eescravidão, contido na Fenomenologia doEspírito, observar o esquema de GiuseppeBEDESCHI, “Servo/Senhor”, Einaudi,Vol.5 (Anthropos-Homem), Vila da Maia,Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985,p.266-267 e, ainda, E.RAMBALDI, op.cit.,p.160-161.

140. Para Kierkegaard, o calcanhar deAquiles da filosofia sistemática reside nacrença de que não existe quebra, de que ocomeço é absoluto, e que não acontece nadecisão. Ao invés, o pensador dinamarquêspressupõe uma sequência com a qual seestá permanentemente a romper, fazendodo começo um re-começo, sucessivamente.Cf. Jean WAHL, Études kierkegaardiennes,Paris, Vrin, 1967, p.177.

141. PASCAL, op.cit., frag.199.

142. Ibidem.

143. Philippe QUÉAU, Metaxu, ChampVallon, 1989, p.85.

144. Do mesmo modo que as bolas de

bilhar recebem a sua energia cinética doexterior e se entrechocam segundo leispuramente mecânicas.

145. A terminologia pertence aJ.J.WUNENBURGER, op.cit., pág.110.

146. A ideia de equilíbrio é fornecida pelabalança - uma balança está em equilíbrioquando as duas partes se sustentam tãoexactamente que nem uma nem outra sobenem desce, privilegiando-se o zero, o neutro,o inerte. E este défice de diferença implicaque cada desequilíbrio seja amortecido,compensado, de modo a que a estabilidadeinicial se restabeleça. Dá-se a equivalênciados opostos, ou coincidentia oppositorum.

147. O paradigma hipocrático remetepara as situações em que pode oscilar odesequilíbrio e a harmonia, posto que paraHipócrates a harmonia do organismo nãoera um estado estável e perfeito. O idealbiológico resulta de uma justa proporçãodos humores.

148. Uma reivindica uma contradiçãoresolvida, expandindo-se no pensamento daalquimia, que mistura opostos por intermé-dio de um mediador, outra reivindica umacontradição não resolvida, culminando nobalanceiro pascaliano e kierkegaardiano. Oequilíbrio por igualação é objecto da mecâ-nica (os movimentos têm o seu fundamentono centro de gravidade) e serve de referênciaa Descartes (uma só e mesma coisa podeproduzir efeitos contrários, tal como numabalança, em que o mesmo peso eleva umprato e abaixa o outro). Cf. DESCARTES,Regras para a direcção do Espírito, 2aed.,

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34 José António Domingues

Lisboa, Ed.Estampa, 1977, regra IX.

149. No exemplo:“a rosa bela tem os seusespinhos”, ama-se a rosa pela sua belezae detesta-se por causa dos seus espinhos,a coexistência do positivo e do negativoassenta numa conjunção desarticulada,numa ausência de síntese. Aí, o conflitoimobiliza-se, não se torna possível o devir, oreal é cortado em dois.

150. No exemplo:“a rosa tem os seusespinhos”, ama-se a rosa apesar dos seusespinhos. Os aspectos diversos fundem-senuma unidade, facto que as Luzes evi-denciam ao ligarem a existência universalde antagonismos a um mecanismo querestaura a igualdade das forças em conflito:ao Direito, por exemplo, atacando-se osdelitos por meio de penas adequadas. Sódesta forma o sistema pode manter-se emequilíbrio de repouso.

151. Nenhum excesso ou extremo geraum mal irremediável, uma desordem abso-luta.

152. A lei da compensação é projectadaartificialmente sobre elementos como Deus,que é o grande compensador da Naturezano séc.XVIII. É o grande engenheiro douniverso, que construiu um artefacto de altaprecisão.

153. Compensar será igualar, aplainar,rectificar, corrigir diferenças, unificar multi-plicidades, estabelecer continuidades.

154. A lógica cibernética não faz senãoamplificar o mecanismo de retorno aoequilíbrio, anterior às diferenças provocadas

à saída.

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