O Papel Da Mulher Em Memorial Do Convento2

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Memorial do convento

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O papel da mulher em Memorial do Convento, de Jos

Saramago

Uma narrativa histrica: a riqueza e a pobrezaO romance Memorial do Convento, de Jos Saramago, representa uma investida no campo da narrativa histrica. A obra percorre um perodo de aproximadamente 30 anos na histria de Portugal durante a poca da Inquisio. O autor critica Portugal que submetia o povo explorao e misria, apesar da riqueza fecunda do pas. As suas personagens esto divididas entre a sofisticao da Corte e a simplicidade da vida popular. Nestes dois grupos distintos, Jos Saramago trata as personagens femininas de forma especial, mostrando os seus diferentes comportamentos.

Duas mulheres: duas formas diferentes de ver a vidaAtravs da personagem chamada Blimunda e por meio da sua capacidade extraordinria de ver o que realmente h no mundo, o narrador pode olhar por dentro da histria do sculo XVIII e enxergar verdadeiramente os deslizes religiosos e morais mostrando a corrupo da Igreja, os excessos da nobreza, bem como o investimento carssimo de D. Joo V na construo do Convento de Mafra, a aco da Inquisio, instalada em Portugal para atender os interesses da Coroa, visando o seu enriquecimento atravs dos bens tomados aos judeus e a imagem verdadeira de uma sociedade que escondia suas fragilidades: a sujeira, as doenas e, sobretudo as grandes diferenas sociais.

D. Maria Ana Josefa a rainha triste e insatisfeitaA personagem D. Maria Ana apresentada como uma rainha triste e insatisfeita que vive um casamento de aparncias, onde as regras e as formalidades se estendem at o leito conjugal, fazendo do acto de amor com el-rei um encontro frio, programado e indiferente, que tem como maior objectivo o milagre da fecundao. sobretudo este aspecto que leva el-rei D. Joo V a fazer uma promessa de levantar um convento em Mafra, caso a concepo ocorresse. Dona Maria Ana estende ao rei a mozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar glido do quarto, e el-rei, que j cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforo com que o cumpriu, beija-lhe como a rainha e futura me, se no presumiu demasiado frei Antnio de So Jos.Essa carncia deixa rainha somente a possibilidade de realizar os seus desejos atravs dos sonhos nocturnos que tem com o seu cunhado. E tambm por essas fraquezas e por se sentir culpada, que ela procura, atravs da orao constante, redimir-se. Porm, Vossa Majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, verdade que sonho, so fraquezas de mulher guardadas no meu corao. E, assim, D. Maria Ana vive pressionada pela responsabilidade de dar herdeiros ao marido, j que a culpa de tal ainda no ter acontecido dela, pois a esterilidade como o narrador lembra ironicamente, no problema dos homens alis, o que se v na Corte um nmero considervel de bastardos, o que prova a virilidade do rei. Nesse ambiente onde as proibies e as represses ditadas pela Igreja e pelo Estado interferem directamente no comportamento das personagens, pois a elas proibida qualquer atitude que fuja aos padres do modelo de famlia

exigidos pela sociedade. No meio do luxo e da riqueza D. Maria Ana vai acumulando dentro de si uma sensualidade que no pode explorar, j que seus encontros sexuais com el-rei representam unicamente o cumprimento do dever conjugal. A ela cabe, como a todas as esposas, unicamente, a passividade da vida.

Blimunda: a simplicidade e o amor verdadeiroMas personagem feminina Blimunda, Jos Saramago d caractersticas fortes de sensualidade e de inteligncia. Atravs de Blimunda, o autor trata as grandes dvidas e as grandesinquietaes do ser humano em relao morte, ao amor, ao pecado e existncia de Deus. Ela representa a vida do povo. Blimunda verdadeira, sem subterfgios, mulher de poderes sobrenaturais, cuja me, Sebastiana Maria de Jesus, por ter poderes semelhantes, vista como feiticeira e por isso banida para Angola depois de ser salva do fogo da Inquisio. Blimunda vive de forma livre num mundo onde no h regras nem formalidades que a escravizem. Ela o oposto da rainha que vive num mundo diferente. Um mundo em que recebe do padre seu confessor ensinamentos para resignar-se com as traies do marido, inclusive aquelas cometidas com as freiras nos mosteiros, a quem ele emprenha uma aps outra. Blimunda o que . Apesar da vida simples e muito pobre -lhe dado o direito ao amor, liberdade e felicidade.Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sis: um amor para sempre. O encontro de Blimunda com Baltasar Sete-Sis, um soldado que perdeu a mo esquerda na guerra de sucesso pelo trono espanhol, acontece durante uma procisso de um auto-de-f, espectculo da Inquisio, onde a me de Blimunda iria ser condenada a oito anos de degredo no reino de Angola. A sensibilidade flor da pele leva essas duas mulheres, me e filha, a comunicarem-se mentalmente, j que no se podem aproximar uma da outra. As vises de Sebastiana indicam que aquele homem maneta que ela v, seria o verdadeiro companheiro da sua filha, por isso inspira Blimunda a perguntar ao desconhecido "Que nome o teu?". Blimunda obedece ordem mental da sua me que contribui, dessa forma, para que a relao de unio e de paixo nicas, comece naquele momento. Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha me o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela no pudeste falar, Sei que sei, no sei como Sei, no faas perguntas a que no posso responder, faz como fizeste, Vieste e no perguntaste porqu.A profundidade e a expressividade do olhar de Blimunda perturbam e encantam Baltasar. A atraco entre os dois inevitvel a partir desse momento e at ao final. Baltasar Mateus, o Sete-Sis, est calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estmago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e s vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lasca de carvo de pedra. (...) mas agora s tem olhos para os olhos de Blimunda, ou para o corpo dela, que alto e delgado como a inglesa que acordado sonhou no preciso dia em que desembarcou em Lisboa. Blimunda, com o seu olhar de mistrio, envolve Baltasar, que, logo no incio, percebe estar diante de uma mulher muito especial, algum que pode ver muito alm do que os olhos podem alcanar. Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que no o fars e j o fizeste.Blimunda permite-se estar com Baltasar sem perguntas e sem porqus. A sua pureza entregue a ele, por amor, da forma mais simples e mais apaixonada, sem compromisso, sem culpas. A sua capacidade de ver por dentro deixa-a certa de que com aquele homem dividir toda uma vida sem problemas. Apesar de sentir-se encantado por ela, Baltasar na sua simplicidade no consegue entend-la. A magia que envolve Blimunda deixa-o curioso. Uma mulher que come po ao acordar, antes de abrir os olhos, porqu? Ele procura respostas em algum inteligente e estudioso, como o Padre Bartolomeu de Gusmo, conhecido como " o Voador ". Mas este apenas declara: S te direi que se trata de um grande mistrio, Voar uma coisa simples comparado com Blimunda. Ver por dentroA cumplicidade e a fidelidade entre Blimunda e Baltasar faz com que ela o confesse:

" Eu posso olhar por dentro das pessoas ". Ela que s tem tais poderes se estiver em jejum, por isso come antes de abrir os olhos. Da Blimunda, numa atitude amorosa e protectora poupar Baltasar e a ela mesma quando promete que nunca o ver por dentro. Blimunda inteligente e conhece as diferenas entre ela e a me no tocante s vises que ambas possuem. O meu dom no heresia, nem feitiaria, os meus olhos so naturais. Diferentemente de Sebastiana, que tem poderes sobrenaturais, Blimunda no v o futuro, ela s v o que est no mundo. V tudo aquilo que est dentro dos corpos, no interior da terra, por debaixo da pele. Na sua singular sabedoria, Blimunda reconhece que no v a alma, talvez porque esta no esteja dentro do corpo. Diante da incredulidade de Baltasar, os poderes de Blimunda fazem-na ver:um filho na barriga de uma mulher, cujo cordo umbilical est enrolado no pescoo;

uma pessoa com o estmago vazio;

um frade que leva nas tripas uma bicha solitria;

uma moeda de prata que reconhecida por Baltasar como moeda de ouro, ao fazer um buraco no lugar indicado por ela.Na sua simplicidade, ela declara que confunde ouro com prata. Blimunda no se deixa

envaidecer pelos poderes que possui, pelo contrrio, prefere a naturalidade da vida, prefere ter o seu homem sem nunca o querer olhar por dentro. Baltasar, leva-me para casa, d-me de comer e deita-te comigo, Porque aqui adiante de ti note posso ver, e eu no te quero ver por dentro, s quero olhar para ti, cara escura e barbada, olhos cansados, boca que to triste, mesmo quando ests ao meu lado deitado e me queres(...) Convite do autor ao leitor para uma reflexo profunda.O romance Memorial do Convento faz-nos analisar o quanto a capacidade de ver verdadeiramente as coisas esto distantes de ns, porque na verdade, s vemos o que nos interessa, o que ns queremos. Blimunda era especial. Ela podia ver o que as pessoas comuns no podem ver: a essncia, a verdade das coisas. E isso consiste em ver tambm o que desagradvel, o que sujo e triste, o que todos ns preferimos no ver.

A metfora da nuvem fechada

A ela no importavam os conceitos pr-estabelecidos, os dogmas, os ensinamentos recebidos. Ela questiona os santos, no consegue conceber santidade em pessoas comuns. Fica surpreendida quando, em jejum, no consegue ver Deus na hstia. O que v uma nuvem fechada, ou seja, o mesmo que v dentro dos seres humanos. No entende essa religio crist que prega a divindade e a glria de Deus atravs de smbolos como a hstia e as esttuas dos santos. Blimunda tem convices sobre o pecado, a vida e a morte, que so diferentes do pensamento da maioria das pessoas comuns. Ela v alm, muito alm das pobres crenas restritas que so praticadas pelos outros. Blimunda e Baltasar cometem pecados de luxria, so concubinos, vivem em casamento sem serem sacramentados pela Igreja. Eles preferiram outro sacramento: a cruz e o sinal feito por ela com o sangue da virgindade quando estavam no primeiro momento de amor. Uma espcie de ritual de sangue, onde os dois se casam, desafiando as normas da religio. E, com firmeza, ela diz: No tenho pecados a confessar.O Padre Bartolomeu de Gusmo, a construo da passarola e a InquisioA atitude de transgredir os valores religiosos leva o autor a envolver Blimunda e Baltasar no projecto de construo da passarola, um sonho pessoal do Padre Bartolomeu de Gusmo, chamado de O Voador. O Padre com a autorizao e ajuda do rei vai ocupar-se na construo de uma mquina que pudesse voar. Para convencer Baltasar a ajud-lo, j que este se considerava incapaz, em consequncia da deficincia fsica: a falta da mo esquerda, o Padre blasfemando contra os princpios religiosos declara a Baltasar, deixando-o assustado, que Deus tambm maneta e foi capaz de criar o universo. Que est a dizer, Padre Bartolomeu, onde que se escreveu Que Deus maneta. Ningum escreveu: no est escrito, s eu digo que Deus no tem a mo esquerda, porque sua direita, que se sentam os eleitos, no se fala nunca da mo esquerda de Deus. Saramago transforma o Padre Bartolomeu num grande "pecador" aos olhos do sculo XVIII, pelo orgulho e pela ambio ao desejar levantar uma mquina aos cus, onde apenas Cristo, aVirgem Maria e outros santos subiram. Que seria do Padre se as autoridades da Igreja o encontrassem na companhia de um maneta e de uma feiticeira construindo uma passarola?Blimunda toma parte na construo da mquina acompanhando Baltasar. Ela inspecciona a obra e quando est em jejum v defeitos, rachaduras, coisas que as outras personagens no podem ver. Este ferro no serve, tem uma racha por dentro. Como que sabes, Foi Blimunda que viu, o Padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou, Tu s Sete-Sis porque vs, s claras, tu sers Sete-Luas porque vs s escuras.Blimunda e a recolha das vontadesMas a grande misso de Blimunda no projecto da construo da passarola usar o poder que possui, a pedido do Padre Bartolomeu, para recolher as vontades que se separam das pessoas que esto prximas da morte, no as deixar perder ou subir s estrelas. Era preciso guard-las para que depois de armazenadas num frasco pudessem possibilitar a subida da mquina aos cus. A capacidade de Blimunda em ver por dentro das pessoas tem um papel muito importante na histria deste romance de Saramago, pois propicia a concretizao do sonho de voar do Padre Bartolomeu.

Mas o principal objectivo do narrador desconstruir os conceitos religiosos no que se refere existncia do esprito, negando que este suba aos cus aps a morte do corpo, j que Blimunda era capaz de segur-los ainda em terra. A certeza de Blimunda de que poderia faz-lo estende-se ao momento mais triste no final do romance, quando aps nove anos de incansvel procura por Baltasar depois de este ter desaparecido, ela encontra-o em circunstncias trgicas, pronto para ser queimado na fogueira condenado pelo poder da Igreja. Tambm nesse momento, contrariando o que havia prometido anteriormente que era de no o ver por dentro.

Assim, no momento final da obra, e de uma forma bastante tocante para ns leitores, Blimunda v uma nuvem negra dentro de Baltasar e no permite que a vontade dele suba aos cus, chamando-a para si.

Explicao da simbologia da personagem Blimunda

A personagem Blimunda usada pelo autor para mostrar suas incredulidades em relao ao clero, nobreza, aos falsos conceitos morais da poca ( e no s!). E usando esta constante ironia que ele rev todo o passado inquisitrio de Portugal, chamando a ateno para esses factos marcantes.

Blimunda descobre novos valores que ultrapassam os limites da poca, atravs de

questionamentos e incertezas que ela possui. Ela est frente do seu tempo e isso possibilita ao autor falar, pensar e reflectir atravs da personagem sobre tudo aquilo que o incomoda. Ele d fora, autoridade e posio de destaque s pessoas mais comuns do povo. Os que no tinham voz e os que eram oprimidos permitindo que o povo tenha poder quando d a Blimunda a capacidade de recolher as vontades dos homens. E o que mais importante no romance e que nos leva reflexo, atravs de Blimunda, a importncia de olharmos e vermos o mundo de forma verdadeira, sem mscaras, sem hipocrisia e isso s permitido s pessoas sensveis, quelas que entendem que nem sempre ter olhos saber ver. , portanto, pertinente recordar que: "Usa cada qual os olhos que tem para ver o que pode ou lhe consentem, ou apenas parte pequena do que desejaria."Uma proposta de leitura de Memorial do Convento

E assim, revendo o passado com o olhar crtico da actualidade, Jos Saramago convida-nos, a ns leitores, a questionar o sentido das coisas, das nossas vidas, no nos deixando submeter-nos passivamente aos modelos de comportamentos sociais que nos so impostos, mas sim questionar valores verdadeiros de amor. Para Saramago, a verdade no est com os mais ricos e poderosos nem com a Igreja, muito menos com o Santo Ofcio. Mas se h verdade, ela s pode estar do lado dos mais simples, dos que tm o corao puro e livre. preciso vencer a cegueira e viver intensamente.