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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
O Paiz e a Gazeta Nacional: Imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888.
Andréa Santos da Silva Pessanha
Niterói 2006
Andréa Santos da Silva Pessanha
O Paiz e a Gazeta Nacional: Imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, da Universidade Federal Fluminense para obtenção do título de Doutor em História.
Orientador: Prof. Dr. Humberto Fernandes Machado
Niterói 2006
Andréa Santos da Silva Pessanha
O Paiz e a Gazeta Nacional: Imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888
BANCA EXAMINADORA
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Não há ideal que não seja impelido por uma grande paixão. A razão, ou melhor, o raciocínio
que produz argumentos pró e contra para justificar as escolhas de cada um diante dos demais, e
acima de tudo diante de si mesmo, vem depois. Norberto Bobbio, 1995
AGRADECIMENTOS
Ao término desta empreitada, os agradecimentos talvez sejam a parte mais
delicada, pois sei o quanto foi crucial o apoio de pessoas e instituições para a
realização de minha meta. Reconhecendo a injustiça em algumas omissões,
agradeço a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a concretização
deste projeto.
Humberto Fernandes Machado, meu querido orientador, foi mais que um
interlocutor intelectual. Nesta relação iniciada em 1993, tem sido um grande amigo.
Nos momentos de fragilidade e ansiedade – e confesso que em meu caso foram
muitos - podia contar com suas palavras de estímulo e com seu olhar que passavam
confiança.
Eduardo Silva e Marialva Barbosa foram cruciais na Qualificação. Fizeram
pontuais críticas e sugestões quando o trabalho estava em seu momento
embrionário.
A Guilherme Pereira Neves, agradeço a confiança em meu trabalho e o apoio
quando necessário.
Claudia Rodrigues, Anderson Oliveira e Márcio Branco foram leitores críticos
do texto final. Com eles, troco desde a graduação. Especialmente com Cláudia,
amiga de infância, divido os momentos de incerteza, de alegria, de erros e de
acertos, além de ser sua fã.
Aos professores do Departamento de História da UFF, pela sólida formação
desde a graduação, em particular a Hebe Mattos, Margarida Neves, Martha Abreu,
Sônia Mendonça, Vânia Fróes e Virgínia Fontes.
Algumas pessoas foram de extremo valor pelo estímulo, respaldo e exemplo.
Assim, expresso meus eternos agradecimentos a Claudia Fabiana, Denise Oliveira,
Giuliano Flor, Glória Machado, Isabel Andréa, Keila Grinberg, Lenice da Silva,
Santana, Sérgio Schermann, Solange Nascimento, Stella Maris e aos amigos da
E.T.E. João Luiz do Nascimento, que não fogem à luta.
Novamente, dedico meu trabalho a meus pais, Andrelina e José, a meu filho,
Welington e a meu companheiro, João. A eles, não posso simplesmente agradecer,
tenho mais uma dívida a pagar por conta de minhas ausências e tensões. A
realização desta atividade - e de qualquer outra em minha trajetória – fica mais
eficiente e prazerosa porque tenho o apoio deles. João, recente professor de
História, também contribuiu para os acertos do texto final.
Para todos, um forte abraço!
SUMÁRIO
RESUMO 8 ABSTRACT 9 RESUMÈ 10 INTRODUÇÃO
11
Capítulo 1 - IMPRENSA: OLHANDO PARA O OITOCENTOS
16
1.1. Imprensa, república e abolição 16 1.2. Imprensa e a (re)construção do fato 28 1.3. Eis a missão do jornalismo 48 Capítulo 2 - GAZETA NACIONAL E O PAIZ: JORNAIS DO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA
61
2.1. A Geração de 1870 61 2.2. Jornais de uma geração 73 2.3.Periódicos republicanos e abolicionistas? 85 2.3.1. Basta amar a liberdade 85 2.3.2. Onde não tumultuam os interesses partidários 93 Capítulo 3 - CONSTRUINDO A MEMÓRIA DA ABOLIÇÃO
101
3.1. Imprensa, abolição e paternalismo 101 3.2. Entre escravos e princesa 118 3.3. Entre republicanos da Corte 125 Capítulo 4 - CIDADANIA E ABOLIÇÃO
138
4.1. O caso Castro Malta 138 4.2. Liberalismo, cidadania e abolição 151 Capítulo 5 - ESCRAVOS, LIBERTOS E NAÇÃO
169
5.1. Etnocentrismo científico, liberalismo e nação 169 5.2. Em condições de escravidão e de liberdade 180 5.2.1. Índole pacata 185 5.2.2. Desvarios de senhores, escravos e libertos 194 CONSIDERAÇÕES FINAIS
201
FONTES
203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 204
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888.
8
RESUMO
O tema deste estudo é a relação entre república e abolição da escravatura,
existente na imprensa republicana da cidade do Rio de Janeiro, entre 1884 e 1888.
Os discursos sobre o fim do cativeiro e sobre o escravo veiculados nos jornais O
Paiz e a Gazeta Nacional constituem o objeto específico.
Pretendo compreender como os critérios de cidadania e de pertencimento à
nação brasileira foram construídos, nestes jornais, a partir da articulação dos
princípios do liberalismo e do etnocentrimo científico.
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888.
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ABSTRACT
The theme of this research is the relationship between republic and slave
abolition seen through the republican press of the city of Rio de Janeiro between
1884 and 1888. The specific aim is the analysis of discourses on the end of captivity
and on the slave himself presented by the newspapers O Paiz ant the Gazeta
Nacional .
I intend to understand how criteria such as citizenship and belonging to the
brazilian nation were developed, in those newspapers, by the articulation of liberal
and scientific ethnocentrism principles.
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888.
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RESUMÉ
Le thème de cette recherche c´est le rapport entre la république et l´abolition
de l´esclavage, vu à travers la presse republicaine de la ville de Rio de Janeiro, entre
1884 et 1888. Le sujet spécifique est l´analyse des discours sur la fin de la captivité
et sur l´esclave qu´on voit aux journaux O Paiz et la Gazeta Nacional.
Je veux comprendre comment des critères de citoyenneté et
d´appartennance à la nation brésilienne furent construits dans ces journaux, à partir
de l´imbrication des principes du liberalisme et de l´ethnocentrisme scientifique.
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888.
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INTRODUÇÃO
O discurso veiculado sobre a abolição da escravatura e sobre o negro na
imprensa republicana da cidade do Rio de Janeiro, entre 1884 e 1888, é o tema
desenvolvido ao longo dessas páginas. Os artigos voltados para o fim do cativeiro
publicados nos jornais O Paiz e Gazeta Nacional são meu objeto específico de
estudo.
Pretendo mostrar que, muito embora a associação entre república e abolição
fosse evitada pelos contemporâneos (ora pelos integrantes do movimento
abolicionista, ora pelos do movimento republicano), esta relação ocorria na imprensa
da Corte, particularmente nos jornais O Paiz e a Gazeta Nacional, que através da
reconstrução dos fatos apresentavam pontos de tensão entre defensores da
república e da abolição no Rio de Janeiro.
Através das narrativas construídas sobre o processo de abolição da
escravatura e das imagens veiculadas sobre o escravo, analiso os critérios de
cidadania e de pertencimento à nação brasileira, que se pretendia aprimorada,
colocados por estas elites influenciadas pelo liberalismo e pelo etnocentrismo
cientítico.
A delimitação espacial, deste estudo, é a cidade do Rio de Janeiro. A Corte,
desde a segunda metade do oitocentos, apresentou-se como uma cidade
cosmopolita1. Era sede do governo monárquico e principal cidade comercial. Através
de seu porto, entravam produtos e idéias originadas da Europa. A cidade abrigava o
1 Com uma população total de 274.972 habitantes (censo, 1872), era a maior cidade da América do Sul. HAHNER, Juner. Pobreza e política. Os pobres urbanos no Brasil.1870-1920. Brasília: Ednub, 1993, pp. 15-48.
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Parlamento, a Escola Militar, a Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina, o
Colégio Pedro II, a Academia Imperial de Medicina, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, o Museu Nacional, atraindo, assim, jovens das demais províncias em
busca de formação escolar e possibilidades de carreira.
Por pensar a formação e o dito aprimoramento da nação brasileira,
engenheiros, médicos, advogados e jornalistas da cidade do Rio de Janeiro
produziram discursos que tinham um caráter civilizador e disciplinador. A imprensa
foi um espaço privilegiado da divulgação dessas idéias, possuindo também feições
de uma verdadeira tribuna política.
A partir dos anos oitenta, esses intelectuais, que discordavam da política
centralizadora ou do regime de trabalho vigente no Império, ajudaram a constituir
uma cultura política que trazia debates, até então restritos ao Parlamento, para a
esfera pública, através de comícios, viagens de propagandas, conferências, festas
beneficentes e, principalmente, por meio dos jornais2.
O recorte cronológico está centrado entre 1884 e 1888. O ano de 1884 é
interessante, para este estudo, por conta do debate ocorrido no parlamento sobre a
Lei dos Sexagenários, que estimulava publicações na imprensa sobre o escravo e
sobre o processo de abolição da escravatura no Brasil. O marco final permite que se
observe as narrativas construídas, sobre os temas aqui privilegiados, na fase
imediatamente anterior e posterior ao 13 de Maio.
O percurso dos jornais escolhidos também está relacionado a essa opção. O
Paiz foi fundado em 1884 e até 1899 contou com a presença do chefe do Partido
2 GRAHAM, Sandra. “O Motim do Vintém e a cultura política do Rio de Janeiro, 1880” in Revista Brasileira de História, vol. 10, número 20, março/agosto de 1991.
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Republicano, Quintino Bocaiúva, em sua redação. A Gazeta Nacional circulou nos
anos de 1887 e 1888, tendo Aristides da Silveira Lobo, também um expoente do
movimento republicano, como seu redator.
A escolha dos jornais O Paiz e Gazeta Nacional está vinculada à participação
de lideranças do movimento republicano em suas redações, homens que, inclusive,
integraram o Governo Provisório logo após a Proclamação da República. O Paiz,
que no período afirmava ter uma tiragem de onze mil exemplares, atravessou com
solidez todo a fase deste estudo. Não foi uma folha de efêmera existência,
permitindo analisar o discurso veiculado sobre a abolição e sobre o escravo desde
meados da década de oitenta. A Gazeta Nacional, que tinha por subtítulo Órgão
Republicano, teve curta duração, mas sua fase coincide com o período de maior
agitação, mobilização em torno da abolição da escravatura.
Abolicionismo, movimento republicano e questão nacional são temas visitados
com freqüência pela historiografia. Contudo, a articulação entre os três, em particular
por meio da atuação imprensa republicana, ainda é um campo a ser explorado.
Mesmo com as recentes produções, segundo Célia Maria Marinho de Azevedo, “os
estudos sobre abolicionismo no Brasil estão ainda pouco desenvolvidos”3. Esta tese
pretende contribuir para o aprofundamento da temática, apresentando a seguinte
estrutura de texto:
O primeiro capítulo trata dos pontos de interseção e de afastamento dos
movimentos abolicionista e republicano na cidade do Rio de Janeiro, que podem ser
verificados através da imprensa. Mostra que as duas campanhas, intencionalmente,
3 Abolicionismo no Brasil. Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, p.30.
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não se confundiram, mas a despeito dessas estratégias políticas dos
contemporâneos, em O Paiz e na Gazeta Nacional, elas foram debatidas e
articuladas. Também aborda as características da imprensa de então, enfatizando a
imagem que esses jornalistas procuravam difundir de seu papel e dos periódicos. O
texto tem um cunho teórico-metodológico ao discutir os jornais como objeto e fonte
de estudo pela historiografia.
O segundo capítulo analisa O Paiz e a Gazeta Nacional como obras da
geração de 1870. Assim, representavam seus anseios, visões de mundo e
estratégias de ação política. Discute o caráter republicano e o abolicionista destas
folhas, não a partir de como se auto intitulavam, mas considerando o dito e o não
dito, o explícito e o implícito nos artigos veiculados.
O terceiro analisa o significado do paternalismo como estratégia difundida
pelos jornais para o alcance da abolição da escravatura. A partir deste conceito,
enfoca como a ação dos escravos foi apresentada pelos jornais, na tentativa de se
criar a própria memória da abolição, envolvendo agentes como o cativo, a princesa
Isabel e os republicanos do Rio de Janeiro.
O quarto analisa como o liberalismo influenciou o discurso sobre a abolição
da escravatura apresentado nos periódicos. Busca mostrar que foi a partir da
valorização dos direitos civis, da valorização da liberdade individual que uma
argumentação favorável à abolição foi construída, discordando da interpretação
centrada somente na lógica dos interesses nacionais. Defende que a preocupação
com o desenvolvimento do país sustentou os artigos sobre a abolição veiculados em
O Paiz e na Gazeta Nacional, contudo uma lógica liberal centrada nos direitos
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inalienáveis do homem à liberdade foi significativa nos discursos pelo fim do cativeiro
no Brasil.
O último capítulo estuda como as teorias raciais científicas, que entraram no
Brasil, a partir da década de setenta, foram lidas e articuladas no discurso sobre a
abolição e sobre a nação veiculados na Gazeta Nacional e em O Paiz. A partir de
tais leituras, aborda a visão destas folhas sobre o negro e sobre a questão nacional.
A análise das narrativas, ou seja, a busca da desconstrução de enunciados, é
a forma utilizada, neste trabalho, para empreender a compreensão dos textos
publicados nesses jornais. Através dela, ficarei atenta ao dito, ao não dito e ao
interdito sobre a relação república e abolição nos jornais O Paiz e a Gazeta
Nacional.
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1 – IMPRENSA: OLHANDO PARA O OITOCENTOS
Os jornais são objeto e fontes privilegiadas de pesquisa para o historiador, em
particular, para aquele que se debruça sobre o século XIX brasileiro. A partir dos
periódicos, questões como a relação autor/leitor, as interferências na construção
textual, os significados dos artigos mediante seu contexto imediato de produção e
circulação podem ser analisados.
A imprensa constitui um excelente canal de observação das possibilidades de
encontro entre o movimento republicano e o abolicionista promovido pelos
intelectuais da Corte, pois foi uma tribuna na qual esses homens apresentaram e
divulgaram valores, idéias e projetos para o país, travaram polêmicas e garantiram
espaço de projeção política.
1.1. Imprensa, república e abolição.
Diariamente chegam-nos adesões de fazendeiros das
províncias do Sul. Qual o motivo dessa rápida reviravolta de opinião da classe mais conservadora do país? É fácil descobri-lo e não hesitamos em apontá-lo: a próxima abolição da escravidão.
Desde já sentimos que os jornais governistas nos fazem um crime dessa adesão à causa republicana, e passam quase indignados frente à singela franqueza com que dizemos: sim, os fazendeiros declaram-se republicanos, porque os seus escravos vão
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em breve ser-lhes arrancados. É isto que eles próprios declaram; e ainda ontem, pelo Jornal do Commercio, um agricultor de Valença proclamava-o publicamente.
Mas quererá isso dizer que um só coração republicano desejasse o retardamento da solução abolicionista? As tradições de nosso partido negá-lo em absoluto; a indefesa e intrépida dedicação que em todo o Brasil os nossos correligionários têm mostrado pela causa dos escravos desmentiria formalmente esta injuriosa hipótese.1
Este texto foi publicado em 1888 na Gazeta Nacional e foi significativo para o
momento histórico em que ocorreu o processo de abolição da escravatura e a
propaganda republicana. No Brasil, o movimento republicano e o abolicionista
integraram um mesmo contexto. Em 1870, o Manifesto Republicano foi divulgado
pelo Partido Republicano na Corte, portanto, no ano anterior à Lei do Ventre Livre. O
fim da monarquia foi um ano após a Lei Áurea. Mediante a este quadro, os jornais
poderiam oferecer mais ênfase ao término da escravidão ou à república, poderiam
assumir como causa primeira a questão social - a abolição - ou a questão política -
a república (para utilizar expressões do jornalista republicano Quintino Bocaiúva),
porém não poderiam ignorar temas que envolviam o destino do país e exaltavam os
ânimos.
No Brasil, a adesão ao movimento republicano foi impulsionada pelo desgaste
do sistema parlamentar do Segundo Reinado e pelos interesses de grupos políticos
e econômicos que não se sentiam satisfeitos com a centralização, fazendo críticas
ao Poder Moderador e defendendo o federalismo.2 A estrutura política construída
1 “Conversões republicanas entre os lavradores” in Gazeta Nacional, 27 de abril de 1888, p.2. 2 De acordo com Lincoln de Abreu Penna: “A adesão dos setores da elite à República não teve, no Brasil, um sentido de repúdio ao regime monárquico como na França revolucionária. Pesou muito o próprio desgaste do sistema de governo dos gabinetes do Segundo Reinado, em geral, insensíveis às reivindicações da corporação militar e do mundo político e parlamentar. Mesmos os fundamentos
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pelos conservadores permaneceu praticamente inalterada até 1870. A pressão do
Partido Liberal pela reforma eleitoral e judiciária e a perda progressiva de
legitimidade da instituição escravista acentuaram a tensão no interior das elites.
Mas, a crise política, que levou à fundação do Partido Republicano em 1870, ocorreu
por fissuras entre os membros da própria elite imperial3.
A Proclamação da República no Brasil não foi um processo revolucionário que
contou com a participação popular e que desencadeou uma reestruturação da vida
econômica e social do país. Pensar no 15 de Novembro é pensar numa
“quartelada”.4 Entretanto, existiram projetos distintos de república durante a
campanha, que não foram implementados ou vitoriosos com a rotinização do regime
republicano a partir da ascensão de Campos Sales5.
Quando o Manifesto Republicano do Rio de Janeiro foi divulgado em 1870, a
adesão ao grupo que pretendia o regime republicano não ocorreu em todas as
províncias6. Houve a fundação de clubes e jornais, mas sem longevidade. Nos anos
setenta, o movimento não se consubstanciou. O grupo, inclusive, sofreu um
esvaziamento com o retorno dos liberais ao ministério, em 1878, com o gabinete de
João Lins Cansanção Sinimbu7. Signatários do Manifesto como Lafaiete Rodrigues
doutrinários do republicanismo foram postos de lado, em nome de interesses mais pragmáticos (...)” in República brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.33 CASTRO, Celso. Os militares e a república. Um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. 3 ALONSO, Ângela. Idéias em movimento. A geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 65-75 4 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. A esperança e o desencanto: Silva Jardim e a República. Tese de Doutorado, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2004, p.11. 5LESSA, Renato. A invenção republicana. Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. Rio de Janeiro: IUPERJ; São Paulo: Vértice, 1988. 6 NEVES, Lúcia M.B.P. & MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 400. 7 “Com o ministério Rio Branco, em que a monarquia apareceu recuperar muito prestígio perdido nos anos da guerra, e principalmente depois da reviravolta de 68, faltavam condições para um progresso
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Pereira, Cristiano Otoni e Salvador Mendonça voltaram para as fileiras do Partido
Liberal8.
O Partido Republicano de São Paulo não perdeu solidez com os gabinetes
liberais. Para tanto, colaboraram a ação de Campos Sales - enfatizando que a
descentralização e o espaço político pretendidos não seriam viabilizados pela
participação no Ministério - e a aproximação dos paulistas com o Partido
Conservador. Esta aliança provisória, muito embora possa ter uma aparência
esdrúxula, favoreceu a independência dos paulistas em relação ao Partido Liberal9.
A consistência do PRP na década de oitenta, enquanto nas demais províncias o
grupo estava fragmentado, esteve ligada a esta autonomia.10
Na segunda metade da década de oitenta, o movimento tomou fôlego com a
formação de novos clubes e jornais republicanos. Em 1886, Quintino Bocaiúva e
Ubaldino de Amaral concorreram à Câmara dos Deputados, mas não foram eleitos.
Ano em que, com o apoio da Confederação Abolicionista, José do Patrocínio foi
eleito vereador. Em 1888, na Corte, Quintino Bocaiúva foi novamente derrotado na
eleição para a Câmara dos Deputados.
substancial do movimento que tinha em mira a derrocada do regime. A ascensão, novamente, dos liberais, em 1878, [...] pareceu a alguns tendente a arrefecer mais ainda o desenvolvimento da idéia republicana, dando lugar à manifestações adesistas por parte de partidários da mudança de regime” in HOLANDA, Sérgio Buarque. O Brasil monárquico: do Império à república. Coleção História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.263 8BASBAUM, Leôncio. História sincera da república. Das origens a 1889. São Paulo: Alfa-Omega, 1986, p. 208. 9 “[...] De agora em diante, é de preferência com o Partido Conservador que os republicanos se aliam, contra os governos liberais que vão se suceder no poder (salvo sob os ministérios Cotegipe e João Alfredo) até o colapso do regime. A aliança explicável, em grande parte por interesses comuns a grupos que se acham na oposição, provocou estranheza e gestos de reprovação [...] [...] do ponto de vista do Partido Republicano, a aliança foi mais benéfica do que a antiga promiscuidade com os liberais, por isso mesmo que o livrava da quase tutela que sobre ele exercia o partido mais antigo, e onde muito dos seus membros tinha militado antes de 1870 .” in HOLANDA, Sérgio Buarque. op. cit., p.264. 10 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. op, cit., p.34.
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O Partido Republicano, durante a campanha, não teve uma organização
nacional. Os objetivos em cada província eram colocados a partir das oligarquias
regionais e dos interesses dos grupos ali envolvidos11. A tentativa de buscar a
unidade através dos congressos de 1887, 1888 e 1889 - os dois primeiros no Rio de
Janeiro e o último em São Paulo - ofereceu ao Partido uma organização nacional só
no nome12.
A centralização administrativa e a existência do Poder Moderador foram o
cerne das críticas dos republicanos à monarquia, que já estavam presentes no
documento fundador do Partido, o Manifesto de 1870. Em São Paulo e no Rio
Grande do Sul, províncias que contaram com grupos republicanos que enfatizavam
a defesa do federalismo, essas duas questões sustentaram o movimento e
unificaram os discursos mais do que entre os republicanos da Corte.
Em geral, para os republicanos do Rio de Janeiro, o sentido de república era
de comunidade política ideal, sedimentada na independência e na virtude dos
cidadãos, regenerando o país dos vícios do servilismo próprio do regime
monárquico. Para os militantes do Rio Grande do Sul e São Paulo, república era
entendida, essencialmente, como regime moderno e americano em oposição à
monarquia, promovendo o federalismo.13
Nos jornais Gazeta Nacional e O Paiz, o sentido da república não aparecia na
forma estreita, ou seja, não significava simplesmente a defesa de uma forma de
11PENNA, Lincoln de Abreu. op. cit., p.33. 12 BASBAUM, História sincera da república. Das origens a 1889. São Paulo: Alfa-Omega, 1986, p. 218-219. 13 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. op. cit., p.35.
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governo que se contrapunha à monarquia14. Ela aparecia como uma forma de
governo com um caráter curativo para o Brasil, referia-se ao campo das virtudes. Se
os objetivos eram estabelecer uma nação mais civilizada, república e abolição
podiam ser consideradas como complementos, conforme afirmou a Gazeta Nacional:
Somos de opinião que a imprensa deve, se nos permitem a
figura, refletir os diversos matizes que caracterizam a sociedade. Ao tratar-se da ingente reforma e supressão da escravatura
em nossa pátria, foi nosso parecer que devia ela arrastar consigo o trono e as instituições que a favoreceram e dela hauriram vida e selva.
[...] É nossa crença indestrutível que a libertação dos escravos só
podia efetuar-se simultaneamente a nossa emancipação política15.
A crítica central dos republicanos do Rio de Janeiro à monarquia voltou-se ao
Poder moderador, visto como elemento da vontade pessoal do reinante ou de uma
família em oposição à república. Entendida, por si só, como democracia, a república
seria o regime das virtudes, dos talentos, onde as capacidades individuais seriam
sobrepostas aos privilégios de nascimento e ao servilismo16.
O Partido Republicano no Rio de Janeiro era composto, basicamente, por
profissionais liberais. Advogados, médicos, professores, engenheiros e jornalistas
constituíam 63% do grupo17. Em termo sócio-profissional, coincide com a base da
campanha abolicionista. O movimento republicano da Corte foi multifacetado. A
14 Uma diferenciação entre os dois sentidos fundamentos de república adotados no final do século XIX no Brasil, encontramos em FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. op. cit., p.9 15 “A situação”, in Gazeta Nacional, 22 de maio de 1888, p.1. 16 “A educação profissional”, in O Paiz, 14 de junho de 1888, p.1. 17CARVALHO, José Murilo de. “Os partidos imperiais: composição e ideologia.” In A construção da ordem. A elite política imperial. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996, p.194.
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rigor, várias correntes se apresentaram na década de oitenta, levantando
possibilidades diferentes de se pensar a república no Brasil. Liberais republicanos
como Quintino Bocaiúva, positivistas ortodoxos como Miguel Lemos e não ortodoxos
ligados à Escola Militar como Benjamim Constant indicavam as vertentes dos grupos
republicanos no Rio de Janeiro. Escravocratas e abolicionistas, militares e civis,
profissionais liberais e estudantes passaram a engrossar a campanha nos últimos
anos da monarquia.
Por mais que tenham se dado num mesmo contexto histórico e implicassem
em algumas debates simultâneos, no discurso oficial do Partido, república e abolição
não se confundiram. Os “interesses mais pragmáticos” - conforme expressão de
Lincoln Penna18 - estabeleceram o nível de envolvimento do republicanismo da
Corte com o processo de abolição da escravatura.
O Manifesto Republicano de 1870, divulgado no jornal A República19, não
associou o partido à causa abolicionista. Assim, Quintino Bocaiúva alegava que seu
partido estava ligado a uma questão política e a abolição era uma questão social20.
O “princípio cardeal e solene” do Manifesto era a instauração do federalismo. A
existência de escravos não recebeu enfoque, muito menos o fim do cativeiro. A
passagem do documento que sugeriu, de maneira branda, uma postura
antiescravista foi no momento em que os republicanos históricos colocaram-se como
18 PENNA, Lincoln de Abreu, op. cit, p.33. 19 Jornal fundado em 1870 como propriedade do Clube Republicano do Rio de Janeiro, sendo uma folha oficial do Partido Republicano. 20BOCAIÚVA, Quintino. Idéias políticas de Quintino Bocaiúva. Cronologia, introdução, notas bibliográficas e textos selecionados por Eduardo Silva. Brasília: Senado Federal, Rio de Janeiro: FCRB, 1986, volume 1, p.67.
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
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defensores das liberdades e contra os privilégios, inclusive o de raça, pois
deterioravam a sociedade brasileira como um todo.
No início da década de setenta, a postura de Quintino Bocaiúva era ambígua,
pois o jornalista afirmou, em A República, em 1871, quando ainda se discutia no
Parlamento a Lei do Ventre Livre: “Somos republicanos, e tanto basta para que se
saiba que somos abolicionistas”21. Este discurso sinaliza uma imagem que os
republicanos queriam construir sobre o próprio grupo.
Assim, observando Quintino Bocaiúva e o jornal A República, no início da
década de setenta, já constatamos pontos de tensão entre abolição e república. Se
o fim do cativeiro era uma questão social o debate sobre as leis emancipacionistas
penetrava nos jornais republicanos ao constituir parte das preocupações das elites
do Rio de Janeiro.
A abolição era discutida na imprensa por homens que tinham uma
preocupação com a ação política. Assim, tivemos republicanos como Aristides Lobo
e Silva Jardim, monarquistas como André Rebouças e Beaurepaire Rohan e aqueles
que no decorrer dos dois movimentos tiveram pontos de tensão com seus grupos
políticos originais, como José do Patrocínio, que se desentendeu com lideranças
republicanas, e Rui Barbosa, que rompeu com o Partido Liberal.
Mudanças ocorridas em meados do século representaram o início de um
processo que acabou por abalar o vigor e a legitimidade da instituição escravista.
Assinadas em 1850, a Lei Euzébio de Queiroz, determinando o fim do tráfico
atlântico e cessando, portanto, a principal fonte de alimentação do sistema
21 18 de Maio de 1871.
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escravista, e a Lei de Terras, estabelecendo que as terras devolutas só poderiam
ser ocupadas mediante a compra, sinalizavam que as elites brasileiras estavam
lentamente preparando o país para a emancipação dos cativos. A combinação das
duas significava que o acesso à propriedade territorial seria dificultado para o
trabalhador livre, quer fosse o imigrante ou o alforriado22. Por seu turno, em razão
da cessação do tráfico internacional de escravo, ocorreu uma elevação do valor do
cativo, restringindo o acesso à propriedade em condições escravistas da sociedade
como um todo.
A década de 70 iniciou com a discussão parlamentar sobre a libertação do
ventre escravo. A lei aprovada em 1871, além de tornar ingênuo o filho da escrava,
nascido a partir da lei, e criar o Fundo de Emancipação nas províncias,
regulamentava várias práticas que representavam a intervenção do Estado na
relação entre senhores e cativos, como o reconhecimento do direito do escravo a
constituição de um pecúlio e o direito à auto-compra da carta de manumissão
independente da vontade senhorial. Contudo, somente na década de oitenta, o
movimento abolicionista tomou corpo23. Para tanto, contribuíram as estratégias
individuais e coletivas dos escravos pela alforria, a procura da Justiça para mover
ações de liberdade, a formação do grupo parlamentar abolicionista e toda a
22 Um estudo sobre a Lei de Terras em sua articulação com a Lei Euzébio de Queiroz e suas conseqüências para a estrutura fundiária do país, encontramos em SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio. Efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. Ver também MOTTA, Márcia. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998. 23 Uma análise sobre o impacto das leis emancipacionistas no quotidiano do escravo e no processo de abolição da escravatura no Brasil, empreendemos em “A campanha abolicionista na Corte” in Da abolição da escravatura à abolição da miséria. A vida e as idéias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet, 2005.
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campanha empreendida na imprensa24. Esses fatores propiciaram que a Lei dos
Sexagenários, assinada em 1885, e, para surpresa de muitos contemporâneos, três
anos depois, a Lei Áurea extinguissem legalmente a escravidão no Brasil25.
Mesmo com esse cenário, durante os anos oitenta, o fim do cativeiro não era
colocado de maneira incondicional pelos republicanos. Prudente de Morais, por
exemplo, defendeu na Câmara dos Deputados a abolição por província,
descentralizada, bem de acordo com os princípios do federalismo: as províncias que
não dependessem do trabalho escravo fariam a abolição, já São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais fariam quando encontrassem meios de substituir a mão-de-
obra26. O jornal O Paiz, ao comemorar a libertação do Amazonas, destacou que o
princípio do federalismo deveria conduzir a abolição no Brasil27.
Com o crescimento da campanha abolicionista, nos anos oitenta, não se
podia mais adotar um discurso em que questões políticas e sociais deveriam ser
separadas. Independente de ser nos partidos monárquicos, Liberal ou Conservador,
ou no Partido Republicano do Rio de Janeiro, o destino político e o regime de
trabalho no Brasil estavam em pauta. O jornal O Paiz, já em seu segundo número,
24 Entre os estudos sobre a lei de 1871, a de 1885 e as estratégias adotadas pelos escravos no alcance da alforria, citamos CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; GRIMBERG, Keila. Liberata. A lei da ambigüidade. As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994; MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mãos e os anéis. A lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. UNICAMP: Editora da UNIACAMP, 1999; PENA, Eduardo Spliller. Pajens da casa imperial. Juriconsultos, escravidão e a lei de 1871. UNICAMP: Editora da UNICAMP, 2001. 25 A leitura dos jornais O Paiz e a Gazeta Nacional demonstra que, até abril de 1888, para os autores e leitores das duas folhas, a abolição da escravatura sem indenização e incondicional ainda era incerta. 26 COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Brasiliense, p.451. 27 “A libertação do Amazonas”, 11 de julho de 1885, p.1.
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afirmou que a libertação dos escravos dignificaria o Brasil “diante do mundo e do
século”. Criticou a postura de elementos dos três partidos que não assumiam a
causa da emancipação. Em seus primeiros números, o periódico já trazia à tona a
relação entre partidos políticos e abolição:
Há, é certo, desse lado, grupos republicanos, que julgam
fomentar o ideal da república, privilegiando a Coroa com a honra de reformas que nos dignificam ante o mundo e o século. Há, entre os liberais, a parte ingênua, esquecediça, que se desagregou a imensa maioria de seus correligionários, repudiando a bandeira de 1869, onde se inscrevera, entre os compromissos imediatos do partido, ‘a libertação gradual das gerações presentes’ . Há, entre os conservadores, um núcleo de intransigência, que quase exclusivamente se compõe de proprietários ou aderentes diretos à grande propriedade por dependências eleitorais28.
Próximo à assinatura da Lei Áurea, O Paiz afirmava que, apesar das leis
emancipacionistas terem sido assinadas na gestão de conservadores, tanto o
partido liberal quanto o partido conservador não tinham a direção da abolição no
país: Os que querem fazer do abolicionismo uma demanda de partido, não
conseguem senão mostrar que eles são tão bons partidários como medíocres
abolicionistas29.
No Rio de Janeiro, os membros do Partido Republicano transitaram para as
fileiras do Liberal, não tendo a mesma consistência que o PRP. No que tange à
abolição, o Partido Conservador ainda conseguiu a simpatia de republicanos da
Corte em razão da aprovação da Lei Áurea.30 De qualquer forma, na capital, até em
28 “O bezerro de palha”, 02 de outubro de 1884, p.1 29 “Tópicos do Dia” in O Paiz, 09 de maio de 1888, p.1. 30 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. op. cit., p. 43.
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função da presença majoritária de profissionais liberais no movimento, havia uma
militância republicana também envolvida com o abolicionismo e atuante na
imprensa.
A imprensa foi o meio, por excelência, de divulgação e apresentação dos
diálogos, das polêmicas entre republicanos em torno da abolição.31 A partir da
simpatia a uma das causas foram feitos questionamentos à ordem saquarema
através de uma política de alianças e oposições. Novos liberais, liberais
republicanos, positivistas abolicionistas e republicanos federalistas, grupos da
geração de 1870, afastavam-se ou aproximavam-se a partir da posição frente à
república e a abolição.
Assim, entre 1885 e 1888, abolição e república foram discutidas entre as
elites intelectuais do Rio de Janeiro e os jornais foram o principal canal de
divulgação deste debate. 32 Pois, para além da informação, da divulgação de idéias,
para os homens de então, o periódico era um veículo civilizador.
31 “[...] A rigidez do sistema político compeliu os contestadores a buscarem formas políticas alternativas, não parlamentares, de organização e expressão de demandas. De onde mais no Império era possível a elocução? Foi na imprensa independente, em pequenas associações e em eventos públicos que os contestadores se manifestaram ao longo da década de 1880.[...]” in ALONSO, Angela. op. cit., p. 276. 32 “Se os republicanos e os abolicionistas não podem ser associados, o mesmo não se pode dizer da República e da Abolição. Intimamente relacionadas, são o desfecho de um processo de mudança que vinha sendo gestado pelos menos desde 1870. [...]” in FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. op.cit, p.45.
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1.2. Imprensa e a (re)construção do fato
Os jornais são objeto e fontes privilegiadas nos trabalhos dos historiadores e
muito utilizados por aqueles que se dedicam à pesquisa sobre o século XIX
brasileiro. A imprensa propicia aos estudiosos uma fecunda aproximação com o
pensamento de uma época, pois podem observar quais temas foram discutidos,
como foram apresentados, com que freqüência apareceram, as polêmicas entre
periódicos de jornalistas, proprietários e público alvo distintos. A atração que os
periódicos exercem sobre os pesquisadores está muito ligada ao caráter seqüencial
das folhas, possibilitando um acompanhamento diário dos assuntos, dos enfoques e
de tendências que atravessam as diversas sessões dos jornais.
O historiador e jornalista Marco Morel apresenta três distinções de como a
imprensa vem sendo tratada pela historiografia, quer seja como objeto de estudo ou
como fonte documental33: na tradição historicista, a imprensa é abordada como
reprodutora autêntica de acontecimentos, de verdades cristalizadas através do
impresso; na concepção marxista predominante nos anos 1960 e 1970, é entendida
a partir dos conceitos de ideologia e superestrutura e “passou a ser relegada a uma
condição subalterna, pois seria apenas ‘reflexo’ superficial de idéias que, por sua
vez, eram subordinadas estritamente a uma infra-estrutura socioeconômica”34; com
as contribuições da Nova História, foi revitalizada como documento e objeto. Esta
33 MOREL, Marco, BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e poder. O surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003 34 idem, ibidem, p.8
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tendência tem por prática “verificar como os meios de comunicação impressos
interagem na complexidade de um contexto.”35
É considerando a última abordagem que os periódicos são tratados neste
trabalho. Os discursos não são entendidos por mim como reprodutores fiéis da
realidade ou mero reflexo do processo de dominação ideológica36. Os textos
difundidos nos periódicos fazem parte de um movimento dialético com o contexto
sócio-histórico.
Assim, concordo com a posição de Lilia Moritz Schwarcz quando entende os
jornais como uma das formas de “segmentos localizados e relevantes da sociedade”
produzirem, divulgarem e sedimentarem valores e percepções. Os artigos, as
imagens, os folhetins veiculados em uma dada folha não foram expressão da
verdade de uma época ou um canal imparcial e unilateral de transmissão de
informação37.
O jornal é uma sucessão de números que fazem parte de uma coleção. Cada
unidade é autônoma (a rigor, para ler o jornal de domingo, não preciso
necessariamente ler o de sábado), porém mantém sua identidade a partir do nome
35 ibidem, p.9 36 Assim, aproximo-me das elaborações de Jesús Matin-Barbero: “[...]Lenta mas irreversivelmente viemos aprendendo que o discurso não é um mero instrumento passivo na construção do sentido que tomam os processos sociais, as estruturas econômicas ou os conflitos políticos [...] Historicizar os termos em que se formulam os debates é já uma forma de acesso aos combates, aos conflitos e lutas que atravessam os discursos e as coisas. Daí que nossa leitura será sempre transversal: mais que perseguir a coerência de cada concepção (grifo no original), questionará o movimento que a constitui em posição (grifo no original)” in Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003, p.33. 37 Retrato em branco e negro. Jornais, escravos e cidadãos no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras: 1987, p.17. Os jornais abolicionistas foram simultaneamente objeto e fontes de pesquisa para Humberto Fernandes Machado, que constatou a preocupação de José do Patrocínio no convencimento dos leitores para a causa abolicionista, através de uma linguagem emotiva e que, ao mesmo tempo, representava as possibilidades discursivas da época. Palavras e brados: a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro. 1880-1889. Tese de Doutorado, São Paulo, Universidade de São Paulo, mimeo, 1991, p.24.
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do jornal. Ao mesmo tempo que o diferencia dos demais em circulação, criando a
alteridade, o nome tem a função de estabelecer a articulação entre os exemplares
de uma dada coleção. Assim, apesar da independência entre as edições, existem
marcas que atravessam o conjunto, quer sejam os logotipos, os anunciantes (e seus
interesses), o estilo da redação, a exploração maior ou menor das imagens, a
linguagem mais voltada para o público em geral ou segmento específico38. Tais
traços revelam características dos proprietários, redatores, anunciantes e estão
intimamente ligados aos leitores potenciais destes periódicos.
Desta forma, mesmo não fazendo o acompanhamento sistemático de todos
os números dos periódicos, o sentido, as marcas que envolvem o jornal são
conhecidos na medida em que cada número é entendido como parte de uma
coleção, parte de um conjunto. Entretanto, deve ser ressaltado que ocorrendo
alterações em relação ao proprietário, ao redator, aos anunciantes, as marcas
podem sofrer alterações, pois novos interesses entram em cena.
A partir dos envolvidos na produção são criadas expectativas. Considerando
as características do editorial, é firmado um tipo de pacto implícito com o leitor. Muito
embora, os exemplares sejam autônomos, os leitores e os demais jornais em
circulação esperam uma forma específica de criar e exibir a notícia, o fato. Quando
este acordo é quebrado, o público sente a mudança na linha de análise,
dependendo do nível de alteração da abordagem chega a ter um tom de traição, e é
um momento em que as queixas aparecem nas redações39.
38 MOUILLAUD, Maurice. “O nome do jornal” in PORTO, Sérgio Dayrell (org.) O jornal. Da forma ao sentido. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2002. 39 idem, idibem, p. 87.
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31
A opção pela compra de um jornal liga-se à expectativa criada em torno de
sua linha. Desta forma, os leitores de O Paiz ou da Gazeta Nacional esperavam
uma determinada maneira de apresentar as questões polêmicas, envolvendo
república e abolição, por exemplo, e até mesmo tinham um horizonte das possíveis
querelas travadas com outros periódicos, por exemplo com O Brazil, ligado ao
Partido Conservador. A Gazeta Nacional, a título de exemplo, assim apresentava os
jornais e o público de tendência monarquista:
Nos períodos agitados, a imprensa do governo não atua
diretamente, ela o sabe, sobre a contextura geral da opinião, que aborrece, mas faz obliquamente servindo de seu elemento.
(...) Esse público inamovível, inalterável e plumbeo, reza pela
cartilha do governo, e mormente do governo conservador, a palavra que o seduz, porque exprime a disciplina prussiana de sentinela á fortuna bem ou mal adquirida40.
De acordo com as formulações de Robert Darton, sobre o trabalho com a
palavra impressa, o sentido de um texto não está fechado a suas páginas. É preciso
pensá-lo a partir de um circuito de comunicação que passa pelo autor, impressor,
distribuidor, vendedor e leitor41. Assim, são questões que devem nortear a pesquisa:
quem são os jornalistas? Quais estratégias de convencimento e de atração são
40 “Um governo anônimo”, in Gazeta Nacional, 12 de fevereiro de 1888, p.1 41 O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 109-131.
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utilizadas no discurso? Como é a relação entre o texto e seu suporte (materialidade
do papel, seu formato, sua diagramação)42? Como ocorre a divulgação e distribuição
das folhas? E por fim, como o texto é interpretado (reescrito) no momento da leitura?
Este trabalho não objetiva reconstruir toda a trajetória ou todo o circuito de
comunicação dos jornais O Paiz e a Gazeta Nacional no final do século XIX
brasileiro. Contudo, meu objeto específico está inserido em um movimento maior
que é a própria história da imprensa. Assim, não posso pensar o tema apenas pelo
próprio tema. Preciso atentar para as observações feitas por Darton. Para o estudo
ora desenvolvido, portanto, creio ser crucial pensar na relação autor-leitor-texto-
contexto.
O jornalismo não se limita a noticiar um fato. O significado de um texto não é
simplesmente relatar o acontecido. Possui a capacidade de reconstruir o fato, criar
expectativas e gerar opiniões a partir de uma visão específica. Assim, a imprensa
contribui na produção do fato ao influenciar a constituição de uma opinião em torno
dele, conforme ocorreu no Caso Castro Malta - que será tratado mais adiante –
construído pela redação de O Paiz. De acordo com Darton, “o poder dos meios de
comunicação de moldar os fatos ao dar-lhes cobertura foi um fator crucial na
Revolução Francesa, quando o jornalismo surgiu pela primeira vez como força nos
negócios de Estado”43.
42 Para uma discussão sobre o jornal e seu suporte, ver MOUILLAUD, Maurice “Da forma ao sentido” in O jornal. Da forma ao sentido... 43 op. cit, p.16.
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No final do século XIX brasileiro, as relações entre poder e imprensa foram
estreitadas com o desenvolvimento da empresa jornalística. Os jornais colaboraram
na construção de uma auto-imagem próxima da mitificação. Os autores procuravam
construir a imagem dos responsáveis pelo progresso, dos promotores do
desenvolvimento para a população através dos debates, transmissão de
informações verídicas, reprodução de artigos científicos. Segundo Marialva Barbosa,
no período, o jornalista podia “ser o interlocutor privilegiado, o intermediário eficaz, o
polemista demolidor, assumindo ora a faceta de conspirador, ora a imagem de
salvador. A imagem construída do jornalismo e do jornalista ganha, pois, o contorno
de um verdadeiro mito político”.44
Os jornalistas colaboram na construção da memória, fazendo parte do jogo
referente ao que deve ser lembrado e esquecido. No processo de elaboração do
texto, encontra-se em questão também o que uma geração pretende que seja
eternizado. A escrita possui, assim, o caráter de “elemento básico de construção
seletiva da memória que engendra, sobretudo, a questão de poder. Percebendo-a
como seleção e construção, é necessário ver os agentes ou os senhores dessa
operação como detentores de poder”45, já que fazem parte do processo de
construção da memória.
Nenhuma publicação é absolutamente isenta46. Apresentar uma narração
sobre um fato implica em ocultar ou preterir outras versões contemporâneas,
44 BARBOSA, Marialva. Os donos do Rio. Imprensa, poder e público. Rio de Janeiro: Vícios de Leitura, 2000, p. 117. 45 op. cit., p. 64. 46 Humberto F. Machado ressalta que a “(...) manipulação da informação, ou a sua omissão, vincula-se, muitas das vezes, às posturas dos colaboradores ou, ainda, as expectativas do público leitor. As matérias se prestam a uma série de interpretações e devemos tomar, portanto, um cuidado minucioso para não superestimá-las, ou subestimá-las, transformando-as em verdades absolutas”. op. cit, p.21
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significa atuar na esfera da construção da memória coletiva, conforme destaca
Jacques Le Goff. Ter a condição de reconstruir/divulgar acontecimento é, portanto,
um exercício de poder, é ter o privilégio de atuar para formação da própria
identidade, da trajetória e das percepções de um grupo. A imprensa, por excelência,
trabalha com um campo que é o foco de atenção das elites das diversas
sociedades47.
Na imprensa do Rio de Janeiro, do final do oitocentos, a preocupação com o
que deve ser lembrado (e, em conseqüência, esquecido) ficava explicitado inclusive
nos nomes atribuídos aos artigos. Assim, por exemplo, O Paiz utilizou, a expressão
Documentos para a História de outubro de 1884 a fevereiro de 1885, para artigos
que abordavam o cerceamento da liberdade entre os cidadãos do Império. De forma
semelhante, a Gazeta Nacional, ofereceu um título bem sugestivo a um artigo que
tratava das razões para as revoltas dos escravos, “Para a história da escravidão. Um
documento importante”48.O jornal pretendia reiterar que a futura reconstrução da
história da escravidão no Brasil deveria ser realizada através da imprensa, pois esta
dava publicidade aos documentos e fatos importantes.
No período próximo à Lei Áurea, existia toda uma preocupação dos homens
que faziam a imprensa com a imagem, com os documentos que ficariam difundidos
sobre o processo de abolição da escravatura e seus agentes (escravos,
abolicionistas, princesa Isabel, os partidos políticos).
47 Para Jacques Le Goff, ”[...] Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismo de manipulação da memória coletiva.” História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, P.422. 48 28 de dezembro de 1887, p.2
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O jornal funciona como um tipo de memória escrita de determinada época.49
O momento de crise do sistema escravista brasileiro foi uma fase peculiar para o
registro, através da imprensa, dos fatos, dos acontecimentos, de pessoas que se
pretendia eternizar e como deveriam ser eternizadas.
A imagem que se constituía do jornalista era de um lutador que sacrificava
sua própria vida pessoal para colocar em primeiro plano as necessidades do país. O
progresso, meta dos intelectuais do século XIX, era apresentado, nos discursos,
como fundamento das posições desses homens da imprensa. Nos artigos
veiculados, em nome dos interesses da nação, qualquer outro interesse, inclusive o
do próprio jornalista deveria ser secundarizado:
Não tendo por inspirar-nos mais do que a preocupação com o
bem público, mais do que o desejo de cooperar por um fim nobre e generoso, de utilidade comum, é evidente que nesta colaboração espontânea, oferecida a todos quanto trabalham, como nós, na área do jornalismo, não há nem pode haver intuito pessoal, de ambição ou de egoísmo[...]50
Para realizar uma análise de narrativa, o conteúdo da mensagem, o dito, é tão
importante quanto o como se escreve e o que poderia também ter sido escrito em tal
realidade sócio-histórica, pois trata-se da busca pelo entendimento da “sobrecarga”
de significados dos textos, dos silêncios significativos neles contidos51. Quintino
Bocaiúva, por exemplo, em polêmica com o jornal O Brazil afirmou: “Quaisquer que
49 BARBOSA, Marialva...., p. 117. 50 “O Paiz” in 15 de novembro de 1884, p.1 51 MORITZ, Lilia Schwarcz, op. cit, p.16-17.
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sejam as opiniões políticas do redator de O Paiz, ele saberá manter-se na arena
tranqüilo e desassombrado, onde não tumultuam os interesses partidários”52. O
jornalista acreditava, ou melhor, queria defender que o autor poderia despir-se de
toda sua trajetória no Partido Republicano e escrever artigos completamente
neutros. Esta construção discursiva reforçava a intenção de busca de isenção
partidária de O Paiz. Contudo, mesmo que Bocaiúva procurasse uma escrita
imparcial, sua vivência política marcaria seus textos.
A insistência de Bocaiúva na imparcialidade deve ser entendida a partir do
diálogo estabelecido com o redator do jornal O Brazil, que também fazia parte do
público do jornalista republicano. Era na intenção de aumentar a credibilidade de
seus textos para seu interlocutor que Bocaiúva sustentava a neutralidade partidária.
O Paiz procurava veicular que tinha compromisso somente com a verdade,
independente dos interesses envolvidos. Assim, o sentido desta defesa da isenção
deve ser pensado a partir da polêmica com O Brazil. Em outras ocasiões, o próprio
Bocaiúva fazia questão de buscar sua trajetória pessoal e seu círculo político para
oferecer legitimidade à fala, não querendo aparentar neutralidade, pois eram suas
experiências individuais que corroboravam o discurso.
Considero a argumentação de Michel Certeau sobre a lógica dialética dos
textos impressos muito profícua para este ponto do trabalho53. O início da
elaboração da escrita é o momento em que se manifestam as influências sofridas
pelo autor. É o que Certeau chama de “recebido”. O desenrolar do texto tem por
resultado o produto, pois resultam de elaborações, combinações do autor. Portanto,
52 11 de outubro de 1884, p.1. 53 A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 226.
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37
a produção textual consiste em uma relação constante e dinâmica entre passividade
(tradição, cultura, o “recebido” pelo autor) e a capacidade criativa que se revela nas
marcas que o escritor confere a seu produto.
Um discurso corresponde a uma fala (localizada no tempo e no espaço) para
um ouvinte potencial (também localizado no tempo e no espaço). Este pode não ter
nome e sobrenome, mas possui um perfil sócio-econômico, escolar e cultural que
influencia o momento da produção e quando o texto chega a seus olhos (ou a seus
ouvidos), uma interpretação/reescrita é realizada.
Autor e leitor são interlocutores54. Pensar no sentido de uma obra, de um
jornal, é tornar ativo os dois pólos da comunicação. É necessário ultrapassar a
condição de autor sujeito e receptor como passivo, simplesmente depositário das
idéias. No momento da redação, o autor leva em consideração as condições
possíveis de leitura55.
As condições de leitura dos receptores destes jornais republicanos foram
compartilhadas pelos autores dos artigos. Conforme ressalta Roger Chartier, o texto
chega às mãos do leitor (ou aos ouvidos) em uma circunstância específica, em um
54 De acordo com Marco Morel: “[...]A relação entre redatores e leitores encontra-se invariavelmente marcada por um jogo de imagens: espelho e miragem. Espelho onde se projetam e se definem posições e identidades a partir das próprias referências. Miragem em meio a qual se buscam, às vezes em vão, um público e uma opinião que só existem nas aspirações de quem lê ou escreve.” op. cit., p. 34. 55 De acordo com Karlheinz Stierle: “[...] A comunicação pragmática funciona apenas porque produtor consegue imaginar o papel do receptor e vice-versa. Mas se pressupõe que ambos os papéis participam de um esquema de ação preexistente, habitual ou institucionalmente estabilizado, que condiciona a possibilidade de ambas as posições e de sua dialética. [...] O sujeito da produção e o sujeito da recepção não são pensáveis como sujeitos isolados, mas apenas como social e culturalmente mediados, como sujeitos transubjetivos” in Que significa a recepção dos textos ficcionais? In LIMA, Luiz da Costa (org.). A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p.128.
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momento específico que influencia o “investimento afetivo e intelectual” feito na hora
da leitura56.
Escrever e ler sobre a fuga de cativos na década de setenta do oitocentos,
por exemplo, foi bem diferente de abordar este tema na década de oitenta quando
existia um quadro intenso de resistência, de estratégias de lutas dos escravos pela
conquista da liberdade e uma opinião pública favorável à abolição. Em artigo sobre a
fuga de escravos de fazendas paulistas, Lobo utilizou a expressão “essa gente que
fugiu em busca da liberdade”57. A maneira de abordar foi indicativa de um certo
entendimento dos gestos dos cativos: eles não eram simplesmente criminosos
fugitivos, eram pessoas que lutavam pela dignidade humana concretizada na
liberdade.
A escrita representa o campo do jogo entre locutor e destinatário58. O primeiro
pretende uma intervenção direta na percepção do leitor, uma defesa de concepções
de mundo. Porém, a interpretação é a área do pressuposto, do desejável, não
sendo totalmente acessível à consciência do emissor. O texto possui seus vazios,
que somente serão preenchidos no momento da leitura: momento da resposta.
Assim, no circuito de comunicação estes dois momentos são distintos, articulados e
ativos. O autor objetiva convencer, normatizar, mas seu produto tem as marcas do
público alvo, potencial. Muito embora, existam leituras preferenciais estas podem
tomar outro sentido no ato da leitura. A resposta pode ocorrer no momento do
56 A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p.70. 57 “O escravigismo em Campos” in Gazeta Nacional, 04 de dezembro de 1887, p.1 58 ISER, Wolfgang. “o jogo do texto” in LIMA, Luiz Costa. op. cit, p. 107.
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contato com o texto e em momentos futuros quando associações, ações,
sentimentos são, muitas vezes, estimulados em razão de leituras pretéritas.
A análise de narrativas, metodologia que adoto para dar tratamento aos
jornais, consiste na busca de desconstrução de enunciados com o intuito de
desvendar o dito e o interdito, o explícito e o implícito e seus significados. Ela deve
ter por base as condições de produção (sujeitos sociais e contextos históricos), as
condições de leitura (que envolvem também sujeitos sociais ) e a realidade com a
qual interagem59. Estudiosos da comunicação defendem que não é possível pensar
em “emissores-dominadores e receptores-dominados60”, pois este esquema não
corresponde ao processo de comunicação verbal. Ao receber um discurso, um leitor,
um ouvinte tem uma atitude ativa: “ele concorda ou discorda (total ou parcialmente),
completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude de ouvinte está em
elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde
o início do discurso.61”
Um discurso proferido nunca é de primeira ordem, pois faz parte de uma rede
de comunicação. Além do mais locutores e destinatários compartilham
representações preexistentes. Em consonância com Mikhail Bakhtin, “cada
enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados”,62 assim, uma
fala é significativa para o outro porque corresponde também a uma resposta. O
59 “Concebidos como um espaço aberto a múltiplas leituras, os textos (e também todas as categorias de imagem) não podem, então ser apreendidos nem como objetos cuja a distribuição bastaria identificar nem como entidades cujo significado se colocaria em termos universais, mas preso na rede contraditória das utilizações que os constituíram historicamente” in CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: DIFEL, 1988, p. 61 60 MARTIN-BARBERO, Jesús. op. cit. 61 “Os gêneros do discurso” in Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 290 62 idem, ibidem p. 291.
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discurso – por mais inovador, mais polêmico que seja – está em consonância com
os horizontes dos envolvidos. Ele não rompe um silêncio eterno e sim faz parte de
uma cadeia de comunicação.
Neste trabalho, centrarei a análise no discurso-fala, contudo isto não implica
em excluir o receptor, pois os periódicos dialogavam entre si e a elaboração de seus
textos passava pelo conhecimento das possibilidades de leitura de seus públicos.
Além do mais, os autores dos artigos eram também leitores das demais folhas. Estes
jornalistas dialogavam intensamente, interferindo de maneira direta nas publicações
de seus concorrentes.
Os textos dos periódicos republicanos dialogavam com jornais de cunho
monárquicos, como nesta passagem de O Paiz: “Tem pois, o Brazil, jornal
conservador, embaído os seus leitores apregoando a necessidade da escravidão tal
como está em bem da lavoura.” 63
No período, era comum um jornal reproduzir texto de outro com quem
estabelecia linhas de afinidade. Buscava-se trechos de jornais em circulação para
reforçar, para dar maior legitimidade aos argumentos. Os jornalistas eram,
evidentemente, autores e leitores:
Contestando a proposição injusta e de todo o ponto inexata
de que os escravos fogem ao trabalho em procura da vida errante, cruzando as estradas em ociosa vagabundagem, como o governo manda apregoar por seus esforçados defensores, dissemos que longe de ser assim, tem causado surpresa e pasmo o espírito de ordem por eles manifestados.
A Província de São Paulo, com o critério e a segurança de vistas que todos lhe reconhecem, escreve em seu número de 20 do
63 “O bezerro de palha”, in O Paiz, 02 de outubro de 1884, p1.
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corrente, o editorial que abaixo transcrevemos e que é a completa e cabal confirmação de nossas afirmações64.
O jornal O Paiz , logo em seus primeiros meses, com o sugestivo nome de
artigo “Entendamo-nos”, desenvolveu de forma irônica um cenário de polêmicas
entre redatores dos periódicos. O contexto de cisões entre república e abolição
favoreceu a constituição de um quadro de debate direto entre os jornais,
dependendo das tendências de seus proprietários e redatores:
Temos o dever de supor que muito mal nos exprimimos, para
tão mal havermos sido compreendidos pelo nosso ilustrado colega da Folha Nova.
Assim como qualquer outro vivente, somos muitos capazes de dizer algum despropósito; mas, quando isso aconteça, o nosso colega pode logo salvar a nossa intenção, castigando a nossa ignorância65.
Em meio a essas divergências entre jornais, Pinheiro Machado em artigo
publicado em O Paiz, afirmava que por conta da variedade dos jornais em
circulação, as folhas diante do público “[...] procuram de todos os modos enganá-lo
em política, impingindo-lhe cada um de seus clientes como heróis e pintando-lhe o
cliente do vizinho como um bandido”.66
Era comum um artigo caracterizar-se como resposta à redação de um outro
jornal. Os debates entre jornalistas sobre o processo de abolição da escravatura, as
64 “O governo e a abolição” in Gazeta Nacional, 23 de dezembro de 1887, p.1. 65 “Entendamo-nos”, 14 de março de 1885, p.1. 66 “O jornalismo”, 03 de outubro de 1884, p.1.
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discussões sobre a Lei dos Sexagenários, por exemplo, eram motivos de
publicações por vezes inflamadas. O autor e o leitor não podem ser pensados
separadamente, como nesta passagem de O Paiz:
Se com o artigo que ontem escrevemos, nada mais
houvéssemos conseguido do que atrair para esta questão da sorte da lavoura o espírito desafrontado do nosso ilustrado colega da Gazeta da Tarde, já houvéssemos prestado, no nosso conceito, um bom serviço.67
Este tipo de relação entre autores e leitores dos jornais era explicitada quando
a publicação de um artigo estimulava a produção de uma matéria em outro jornal.
Como exemplo deste intercâmbio, O Paiz publicava:
Devemos resposta ao ilustre escritor que, nas colunas do
Jornal do Comércio, trouxe ontem em consideração o que dissemos a respeito da catequese.
As preciosas informação que lemos, no artigo que motiva esta resposta, sem dúvida alguma provam que não tem sido inteiramente descurado o serviço da catequese.68
Como podemos constatar através das publicações de O Paiz e da Gazeta
Nacional, o diálogo entre os jornalistas foi uma característica da forma de se produzir
o texto na imprensa da Corte. Da mesma forma que as polêmicas eram comuns,
também era recorrente a aproximação entre folhas para marcar posições distintas de
67 “A questão econômica” in 1º de abril de 1885, p.1. 68 “Ainda a catequese” in 2 de novembro de 1884, p.1.
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uma terceiro jornal. A legitimidade poderia ser buscada na autoridade do redator
com quem tinha afinidades:
Como testemunho de nosso reconhecimento, pela prova de
nobre solidariedade, que oferece o nosso ilustre colega da Gazeta da Tarde, aqui transcrevemos as suas generosas palavras, com referência a pessoa do redator desta folha e da questão em que fizeram parte:
‘Respondendo a uma insinuação que lhe dirigiu o Sr. Cesário Alvim, presidente da província do Rio de Janeiro, o nosso honrado mestre e bom amigo – Quintino Bocaiúva – invoca nesses termos nosso testemunho’.69
A forma como se construía a legitimidade dos jornais, centrada na figura de
seus redatores, atestava que, no período, ao jornalista era concedido um poder de
outorgar credibilidade aos textos e que a sua imagem também estava ligada à
legitimidade das folhas. As próprias relações pessoais e a trajetória dos autores
reforçavam os discursos, conferiam uma legitimidade às publicações:
O redator de O Paiz não estudou direito, mas se houver no
Rio de Janeiro um só jurisconsulto digno deste título que sustente semelhante despropósito está pronto a retratar-se e a confessar sua ignorância.
Contrato é contrato, a província é uma parte e o contratador é outra70.
Artigo publicado em O Paiz abordava o aumento do número de periódicos em
circulação na cidade do Rio de Janeiro e a mudança de comportamento por parte
69 “Gazeta da Tarde” in O Paiz , 13 de janeiro de 1885, p.1. 70 “O direito torto” in O Paiz ,13 de janeiro de 1885, p.1.
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dos leitores, que não liam simplesmente o jornal de sua confiança e sim liam os
jornais71. O público confrontava as opiniões dos diversos redatores. Daí a
importância de, neste cenário de disputa entre jornalistas, não deixar uma crítica
feita por outro periódico sem resposta. Provavelmente, o comentário depreciativo
seria conhecido de pelo leitor em potencial do jornal.
O leitor era construído como o familiar, o próximo à redação, conhecedor das
intenções e ações dos autores. Existia uma busca pela cumplicidade no momento da
leitura, pela formação de uma identidade comum com o leitor, por mostrar que autor
e público faziam parte de um mesmo círculo: “Os leitores conhecem quais são os
nossos sentimentos pessoais com referência aos dignos funcionários que por parte
da Misericórdia superintendem o serviço funerário.”72 O conhecer adquiria um
sentido de compartilhar das mesmas apreciações, de uma visão comum ao tema, de
compartilhar experiências.
O sentimento de familiaridade e de cumplicidade, que os periódicos
buscavam construir juntos aos leitores, tinha a função de criar uma identidade, um
sentido de nós, que se distinguia de outras folhas, de outros posicionamentos frente
às questões essenciais para a sociedade naquele momento.
A aproximação entre autores e público tinha, de fato, na década de oitenta
uma tônica acentuada. Os leitores, comumente, iam “para as portas das redações”
no aguardo de notícias de grande interesse. Os mais preocupados com a notícia
tinham de saber, antes mesmo da publicação. 73
71 “O jornalismo”, 03 de outubro de 1884, p1. 72 “Empresa funerária” in O Paiz, 18 de dezembro de 1884, p.1. 73 “O país” in O Paiz, 16 de maio de 1888, p.2
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Nos festejos da abolição, por exemplo, quando a Comissão Central da
Imprensa organizava as comemorações, “os moradores da rua da Constituição
pediram que os préstitos fizessem sua passagem por aquela rua”74, pois atenderiam
a um pedido da redação de O Paiz de decorar “brilhantemente” suas residências.
Ainda nos festejos do 13 de Maio, os operários da fábrica São Lourenço com uma
banda pararam em frente à redação de O Paiz para saudar os jornalistas. Bocaiúva
apareceu à janela para cumprimentar os populares.75
A construção da relação jornalistas/leitores/jornalistas era enfatizada pela
imprensa do oitocentos, sendo apresentada como uma razão para os periódicos
não conseguirem fugir totalmente da publicação de querelas pessoais. Parte do
público tinha gosto pelas desavenças, afirmavam. A quem imputar as
responsabilidades de publicações como A Pedido, ao leitor, aos redatores?
Bocaiúva levantava a discussão na primeira página do jornal O Paiz:
Mas a quem atribuir a responsabilidade deste funesto desvio? Aqueles que, usando da liberdade de imprensa, só a
procuram para tais fins ignóbeis; ou a nós mesmos, que lhes franqueamos a publicidade, arrastados a isso pela cobiça do dinheiro e constituindo-nos, ao nosso turno, exploradores dessa indústria pornográfica?
É evidente que a nós, mais do que a eles, deve caber a merecida censura76.
Bocaiúva continuou suas críticas aos jornalistas e aos leitores:
74 “Imprensa Fluminense” in 17 de maio de 1888, p.1 75 “Ave, Libertas” in 17 de maio de 1888, p.1. 76 “Abuso da imprensa”, 24 de janeiro de 1885, p.1.
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Seja de ordem que for a questão debatida, científica, literária ou política, desde logo prorompem as personalidades injuriosas, os doestos, as afrontas, o que tudo manifesta uma tal grosseria, uma tal falta de educação, que o público sensato, depois da leitura, tem vontade de atirar o jornal ao fogo.
Daí a perversão do gosto público. Não há interesse nem curiosidade senão pelas questões
pessoais: deleitam-se os espíritos frívolos com o espetáculo(...)77.
O jornalista, ao longo do texto, fez uma distinção entre o público dos
periódicos. Para ele, existia o leitor “sensato” – do qual, evidentemente, o autor fazia
parte – que discorda da presença de assuntos pessoais nos jornais e existia o
público de “espírito frívolo”, que alimentava uma imprensa que não conseguia fugir
de desavenças sem fundamentos. Assim, para Quintino Bocaiúva, ao abrir espaços
para colunas pagas pelo leitores em geral, os proprietários e redatores corriam o
risco de em nome do dinheiro ver estampadas nos jornais todo tipo de matéria.
O motivador deste texto em nome da dignidade da imprensa brasileira,
redigido por Bocaiúva, foram as acusações, ao ver do autor, injustificadas sobre o
jornalista Pedro Tavares, publicadas no jornal Diário Mercantil de São Paulo. O
ofendido, segundo o redator de O Paiz, chegou a levar o caso para a Justiça.
Os jornais republicanos O Paiz e a Gazeta Nacional fizeram parte da história
da imprensa do período. Os textos que publicaram foram expressões do “recebido”
do contexto histórico dos autores; e foram também “produto” porque representaram
uma releitura e a intenção de intervir na realidade social – defendendo a república
ou a abolição -, de criar comportamentos, de formar a opinião. Sendo assim,
77 Idem, ibidem
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constituíam mais um “elo da cadeia complexa” que foi a comunicação através da
imprensa no final do oitocentos no Rio de Janeiro.
As narrativas construídas e veiculadas pelos periódicos O Paiz e a Gazeta
Nacional sobre o processo de abolição da escravatura, o escravo e o liberto
revelaram como esta imprensa estaria pensando não somente no fim do cativeiro
como também projetava o pós-abolição. Nos artigos publicados na imprensa do Rio
de Janeiro, no último quartel do oitocentos, o tema da formação de uma nação
aprimorada quer fosse pela abolição da escravatura, quer fosse pela adoção da
república recebia diferentes enfoques, variando também de acordo com as
circunstâncias imediatas de escrita e de leitura.
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1.3. Eis a missão do jornalismo
Se para isso não servisse a imprensa para nada serviria ela. Combater é glorioso; mas vencer quando se combate por
uma causa justa e nobre, é mais glorioso ainda. O Paiz pensa que está cumprindo o seu dever e há de
preservar na atividade que assumiu. O fato que se trata, pode aos olhos de alguns parecer
insignificante, mas a nós nos parece grave. A vítima pode ser, se assim o querem, um miserável; mas o
princípio que na sua pessoa foi sacrificado é um princípio augusto.78 Para isso, sem dúvida, é necessário que os jornais
intervenham em todas as questões que interessam ao espírito público.79
O recorte cronológico deste estudo corresponde à fase inicial de um
jornalismo na cidade do Rio de Janeiro como “fábrica de notícias”, preocupado em
sedimentar valores, defendendo uma pretensa imparcialidade80. Nos anos oitenta, a
forma de se fazer jornal, caracterizava-se pelos investimentos no maquinário gráfico,
78 “Insistimos e insistiremos” in O Paiz, 05 de dezembro de 1884, p.1. 79 “Resenha diária” in O Paiz, 06 de outubro de 1884, p1. 80 A imprensa começou, no Brasil, com a presença da Corte de D. João em 1808. Até então, as iniciativas particulares foram frustradas por conta da política do governo metropolitano em relação à Colônia. A preocupação em controlar a divulgação das idéias anticoloniais fez com que Portugal restringisse os impressos e inibisse a circulação de livros. A partir da Revolução do Porto, surgiu, no Rio de Janeiro, uma imprensa com tom mais agressivo, que não se dedicava somente aos assuntos oficiais, à família reinante e à situação européia. O florescimento de jornais de cunho político confundiu-se com o próprio processo de emancipação do Brasil. Esta primeira fase da imprensa brasileira, que se iniciou com a presença da corte portuguesa, caracterizou-se por ser opinativa, doutrinária e, praticamente, constituía uma extensão das discussões ocorridas no Parlamento, nos partidos políticos ou nas associações. As folhas eram lançadas e saíam de circulação rapidamente. Muitas vezes, eram criadas para servirem de tribuna para querelas pessoais e políticas. Sobre a história da imprensa no Brasil, verificar: SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. Uma análise sobre a participação dos periódicos no debate sobre a construção da nação brasileira emancipada, encontramos em LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos. A guerra dos jornalistas na independência, 1821-1823. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: Identidade nacional e conflitos antilusitanos no
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nas inovações técnicas, na melhoria na qualidade do papel, que permitiram uma
maior velocidade de produção, uma exploração mais intensa das imagens com a
função de corroborar a escrita81. Valorizava-se cenas do quotidiano, assuntos
policiais, charges para atingir um número maior de leitores82.
Os periódicos tornaram-se verdadeiras “fábricas de notícias”, “indústrias de
informação”83. Temas como higienização, progresso, moda européia, por exemplo,
eram recorrentes84. Colaboraram na difusão de comportamentos em consonância
com os interesses das elites políticas, econômicas e intelectuais que utilizavam tal
meio de comunicação como mais uma forma de disseminar idéias e atuar de
maneira normatizadora sobre a sociedade85.
É neste contexto, que devemos entender uma série intitulada Missão do
Jornalismo, publicada pela Gazeta Nacional:
Nenhum progresso é seguro na sociedade enquanto a política
for o privilégio dos entes nulos que não têm o que perder e que pela habilidade da palavra, pela civilização e pelo cinismo com que usam das palavras que exprimem os nossos direitos; arrogam a si a
Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2002; NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Corcundas constitucionais: cultura política (1820-1823). Rio de Janeiro: Revam:FAPERJ. 2003. 81 SEABRA, Roberto. “Dois séculos de imprensa no Brasil: do jornalismo literário à era da internet” in MOTTA, Luiz Gonzaga (org.) Imprensa e poder. Brasília: Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, pp. 34-36; MORITZ, Lilia Schwarcz, op. cit, p. 17 82 BARBOSA, Marialva. op.ct, p. 48-49. 83BARBOSA, Marialva. op. cit, p 21-25; SEABRA, Robert, op. cit 84De acordo com Humberto Fernandes Machado “(...) Com os olhos voltados para a Europa, escritores, jornalistas, alguns políticos, professores, militares, entre outros, absorviam e divulgavam, através dos jornais, as idéias que exaltavam o progresso como meta a ser atingida pelo homem, através de um processo de valorização do trabalho livre” , “A morte da escravidão” in O Império do Brasil..., p. 364. 85 Neste sentido, Marialva Barbosa afirma: “Mas os jornais também são fundamentais no processo de construção do Rio de Janeiro como capital de uma nova institucionalidade: a República. A outros discursos produzidos com o sentido claro de normatizar a sociedade – como o médico-higienista, jurídico e político – agrega-se o da imprensa, que passa a aliar ao texto impresso a veracidade da fotografia e a crítica das caricaturas ou a ‘reprodução’ da realidade contida nas ilustrações. Promovendo campanhas, os periódicos unificavam os vários discursos da sociedade, em busca de um ideal de progresso e de civilização.” op cit., p. 12.
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profissão de homens políticos. Nós os que trabalhamos e que somos a parte viva da sociedade, é que temos a obrigação de criar o regime da nossa política: ela deve ser a obra de nós todos, e por isso todos nós a podemos preparar, e discutir no seu exercício.
Eis a missão do jornalismo.86
O texto de autoria de Teófilo Braga afirmava que a “missão do jornalismo” era
trazer o debate sobre o destino político do país para a esfera pública. Através da
imprensa, a política não seria um campo exclusivo dos profissionais, seria o campo
de “todo indivíduo honrado e com trabalho intelectual”.
A idéia de missão do jornalismo e do jornalista era recorrente na década de
oitenta. O Paiz afirmava que a função da imprensa, naquele momento, era discutir
os problemas da substituição do trabalho escravo, a obrigatoriedade do ensino, a
proteção às atividades industriais, a descentralização administrativa e a liberdade
religiosa, apontando preferências por esta ou aquela solução:
A simples observação dos fenômenos sociais, com a
completa proibição de estudá-los e criticá-los, por certo que não constitui uma missão.
Espectador indiferente, apenas encarregado de arquivar fatos consumados, sem colaborar na causa comum , não pode ser por forma alguma o intuito de um jornal qualquer, por isso antes de tudo a imprensa quer dizer tribuna.
Ora, a tribuna muda é coisa que ninguém jamais compreenderá.87
Partindo da preocupação de trazer as discussões políticas para a esfera
coletiva através da imprensa, criando “uma opinião de caráter mais abstrato,
86 “Missão do jornalismo”,11 de abril de 1888, p.1.
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fundada sobre o julgamento crítico de cada cidadão leitor e representando uma
espécie de somatório das opiniões” 88, os jornais pretendiam unificar discursos sobre
as questões que defendiam.
Em razão de se obter uma opinião pública89 mais favorável à abolição, por
exemplo, práticas políticas poderiam ser legitimadas e pressões feitas nos poderes
Legislativo e Executivo. Difundia-se que a imprensa, além de trazer a política para o
espaço público, acabava por ajudar a desenvolver uma espécie de sexto sentido
humano:
(...) Hoje, em vistas destas incalculáveis conquistas, a
existência de uma opinião pública é o resultado lógico de todos os esforços realizados na ordem social.
É este o sexto sentido humano, que precisa de exprimir-se e comunicar-se: é esta necessidade que faz com que jornais apareçam, bafejados por ela, quando satisfazem seu fim (...)90
O poder da opinião pública e o papel da imprensa como sua formadora,
divulgadora e defensora eram pontos constantes nos periódicos do Rio de Janeiro.
Para os homens que fizeram a imprensa no período, opinião não tinha um caráter
87 “Resenha diária”, 06 de outubro de 1884, p.1. 88 MOREL, Marco, BARROS, Mariana Monteiro. op. cit, p. 24-25. 89 Entendo a noção de opinião pública a partir das afirmações de Marco Morel: “A expressão ‘opinião pública’ é polissêmica – e também polêmica. Muitos a tratam como se fosse ‘coisa’, sujeito ou entidade, com vontade e movimentos próprios. Mas trata-se, antes de tudo, de palavras – poderosos instrumentos de combate (...). Considera-se, em geral, que opinião pública remete a uma expressão que desempenhou papel de destaque na constituição dos espaços públicos e de uma nova legitimidade nas sociedades ocidentais a partir de meados do século XVIII. Essa visão percebia no nascimento da opinião um processo pelo qual se desenvolvia uma consciência política no âmbito da esfera pública. Diante do poder absolutista, havia um público letrado que, fazendo uso da Razão, construía leis morais, abstratas e gerais, que se tornavam uma fonte de crítica ao poder e de consolidação de uma nova legitimidade política. Ou seja, a opinião com peso de influir nos negócios públicos, ultrapassando os limites do julgamento privado” op. cit., pp. 21-22 90 “Missão do jornalismo” in Gazeta Nacional, 10 de abril de 1888, p.1
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genérico, distante, era uma entidade que através dos jornais deveria interferir nas
ações dos políticos:
Queremos ouvi-los e queremos que se manifestem; falando
ou agindo de modo que ofereçam uma satisfação completa à sociedade brasileira escandalizada por esse atentado misterioso.
Lembrem-se todos esses representantes dos altos poderes do Estado que acima de todos está a Lei; que acima deles está a opinião pública, perante cujo grande conselho cada um terá de responder pela parcela de responsabilidade que a cada um cabe na alta esfera de suas funções91.
Lopes Trovão, no jornal O Combate92, afirmava que o dever da imprensa era
protestar e ser a porta voz do povo. Suas palavras tinham um caráter de crítica ao
que considerava uma “usurpação” do direito político do povo, a reforma eleitoral,
aprovada em 1881, que estava em discussão no Parlamento naquele momento:
Protestar contra essa empanação indecente dos direitos
políticos do povo, levantar o espírito público para que no terreno da legalidade se oponha a essa escamoteação indigna é dever que corre a imprensa patriótica, já que na tribuna popular expeliram os oradores do povo.
Afim de cumprir essa obrigação moral, discutiremos o assunto em artigos subsequentes.93
A partir dos trechos de uma carta de leitores publicadas em artigos de fundo
no jornal O Paiz, fica patente que o leitor também entendia que a função do jornal
era ajudar a população na garantia das liberdades. O periódico era uma forma de
91 “Insistimos e insistiremos” in O Paiz, 05 de dezembro de 1884. 92 Fundado, na cidade do Rio de Janeiro, por Lopes Trovão em 1880. 93 “Reforma Eleitoral”, 11 de junho de 1880, p.1
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questionamento ao poder público, de se fazer denúncias. A imprensa deveria ficar
atenta às injustiças cometidas pelos governantes contra aqueles desprovidos de
contatos que representassem proteção frente à arbitrariedades do poder público.
Em carta assinada por dois detentos e publicada pela redação de O Paiz, o
Chefe de Polícia de Campos cometia arbitrariedades ao prender dois homens sem
qualquer motivo. Depois, sem julgamento ou avaliação, os detentos foram mandados
para Minas Gerais e, de volta ao Rio de Janeiro, ficavam na Casa de Detenção de
Niterói:
Sr Redator – se a missão da imprensa também é reclamar dos poderes competentes justiça em prol daqueles que sofrem injustamente, não deve V. obscurecer a exposição seguinte, por ser um fato gravíssimo contra a liberdade de dois cidadãos, que há dois longos anos se acham presos para averiguações policiais, sem que durante esse longo período tenham terminado ou pelo menos atingido a veracidade de qualquer delito que autorize tal revoltante injustiça94.
Esta carta foi escrita em 04 de março de 1885 e assinada pelos detentos
Fidelis da Rocha Medrado e seu filho José Alves Alcemim Feitosa. Finalizava com
um apelo direto para a intervenção da direção de O Paiz no caso da injustificada
extração da liberdade individual de dois homens:
A V. que dirige O Paiz, vêm pois os abaixo assinado pedir a intervenção de seu jornal contra tão clamorosa injustiça e, confiados no sentimentos filantrópicos e humanitários de V., suplicam a publicação desta carta95.
94 O Paiz, 07 de março de 1885, p.1 95 idem, idibem.
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Infelizmente, através de O Paiz, não foi possível acompanhar o desenrolar do
caso de Fidelis da Rocha Miranda e seu filho. Contudo, para os objetivos deste
ponto da reflexão, se a intervenção do jornal teve resultado positivo ou não para os
dois detentos possui um caráter secundário. O importante é ressaltar o papel e a
imagem sobre a imprensa constituídos pelo público de então, representações que
eram a todo o tempo alimentadas pelos homens que escreviam nos jornais.
Os jornais do Rio de Janeiro, na década de oitenta, ao mesmo tempo que
colaboravam na normatização da sociedade, procuravam, assim, desenvolver uma
identidade de denunciador e reparador das injustiças cometidas. A imagem de
salvador, de portador da verdade e daquele que acabaria com as iniqüidades, fazia
parte de como esta imprensa queria ser vista. Logo em seus números iniciais O
Paiz, publicou um texto de Pinheiro Chagas, que avaliava a situação da imprensa no
período. As idéias apresentadas confirmam esta concepção:
(...) Ameaçar com a imprensa é uma das formas mais
empregadas na sociedade contemporânea. Um empregado demitido, um negociante multado, um desordeiro preso por um policial, declaram logo irritadíssimo ao que demitiu, ao que multou, ao que o prendeu: Ah! Sim! Pois vou para os jornais96.
Ir para o jornal era uma forma de dar voz àquele que se sentia injustiçado. Era
uma maneira de se fazer ouvir e a partir do constrangimento ou da opinião pública
negativa exercida sobre o opressor, o quadro poderia ser revertido. Se quem se
96 “O jornalismo”, 03 de outubro 1884, p.1.
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888.
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encontrava na situação de desvantagem iria ou não para os jornais é uma outra
questão. Tais palavras são indicativas da força que os periódicos tinham (e têm)
para a população e do poder simbólico atribuído aos mesmos97.
A imprensa era representada como o porto seguro para os desprovidos de
relações que assegurassem prestígio, proteção no Império:
[...] imprensa, que deverá ser a protetora desvelada da
liberdade, a guarda vigilante dos direitos dos cidadãos, para escarnecer das vítimas sacrificadas pelo arbítrio das autoridades e daqueles que ousam tomar a defesa dos desprotegidos e dos princípios tutelares da liberdade e da ordem pública.98
A consciência e o dever da imprensa em promover o progresso, aprimorar
culturalmente o país era sempre enfatizada, fazia parte da imagem que estes
jornalistas tinham de sua ocupação, pois afinal “o jornal é a forma escrita em que o
pensamento humano é mais lido e facilmente posto em circulação.”99
Quintino Bocaiúva escreveu para a Gazeta Nacional com o objetivo de saudar
o novo jornal republicano e reforçou esta visão do periódico como orientador da
opinião pública:
97 Utilizo a noção de poder simbólico no sentido aplicado por Pierre Bourdieu: “O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” in O poder simbólico. Lisboa, DIFEL, 1989, p.14. 98 “Acaba-se o mistério” in O Paiz, 28 de novembro de 1884, p.1. 99 Gazeta Nacional, 10 de abril de 1888, p.1
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É nesta melindrosa e crítica conjuntura que surge a ‘Gazeta Nacional’.
A sua missão é árdua, mas gloriosa. No meio da anarquia e da obscuridade, que reinam neste
momento, cabe-lhe a honrosa tarefa de oferecer ao povo brasileiro um ponto estável e luminoso para onde convirjam as aspirações nacionais, orientando os espíritos e servindo-lhes de farol fixo(...)100
Nos anos oitenta, de acordo com os artigos publicados, uma das missões
que cabia aos periódicos era ajudar, através das palavras, no desenvolvimento da
nação. O jornalista deveria, antes de qualquer característica, ser um patriota e estar
preocupado com o progresso do país. A Gazeta Nacional assim afirmava: “A
primeira condição do jornalista é que arda em seu peito a sagrada chama do
patriotismo, de amor aos seus conterrâneos, bem como o estímulo de ver realizado
o seu empenho pela estabilidade de sua permanência”101.
Desejando que a imprensa da Corte assumisse a causa do fim do cativeiro,
em 1883, o monarquista e abolicionista André Rebouças atestava que “A imprensa
não pode faltar a esta santa missão, e nós esperamos que em breve, a imprensa
erguerá o nível moral e intelectual da nação, constituindo-se o principal agente da
sua instrução, de seu engrandecimento e de sua prosperidade”102.
Quintino Bocaiúva, em artigo intitulado Abusos da Imprensa, criticando aquilo
que considerava os excessos da imprensa de então, fez a seguinte afirmação
deixando por entender que era uma opinião corrente: “Diz-se, e com razão, que a
100 03 de dezembro de 1887, p.1 101 20 de abril de 1888. 102 Agricultura nacional: estudos econômicos; propaganda abolicionista e democrática. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1988, p.359
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imprensa é o espelho da civilização de um país.”103 O jornalista insistia na
associação imprensa, civilização e desenvolvimento do país.
A responsabilidade da imprensa na constituição da nação brasileira no
caminho do progresso, da estabilidade, era destacada. Os conflitos políticos
deveriam ser trazidos para a tribuna pública através dos jornais e neles serem
resolvidos:
A imprensa por si só representa esse poderoso elemento de
resistência contra todos os ataques diretos e indiretos à estabilidade e ao bem-estar da nação.
Agindo ao mesmo tempo como força impulsiva e como força estática, ela representa ao seu conjunto a aliança dos dois elementos poderosos que são a garantia da vitalidade e da grandeza de um povo – isto é, o progresso e a justiça, a defesa da liberdade e a defesa da ordem.104
A capacidade dos jornais em contribuir na formação da opinião pública deve
ser vista com cautela, pois atingia um grupo bastante seleto em razão do quadro
predominantemente iletrado da população. De qualquer forma, o processo de
urbanização propiciou o aumento do número de leitores e não devemos
menosprezar a circulação oral das idéias, facilitada pela leitura pública.
Mesmo os iletrados tinham contato com o teor das manchetes ao serem
anunciadas pelos vendedores. Os textos publicados, seguramente, chegavam, por
exemplo, aos segmentos populares, incluindo os escravos, através de comentários
feitos por proprietários ao estabelecerem calorosas discussões em suas residências
103 O Paiz, 24 de janeiro de 1885, p.1. 104 “O País” in O Paiz, 15 de novembro de 1884.
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ou nos bondes105. A importância da circulação das idéias dos jornais através dos
vendedores também era notada pelos contemporâneos:
O público hoje lê os jornais, o que é diferente, quer dizer,
ouve essa multidão anônima de gritadores, que lhes dão sobre o mesmo assunto dez opiniões diametralmente opostas, que lhes contam os fatos de mil modos diversos[...].106
A circulação oral das idéias propiciaria releituras dos textos jornalísticos, ao
serem transmitidas a partir do entendimento de outros agentes. No período, os
jornais tinham mais ouvintes que leitores, eram mais vistos que lidos107. A rigor,
predominava uma leitura de ouvido, favorecendo apropriações de segunda, terceira
ordem do texto.
Paralelo a esse quadro de difusão oral dos textos dos periódicos, as
manifestações públicas com participação de jornalistas ou em redações de órgãos
da imprensa, fizeram com que os jornais, no início da década de oitenta,
“ganhassem as ruas”. Desta forma, da população ser predominantemente iletrada,
os discursos jornalísticos circulavam na cidade do Rio de Janeiro. 108
Foi justamente em nome de um maior alcance do número de leitores dos
periódicos que o jornal A Província de São Paulo informava que O Paiz tem sido
vendido na capital por 100 réis, “tornando mais difícil o alcance das classes
105 MOREL, Marco. op. cit., p.96. 106 “O jornalismo” in O Paiz, 03 de outubro de 1884, p.2. 107 BARBOSA, Marialva. op. cit., p. 200 108 MACHADO, Humberto Fernandes, op. cit., p. 17.
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pobres”.109 A redação de O Paiz disse que não podia intervir, pois a venda era feita
por terceiros e que julgava que a remessa encaminhada para São Paulo era
suficiente.
Mesmo considerando que não houvesse um interesse tão intenso das
“classes pobres” e mesmo não existindo a especificação no artigo de quem a
constituía, de qualquer forma, foi em seu nome que a reivindicação foi feita. Este fato
que é muito significativo em uma sociedade formalmente iletrada. A passagem
demonstrou um interesse na leitura do jornal que gerou uma elevação do preço na
província de São Paulo, chegando mesmo a ser citada a lei da oferta e da procura.
Juntamente a todo esse processo de transformação na imprensa, os anos
oitenta presenciaram o movimento abolicionista e o fortalecimento dos grupos
favoráveis à causa republicana. Esta interligação cronológica tem algumas
implicações: os integrantes do movimento republicano, mesmo intentando atrair
fazendeiros descontentes com a política imperial para as suas fileiras, não poderiam
se omitir, especialmente nos últimos anos da escravidão, do debate sobre o fim do
regime de trabalho escravo. Afinal, muito embora não haja - e nem fosse desejada -
uma associação direta entre movimento republicano e movimento abolicionista, nos
anos oitenta a vida econômica, política e social do Brasil acabou por propiciar a
abolição do cativeiro e o advento da república.
Neste contexto de desestruturação da ordem escravista, houve a entrada das
teorias raciais no Brasil. As elites intelectuais preocupavam-se com os critérios de
cidadania e de pertencimento à nação tendo por sustentáculo as idéias liberais e os
109 27 de maio de 1888, p.1.
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postulados da ciência. A articulação do liberalismo e do etnocentrismo científico
com os critérios para a extensão da cidadania e da constituição da nação, feita pelas
elites intelectuais do final do século XIX brasileiro, já foi contemplada em alguns
trabalhos110. Esta empreitada retoma o problema por um outro aspecto, analisando
como estas idéias foram lidas e articuladas no discurso sobre a abolição e o escravo
pelos periódicos O Paiz e a Gazeta Nacional.
110 Entre eles citamos: MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista. Brasil- século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993; SKIDMORE, Thomas. Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco. Um pensador do Império. Rio de Janeiro, Topbooks, 2002.
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2 – GAZETA NACIONAL E O PAIZ: JORNAIS DO RIO DE JANEIRO
OITOCENTISTA
O Paiz e a Gazeta Nacional foram jornais produzidos e lidos pelos escritores
da geração de 1870. A partir dos dilemas, contradições e estratégias de críticas à
monarquia feitas pelos integrantes desta geração, tivemos um discurso de
aproximação ou de afastamento dos periódicos em relação às causas abolicionista e
republicana.
Como expressão da dinâmica social do Segundo Reinado, os artigos
veiculados na imprensa não representavam somente formulações teóricas ou
análises circunstanciais destes escritores, carregavam também uma proposta de
ação em um contexto em que campo intelectual e campo político não existiam
separadamente.
2.1. A Geração de 1870
Analisar os artigos publicados nos periódicos Gazeta Nacional e O Paiz é
intrinsecamente discutir a trajetória, opções políticas e influências teóricas de seus
produtores. Ao observar seus redatores principais, respectivamente Quintino
Bocaiúva e Aristides Lobo -, os homens com quem estas folhas travaram polêmicas -
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
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como José do Patrocínio -, ou que esporadicamente nelas publicaram - como
Rangel Pestana, Lopes Trovão e Silva Jardim – constatamos que os atores foram
expoentes da chamada geração de 1870.
A rigor, o sentido dos textos, as questões levantadas, as querelas e projetos
estabelecidos fizeram parte do conjunto de dilemas com que a geração de 1870 se
deparou. Os encaminhamentos oferecidos às discussões nos periódicos foram
representativos das preocupações e alternativas elaboradas pelo grupo, quer
envolvessem religião, política, economia ou organização social como um todo.
A década de 1870 representou um momento peculiar na vida intelectual no
Império. A já clássica expressão de Sílvio Romero “um bando de idéias novas”
corresponde justamente a uma fase em que várias correntes de pensamento em
voga na Europa conseguiram maior número de adeptos no Brasil1 –
spencerianismo, darwinismo, positivismo, cientificismo – ou sofreram uma outra
leitura como o caso do liberalismo2.
A geração de 1870 foi constituída por um leque de escritores que refletiu
sobre o Brasil do último quartel do século XIX, propondo mudanças para que o país
entrasse no ritmo, por ela considerado, do progresso das nações da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos da América. Essa mocidade freqüentou as
faculdades de Direito em Recife e em São Paulo, as faculdades de Medicina no Rio
de Janeiro e em Salvador, estudou na Escola Militar e na Politécnica, fundou
sociedades, clubes e pequenos jornais. Organizou atividades como comícios,
1 MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil na virada do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. 2 BOSI, Alfredo. “A escravidão entre dois liberalismos” in Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras.1992.
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conferências, banquetes, quermesses, festas beneficentes, viagens de propaganda
e passeatas.
O grupo divulgou suas idéias através de manifestos, artigos, circulares
eleitorais e livros. Contudo, a imprensa foi o principal meio de propagação das
idéias, que – conforme já abordado – tinha uma função especial para esta geração:
era um veículo considerado civilizador, pois através dela se convenceria ao maior
número de pessoas das mudanças colocadas como necessárias para o Brasil seguir
o caminho do progresso.
A forma como conduziu a propaganda abolicionista e a republicana favoreceu
a constituição de uma nova cultura política na cidade do Rio de Janeiro3. Para a
esfera pública, com destaque para a imprensa, foram trazidas questões antes
restritas ao parlamento. Assim, ao mobilizarem para a participação em comícios, em
conferências ou em festas beneficentes, por exemplo, estimulavam um
comportamento político coletivo por parte da população, extrapolando a relação de
poder centrada na instituição estatal4.
A geração de 1870 foi por excelência heterogênea em termos de origem
social, filiação intelectual e construção de alternativas políticas para o Estado. Foi
constituída por membros da tradicional aristocracia, como Rui Barbosa, e por
descendente de escravos, como José do Patrocínio. Em termos de regime político,
oscilava entre os defensores da monarquia federativa, como Joaquim Nabuco, ou do
3 Sobre o tema, verificar SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria Fátima da Silva (orgs.) Culturas políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: MAUAD, 2005. 4 GRAHAM, Sandra. “O Motim do Vintém e a cultura política do Rio de Janeiro, 1880” in Revista Brasileira de História, vol. 10, número 20, março/agosto de 1991.
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modelo republicano, como Silva Jardim. Ainda entre os republicanos, podemos
distinguir os que entendiam a república como concretização do ideal do self-made-
man, enfatizando uma sociedade aberta aos talentos e contrária a privilégios
hereditários para ocupação do poder, como Saldanha Marinho, ou que centravam
suas atenções nos interesses das elites regionais, na descentralização política,
como Rangel Pestana5.
Apesar das diferenças entre os escritores, eles apresentavam dois pontos de
unidade. O primeiro foi a contestação aos pilares da ordem imperial, particularmente
à escravidão e ao poder moderador6; e o segundo foi o pensar a sociedade brasileira
a partir do cientificismo e do liberalismo7.
Analisar a produção da geração de 1870 é remetermo-nos a um determinado
habitus, ou seja, a um conjunto que delimita o que é possível ser vivenciado,
pensado e escrito. A autonomia e originalidade das produções teóricas individuais
existem dentro das possibilidades de pensamento, em sintonia com outras
produções de uma dada época, de um dado espaço, de um habitus8.
A formação desta geração ocorreu num contexto de prosperidade econômica
brasileira, que engendrou a substituição do trabalho escravo pelo livre e o
surgimento de novos atores sociais que passaram a pressionar por um maior espaço
5 ALONSO, Angela. “A ordem contestada” in Idéias em movimento. A geração de 1870 na crise no Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 6 “Três associações procuraram arregimentar a miríade de pequenos grupos pró-reformas sob seu comando ao longo dos anos de 1880: o Partido Republicano, a Confederação Abolicionista, a Sociedade Positivista. Cada uma destas estruturas de mobilização privilegiava um ponto nevrálgico da mobilização: a contestação à monarquia, à escravidão, à tradição imperial.” In ALONSO, Ângela, op.cit, p.265. 7 MOTA, Maria Aparecida, op. cit, p. 29. 8 “Eu desejava pôr um evidência as capacidades criadoras, activas, inventivas, do habitus e do agente (que a palavra hábito não diz), embora chamando a atenção para a idéia de que este poder gerador não é o de um espírito universal, de uma natureza ou de uma razão humana, como em
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político. A geração foi composta por setores urbanos em crescimento desde meados
dos oitocentos, em decorrência do aumento da circulação de capital, da ampliação
do número de instituições de crédito, da melhoria do sistema de transporte e de
comunicação. A extinção do tráfico internacional de escravos possibilitou maior fluxo
de capitais, sendo, em parte, responsável por essas transformações.
A Corte recebeu investimentos, além de ser o centro político e administrativo
do Império. Uma prática comum para essa geração foi deixar sua província de
origem - como fizeram o maranhense Joaquim Serra e o paraibano Aristides Lobo -
e se estabelecer no Rio de Janeiro, em busca de visibilidade e oportunidade de
carreira. Conseqüentemente, ocorreu na Corte o crescimento de um grupo não
diretamente ligado à propriedade em condições escravistas, pois suas ocupações
estavam voltadas para o transporte, o banco, o telégrafo, a imprensa e a educação.
Até 1870, o pacto político instituído pelos conservadores permaneceu
praticamente inalterado. Em nome da unidade e da ordem, ameaçadas durante o
Período Regencial, estabeleceu-se a centralização política com o reforço do
Conselho de Estado, do Poder Moderador, da Presidência do Conselho de Ministros
e do Senado Vitalício. Embora fosse difundida a idéia de equilíbrio político, através
do rodízio dos partidos na Presidência do Conselho de Ministros, contando com o
arbítrio do Poder Moderador, os saquaremas tiveram a hegemonia no Segundo
Reinado9. A centralização administrativa era justificada como meio para garantir a
Chomsky – o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver” in BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: DIFEL, 1989, p.61 9 “Afirmar que os Liberais não conseguem estar no governo do Estado significa afirmar também – por meio de uma complementaridade que se constitui a partir da consideração do Estado Imperial consolidado – que os Saquaremas nele estão, assim como os demais conservadores que a estes estão unidos. Significa dizer ainda mais: os Saquarema para exercerem sua autoridade, isto é, para estar no governo do Estado, devem estar no governo da casa. E, efetivamente, o conseguiram.” In
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ordem e para unir as elites pela manutenção da propriedade escravista.
No Parlamento, o Partido Liberal pressionava pela reforma eleitoral, pela
descentralização política, pelo Senado temporário e pelas garantias individuais10.
Porém, somente a partir da década de 70, o partido conservador teve de responder
a dois dilemas, emersos com a dinamização da economia: a pressão feita pelos
novos segmentos sociais pelo ampliação do espaço nos órgãos públicos e a perda
legitimidade da escravidão na sociedade como um todo.
Precisando flexibilizar para atender às novas demandas, os saquaremas
iniciam um processo de reforma, visando a manutenção da ordem conservadora.
Contudo, abriram indeléveis fissuras na elite política imperial. O gabinete Rio Branco
(1871-1874) realizou um conjunto de reformas que não atendeu completamente às
pressões dos novos segmentos liberais e, ao mesmo tempo, provocou divergências
entre os próprios conservadores. A Lei do Ventre Livre, as reformas judiciárias e as
mudanças no ensino, que propiciaram o aumento do número de pessoas com
acesso à educação superior, foram expressões desta reforma para manter o status
quo11. Rio Branco incentivou a profissionalização do magistério com a criação do
bacharelado em Letras no Colégio Pedro II e criou 13 escolas normais. Criou
escolas técnicas superiores e, na Corte, dividiu a Escola Central em Militar e
Politécnica.
A reforma do ensino aumentou as oportunidades para que jovens de famílias
menos tradicionais, menos abastadas, ingressassem, por exemplo, na Escola Militar.
MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. A formação do Estado Imperial. São Paulo: HUCITEC, 1990, p.156. 10 ALONSO, Angela, op. cit, p. 70. 11 ALONSO, Angela. op. cit, p. 75-96.
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A formação era de menor custo, ainda possibilitando moradia, um pequeno salário e
uma profissionalização12. O Exército tornou-se atraente para os segmentos médios
em busca de prestígio e estabilidade. No período, ocorreu uma mudança no perfil do
oficialato, que passou a receber jovens oriundos de setores menos aristocráticos13.
A trajetória do professor Benjamim Constant, que influenciou o positivismo e o
republicanismo da Escola Militar, foi um exemplo da ascensão através do Exército e
de sua escola14.
Joaquim Serra na seção Tópicos do Dia, de O Paiz, destacou as qualidades
dos jovens professores da Escola Politécnica, que conseguiram os cargos a partir de
suas competências, através dos concursos, tendo a projeção social alcançada por
meio de seus conhecimentos:
Mas o pessoal docente da Escola Politécnica passou sempre
por muito capaz, distinto entre os mais doutos. Ali ocupa com grande brilho suas cadeiras, tiradas todas de
concurso, uma mocidade esperançosa, sendo já alguns dos professores notabilidades muito respeitáveis na ciência15.
O artigo foi publicado em defesa da Escola Politécnica, em razão de seu
corpo docente ter sido atacado no Parlamento. Os professores foram acusados de
pouco freqüentar a Escola e manter cursos, praticamente, sem alunos. Joaquim
Serra disse que existiam desconfianças de ser o abolicionismo dos jovens
professores o motivo das críticas recebidas: Se, como foi dito na imprensa, é o
12 Idem, ibidem, p.126-127. 13 CASTRO, Celso. Os militares e a república. Um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p.27. 14 Idem, ibidem, p.106-107.
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abolicionismo da Escola Politécnica seu grande pecado, o país saberá absolvê-la de
semelhante culpa16.
Foi neste contexto que a geração de 1870 escreveu na imprensa dos centros
urbanos. Mais que simples divulgação de idéias, pretendia-se superar a escravidão,
apontada como responsável pelo atraso do país e reduzir a atuação do Poder
Moderador. O respeito às liberdades individuais animava os discursos, sendo
motivos para críticas ao cativeiro e ao quarto poder.
Os temas mais debatidos pela geração foram a relação Estado/Igreja, o
sistema eleitoral, o processo de abolição da escravatura, a descentralização política
e como aprimorar a nação brasileira marcada pela mestiçagem17. Nestes discursos,
encontramos elementos que marcam o entendimento do liberalismo por esta
geração, também composta pelos autores dos periódicos Gazeta Nacional e O Paiz.
Era a partir de suas orientações políticas, que os intelectuais da geração
aproximavam-se ou afastavam-se do darwinismo, do positivismo, do spencianismo e
do liberalismo18. Na análise das idéias e das práticas deste agentes no Brasil
Império, a associação entre intelectuais e políticos deve ser estabelecida, pois esses
campos foram dependentes.
15 16 de dezembro de 1884, p.1 16 idem, ibidem. 17 Tânia Regina de Luca ressalta que a geração de 1870 “bateu-se por essas reformas e teve a grata satisfação de vê-las realizadas. É certo que o júbilo foi logo interrompido pelo rumo dos acontecimentos. Alguns protagonistas, consternados, deram-se conta de que aquelas transformações não implicavam necessariamente na redenção imaginada.” A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: UNESP, 1999, p.21. 18 “Considerando a indissociabilidade entre a esfera intelectual e a esfera política, um novo quadro se desenha. Ao invés de obras teóricas, visando a formulação de sistemas filosóficos, os livros publicados pela geração de 1870 podem ser interpretados como intervenção no debate político”. ALONSO, Ângela in Idéias em movimento...p. 166.
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Na trajetória da geração de 1870, as duas esferas confundiram-se, tornando,
praticamente, inviável a separação entre intelectuais – aqueles que tem por
atividade exclusiva a produção intelectual – dos homens públicos19. A perspectiva de
carreira destes homens no Império estava ligada ao Estado, principalmente a
funções ligadas ao ensino e ao Legislativo20. Assim, por exemplo, os jornalistas
Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo e Joaquim Serra foram deputados-gerais, Sílvio
Romero e Silva Jardim foram professores do Colégio Pedro II e da Escola Normal de
São Paulo, respectivamente.
Ressalto que utilizo o termo político em seu sentido restrito, ou seja, identifico-
o com os ocupantes de cargos na instituição estatal21. Assim, refiro-me, por
excelência, aos funcionários da máquina burocrática e aos possuidores de funções,
mandatos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Ao frisar a interseção entre intelectuais e políticos para o século XIX
brasileiro, não implica que considere apropriada a separação das duas esferas para
outros contextos de análise. Concordo com Pierre Bordieu quando afirma que, de
uma forma geral, para entendermos as propriedades específicas das produções de
19 idem, ibidem, p.30. 20 No caso da imprensa, a relação entre intelectuais e políticos era explícita: “ela [a imprensa] não constituía poder independente do governo e da organização partidária (...) A imprensa era, na verdade, um fórum alternativo para a tribuna, importante principalmente para o partido na oposição muitas vezes sem representação na casa.” CARVALHO, José Murilo. “A elite política nacional: definições” in A construção da ordem. A elite política imperial. Rio de Janeiro: UFRJ, Relume-Dumará, 1996, p.46. 21 A noção de política e, portanto, de homens políticos no sentido amplo implica em pensar nos envolvidos nas relações de poder, independente se estas têm ou não o Estado como referência. Por esta ótica, todos os membros de um grupo são seres políticos, pois são fatores de poder. Para aprofundar a discussão, verificar PARANHOS, Adalberto. “Política e cotidiano: as mil e uma faces do poder” in MARCELLINO, Nelson (org.). Introdução às Ciências Sociais. Campinas: Papirus, 1988.
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intelectuais, de artistas, devemos pensar nas relações que esses agentes
estabelecem com as diferentes frações dos segmentos dominantes22.
A ação intelectual da geração de 1870, particularmente dos homens que
escreveram nos jornais O Paiz e a Gazeta Nacional, pode ser entendida tanto por
uma ótica que interprete o conceito enfatizando o aspecto sociológico-cultural
quanto por uma que ressalte o aspecto político. Definir quem são os intelectuais pelo
primeiro campo, é referir-se aos que produzem, aprimoram ou fazem circular idéias,
valores, cultura na sociedade. Esta é a situação por excelência dos jornalistas, dos
escritores, dos professores e dos estudantes. Já na acepção política, intelectual é
todo aquele que tem engajamento direto ou indireto no jogo pelo poder
institucional23. Entendo que as duas concepções possuíam um caráter
complementar na trajetória da geração de 1870. Especialmente, os homens que
escreveram na imprensa do final do oitocentos objetivavam dar uma direção à
sociedade centrado no consentimento e não na coerção24.
Conforme sustenta Angela Alonso, ao se empreender estudos que envolvam
a geração de 1870 é fundamental que o pesquisador fique atento aos interesses
22 “[...] Antes, é preciso situar o corpus assim constituído no interior do campo ideológico de que faz parte, bem como estabelecer as relações entre a posição destes corpus no sistema de relação e concorrência e de conflitos entre os grupos situados em posições diferentes no interior de um campo intelectual que, por sua vez, também ocupa uma dada posição no campo do poder” in “Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe” in A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004. 23 REIS FILHO, Daniel Aarão,“Intelectuais e política na fronteira entre reforma e revolução” in REIS FILHO, Daniel Aarão (org.) Intelectuais, história e política. Séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000. 24 De acordo com Antonio Gramsci, é a partir da prática dos indivíduos na sociedade que deve ser construída. A função intelectual é essencialmente criadora, diretiva e educativa. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988, p. 17
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políticos e às opções teóricas dos homens que constituíram a geração. É importante
que o estudioso trabalhe com a permanente tensão entre as posições políticas dos
intelectuais e as posições intelectuais dos políticos25.
Essa linha de raciocínio, centrada no sentido prático das formulações desta
geração, oferece um enfoque específico para análise das obras produzidas no
período. Quando se aproximavam do liberalismo e do cientificismo, quando
defendiam determinadas idéias, os objetivos daqueles homens não eram somente a
discussão de princípios filosóficos ou sociológicos. As correntes de pensamento
eram reinterpretadas tendo por base um caráter prático, uma estratégia de ação
política26.
Essa leitura propicia um outro tratamento para as diferenças existentes entre
a produção desses autores brasileiros e a produção da matriz européia. A leitura
corrobora para a superação da noção de contradição entre pensamento e prática da
geração de 1870, na medida em que o referencial teórico deixa de ser entendido
como dotado de pureza e passa a ser redimensionado, considerando o quem fala e
o para quem se fala. Na própria Europa, a distinção entre campo político e intelectual
estava em construção na segunda metade do século XIX, tendo também pontos de
tensão e de adaptação27.
25 “(...) A agravante da separação em campos [político e intelectual] é que o critério requer das obras uma consistência teórica e supõe dos autores uma dedicação prioritária à atividade intelectual que simplesmente não visavam (...)“ in ALONSO, Angela op. cit, p. 31 26 Tânia Regina Luca também enfatiza essa característica da geração de 1870: “Munida desse instrumental, a elite pensante nacional releu o país segundo os novos parâmetros e acabou tomada por um sentimento de urgência que compelia a ação”. A Revista do Brasil. Um diagnóstico para a (N)ação... 27 idem, ibidem, p.170.
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As propostas liberais feitas para o Brasil oriundas de um monarquista
federalista foram diferentes das elaboradas por um republicano. Inexistia contradição
em um periódico ser abolicionista, defensor da república e não ter uma posição firme
em relação à indenização, como aconteceu com a Gazeta Nacional. A produção
intelectual destes agentes era balizada por suas ações políticas e deveriam legitimá-
las. As idéias européias não poderiam simplesmente ser importadas, eram
reinterpretadas considerando a realidade econômico-social do Brasil e dependendo
dos interesses políticos de seus autores, que poderiam estar mais ou menos
próximos do epicentro do poder imperial.
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2.2. Jornais de uma geração
Ao estudar o movimento intelectual da geração de 1870, Angela Alonso
construiu um perfil dos grupos de contestação ao Estado Imperial sedimentado pelos
saquaremas. Considerando a articulação entre trajetória de vida, opções teóricas e
propostas políticas para o Brasil, apresentou os novos liberais, os liberais
republicanos, os positivistas abolicionistas e os liberais federalistas como os quatro
grupos representantes do movimento intelectual de crítica ao Império.28 Na atuação
política da geração de 1870, os novos liberais defenderam que as mudanças
deveriam ocorrer dentro do regime monárquico, já os demais sustentavam que a
república era a solução para os problemas brasileiros. Foi a partir de uma
experiência comum de marginalização frente à ordem saquarema, ou seja, de não
terem seus interesses representados pelo Estado que, segundo a autora, os grupos
de contestação foram constituídos.
Os novos liberais eram monarquistas e criticavam, principalmente, a
manutenção da escravidão pelo Estado. A abolição era o ponto nevrálgico para o
grupo, constituído por homens que tinham aproximação com a família imperial ou
que pertenciam à ala mais reformista do Partido Liberal. Além das mudanças na
relação de trabalho, uma revisão da estrutura fundiária, com o estimulo à pequena
propriedade, chegava a ser solicitada. Era a chamada democracia rural de acordo
com a denominação de André Rebouças29. Seus expoentes atuaram na Corte, entre
28 Idéias em movimento... p. 165-222. 29 Sobre o significado de democracia rural para a geração, verificar CARVALHO, Maria Alice. O quinto século. André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/Revan, 1998; PESSANHA, Andréa Santos. Da abolição da escravatura à abolição da miséria. A vida e as idéias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet, 2005.
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eles encontramos Joaquim Nabuco, Gusmão Lobo e o próprio André Rebouças.
Este, em discussão com o grupo republicano da Corte, após a abolição da
escravatura afirmou que era infinitamente melhor a monarquia federativa popular e
democrática de Joaquim Nabuco; opulenta de aspirações nobres e altruístas30, que
a indecisão dos republicanos em relação à revisão da estrutura fundiária e com uma
postura dúbia sobre a indenização.
Os liberais republicanos eram originados da dissidência liberal que fundou o
Partido Republicano de 1870. A Corte também foi o espaço da ação política destes
homens. Para além dos descontentes com a queda do Gabinete Zacarias, passou a
abrigar, a partir da segunda metade da década de 80, um grande número de
profissionais liberais, portanto, homens não completamente dependentes da
propriedade em condições escravistas. No momento de sua constituição, Saldanha
Marinho foi o principal expoente do grupo. Sob sua proteção ingressaram na vida
pública Quintino Bocaiúva e Salvador de Mendonça, redatores do Manifesto
Republicano de 1870. Homens sem fortuna, desajudados de proteções eficazes,
unicamente escudados pela inteligência31 foram palavras de Bocaiúva que
sintetizam a auto-representação de integrante do grupo.
A república para os liberais republicanos estava ligada à busca das liberdades
individuais e de uma sociedade mais aberta aos talentos e às virtudes. Democracia
equivalia à república. A descentralização política e a mudança no sistema de
representação, abrindo espaços a novos agentes sociais, eram o cerne das
30 Cidade do Rio, 20 de junho de 1888, p.1 31 BOCAIÚVA, Quintino. Idéias políticas de Quintino Bocaiúva. Cronologia, introdução, notas bibliográficas e textos selecionados por Eduardo Silva. Brasília: Senado Federal, Rio de Janeiro: FCRB, 1986, volume 1, p.53
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reivindicações do grupo. De seu início até meados da década de oitenta, teve uma
atuação modesta e híbrida em relação ao Império, principalmente com a presença
dos liberais no poder entre 1878-1885, com a ascensão do Gabinete Sinimbu. Em
1885, a oposição do grupo ao Império foi intensificada, que coincide justamente com
o recorte deste trabalho. Entre seus expoentes, encontramos Quintino Bocaiúva,
Aristides Lobo e Lopes Trovão. Este jornalista, no período da discussão parlamentar
sobre a reforma eleitoral, publicou um artigo no jornal O Combate, de sua
propriedade, que demonstrava a preocupação do grupo com a participação
eleitoral:
Contudo, o projeto da reforma eleitoral não passa de mais um
sofisma com que a atual situação liberal ilude o seu próprio programa, ilaqueia a boa fé pública, compromete as doutrinas democráticas de que se diz representante legítima.
Pode-se afirmar que em tal documento político, o princípio da soberania da nação está sacrificado, a pátria está amputada no exercício de sua vontade32.
Os positivistas abolicionistas tiveram sua ação política, principalmente, a partir
das escolas superiores do país, em especial os egressos das Escolas Militar e
Politécnica, das faculdades de Direito de São Paulo e de Recife, e da Escola Normal
de São Paulo. Para este grupo, o lema positivista de ordem e progresso só chegaria
ao Brasil com o fim do cativeiro e com a proclamação da república. Para os
positivistas, abolição da escravidão era inegociável, a ponto de Ribeiro de Mendonça
ser expulso do Centro Positivista por Miguel Lemos tendo como pano de fundo o fato
32 11 de junho de 1880, p.1
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de possuir escravos. As divergências teóricas não foram primordiais para seu
afastamento33. A escravidão era condenada por eles, principalmente, pelo aspecto
moral, pois degenerava a sociedade como um todo.
De acordo com os três estágios do positivismo, a monarquia era inferior a
república. A forma evolutiva, natural, sem sobressaltos deveria encaminhar a
chegada da república. No Brasil, o ideal era aguardar a morte de D. Pedro II.
Defendiam a ditadura republicana, com um Executivo forte e intervencionista. O
ditador republicano teria um cargo vitalício e escolheria seu sucessor. Através dele,
uma república social seria implantada34. Entre seus expoentes, encontramos Miguel
Lemos, Sílvio Romero e Benjamim Constant. Silva Jardim, também integrante do
grupo, discursando no Clube Republicano de São Paulo, em 07 de abril de 1888,
afirmou ser a república a síntese da evolução histórica da Humanidade, cidadãos,
vai nos provar que ela tende inteira para o regime republicano35.
Os positivistas abolicionistas também tinham divisões internas. Os ortodoxos,
sob a liderança de Miguel Lemos, defendiam a não intervenção na vida partidária e
o não exercício de atividades ligadas ao Estado. Pelo primeiro motivo romperam
com Silva Jardim e pelo segundo com Benjamim Constant. Silva Jardim apoiou em
1886 a candidatura do republicano Quintino Bocaiúva, fato que o fez sair da Igreja
Positivista do Brasil36. Da mesma forma, tivemos positivistas membros do Exército e
33 Alonso, Angela , op. cit, p. 210-211 34 CARVALHO, José Murilo. A formação das almas. O imaginário da república No Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 41 35 SILVA, Antonio Jardim. Propaganda Republicana (1888-1889). Rio de Janeiro: Fundação casa de Rui Barbosa,1978, p.94 36 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. A esperança e o desencanto: Silva Jardim e a república. Tese de Doutorado, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2004, p.110
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professores da Escola Militar, sob a liderança de Benjamim Constant, que rompeu
em 1882 com a Sociedade Positivista, futura Igreja Positivista do Brasil37.
Os liberais federalistas eram, basicamente, filhos de estancieiros gaúchos e
cafeicultores paulistas. Possuindo pouca representação nos gabinetes imperiais, não
conseguindo interferir diretamente nas questões que envolvessem os negócios de
suas províncias, ingressaram no Partido Republicano de São Paulo ou no do Rio
Grande do Sul. O federalismo, a autonomia provincial, foi a principal bandeira. Após
a conclusão do curso superior, em geral de Direito, essa mocidade não buscava
construir uma carreira jornalística ou dedicar-se ao funcionalismo público na Corte.
Fixavam-se em suas províncias, distanciando-se de uma tendência da geração de
1870, pois representavam, acima de tudo, os interesses regionais. O diploma do
curso de Direito era um canal aberto para o Parlamento38. Procuraram demonstrar
cientificamente que a república federativa era superior à monarquia. Utilizaram o
positivismo como repertório da política científica e defenderam que a república
deveria chegar de forma evolutiva. Entre os expoentes do grupo, encontramos Júlio
de Castilhos e Pinheiro Machado, pelo Rio Grande do Sul, Alberto Campos,
Prudente de Moraes e Rangel Pestana, por São Paulo. Em carta a Francisco
Glicério – colaborador do jornal A Província de São Paulo - redigida em 10 de junho
de 1885, Prudente de Moraes explicitou como os interesses provinciais marcaram
sua atuação no Parlamento:
37 CARVALHO, José Murilo. A formação das almas... p. 42 38 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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Recebi tua carta de 7 do corrente. Fiquei muito satisfeito com a notícia de que meus discursos
agradaram aí na província aos amigos e até aos adversários políticos, pois é essa a minha única ambição. (...) O meu 2º discurso saiu hoje no Diário Oficial, lê e julga-o com franqueza. A nossa atitude na Câmara não agrada muito aos republicanos cá da corte, máxime aos exageradamente abolicionistas; o Aristides Lobo, que ouviu os meus discursos, disse-me que achou-os muito bons, gostou muito das minhas qualidades ou dotes de orador (expressões, dele), mas que as idéias são conservadoras!!... Felizmente o nosso objetivo é satisfazer aos republicanos e, desde que estejam satisfeitos conosco, pouco importa a opinião dos tais republicanos da corte, que são tão bons que até agora não conseguiram organizar partido39.
O texto de Prudente de Moraes é providencial para pensarmos as diferenças
e aproximações existentes entre os quatro grupos de contestação delimitados por
Angela Alonso. Os periódicos, foco deste estudo, foram redigidos por homens
ligados aos liberais republicanos, a partir da sistematização da autora. A
classificação é interessante para este trabalho, pois não implicou que os escritores
estivessem presos a objetivos, ações políticas ou a teorias que inviabilizassem o
diálogo e a comunhão de estratégias entre os membros dos específicos grupos da
geração de 1870.
Angela Alonso estabeleceu a diferenciação levando em consideração a
trajetória de vida, as posições políticas e as opções teóricas de seus membros. Na
geração, até em razão da proximidade física na Corte, local onde em geral atuaram
e da maior circulação das idéias, encontramos a interlocução entre os escritores e o
surgimento de polêmicas, tendo os jornais como arena por excelência40.
39 Citado em FREITAS, Clovis Glycerio. Jornada republicana: Francisco Glycerio. São Paulo: Plexus Editora, 2000, p. 76-77. 40 Um estudo sobre a predileção da geração de 1870 pelas polêmicas, encontramos em FERNANDES, Maria Fernanda. op. cit.
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As polêmicas ratificam que autores e leitores destes periódicos não podem
ser pensados separadamente. As críticas contidas nos artigos também eram
direcionadas a outros escritores da geração de 1870, que tinham um foco ou
estratégia de contestação ao Segundo Reinado, diferente da conduzida pela
redação do jornal.
Mais que acadêmica, a geração representou uma intervenção no debate
político. Como já foi dito, os referenciais teóricos europeus eram utilizados para
legitimar posições políticas. Assim, a fidelidade teórica e até mesmo a classificação
apresentada - e predominante na maior parte do tempo - poderiam ser preteridas em
nome da estratégia política. Nos jornais, percebemos que em alguns momentos a
tática para abalar a escravidão e o Poder Moderador era de aproximação. Os
integrantes dos grupos faziam alianças temporárias, pois as especificidades
continuavam latentes. Em outras ocasiões, reforçavam-se as diferenças entre novos
liberais, liberais republicanos, positivistas abolicionistas e federalistas republicanos.
A sistematização de Angela Alonso ajudará na análise do abolicionismo de O Paiz e
da Gazeta Nacional, jornais que contaram na redação com a presença de Quintino
Bocaiúva e Aristides Lobo, respectivamente, expressando, portanto, objetivos e
estratégias dos chamados liberais republicanos.
Os próprios nomes atribuídos aos sinalizaram os objetivos, os interesses
políticos e as identidades do grupo que dirigia as folhas. O Paiz e Gazeta Nacional,
produzidos por uma intelectualidade da Corte, por onde transitavam interesses de
todo o Império e uma visão mais cosmopolita, foram nomes indicativos dos dilemas,
preocupações que envolviam os intelectuais/políticos que estavam a sua frente. O
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jornal tratava de temas que abrangiam interesses do “país”, eram temas que
envolviam a questão “nacional”, próprios da preocupação dos liberais republicanos.
O título dados às folhas tinham um apelo para o pensar a nação e não era somente
em nome do Rio de Janeiro que as folhas existiam.
Em contraste, o jornal a Província de São Paulo, ligado ao grupo liberal
federalista, fazia referência à questão local. Os interesses desses proprietários
paulistas, que não ocupavam um lugar de destaque na política nacional, estariam
representados numa folha que trazia seu nome. Prudente de Moraes ficou
preocupado com a leitura que Francisco Glicério, jornalista desta folha, e com a
interpretação que seus conterrâneos políticos fariam de seus discurso na Corte. Era
a partir da província de São Paulo que o jornal se estruturava, muito embora ao
discutir, ao existir a partir dos interesses das elites regionais, um projeto para o país,
no caso, a república federativa, fosse divulgado.
Joaquim Nabuco, integrante dos novos liberais, defendeu a abolição da
escravatura e a monarquia federativa. Foi colaborador do jornal O Paiz, assinando a
coluna Campo Neutro. O próprio nome atribuído indicava um espaço imparcial, ou
seja, a seção de um lugar no impresso para um representante de uma linha diferente
da seguida pelo periódico. Era neste fato que residia a neutralidade da coluna. A
rigor, se aquele campo era neutro, os demais não precisavam ser. A presença de
Nabuco marcava a estratégia do jornal em atingir a ordem saquarema mediante o
fim da escravidão. Os artigos publicados pelo abolicionista atacavam a “nefanda
instituição”, segundo suas próprias palavras. Assinada a Lei Áurea, liberais
republicanos e novos liberais não teriam mais uma pauta comum de luta. Assim, em
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04 de janeiro de 1889, o periódico anuncia a saída de Nabuco da redação por
exclusivamente motivos de ordem política.
O Paiz e a Gazeta Nacional, insistentemente, divulgavam artigos da
Província de São Paulo e da Federação, ligados aos partidos republicanos de São
Paulo e do Rio Grande do Sul. A estratégia dos periódicos era enfraquecer a ordem
imperial através das críticas à centralização política. Contudo, conforme vimos,
Prudente de Moraes tinha divergências com os republicanos da Corte. Para o
deputado-geral, o importante era ser bem aceito pelos políticos paulistas, incluindo
seus adversários políticos na província. A opinião de Aristides Lobo, representante
dos republicanos da Corte, que enfatizava em seus artigo o tema da liberdade
individual para atacar o escravismo, ficou em segundo plano para o parlamentar.
Para Lobo, a proposta de Prudente de Moraes da abolição descentralizada – cada
província extinguiria o cativeiro de acordo com suas possibilidades - era
conservadora.
As viagens de propaganda de Silva Jardim, seus comícios, eram divulgados
nos jornais Gazeta Nacional e O Paiz. Contudo, existiram divergências de Jardim
com os liberais republicanos e com os liberais federalistas em torno da abolição da
escravidão e da ditadura republicana, própria dos positivistas abolicionistas. Sua não
integração maior com os republicanos da Corte e de São Paulo implicou em sua
exclusão, seu ostracismo na Primeira República, enquanto Quintino Bocaiúva,
participou inclusive da parada militar do 15 de Novembro.
Aristides Lobo e Quintino Bocaiúva foram representantes dos liberais
republicanos, tendo, portanto, trajetórias, opções teóricas e projetos para o Brasil
mais alinhados, que outros integrantes da geração de 1870. Foi na Corte que
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conseguiram projeção política na carreira jornalística a ponto de integrarem o
Governo Provisório, como reconhecimento da importância dos dois na propaganda
republicana. Bocaiúva nasceu na província do Rio de Janeiro, em 1836. Lobo
nasceu, em 1839, em Mananguape, Paraíba. Durante o Império, os dois foram
deputados-gerais e na República conseguiram postos políticos. Ou seja, muito
embora seus projetos republicanos tenham saído derrotados, eles transigiram com
os grupos que ocupavam o poder. Na República, Bocaiúva foi por duas vezes
senador, em 1889 e 1909, e presidente do Rio de Janeiro entre 1900-1903. Lobo foi
integrante da Primeira Constituinte, como representante do Distrito Federal, e
senador de 1892 a 1896, ano de seu falecimento.
Como outros membros da geração de 1870, Aristides Lobo foi advogado e
integrou a Confederação Abolicionista. Participou das folhas O Amigo do Povo e o
Diário de Notícias, além da Gazeta Nacional. Ingressou no partido republicano na
primeira hora, sendo um dos signatários do Manifesto Republicano. É considerado
pela historiografia como representante da ala mais radical do movimento no Rio de
Janeiro41. Demonstrou inquietude com a não participação do povo no momento da
Proclamação da República42.
Quintino Bocaiúva matriculou-se no curso de Direito em São Paulo, mas não
concluiu por problemas financeiros. Destacou-se na redação de O Globo e da A
República. Fez intensa propaganda abolicionista em O Paiz, sendo um dos grandes
41 NEVES, Margarida de Souza. “Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX” in FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucília (orgs) O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1940. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 34-35. 42 Diário Popular, 18 de novembro de 1889.
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homenageados pela imprensa com o 13 de Maio43. Segundo seu contemporâneo
Evaristo de Moraes, os artigos do jornalista eram mais voltados para a abolição do
que para a causa republicana44. Em 1889, foi eleito presidente nacional do Partido
Republicano, derrotando Silva Jardim. Bocaiúva, em 1911, meses antes de seu
falecimento, demonstrou insatisfação com os rumos da República após o 15 de
Novembro. Aquela não era a república de seus sonhos e, certamente, também não
era a de muitos liberais republicanos do Rio de Janeiro:
“Que reminiscências podem ser as minhas? (...) São as não poucas amarguras que tenho suportado, ao ver que ainda hoje andamos por longe do futuro que sonhamos na aurora de 89... Felizmente, se há consolo, é este de que a República está aí45.
Apesar do lema positivista ordem e progresso constar na bandeira nacional, o
projeto republicano vitorioso com a rotinização da República, a partir da ascensão à
presidência de Campos Sales, foi o paulista. Liberais republicanos, liberais
federalistas e positivistas representaram possibilidades distintas de se construir um
estado republicano no Brasil em seus anos iniciais e estiveram na arena política na
primeira fase da República46.
43 Quintino Bocaiúva tinha a estima de Dom Oba II, que era reconhecido como príncipe pela população escrava e liberta do Rio de Janeiro. Segundo Eduardo Silva : “Apesar de militarem em campos políticos opostos, o Príncipe referia-se a Bocaiúva como ‘meu amigo Quintino Bocaiúva’. Ele levava em conta especial o fato que o republicano era conhecido como o ‘Príncipe das Letras’, por sua produção poética e dramática de juventude” in Dom Oba II, D’África, o Príncipe do Povo. Vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.138. 44 MORAES, Evaristo. A campanha abolicionista (1879-1888). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986, p.10-13. 45 BOCAIÚVA, Quintino. Idéias políticas de Quintino Bocaiúva. Cronologia, introdução, notas bibliográficas e textos selecionados por Eduardo Silva. Brasília: Senado Federal, Rio de Janeiro: FCRB, 1986, volume 1, p.93. 46 Análises sobre os projetos republicanos em disputa nos primeiros anos da República no Brasil, encontramos em LESSA, Renato. A invenção republicana. Campos Sales, as bases e a decadência
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A sistematização de Angela Alonso é importante para este trabalho, pois
articula trajetória de vida, opções teóricas e ações políticas. Elite intelectual e elite
política foram indissociáveis na atuação da geração de 1870. No decorrer de suas
vidas, geralmente, ou ocupavam cargos no parlamento, na presidência de província
ou de estado, ou escreviam em nome desses interesses provinciais, conforme
ocorreu em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Em síntese, se os dois campos não
podem ser separados no Império, os jornais foram canais de divulgação desses
projetos políticos para o Brasil, tornando públicas questões de notoriedade ou não
que passavam pelo Parlamento, conforme fez Joaquim Serra ao sair em defesa dos
professores abolicionistas da Escola Politécnica.
Nos textos de Quintino Bocaiúva e de Aristides Lobo, o tema da liberdade
individual era muito caro, representando devidamente um projeto republicano
centrado no liberalismo, no espírito do self-made-man, que não se coadunava com o
Estado centralizado brasileiro, onde ainda existia a escravidão.
da Primeira República. Rio de Janeiro: IUPERJ, São Paulo: Vértice, 1988; CARVALHO, José Murilo. A formação das almas...
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2.3. Periódicos republicanos e abolicionistas?
Em torno da abolição e da república, giraram as estratégias de interseção e
afastamento dos homens da geração de 1870. A partir de meados da década de
oitenta, precisavam tomar posições - e quando não tomavam eram cobrados por
seus adversários políticos - frente ao encaminhamento do fim do cativeiro e à
república. Era impossível simplesmente passar ao largo deste debate.
O caráter republicano da Gazeta Nacional foi assumido logo em seu nome,
que tinha o subtítulo, Órgão Republicano e suas ligações com a causa abolicionista
eram reforçadas a cada número. Já O Paiz nasceu negando sua aproximação com
os republicanos, buscando uma neutralidade partidária. Seu envolvimento com o
abolicionismo foi muito divulgado nos festejos do 13 de Maio, parando inclusive um
cortejo em frente a sua sede para ouvir discurso de Quintino Bocaiúva.
2.3.1. Basta amar a liberdade
Não é sem íntima e sincera comoção que vejo flutuar de novo
nas mãos de um dos mais bravos e ilustres chefes do partido republicano brasileiro a bandeira gloriosa que já tive a honra de empenhar e de defender na imprensa quando, em tempos mais felizes para mim, coube-me a árdua tarefa da redação da “República”.
Herdeira das tradições e da fé republicana de que esse órgão foi na sua época, a mais ousada expressão a “Gazeta Nacional” que hoje enceta sua existência está destinada a exercer uma grande influência e a representar um nobilíssimo papel.
Entre a “República” e a “Gazeta Nacional” mediou um longo intervalo, mas que esse período agitado de nossa vida social e
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política representa propriamente a grande fase da elaboração nacional durante a qual amadureceu nos espíritos a semente da propaganda republicana.47
Assim escreveu Quintino Bocaiúva, na Gazeta Nacional, para saudar o novo
jornal republicano. A data escolhida para o primeiro número, 3 de dezembro de
1887, reforçou sua ligação com signatários do Manifesto Republicano, pois coincidiu
com o dia da divulgação deste documento no jornal A República em 1870. Logo de
início, a Gazeta Nacional informou que sua missão era defender as liberdades
individuais e a república federativa. Em sua primeira aparição, afirmou que a
centralização foi a forma que a monarquia encontrou para manter a unidade,
representando no entanto, os interesses pessoais da família de Bragança. Na atual
conjuntura, a separação de províncias, como Rio Grande do Sul e São Paulo,
somente poderia ser evitada com o federalismo. Em nome da unidade, a bandeira
da descentralização era erguida. O federalismo era justamente a semente
amadurecida no espírito nacional, mencionado por Bocaiúva logo no início da vida
do periódico.
A Gazeta Nacional teve curta duração pois em junho de 1888 parou de
circular. O valor avulso de cada exemplar era 40 réis, o mesmo preço do jornal O
Paiz. Com quatro páginas, era de circulação diária, não saindo somente na
segunda-feira. A primeira sede foi na rua do Ourives, número 21, mudando em abril
para a rua da Ajuda, número 23. As razões da mudança de endereço não foram
explicitadas na folha, mas a partir de então, o jornal começou a pedir o apoio dos
47 “A causa republicana”, 03 de dezembro de 1887, p.1
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correligionários e da população do Rio de Janeiro. É provável que começasse a
passar por dificuldade financeira. As colunas Boletim - Vida externa, Sessão
Comercial, Folhetim e Carteira Política constituíram as sessões permanentes,
ficando, em geral, na segunda e terceira folhas. Na primeira página, estavam os
artigos propriamente de divulgação da campanha, os textos sobre a abolição da
escravatura, as críticas à família real, em particular ao Conde D’eu e à Princesa
Isabel. A última página era dedicada aos anúncios.
Não havia informação sobre a tiragem do periódico. De qualquer forma,
insistiam na dificuldade de venda para além da Corte e de Niterói. Mesmo que não
houvesse grande circulação, a folha era conhecida e lida por expoentes da geração
de 1870. José do Patrocínio, com quem travou polêmicas, lastimou o fato dos
republicanos permitirem que por problemas financeiros a Gazeta chegasse ao fim48.
O jornalista paulista Rangel Pestana recomendou a leitura do artigo da Gazeta sobre
as comemorações do 13 de Maio e reproduziu parte de seu conteúdo. Evaristo de
Moraes, escrevendo suas memórias sobre o movimento republicano em 1936,
destacou a presença da folha entre os republicanos da Corte49. Assim, mesmo que
não tivesse uma grande tiragem era conhecida entre as elites intelectuais e seus
artigos acabavam sendo mais divulgados quando eram reproduzidos em periódicos
de maior circulação.
O público da folha era indiretamente o público da folha da Província de São
Paulo, caso consideremos o trânsito entre os dois periódicos. A Gazeta Nacional,
publicava constantemente textos deste jornal paulista, buscando fortalecer a
48 Cidade do Rio, “Respondo...”, 14 de setembro de 1888. 49 Da monarquia para a república..., p. 18.
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campanha republicana. A aproximação do público da Gazeta Nacional e da
Província de São Paulo ocorria mediante o diálogo destes intelectuais:
A “Província de S. Paulo”, a gloriosa folha republicana que
brilha à frente do progresso paulistano, estampou em suas colunas editoriais de 6 do corrente, um artigo em que com o elevado critério que lhe é peculiar, estuda as relações entre os republicanos e o ministério, assinalando com grande clareza de vistas a atitude que mais convém, no meio da decomposição das forças monárquicas, para a consecução de nosso ideal político.
Como nós pensa o ilustre colega que agora mais do que nunca convém toda a firmeza nas forças republicanas50.
A Gazeta Nacional reproduzia artigo da Província de São Paulo, que citava a
própria Gazeta. Era uma forma de aumentar a credibilidade, o prestígio de seus
textos, a partir das considerações feitas por Rangel Pestana:
Eis o que diz em seu editorial de 18 do corrente o ilustre
democrata e erudito redator da Província de São Paulo, o dr. Rangel Pestana:
“Nas ovações à regente e ao ministério, no grande cortejo popular à glória que sobe lenta e arteiramente os degraus do trono, tornou-se voz dissoante a Gazeta Nacional.
É um ato de civismo esse que praticou a folha republicana. Romper por entre as massas cegas pelo entusiasmo, desorientadas pela lisonja estudada e habilmente levada a efeito, em tais ocasiões a revelar coragem e justeza admirável de apreciação.
Não foi outro o procedimento da Gazeta Nacional51.
50 “Os republicanos e o ministério”, 08 de abril de 1888, p.2. 51 “A nossa atitude”, 22 de maio de 1888, p.1.
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Além de Aristides Lobo, outros expoentes do Partido Republicano no Rio de
Janeiro estavam presentes na redação. JJ Pernambuco, Mathias de Carvalho e
Ubaldino do Amaral, que foi membro da comissão executiva do Partido Republicano
quando Bocaiúva foi o chefe nacional do Partido52. Em março, Lobo deixou a
redação da folha e foi para São Paulo atuar no Diário Popular. A linha editorial do
periódico não mudou, passando a figurar em seus créditos somente a direção de J.J.
Pernambuco. Mathias de Carvalho representou a Gazeta nos festejos promovidos
pela imprensa na Corte em razão do 13 de Maio.
Na citação inicial deste tópico, Bocaiúva estabeleceu uma associação entre a
Gazeta Nacional e a República, mas existiram diferenças fundamentais entre os dois
periódicos. A República foi criada pelo Clube Republicano e representou a voz do
Partido Republicano no Rio de Janeiro, já a Gazeta Nacional testemunhava sua fé
republicana, porém não era a fala oficial do Partido. Ao longo dos números, fazia
circular as idéias dos principais centros republicanos do país. Ao insistir na
divulgação de textos da Província de São Paulo e da Federação, pretendia que os
projetos e os discursos do grupo fossem difundidos. Contudo, sempre reforçou que,
mesmo tendo por subtítulo Órgão Republicano, as idéias que difundia não
representavam o Partido. Elas consistiam no pensamento de seus redatores, que
eram lideranças republicanas:
52 MORAES, Evaristo. op. cit, p.19.
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(...) Não temos autoridade para responder. A Gazeta Nacional é republicana, e pelo esforço de
republicanos tem se mantido, mas não é órgão do Partido Republicano e nem pode falar em seu nome.
(...) A Gazeta Nacional não se excusa de emitir parecer, como é lícito a qualquer cidadão, e como cumpre a todo aquele que tem a honra de escrever para o público53.
Tal postura era importante para não comprometer a organização partidária
com os artigos mais contundentes da folha, principalmente no que se refere à
abolição da escravidão e ao apoio que concedia, por exemplo, à fuga dos escravos
em São Paulo. O Partido Republicano, desta forma, não deveria ser associado
diretamente aos posicionamentos apresentados na Gazeta, pois seus redatores não
tinham autoridade para isso.
Neste ponto, reside um outro divisor de águas entre as duas redações nas
quais atuou Aristides Lobo. Em 1871, Bocaiúva, também redator de A República
poderia afirmar que a república era uma questão política e a abolição uma questão
social. As duas lutas não deveriam ser confundidas. Dezessete anos depois, com
todas as discussões que envolveram a aprovação da Lei dos Sexagenários no
Parlamento, com o crescimento do movimento abolicionista na cidade e no campo e,
principalmente, com todas as estratégias que os escravos empreenderam ao longo
da década de oitenta pela conquista da liberdade, um periódico republicano, que
dizia atuar em nome da liberdade, não poderia separar as duas causas. No
momento, como estratégia para atrair garantir espaços políticos era importante a
associação entre república e abolição:
53 “Nossa opinião” in Gazeta Nacional, 16 de março de 1888, p.1
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Como partido aparecemos a público em 1870, sendo publicado a 3 de dezembro com o 1º número de “República” o nosso manifesto.
A quase totalidade dos signatários do manifesto não possuíam um só escravo. É fácil verificá-lo.
A nossa imprensa foi sempre pela abolição54.
Assim, a Gazeta Nacional nasceu republicana e abolicionista. Defendeu a
abolição imediata, porém não assumiu posições firmes em relação à indenização. A
ausência é significativa, pois a omissão também fala. Acredito que a postura dúbia,
indefinida, era uma forma de não provocar descontentamento a fazendeiros, que
ainda poderiam vir para as fileiras da república. Assim, a ausência desta discussão
abria possibilidades do fortalecimento de alianças com os liberais federalistas e de
atrair os possíveis descontentes com a assinatura da Lei Áurea pela monarquia: A
nossa conduta é clara e definida, obedece as leis fixas e cientificamente
estabelecidas e é conhecida de todo o país: queremos a abolição imediata e
incondicional55. O tema da indenização, conforme essas palavras, não era colocado
em pauta pela folha.
De qualquer forma, a participação dos escravos na conquista da liberdade era
elogiada pela folha antes e depois da Lei Áurea. Como veremos, foi um recurso para
atingir a imagem da monarquia, retirando o papel protagonista da Princesa Isabel, e
questionar a legislação emancipacionista levado a cabo pelo Partido Conservador.
Feita a abolição, a república era o próximo passo para o desenvolvimento do
país. A Gazeta Nacional “continuava a ser abolicionista”, título atribuído a alguns
artigos, não por promover uma discussão sobre o destino do ex-escravo – conforme
54 “Velha calúnia” in Gazeta Nacional, 29 de março de 1888, p. 2
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fizeram novos liberais como Joaquim Nabuco e André Rebouças – mas pelo fato da
etapa seguinte do abolicionismo ser a libertação dos brancos da ignorância, da falta
de liberdade, representadas pela Coroa:
A liberdade da raça escravizada deve seguir a liberdade
política da pátria. (...) Cidadãos, trabalhemos. Não percamos tempo. É necessário
inaugurar a República Federal. É a conclusão da obra iniciada com a abolição do cativeiro. Continuemos a ser abolicionista56.
Para se alcançar a república, o jornal reiterava posições diferentes em relação
a Miguel Lemos: Não abraçamos por exemplo a fórmula definida por A. Comte e
proficientemente vulgarizada pelos nossos distintos patrícios Miguel Lemos e R.
Teixeira Mendes57. A causa republicana não podia aguardar lentas transformações
na sociedade. Atitude que ficava bem na teoria, porém não representava para a
folha o momento atual do país, que exigia uma mobilização popular para se alcançar
a abolição política.
55 “Abolição e república”, 01 de abril de 1888, p.1 56 “Continuamos a ser abolicionista”, 05 de junho de 1888, p.1 57 “Comentários”, 05 de maio de 1888, p.1
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2.3.2. Onde não tumultuam os interesses partidários
O jornal O Paiz foi fundado em 01 de outubro de 1884, com sede na rua do
Ouvidor, número 6358. O primeiro número anunciava a propriedade de João José
dos Reis Júnior. Possuía quatro páginas, nas duas primeiras estavam as colunas
Telegramas, Noticiário, Resenha Diária e Seção Livre. As páginas finais eram
voltadas para anúncios. Quintino Bocaiúva foi seu redator até 1899.
Apresentar-se como jornal neutro, imparcial era ponto nevrálgico nos
primeiros exemplares. A redação entrou em atrito com o jornal Brazil, que
desconfiava da isenção da folha frente aos assuntos partidários. O Paiz afirmava
que debatia as questões políticas e sociais, por isso algumas críticas eram dirigidas
ao governo, mas a neutralidade era a marca do periódico:
É injusto o ilustrado colega do Brazil, quando aconselha-nos
que tomemos posição francamente partidária, por isso que ele descrê de nossa imparcialidade.
O Paiz sabe perfeitamente qual a posição que lhe cumpre na imprensa e está resolvido a manter-se nela, quaisquer que sejam as objeções oferecidas pelos que se acham envolvidos na luta dos partidos59.
De fato, a insistência na neutralidade marcou os primeiros dias do jornal.
Reiteirando que as publicações estavam acima das questões partidárias:
58 Um estudo sobre o jornal O Paiz, encontramos em BARBOSA, Marialva. Os donos do Rio. Imprensa, poder e público. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2000. 59 “Resenha Diária”, 04 de outubro de 1884, p.1.
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Já dissemos de sobra [grifo nosso] de que modo entendemos o papel da folha neutra, e como nos desempenharemos de tal encargo.
(...) A questão é manter-se o escritor no programa da folha que
não tem partido, mas que, tendo idéias, não as quer defendida senão de acordo com as opiniões daqueles que foram expontaneamente convidados para nela escrever60.
Em janeiro de 1885, O Paiz analisava o o resultado das eleições para
deputado-geral e, paralelamente, travava um debate com O Brazil em torno da
neutralidade de seu programa:
Aos nossos ilustrados colegas redatores do Brazil somos
particularmente gratos, pela gentileza e generosidade com que sempre nos têm honrado em referências benévolas.
Contudo, há um ponto com que nossos distintos colegas parece achar-nos em falta, incluindo-nos nas censuras que dirigem à parcialidade real ou suposta das folhas neutras, em cujo número supomos estar61.
Mas qual seria a razão da necessidade de O Paiz em construir a imagem da
neutralidade política, da imparcialidade partidária? Acredito que a resposta pode
estar vinculada ao público almejado pela recente folha.
A neutralidade de O Paiz não convenceu facilmente a seus leitores,
considerando que os ilustres colegas de Brazil também fizeram parte desse grupo. O
discurso pela imparcialidade tinha uma ligação direta com o público que se pretendia
alcançar. Em primeiro lugar, facilitava a leitura do periódico por homens de
60 “Velhas histórias”, 11 de outubro de 1884, p.1. 61 “As estatísticas eleitorais”, 11 de janeiro de 1885, p.1.
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diferentes partidos e nos momentos de luta pela abolição, por exemplo, as alianças
com os novos liberais, como Joaquim Nabuco, poderia mais facilmente ser
estabelecida. A Gazeta Nacional que se apresenta ao público como republicana não
contou com a colaboração de Joaquim Nabuco e certamente seus leitores foram
mais próximos ao movimento republicano.
A busca de convencer ao leitor que O Paiz era isento foi um indício do público
alvejado62. A folha não se apresentava como órgãos dos reconhecidamente
republicanos. O importante era ter a simpatia daqueles que poderiam ser
convencidos das vantagens da república e de todo o malefício gerado pela dinastia
de Bragança e pela centralização do poder ao país.
Uma análise mais apurada dos primeiros exemplares da folha permite
entender a desconfiança dos redatores de o Brazil em relação a neutralidade
partidária de O Paiz. As feições republicanas estiveram presentes no mesmo artigo
que professava a indiferença quanto aos regimes políticos. Ainda em outubro de
1884, as críticas ao Partido Liberal e ao Conservador foram postas:
Foi depois do abastardamento dos partidos, da falta absoluta
de programa, do barulhamento de idéias, da realização das reformas liberais pelos conservadores, e da negação de todos os princípios de suas escolas pelos liberais, que a imprensa neutra chamou para si a discussões de uns tantos assuntos63.
62 Para o período, Marialva Barbosa afirma que “O Paiz não possui expressividade em termos de circulação, pulverizando uma pequena preferência entre os grupos dominantes. No final da década, o panorama sofre alteração” in Donos do Rio..., p. 217. 63 “Velhas histórias”, 11 de outubro de 1884, p.1.
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Censuras ao Império no que tange ao trato com a questão servil foram
constantes. Paralelamente, a eleição de republicanos para o Parlamento foi elogiada
pela folha:
Há uma novidade, é certo, no organismo legislativo: o voto de dois republicanos decididos, que não sonharam na mocidade, como muitos, para acordarem ministros de Sua Majestade(...)
A novidade, portanto, será essa que nos enviará São Paulo64.
Era com satisfação, que no primeiro dia do ano de 1885, a eleição de Campos
Sales para o Parlamento, na condição de candidato republicano, era divulgada pela
folha. Para tanto, usou como estratégia a reprodução de um artigo da Província de
São Paulo. O texto destacava o crescimento da causa republicana no Brasil,
consubstanciada na eleição de Campos Sales. Com este recurso, O Paiz sentia-se
autorizado a insistir com a imagem da imparcialidade, pois era através da fala de
outro periódico que os elogios à república e aos republicanos eram feitos. O tom
francamente republicano ficou a cargo do jornal de São Paulo.
De qualquer forma, na introdução do artigo, antes da reprodução do texto do
jornal A Província de São Paulo, O Paiz, referiu-se diretamente à vitória do
candidato do Partido Republicano, como positiva para o Brasil. Ela consistia no
primeiro passo de uma “transformação radical” da sociedade por meios legais:
64 “Tópicos do Dia”, 03 de dezembro de 1884, p.1
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O ilustre cidadão que acaba de ser investido de tão honroso mandato é o primeiro representante da idéia republicana, sufragado por um eleitorado republicano, eleitorado que conquistou, pelos meios legais, mais francos e positivos, o direito que acaba de receber das urnas, a sua suprema sanção.
Este fato, que constitui um fenômeno político, que dever ser assinalado por nós como por toda a imprensa.
É a primeira manifestação de uma idéia que envolve em si uma transformação radical; é a primeira vez que um partido novo e incipiente vai exalçar no seio do parlamento nacional como ato de suas crenças e das suas aspirações; é o primeiro ato de vigor e energia que atesta a existência de uma opinião corporificada, a qual, partindo de luta legal, consegui já abrir espaço para sua representação no seio do grande conselho nacional.65
Em janeiro de 1885, as qualidades pessoais de Prudente de Moraes foram
exaltadas e sua presença no Parlamento considerada um diferencial para a rotineira
política brasileira:
A província de São Paulo manda ao seio do parlamento mais um representante do partido republicano.
(...) O eminente republicano paulista, que acaba de alcançar tão
honrosa vitória, é pelo seus talentos, pelas suas virtudes e pelos seus dotes oratórios um dos mais brilhantes ornamentos de seu partido e uma das glórias da província de São Paulo.
(...) Fazendo nossas as palavras com que o nosso ilustrado
colega da Província de São Paulo refere-se à candidatura deste ilustre cidadão, comprazemo-nos em poder testemunhar a sua pessoa e a sua província a homenagem de nossa cordial estima66.
No acompanhamento dos textos do jornal, verifico que a simpatia de O Paiz
pela república foi explicitada em vários momentos, contrariando o discurso oficial da
65 “O Dr. Campos Sales”, 01 de janeiro de 1885, p.1. 66 “O Dr. Prudente de Moraes”, 10 de janeiro de 1885, p.1.
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redação. A título de exemplo podemos citar a comparação feita entre o Brasil e as
demais nações da América, onde o país foi considerado atrasado por não possuir o
modelo republicano67; as críticas à família de Bragança na administração do país68;
e as homenagens, feitas em janeiro de 1885, ao jornal republicano de Porto Alegre A
Federação, em razão de seu primeiro aniversário de existência69. Nos anos
subseqüentes, em especial pela atuação da folha na Questão Militar, a dita
imparcialidade de O Paiz não constará sequer no discurso da folha e sua atuação foi
apontada por contemporâneos e estudiosos da imprensa como importante para
desabonar a monarquia70.
Em relação ao fim do cativeiro, os artigos mais contundentes não foram
assinados por Quintino Bocaiúva. A defesa da abolição da escravatura imediata,
incondicional e sem indenização ficaram para a pena de Joaquim Nabuco e Joaquim
Serra. Este assinou a coluna “Tópicos do Dia” existente de novembro de 1884 a
maio de 1888, quando seu responsável afirmou não ter mais sentido manter aquele
campo de luta:
Hoje, um dia depois da Redenção, julgamos nosso dever depor a arma de que nos servimos por tão longos e desesperançosos dias, sempre a serviço da causa que providencialmente acaba de triunfar.
(...) Cessado o motivo que determinava a vigilância desta
sentinela, com a permanência ao seu posto obrigatório.
67 “Por que não temos um código civil”, 12 de dezembro de 1884, p.1 68 O Guia do Imigrante foi recriminado pelo jornal por exaltar qualidades da família de Bragança e pouco mostrando da realidade brasileira pouco favorável à vinda do imigrante. “Guia do Imigrante”, 08 de outubro de 1884, p1. 69 “A Federação”, 17 de janeiro de 1885, p1. 70 MORAES, Evaristo. Da monarquia para a repúlica..., p. 47-57; SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Maud, 1999, p. 237.
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Desaparecem, pois destas colunas os “Tópicos do Dia”, importuno monocárdio que não soube vibrar outra nota fora da guerra abolicionista71.
Apesar de Evaristo de Moraes afirmar que os artigos de Quintino Bocaiúva
publicados em O Paiz possuírem um caráter mais abolicionista que republicano72,
não é essa a leitura que faço. Os textos do jornalista abordavam, por excelência,
temas questionadores da ordem monárquica, como a questão militar, a defesa do
federalismo, o registro civil, a separação Estado/Igreja e, entre eles, o regime de
trabalho escravo. A abolição, enfaticamente, não foi o cerne das publicações do
republicano. É provável que em razão de sua projeção no Partido Republicano, ele
tenha evitado esta posição, pois para os leitores de O Paiz, que incluíam
proprietários de escravos, seu discurso poderia ser associado ao Partido. Constato
que, desde o início, a coluna “Tópicos do Dia” deu o tom da campanha abolicionista
de O Paiz.
O Maranhense Joaquim Serra teve uma trajetória típica da geração de 1870.
Foi professor de Gramática e Literatura no Liceu Maranhanse, sendo deputado-geral
também por esta província. A aproximação com Machado de Assis levou-o para a
vida literária. Em 1868, fixou residência no Rio de Janeiro, passando a exercer o
jornalismo. Atuou também nas redações de Reforma, do Diário Oficial, da Folha
Nova, adotando vários pseudônimos Amigo Ausente, Ignotus, Max Sedlitz, Pietro de
castellamare e Tragalbadas. Seu envolvimento com o abolicionismo foi de primeira
hora, integrando a Confederação Abolicionista. Faleceu em outubro de 1888, dando
71 “Tópicos do Dia”, 14 de maio de 1888, p.1. 72 Da monarquia para a república. .., p.18.
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um caráter romântico aos artigos em sua homenagem: terminada a batalha principal,
o jornalista, agora podia descansar. O Paiz informava que os ex-escravizados
mandavam rezar missas para a alma de Joaquim Serra.
A posição francamente favorável à indenização coube a Joaquim Serra e
Joaquim Nabuco. Com a morte do primeiro e o afastamento do outro da folha por
razões exclusivamente políticas, a dubiedade marcou a redação de O Paiz tal qual
da Gazeta Nacional. Era preciso não afastar possíveis adesões ao movimento
republicano.
A Gazeta Nacional e O Paiz tiveram um caráter republicano e abolicionista,
apesar da primeira não apresentar uma postura firme em relação à indenização, pois
esta não poderia ser o carro-chefe de uma folha que tinham por subtítulo Órgão
republicano. Os artigos que veicularam foram escritos pela e para a geração de
1870. De acordo com o pensamento destes homens, o desenvolvimento econômico
do país e formação da nação eram incompatíveis com a permanência do cativeiro.
Contudo, os periódicos também precisavam do apoio dos setores proprietários ainda
ligados a produção em condições escravistas e descontentes com a atuação da
monarquia na questão do elemento servil.
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3. CONSTRUINDO A MEMÓRIA DA ABOLIÇÃO
O 13 de Maio foi um divisor de águas dentro do movimento republicano do
Rio de Janeiro. Com a proximidade da Abolição, a disputa pela construção da
memória da abolição teve a imprensa como arena. Os jornais oscilavam entre
escravos, princesa e partidos na consolidação da imagem do responsável pelo fim
do cativeiro.
A postura do Partido Republicano em aceitar de bom grado as adesões dos
fazendeiros, até então escravistas, gerou polêmica com José do Patrocínio e
fomentou um debate na imprensa sobre a associação entre movimento republicano
e abolição da escravatura.
3.1. Imprensa, abolição e paternalismo
O historiador dessa enorme crise social e econômica terá de
registrar essa pureza de intenções, esse escrúpulo em evitar perverter o espírito do escravo, armando-o contra o opressor e induzindo-o a vindita sangrenta. Verá essa multidão negra, forte como leões, brutalizada no ódio pelo castigo fácil e cruel, alvitada a condição de instrumento desprezível, sem conforto de amor, tolida nas próprias expansões da sexualidade, voltar olhos esperançados para os poucos amigos que proclamavam seus direitos de homens, e ressurgir a pouco e pouco grandiosa, divina, no caminho da liberdade, sem abrir espadonos de sangue, sem que a tempestade, da revolta desabrida, utulante e indômita, lhe açoutasse a grande alma martirizada1.
1 “Idéias e homens” in Gazeta Nacional, 29 de abril de 1888, p.1.
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O texto acima foi publicado em abril de 1888 na Gazeta Nacional e pode ser
considerado como um documento/monumento.2 Suas afirmações foram significativas
para a imagem que os abolicionistas do Rio de Janeiro pretendiam construir de sua
atuação. Nos momentos finais do cativeiro, a preocupação com a memória que se
formaria do movimento abolicionista ficou explicitada com a referência feita
diretamente aos historiadores.
As palavras do autor possuem um tom de pretensa verdade, quer demonstrar
que o artigo faria o simples relato dos fatos. Esta estratégia fica evidenciada com a
acertiva de que o historiador “terá de registrar”. A rigor, a Gazeta Nacional fez um
processo de seleção, construção e exposição da maneira como a atuação dos
abolicionistas e a participação do escravo deveriam ser eternizadas.3
Ao longo da construção do movimento abolicionista pelo artigo, existiam duas
imagens que deveriam ficar cristalizadas na memória da Abolição no Brasil. A
primeira referia-se ao espírito ordeiro do escravo, que através de sua resistência
pacata acelerou a abolição. A segunda, que foi fundamental para o rumo do
processo, foi a ação/imagem do abolicionista/jornalista, que por conta de sua pureza
de intenções não subverteu a alma cordial do escravo.
Para que essas construções fossem possíveis, houve toda uma
argumentação de O Paiz e da Gazeta Nacional baseada na fraternidade da
2 “O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos” in LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 526. 3 De acordo com Marialva Barbosa, “Eternizar um dado momento, através da escrita é, sob certo aspecto, ‘domesticar e selecionar a memória’. Ao selecionar o que deve ser lembrado e ao esquecer o que deve ficar em zonas de sombra e de silêncio, os jornais torna-se-iam tamém senhores.” in Os donos do Rio. Imprensa, poder e público. Rio de Janeiro: Vícios de Leitura, 2000, p. 117-118.
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escravidão brasileira. As práticas paternalistas que revigoravam e sustentaram o
modelo escravista deveriam conduzir também o processo de emancipação.
O paternalismo e a pedagogia da violência foram mecanismos utilizados pelos
proprietários para controle dos escravos desde o Brasil-Colônia. Ele foi uma forma
de manutenção da ordem social. Juntamente com o uso da força, da violência
exercida diretamente sobre o cativo – muitas vezes com o próprio aparelho
repressivo do Estado – os donos de escravos utilizavam também métodos de
controle social que objetivavam a formação de vínculos entre os dois pólos. Tais
relações não implicavam simplesmente em benevolência senhorial e sim a busca de
outras formas de organização do sistema escravista, que não se sustentaria apenas
pelo uso da força física4.
O paternalismo ligou-se a um conjunto de manipulações, negociações entre
senhores e escravos. Se para os primeiros era um instrumento de controle e uma
forma de manter seu patrimônio5, para os cativos tinha o sentido de abrandar a vida
na escravidão. Estabeleciam-se práticas costumeiras como possibilidade de fazer
pecúlio, um comércio local, manutenção de famílias, escolha de parceiros conjugais,
acesso à roça, freqüência aos batuques e às irmandades religiosas negras que
4 “Tivemos, ainda, oportunidade de observar que a prática do castigo senhorial continha uma dimensão pedagógica que unia amor e medo, mercê e rigor, e se fazia no interior de uma relação pessoal de dominação que, através de suas mediações, possibilitava um afastamento senhorial do exercício direto dos ‘excessos’ e dos ‘abusos’.(...)” in LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 5 Maria de Fátima Novaes Pires, ao estudar os crimes cometidos por escravos no Alto Sertão da Bahia, constata que vários delitos dos cativos foram escondidos pelos senhores, que, muitas vezes, acabavam por comprometerem-se com a própria Justiça: “Em circunstâncias adversas, muitos senhores estrategicamente ‘protegiam’ seus escravos das ‘barras da lei’, no sentido de preservação do seu patrimônio. No caso específico do sertão baiano, contava-se à essa época com a crise econômica provocada pelo declínio da mineração e também com as estiagens, que de tempos em tempos abalavam a economia regional”. In O crime na cor: escravos e forros no Alto Sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2003, p.276.
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deveriam ser respeitados caso contrário poderiam ocorrer fugas, revoltas,
assassinatos na comunidade escrava6.
Os cativos, nascidos no Brasil, tinham larga experiência de uma política de
negociação - que não excluía o conflito7. Entre senhores e escravos, produziam-se
vínculos que garantiam fidelidade aos proprietários e representavam a possibilidade
de alforria para os cativos. Os senhores sabiam dos riscos de insubordinação
mediante a constituição de um cativeiro que não tivesse como mira o alcance das
manumissões8.
As vantagens obtidas dentro do cativeiro não deveriam ser vistas como
conquista e sim concessão, de maneira a gerar um sentimento de gratidão. O
escravo grato, que consegue espaços para negociação, mantinha a esperança de
conquista da alforria. A possibilidade desta era, a rigor, um importante mecanismo
de controle social e de diferenciação entre os cativos.
Na década de oitenta, com o aumento da pressão dos escravos pela
liberdade, a lógica paternalista de domínio senhorial, constituía um argumento de
convencimento aos senhores, nos artigos veiculados na imprensa que defendiam a
6 Entre os trabalhos que tratam do quotidiano e dos espaços de negociação dos escravos no Brasil, citamos: REIS, João José, SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; MACHADO, Humberto Fernandes. Escravos, senhores e café. A crise da cafeicultura escravista do Vale do Paraíba Fluminense. Niterói: Cromos, 1993; FLORENTINO, Manolo, GOÉS, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro. Século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá vem meu parente. As irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco.(século XVIII). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2002. 7 REIS, João José, SILVA, Eduardo. Negociação e conflito...; MACHADO, Humberto Fernandes. “Resistência e violência” in Escravos, senhores e café...
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abolição da escravatura no Brasil9. O sentido de concessão e não de conquista era a
estratégia a ser utilizada. O fim do cativeiro deveria ser resultado da ação de uma
elite e não ter os escravos como agentes. Neste sentido, devemos lembrar da
clássica afirmação de Joaquim Nabuco: “(...) O abolicionista é o advogado gratuito
de duas classes que, de outra forma, não teriam os seus direitos, nem consciência
deles. Essas classes são: os escravos e os ingênuos”10. Ou seja, o processo de
abolição da escravatura no Brasil deveria ser uma concessão dos grupos dirigentes
apoiados pelos abolicionistas, com “pureza de intenções” que levariam a liberdade a
um grupo que, sozinho, não conseguiria alcançá-la.11
A postura paternalista revelou-se, assim, numa proposta de transição do
trabalho compulsório para o livre que entendia a abolição como uma concessão,
uma dádiva das elites brasileiras e, em especial, do grupo de abolicionistas, aos
escravos. Estes eram considerados incapazes de agirem por conta própria,
precisando, assim, da tutela dos grupos com organização política para representá-
los e conquistar os seus direitos. Por essa ótica, podem ser lidas, por exemplo, as
festas beneficentes, os fundos de emancipação, os livros de ouro e as notícias sobre
alforrias.
8 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio... p. 292. 9 Sobre o discurso paternalista da imprensa abolicionista da cidade do Rio de Janeiro, ver MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados. A imprensa abolicionista da cidade do Rio de Janeiro.1880-1888. Tese de Doutorado, São Paulo: Universidade de São Paulo, 1991. 10 O abolicionismo. Vozes, 1977, p. 199. 11 Maria Helena Machado, em estudo sobre a quebra da rotina do trabalho pelo escravo, através da redução do ritmo, das fugas e das revoltas, em fazendas de São Paulo, constatou a existência de uma dinâmica própria dos cativos em busca da liberdade, independente dos segmentos urbanos. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: Ed. UFRF, São Paulo: EDUSP, 1994. Assim, é importante frisar que o presente trabalho sustenta a leitura do movimento abolicionista pela lógica paternalista por conta de seu objeto de estudo, o discurso veiculado nos jornais O Paiz e na Gazeta Nacional, representantes da intelectualidade da Corte.
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Para estes abolicionistas, os escravos deveriam receber a benevolência dos
libertadores, quer fossem os senhores, os abolicionistas ou a política de abolição
gradual adotada pelo Estado, amenizando, assim, a pressão dos escravos pela
liberdade, com fugas, assassinatos e todas as estratégias quotidianas existentes nos
anos oitenta do século XIX para a obtenção da alforria12.
A campanha na imprensa fez questão de dissociar-se de qualquer tendência
mais radical do movimento. Tais militantes preocupavam-se com a estabilidade
social e o não uso da violência, favorecendo a atração de setores proprietários para
as fileiras do abolicionismo13. A Gazeta da Tarde, em 1884, fazia estas apreciações
dos grupos abolicionistas:
Nesse longo período, ainda não foi possível aos
escravocratas, senhores de todas as posições oficiais, dispondo de fortunas colossais; levar a juízo um abolicionista e provar que ele tivesse cometido o menor delito.
As autoridades são as primeiras a confessar que as manifestações e os festivais abolicionistas primam pela ordem, distinguem-se pela ausência absoluta de meios violentos14.
Na imprensa abolicionista da cidade do Rio de Janeiro, o paternalismo
apresentava-se numa linguagem que buscava a mediação dos conflitos entre
senhores e escravos. Por meio de um estilo sentimental, almejava-se a
sensibilização da opinião pública, uma mudança de comportamento em relação à
12 CHALHOUB, Sidney. op. cit. 13 Humberto Fernandes Machado conclui que “a postura paternalista, contida nos jornais de José do Patrocínio, visava criar mecanismos que assegurassem uma transição segura, sem ‘desordens’, permitindo, inclusive, que esta elite intelectual, na qual Patrocínio estava inserido, assumisse uma posição mais destacada na esfera do poder na medida em que se julgava como responsável pela eliminação do cativeiro” in Palavras e brados..., p.221. 14 05 de maio de 1884, p.1.
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escravidão. Era propagado que a conciliação ligava-se à construção de vínculos de
gratidão dos escravos em relação aos senhores.15 Neste sentido, a estratégia
deveria ser a concessão de manumissões, que colocariam em relevo a benevolência
senhorial.
Ao comparar o movimento abolicionista do Brasil e dos Estados Unidos, Célia
Maria Marinho de Azevedo ressalta o quanto no caso brasileiro pregava-se o
respeito às leis. No Brasil, predominava um discurso com ênfase na relação cordial
entre senhores e escravos – apesar das denúncias de violência e de crimes. Para os
antiescravistas, este espírito cordial não deveria ser quebrado por conta do processo
de fim da escravidão. Desta forma, segundo a autora, os abolicionistas assumiam a
função de “patronos públicos das emancipações privadas e condicionadas à
prestação de serviços” 16, objetivando suscitar nos proprietários e emancipados
sentimentos de benevolência, sendo a solução brasileira para a escravidão.
Nos momentos finais da escravidão, a Gazeta Nacional publicou artigos
defendendo a abolição como meio de manter o equilíbrio social. Nesta fase de
fragilidade da autoridade senhorial, em especial pelo aumento das deserções em
massa do trabalho, a rotina das fazendas estava sendo quebrada. Os habituais
meios de controle não estavam mais sendo eficazes para a manutenção da ordem,
principalmente com a recusa do Exército em reprimir a fuga dos escravos.
Assim, publicava a Gazeta Nacional em janeiro de 1888:
15Lilia Moritz Schwarcz constatou o mesmo quadro ao analisar periódicos da cidade São Paulo: “O clima que os artigos criavam era sempre o mais paternalista possível, ou seja, grandes discursos revelavam a boa alma do senhor e eram sempre recebidos com a resposta amiga e comovida dos escravos” in Retrato em branco e negro. Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.200. 16Abolicionismo: Brasil e Estados Unidos, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, p.93
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A escravidão já não existe, pois não havia lei que garantisse a
permanência dos escravos nas fazendas, desde que eles não quisessem mais aí ficar. No dia em que o escravo não quiser mais trabalhar, não trabalha17.
A Gazeta Nacional enfatizava o espírito ordeiro dos escravos, que pretendiam
sim a liberdade, porém não faziam oposição ao trabalho, pois já estavam habituados
à vida laboriosa:
Os negros não abandonam o trabalho, e só o fazem em
condições muito especiais. Queremos crer, e é o que nos asseguram pessoas fidedignas, somente a respeito de senhores tidos e havidos como bárbaros e inteiramente intratáveis.18
Senhores tidos e havidos como bárbaros e intratáveis eram justamente
aqueles que não utilizavam a política de benevolência para com seus escravos.
Lendo de outra forma, se os senhores fossem benevolentes, os escravos não
fugiriam. Nestes anos finais da escravidão, o paternalismo tinha como ponto final a
concessão da alforria.
Em 1887, a Gazeta Nacional fez publicações que tratavam da fuga em massa
de escravos na província de São Paulo, particularmente, em Itu e Capivary. Neles, o
caráter ordeiro das fugas, sem agredir, sem depredar era enfatizado. Na introdução
de um artigo que criticava os fazendeiros escravistas de Campos, o jornal fez
referência à conduta disciplinada dos escravos fugitivos de São Paulo:
17 “Uma grande conversão”, 06 de janeiro de 1888. 18 “ A nova fase”, 08 de fevereiro de 1888.
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(...) vimos o surpreendente e admirável exemplo de placidez e cordura dado pelos fugitivos de Capivary e Itu ao transporem por grupos compactos as cidades e povoados do interior de São Paulo.
Com justa razão, recordou o Clube Militar, em mensagem à regente, que semelhante correção de conduta seria difícil de obter em tropas arregimentadas e sujeitas às regras de disciplina.19.
Em outro artigo, a Gazeta Nacional voltou a narrou a tranqüilidade das fugas
na província de São Paulo:
Contestando a preposição injusta e de todo o ponto inexata
de que os escravos fogem do trabalho em busca da vida errante, cruzando as estradas em ociosa vagabundagem, tem causado surpresa e pasmo o espírito de ordem por eles manifestados20.
De acordo com Aristides Lobo, caso a liberdade fosse oferecida ao escravo,
as fugas poderiam ser evitadas, pois os cativos não tendiam à revolta. Na folha, o
tema da fuga foi constante em dezembro de 1887. Ao mesmo tempo, o redator
oferecia destaque a uma prática que reforçaria os vínculos de gratidão do escravo
para com o senhor: a estratégia de concessão de alforria:
Alguns senhores, desejosos de encontrar uma solução que
conciliasse os interesses de duas classes (a do senhor e a do escravo) encetaram as libertações gerais em curto prazo.
O primeiro que se revelou compenetrado dessa verdade foi o Sr. Bento Dias Ferraz, que libertou todos os escravos de sua fazenda, aos quais, entretanto, prontificaram-se a permanecer nela trabalhando.
(...)
19 “O escravagismo em Campos”, 04 de dezembro de 1887. 20 “Municípios paulistas”, 23 de dezembro de 1887
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Os libertos contratam-se com ex-senhores, não pertubando assim a organização do trabalho.
Talvez se fosse dado antes esse passo não se tivesse que lamentar os desfalque de tantos braços úteis21.
Parece que Lobo pretende construir um quadro de absoluta tranqüilidade num
contexto em que escravos estavam abandonando fazendas em São Paulo.
Dificilmente, os segmentos proprietários, leitores da folha, tiveram essa sensação de
paz que realçou. O escravo fugitivo, em essência, quebra a ordem social escravista,
representa perigo. Contudo, talvez por considerar a liberdade como legítima, Lobo
quis reforçar o aspecto de tranqüilidade social ligada à abolição e atrair
simpatizantes para a causa na Corte.
Sobre a fuga de escravos, O Paiz, citando o discurso de Rui Barbosa no
Parlamento, apresentou a argumentação, semelhante à Gazeta Nacional, que a
retirada coletiva de escravos somente ocorriam pela simples razão do ser humano
sempre buscar a liberdade. Em condições de escravidão, o indivíduo busca de
várias formas para fugir de sua situação, de conseguir a alforria. Assim, essas
atitudes eram esperadas, pois faziam parte da própria natureza humana:
(...) Quem nos definirá, por uma fórmula honesta e segura, o
que seja acoutar escravos? A fuga, no escravo, é um crime? Não: é a defesa natural; é o exercício de um direito que nenhuma lei, nesse mundo, ousaria negar; e cujo sentimento não conseguireis extinguir, ainda quando pudésseis degradar a natureza humana até a bestialidade absoluta22.
21 idem, ibidem. 22 “Escravos acoutados”, 15 de junho de 1885, p.1.
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Em outubro de 1884, ainda no primeiro mês de sua existência, o jornal O Paiz
apoiava a fuga de escravos, apontando como causa os maus tratos, a freqüência de
castigo e o abandono nos momentos de enfermidade.23 Contudo, os artigos
veiculados na folha não tiveram uma posição tão contundente de respaldo a essas
ações, conforme os da Gazeta Nacional, que de maneira insistente, destacava o
caráter “pacífico e cordial” do movimento dos cativos em busca da liberdade na
província de São Paulo. Os escravos saíam das fazendas em grupo “sem exercer
atos de violência”, “sem buscar a vingança”. A alforria era simplesmente a meta em
suas atitudes de insubordinação24.
O período de surgimento da Gazeta Nacional coincidiu com a fase de
crescimento das ações dos escravos pela liberdade. Foi neste contexto de fuga que
Aristides Lobo escreveu e seus leitores em potencial eram as classes médias
urbanas e os proprietários de terra e de escravo. Existia um fato que era as fugas
em massa de fazendas de São Paulo, porém ele era reconstruído pelo jornalista,
que, desta forma, tornava-se responsável pela “criação de uma outra realidade”25
para a ação escrava, pois era através de sua pena que o episódio era apresentado.
A postura da Gazeta Nacional foi de apoio às ações dos escravos.
Entretanto, enfatizavam sempre o caráter ordeiro das fugas, sem causar convulsões,
sem depredar ou agredir. Ainda em 1887, a folha discutia com os fazendeiros e a
força pública de Itaúna, também São Paulo, que suspenderam três empregados da
Estrada de Ferro Itaúna, pois estes não permitiram que soldados retirassem de um
23 “Menos publicidade”, 18 de outubro de 1884, p.1. 24 “Idéias e homens”, 29 de abril de 1888, p.1. 25 BARBOSA, Marialva. op. cit., p.116.
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trem vinte e dois escravos. O jornal buscava sustentar a legalidade da ação dos
funcionários, pois os soldados não apresentaram o mandado da autoridade
judiciária26.
A Gazeta Nacional e O Paiz, ao defenderem a fuga dos escravos,
respaldavam-se no direito natural de todos à liberdade27. Ao mesmo tempo em que a
defesa dos funcionários da linha férrea também apoiava-se na legalidade,
questionando a ausência de documento oficial. Nestes momentos de tensão no
campo, dois jornais do Rio de Janeiro defensores da república, propagavam que o
caminho para a abolição deveria ser o mais prudente, seguro, possível.
Para O Paiz, neste momento de crise da sociedade escravista, a pedagogia
da violência deveria ceder cada vez mais lugar ao paternalismo sob pena dos
proprietários não controlarem mais a transição para a liberdade:
Entregues a seus próprios recursos, vendo dia-a-dia
despovoarem-se as fazendas, arriscando a assistir a quebra total da disciplina, sem poderem contar sequer com a força pública, os fazendeiros entenderam mais conveniente abrir meio de tal precária propriedade28.
A concessão da liberdade passava a ser vista como condição para a ordem,
pois gerava a gratidão, evitava o abandono das fazendas e garantia a permanência
26 Gazeta Nacional, 14 de dezembro de 1887, p.1. 27 O liberalismo dos grupos abolicionistas do Rio de Janeiro estabeleceu uma relação diferenciada entre o direito natural e o direito de propriedade do liberalismo da geração que fez a independência e da que consolidou o Estado Imperial. Neste sentido, verificar BOSI, Alfredo, “A escravidão entre dois liberalismo” in A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; MACHADO, Humberto Fernandes ”O poder da palavra” in op. cit; PESSANHA, Andréa Santos. “André Rebouças e o liberalismo” in Da abolição da escravatura à abolição da miséria. A vida e as idéias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet/UNIABEU, 2005. 28 “Escravos acoutados”, 15 de junho de 1885, p1.
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dos trabalhadores. Os jornais enfatizavam o espírito humanitário dos senhores que
concederam a alforria, ao mesmo tempo em que esta generosidade garantia o
controle e assegurava a produção.
Os periódicos parabenizavam os proprietários que negociavam a liberdade
diretamente com seus escravos. Os nomes eram estampados nos jornais e sempre
acompanhados de um comentário sobre a “sábia ação”, tanto pelo aspecto da
benevolência quanto pela lógica da produção. Aplausos eram pedidos, por exemplo,
em O Paiz, para estes fazendeiros.
Exatamente um mês antes da assinatura da Lei Áurea, a Gazeta Nacional,
depois de citar os nomes dos fazendeiros de Alagoas que libertaram
incondicionalmente seus escravos, afirmou:
Consta que a estas manumissões se seguirão outras, acelerando-se de modo notável, nesta comarca, o movimento abolicionista.
Como vai a província não está muito longe o grande dia da inteira libertação do município de Camaragibe.
Acreditando na elevação de sentimentos que caracterizam os filhos de Alagoas, estamos certos de que esta província ganhará o tempo perdido e colocar-se-á dignamente ao lado dessas irmãs remidas.
Da nossa parte rendemos aqui sinceras homenagens ao patriotismo dos nobilíssimos cidadãos cujos nomes publicamos.29
Ceará e Amazonas foram homenageados pelo jornal O Paiz justamente por
obedecer ao espírito federativo e fazer a abolição antes do governo central30. A
proposta de Prudente de Moraes era vista como uma das soluções para o fim do
29 “Muito bem”,13 de abril de 1888, p.1. 30 “A libertação do Amazonas” in O Paiz, 13 de julho de 1885, p.1.
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cativeiro sem conturbar ou causar danos maiores aos proprietários, que precisavam
de um tempo maior para organização de suas lavouras.
Neste momento de crise, o paternalismo era um ponto de interseção entre
escravistas e lideranças abolicionistas. A alforria, quando concedida pelo senhor,
fortalecia sua autoridade e gerava vínculos. A gratidão seria estendida à liderança
abolicionista, ao Estado, aquele que o liberto identificasse como agente da abolição.
O fim do cativeiro deveria ser pelo caminho com o qual autores e leitores tinham
familiaridade.
Naquele contexto em que a onda negra gerava o medo branco31, o
sentimento, que particularmente a Gazeta Nacional, pretendia desenvolver no leitor
era o de segurança. A linguagem que enfatizava o espírito cordial, tranqüilo, e o
escravo como um bom exemplo nas ocasiões de fuga somente podem ser
justificadas se a sensação do público naquele momento fosse diferente. O jornal
queria convencer ao leitor que os libertos ou as ações dos escravos não ameaçavam
à sociedade. Através da reconstrução do fato, pretendia-se criar um clima propício à
libertação32.
Muito embora os discursos dos jornais tenham toda uma preocupação com a
paz social, os próprios artigos nos oferecem pistas do envolvimento direto de
abolicionistas com o movimento mais radical pela abolição: a fuga de escravos.
Nos trechos anteriormente citados, por mais que a Gazeta Nacional
destacasse a tranqüilidade da ação dos escravos, o fundamental é que ofereceu
31 AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco. O negro no imaginário das elites. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 32 “É necessário considerar ainda que a narrativa do acontecimento não é apenas uma simples descrição das mudanças percebidas. O jornalista confere uma significação àquilo que fala, mesmo quando não há um propósito deliberado para isso.” In BARBOSA, Marialva. op. cit., p. 146.
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explícito apoio a fuga dos escravos. Em O Paiz, Quintino Bocaiúva, considerado pela
historiografia como um dos mais moderados integrantes do movimento abolicionista
e do republicano do Rio de Janeiro, informava conhecer o quilombo abolicionista do
português fabricante de malas José Seixas Magalhães, situado no Leblon33. Em
razão da apresentação do projeto da Lei Áurea, descreveu as homenagens
prestadas pelo povo à princesa Isabel e destacou o fato do sr. João Clapp oferecer à
Isabel “um ramalhete de camélias colhidas por escravos fugitivos da chácara do Sr.
Seixas.”34 Na passagem, podemos constatar o apoio desta intelectualidade às ações
dos escravos. Ao mesmo tempo, verificamos que um jornal de grande circulação na
Corte e um expoente do Partido Republicano não ficavam em situação delicada ao
estamparem, na primeira página, serem sabedores da existência de quilombo
abolicionista.
Integrantes do movimento abolicionista da Corte acoitavam escravos fugidos
em quilombos abolicionista como o da Cancela, situado em São Cristóvão, na casa
do sogro de José do Patrocínio35. Existia, desta forma, toda uma rede de proteção e
solidariedade para os escravos evadidos, que era conhecida, quando não apoiada,
pelas próprias autoridades, como foi o caso da Princesa Isabel.
Joaquim Nabuco expressou em O Paiz sua admiração pelo Sr. Seixas por sua
atuação no movimento abolicionista através do Quilombo do Leblon. Para ele, a
ação de Seixas não fugia da lógica do abolicionista advogado gratuito do escravo.
Nabuco mostrava satisfação em ter no mesmo banquete Antonio Bento, Sr. Seixas e
33 Sobre o quilombo abolicionista do Leblon, ver SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura. Uma investigação de história cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 34 “Crônica Parlamentar” in 04 de maio de 1888, p.1. 35 MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados..., p.117.
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Ângelo Agostini, que estava de partida para a Europa. O Quilombo do Leblon rompia
com a ordem, mas contava com o respaldo de um conhecido fabricante de mala:
Seria ofender a modéstia do Sr. Seixas colocá-lo no mesmo
plano que Ângelo Agostini, que foi um dos chefes do movimento abolicionista, mas a solidariedade com a pátria nova do ‘quilombo Leblon’ era a mesma que a da Revista Ilustrada, e o corajoso e desinteressado acoutador de tantos infelizes adquiriu o direito de dizer-se brasileiro sem licença de ninguém [...].36
Assim, apesar de constatar que o paternalismo marcou os discursos e as
práticas dos homens da imprensa do Rio de Janeiro, existiram também ligações e
atuações desses abolicionistas da Corte com um movimento mais subversivo à
ordem, conforme já ressaltou Eduardo Silva37. A atitude de João Clapp estava de
acordo com as expectativas de leitores e autores de O Paiz, pois não causou
estranheza. O periódico não precisou fazer maiores referências ao Quilombo do
Leblon. O público, Quintino Bocaiúva e a princesa sabiam e muito bem do que se
tratava.
De qualquer forma, essa ação mais direta, de apoio a fugas de escravos, não
implicou em subversão à ordem na leitura de quem estava envolvido no movimento.
Para a Gazeta Nacional, os historiadores, em consonância com a epígrafe deste
capítulo, deveriam registrar a pureza de intenções dos abolicionistas.
36 “Angelo Agostini”, 30 de agosto de 1888, p.1. 37 “Na verdade, a hoje aparentemente insuspeita camélia, fosse natural ou artificial, era um dos símbolos mais poderosos do movimento abolicionista. Era o símbolo da ala radical, o grupo que partiu, na década de 1880, para a ação direta contra o regime, a promoção de fugas e a criação de quilombos. A camélia servia, inclusive, como uma espécie de senha por meio da qual os abolicionistas podiam ser identificados, particularmente quando empenhados em ações mais perigosas, ou ilegais, como o apoio a fugas e a obtenção de esconderijos para fugitivos.” In SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon..., p. 43.
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Se para nosso olhar do século XXI, paternalismo e apoio a quilombo podem
indicar descompasso entre discursos e práticas, para aqueles abolicionistas da
imprensa não indicavam. No desenvolvimento da nação brasileira, a abolição era
condição sine qua non para o advento das reformas econômicas e sociais, que
trariam os tão desejados progresso e civilização. Para alcançar tais objetivos,
atuavam muito freqüentemente nas duas pontas: convencimento dos senhores
através da palavra impressa sobre as vantagens do trabalho livre e respaldo a fuga
de escravos, desde que não trouxesse derramamento de sangue, ódio e depredação
ao patrimônio, conforme estes abolicionistas fizeram questão de reiterar.
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3.2.Entre escravos e princesa
Ao acompanhar o periódico republicano Gazeta Nacional, na fase próxima à
assinatura da Lei Áurea, constatei que duas questões foram rotineiramente
abordadas nos artigos dedicados à abolição da escravatura: a tentativa de
descaracterizar a monarquia como empreendedora do fim do trabalho escravo e a
discussão sobre o crescimento dos adeptos à causa republicana entre os
fazendeiros como resultado da abolição promovida pelo Império.
Desta forma, deparamo-nos com questões clássicas para a historiografia ao
se estudar a transição do trabalho escravo para o livre e o ocaso do Império38: a
relação entre Proclamação da República e republicanos de 14 de Maio e a quem
caberia papel central na abolição: aos escravos, ao governo ou as lideranças
abolicionistas?
Célia Maria Marinho de Azevedo apresenta a seguinte leitura sobre as
disputas entre republicanos e monarquistas a respeito dos agentes da abolição.
Para os primeiros, a Lei Áurea foi alcançada graças a ação de heróis originados das
fileiras do republicanismo. Já para os monarquistas, a princesa Isabel personificava
a própria abolição, a ponto de colocar o trono em risco. De qualquer forma, em
consonância com a autora, o escravo estava ausente nessas versões republicanas e
monarquistas sobre a abolição. O 13 de Maio resultou da ação de “homens brancos
38 Uma apresentação das versões produzidas pelos contemporâneos e pela historiografia para a Proclamação da República, encontramos em ver COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república. Momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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progressistas e humanitários, com o apoio de alguns ‘mulatos’ clarividentes”.39 O
cativo era sempre representado como passivo, inferior.
O papel ativo do escravo no processo de luta pela abolição vem sendo
estudado pela historiografia40, distanciando-se de uma interpretação que o colocava
na condição de coisa, dependente da ação dos promotores da Lei Áurea41. Contudo,
ainda se sustenta a afirmação que para os contemporâneos, em particular, para os
republicanos – conforme assinalou Célia Maria Marinho de Azevedo – a abolição foi
resultado essencialmente da atuação dos abolicionistas, “os advogados gratuitos
dos escravos”, na conhecida expressão de Joaquim Nabuco.
O historiador Robert Daibert Júnior afirma que a imagem da Princesa Isabel
como Redentora ligou-se a uma “interpretação que atribuiu aos negros um papel
secundário no processo de superação do escravismo”42. Ainda segundo o autor,
para o grupo abolicionista moderado, constituído por jornalistas, políticos e
intelectuais do Rio de Janeiro, o 13 de Maio, compreendido como uma dádiva, foi
resultado da atuação dos próprios abolicionistas e da ação da Princesa Isabel. Estes
antiescravistas formavam uma imagem dos negros “como incapazes de desfrutar de
uma consciência que lhes conduzisse a uma ação autônoma e que contribuísse de
39 “13 de Maio e Anti-Racismo” in Anti-racismo e seus paradoxos. Reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004, p. 92. 40 Entre os trabalhos citamos: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco...; CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravidão e abolição: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade...; MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico...; MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio... 41 Entre estas produções, citamos: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo: Brasiliense, 1978; FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978. 42 Isabel, a Redentora dos Escravos. Uma história da Princesa entre olhares negros e brancos (1846-1988). Bauru, SP: EDUCS, 2004, p. 21.
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uma maneira eficaz para a desestruturação do escravismo, uma vez que estariam
degenerados pela mazelas da escravidão”43.
A libertação dos escravos não foi um ato voluntário dos fazendeiros ou do
governo, ela foi confiscada pela anarquia, assim, avaliava O Paiz em fevereiro de
1888.44 A Gazeta Nacional também apresentou o caráter ativo da participação dos
escravos na conquista da abolição: “Ao povo, aos atuais libertos, que
compreenderam a injustiça de sua posição, e ao exército, eis a quem deve o país a
abolição dos escravos”.45
O Paiz construiu a abolição como a refundação da nação brasileira, onde
todos participaram do processo. Foi o momento histórico de luta de todos pela
abolição, “desde o chefe de Estado até o escravo”.46 Naqueles momentos de festa,
de acordo com O Paiz, a discussão de quem mais contribuiu para a vitória da
abolição não era relevante.47 De uma certa forma, a posição do periódico, em negar
a importância do debate de quem promoveu a abolição, pode ser entendida como
uma estratégia para não reforçar o papel da Princesa Isabel na assinatura da Lei
Áurea. Para a folha, pensar no fim do cativeiro era pensar na glória do espírito
nacional, que envolvia a todos, incluindo o escravo, contando com a colaboração do
movimento abolicionista.
Já a Gazeta Nacional, nestes dias próximos à Lei Áurea, assumia de frente a
discussão sobre a quem coube a glória da abolição. Segundo a folha, retirando o
43 Idem, ibidem, pp. 21-22. 44 “Tópicos do Dia” in O Paiz, 18 de fevereiro de 1888, p1. 45 “A abolição e o povo”, 25 de maio de 1888, p.1. 46 “Abolição”, 10 de maio de 1888, p1. 47 “Abolição”, 14 de maio de 1888, p.1.
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governo, todos efetivamente contribuíram. O jornal procurava enfraquecer a imagem
da Princesa Isabel48, não somente através da ação dos abolicionistas das cidades,
mas enfatizando também que a alforria foi alcançada pela luta dos cativos:
Homens de estado e princesa, apenas capitularam ante a
vitória popular, que já fizera a abolição de fato, por meio dos escravos, que abandonavam pacífica e energicamente o cativeiro (grifo nosso). Homens de estado e princesa não podiam deixar de ser abolicionistas, quando o povo e o ex-escravizado lhes impunham a abolição, sancionada pelo exército, que declarava em alto e bom som, por intermédio do general Deodoro, não se prestar ao trabalho infame de pegar negros fugidos.49
Esta interpretação foge da leitura do escravo-coisa, do escravo-objeto. Houve
ênfase na ação dos grupos abolicionistas, da importância do Exército quando se
recusou em perseguir o escravo fugitivo, porém a participação dos negros era
sempre realçada nos artigos da Gazeta Nacional.
Vale, neste momento, lembrar das já citadas palavras da Gazeta Nacional:
“No dia em que o escravo não quiser mais trabalhar, não trabalha”50. Neste sentido,
os cativos foram apresentados também como motores da ação abolicionista
na imprensa republicana. Para a folha, os créditos do 13 de Maio, antes de tudo,
48 De acordo com Eduardo Silva, Rui Barbosa tinha uma visão semelhante sobre o abolicionismo da princesa Isabel: “(...) Para ele a questão era política, tendo a princesa apenas cedido a uma situação de fato criada pelo movimento abolicionista. Juntos, abolicionistas e escravos – principalmente os escravos – forçaram a ‘evolução’ da princesa na direção da abolição imediata e incondicional. Para Rui Barbosa, a atitude firme dos escravos, as fugas em massa e a formação dos quilombos abolicionistas jogam papel verdadeiramente fundamental para a mudança de atitude da princesa” in As camélias do Leblon e a abolição da escravatura..., p.30. 49 “A abolição e o povo”, 25 de maio de 1888, p.1. 50 “Uma grande conversão”, 06 de janeiro de 1888.
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deveriam ser atribuídos aos atuais libertos, pois foram eles que confiscaram a
abolição.
Este discurso sobre a ação dos cativos diverge da interpretação feita por
Célia Maria Marinho de Azevedo e Roberto Daibert Júnior sobre a construção que os
jornalistas abolicionistas fizeram da Lei Áurea. Nos textos divulgados pela Gazeta
Nacional, a ação dos escravos para o fim do cativeiro recebeu destaque. Posição
fácil de compreender pelo papel central que os artigos da folha deram à resistência
dos escravos. Já O Paiz construiu o discurso sobre a abolição a partir da vitória
popular. Foi o povo quem fez a abolição e foi para as ruas comemorar.
É interessante comparar a clássica afirmação de Aristides Lobo sobre a
Proclamação da República, “o povo assistiu aquilo bestializado”, com a leitura deste
jornalista republicano sobre a ação escrava para o 13 de Maio. A república foi feita
por poucos, não teve o envolvimento de variados segmentos da população,
enquanto a abolição foi, por excelência, popular. Para ele, o fim do cativeiro não foi
uma concessão de Princesa Isabel, e sim uma resposta da Regente e dos políticos à
ação do povo, especialmente a do próprio cativo. A proximidade dos dois
acontecimentos, talvez justifique o tom melancólico de Lobo em relação à
implantação da república que ajudou a fundar.
Este discurso sobre a participação dos escravos tinha o objetivo político de
enfraquecer a imagem de Redentora da princesa Isabel, minando possíveis bases
para a sustentação de um Terceiro Reinado51. Se pela lógica paternalista da
51 A já citada obra de Robert Daibert Júnior estuda a construção da imagem da Princesa Isabel como Redentora dos escravos e as discussões entre republicanos e monarquistas em torno desta representação; a trajetória da princesa Isabel foi analisada por Roderick Barman na intenção de compreender a reciprocidade entre gênero e raça no século XIX. Princesa Isabel do Brasil. São Paulo: UNESP, 2005.
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sociedade, a Princesa Isabel era apresentada pelos monarquistas como quem
concedeu a abolição, o objetivo do jornal Gazeta Nacional era negar esta imagem,
colocando o escravo como pólo ativo, capaz de obter sua alforria, que agora era
manipulada pelos monarquistas.
A associação entre abolição da escravatura e princesa regente incomodava
republicanos do Rio de Janeiro, tanto que abriram polêmica com José do Patrocínio
por conta de suas ligações com a Princesa Isabel após a assinatura da Lei Áurea52.
Nas narrativas da Gazeta Nacional e de O Paiz, foi a luta do povo, foram as
condições sociais que obrigaram a regente a assinar a abolição da escravidão. Nada
justificaria um sentimento de gratidão dos libertos. Com o sugestivo título de artigo
“Continuamos a ser abolicionistas”, a Gazeta Nacional publicava:
Aderindo finalmente à abolição imediata e incondicional da
escravidão, a regente fê-lo pela força ineludível das circunstâncias imperiosas que se impunham no momento (...). Se por isso pode ser aplaudida, aplauso que ninguém lhe recusa, não é todavia razão para reconhecimentos ou gratidão de ninguém, e muito menos para os republicanos quebrem as armas e voltem as costas ao seu ideal – o estabelecimento da República Federal53.
A Gazeta Nacional procurava enfraquecer algumas associações feitas pelos
monarquistas: abolição como resultado da ação da Princesa Isabel; abolição e
indignação dos fazendeiros, tendo por resultado o crescimento dos simpatizantes da
república. O jornal veiculava um discurso que reduzia a importância da monarquia
52 Humberto Fernandes Machado analisa as respostas de José do Patrocínio à visão de haver se “vendido” ao Estado Imperial, de suas ligações com a princesa Isabel. O autor aborda que os conflitos de José do Patrocínio com republicanos do Rio de Janeiro antecederam à Lei Áurea e com o 13 de Maio intensificaram-se. Palavras e brados ... p. 69-78. 53 05 de junho de 1888, p.1.
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no fim oficial do cativeiro e ao mesmo tempo, afastava-se dos ditos republicanos de
14 de Maio ao relembrar a trajetória republicana no Brasil54. O percurso dos
republicanos era reconstruído, buscando enfatizar uma simpatia sempre presente
pelo abolicionismo:
(...) Hoje que os amigos de um governo de abolição sem
abolicionistas nos acusa de versatilidade que eles deram causa plena, podemos dizer, como os republicanos de 1817, que a suspeita de sermos abolicionistas nos honrou, quando essa suspeita era cheia de perigos; depois que ela se tornou gloriosa só ao governo e aos seus amigos pode ser lançada55.
Existiu uma sensível diferença entre a Gazeta Nacional e O Paiz sobre as
narrativas construídas a respeito da ação dos escravos e dos abolicionistas na
conquista do 13 de Maio. A primeira folha enfatizava a participação do cativo de
maneira contundente. Neste discurso, existiu uma intenção de fragilizar a Princesa
Isabel. Já O Paiz ofereceu maior destaque à atuação dos abolicionistas, que,
segundo o periódico, representava a própria nação. Por essa ótica, o negro seguia
as orientações das lideranças abolicionistas. Isso não significa que para a Gazeta
Nacional a vitória do movimento não tenha sido de responsabilidade das
abolicionistas, mas sim que procuravam reforçar a ação do escravo para atingir
qualquer imagem idealizada da princesa.
54 Sobre os discursos republicanos a respeito da associação república e abolição, ver costa, Emília Viotti. “Sobre as origens da república” in Da monarquia à república...; SALLES, Ricardo. “Uma questão de forma e oportunidade” in Nolstagia Imperial. A formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 55 “Conversões republicanas entre os lavradores”, 27 de abril de 1888, p.2
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3.3. Entre republicanos da Corte
Não me considero contendor pessoal do ilustre ministro que
pede a renovação de seu mandato, por força da lei que obriga a isso. Considero-me o representante do princípio oposto à forma de governo de que é o S. Ex. neste momento, representante ilustre e servidor fiel.
Em nome do partido republicano não tenho que combater nem o programa ministerial nem as pessoas que o sustentam esse programa: o que eu devo combater é a monarquia – na sua essência e nos seus meios de ação.
(...) Perdurando, porém, ainda insolúvel o problema da extinção
do elemento servil, o que me cumpre afirmar com clareza, é o seguinte:
que o voto que recair no meu nome significará um voto pela abolição da escravidão imediata e incondicional.56
A Confederação Abolicionista entendeu que o momento não
era nem do Partido Conservador, nem do Partido Liberal, nem do Partido Republicano; era dos escravos; e, cumprindo o seu dever, esforçou-se por afastar das urnas toda a idéia que pudesse perturbar o triunfo claro, e praticamente provado, do abolicionismo.
Apresentado em nome da República o sr. Quintino Bocaiúva, a Confederação não poderia sufragar-lhe sem atraiçoar compromissos anteriores com abolicionistas que são sinceramente monarquistas.57
Os dois textos acima datam de abril de 1888 e foram referentes à vaga para
representante da Corte na Câmara dos Deputados, pleiteada pelo candidato do
Partido Conservador, Ferreira Viana, e pelo do Partido Republicano, Quintino
56 Quintino Bocaiúva. Circular aos eleitores do primeiro distrito da Corte, Rio de Janeiro, 12 de abril de 1888. 57 “Abolicionistas no seu posto” in Cidade do Rio, 23 de abril de 1888.
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Bocaiúva. Considerando que a primeira narrativa é de autoria de Quintino Bocaiúva
e a segunda de José do Patrocínio, já podemos constatar que existiram divergências
entre os republicanos do Rio de Janeiro sobre a condução do processo de abolição
da escravatura e que a imprensa foi uma tribuna desta questão.
A posição da Confederação Abolicionista, presidida pelo republicano João
Clapp, de apoiar o candidato do Partido Conservador foi respaldada por José do
Patrocínio, diretor do Cidade do Rio, e desencadeou uma série de polêmicas. Destas
participando, não somente Quintino Bocaiúva, como também outros homens da
imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, em particular Rangel Pestana e Silva
Jardim. Através destes debates, foi possível compreender as razões das cisões
entre republicanos no que tange ao casamento república e abolição, no momento
imediatamente anterior e posterior ao 13 de Maio. Nesta discussão, estava implícita
a construção da memória da abolição e quais fatores, quais agentes estes homens
pretendiam eternizar para promover suas opções políticas.
Em meados da década de oitenta, já constatamos divergências entre Quintino
Bocaiúva e José do Patrocínio, reveladas pela imprensa, quando O Paiz polemizou
com os círculos antiescravistas da cidade do Rio de Janeiro, afirmando que o
radicalismo da linguagem, prejudicava mais do que favorecia à abolição58:
Uma designação comum poderia reunir as vinte e três
associações abolicionistas criadas aqui nestes dois anos:’caçadores de pecúlios de escravos’.
(...)
58 Os desentendimentos entre Quintino Bocaiúva e José do Patrocínio, de acordo com Humberto Fernandes Machado, datam da Assembléia Geral do Partido Republicano de 1881. Ao ver de Patrocínio, a postura de Bocaiúva representava um “sussurro do cafezal”, pois na ocasião não se colocou explicitamente a favor da abolição imediata. op. cit., p.74.
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Mas então essa seita, com seus abusos, com as suas demasias de linguagens, com suas espoliações, deve ter sido fatal à remissão dos escravos. Em vez de apressar a resolução do problema, há de ter contribuído para retardá-la. Em lugar de combalir os interesses da propriedade servil, deve ter-lhe solidificado os alicerces59.
As polêmicas entre periódicos foram comuns neste final do século XIX. Elas
constituíram uma forma de organização e exposição do pensamento próprias da
geração de 187060. Ao serem travadas, por estes jornalistas, estava em jogo a luta
pela condição de ser o portador da verdade e o poder de representar e divulgar as
idéias, os valores que, para eles, propiciariam o desenvolvimento da nação
brasileira.
Ao mesmo tempo, através das querelas, ocorria a afirmação das identidades
e propostas políticas de uma dada folha pela exibição das diferenças com o
combatente. Acompanhar essas polêmicas é perceber também como esses
periódicos definiam seu campo político, lembrando que intelectuais e políticos não
devem ser pensados separadamente no período.
O embate era estabelecido entre autores que tinham os olhos voltados para o
leitor. Eles ficavam preocupados como as querelas seriam recebidas pelo público 61.
A construção da narrativa buscava a aquiescência do leitor nos pontos de disputa
com o outro jornal. Assim, eram utilizadas expressões do tipo “sabe o leitor”, “caberá
ao leitor decidir”, “como todos nós sabemos”. A Gazeta Nacional, em polêmica com
59 “Da emancipação ao abolicionismo”, 03 de outubro de 1884, p.1. 60 FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. A esperança e o desencanto. Silva Jardim e a república. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004, p.5. 61 BARBOSA, Marialva. Os donos do Rio... p. 168.
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José do Patrocínio, da mesma forma que outras folhas, objetivava a cumplicidade do
público:
Interrompemos por um instante a transcrição dos
considerandos para exprimir a nossa surpresa e perguntar ao leitor se pode haver maior cinismo ou imprudência do que daquele que traçou as linhas que ontem publicou a Cidade do Rio?62
As divergências entre os republicanos liberais da Corte e José do Patrocínio
na imprensa já ficaram evidenciadas com a simpatia do jornalista com o gabinete
conservador de João Alfredo, que assumiu em 10 de Março, substituindo o ministério
do também conservador Cotegipe. Para Patrocínio, a função do novo Gabinete era
encaminhar o processo de abolição. As diferenças do jornalista com os republicanos
foram acentuadas com o apoio da Confederação Abolicionista a Ferreira Viana nas
eleições de 1888. No momento próximo à Lei Áurea, a Confederação colocou-se a
favor do Partido Conservador, não respaldando o candidato republicano.
Provavelmente, por contar que o fim da escravidão no Brasil viria através dos
conservadores, que, na ocasião, controlavam o Ministério.
Outro ponto fundamental das divergências de José do Patrocínio com os
republicanos da Gazeta Nacional e de O Paiz era a postura em relação à
indenização aos proprietários de escravos por conta da emancipação. O Partido
Republicano oficialmente era favorável à indenização.63 Assim, seus correligionários
62 “Tréplica”, 02 de maio de 1888, p.1. 63 BOCAIÚVA, Quintino. Idéias políticas de Quintino Bocaiúva. Cronologia, introdução, notas bibliográficas e textos selecionados por Eduardo Silva. Brasília: Senado Federal, Rio de Janeiro: FCRB, 1986, volume 1, p. 69.
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na imprensa, por vezes, evitavam debater diretamente o assunto. Na circular de
Bocaiúva para o eleitorado da Corte, encontramos a defesa da abolição imediata e
incondicional. A Confederação Abolicionista, desde sua fundação em 1883, em seu
manifesto inaugural escrito por André Rebouças, já exigia abolição imediata,
incondicional e sem indenização.
O artigo Conversões republicanas entre os lavradores foi publicado na Gazeta
Nacional enquanto se discutia na Câmara o projeto de abolição da escravatura.64
Seu objetivo era reforçar o vínculo entre abolição e republicanos. Mas, ao mesmo
tempo, não negava o número crescente de adeptos à causa entre os fazendeiros. A
proximidade do fim do cativeiro já fazia aumentar os adeptos no movimento
republicano. Para a folha, esses novos correligionários chegavam em ótima hora. O
argumento era que somente a escravidão fazia com que os proprietários apoiassem
a monarquia. Com a Lei Áurea, os fazendeiros poderiam livremente escolher o
melhor para o país, ou seja, o regime republicano. Pois, o mal representado pela
escravidão – que os republicanos não manteriam – estava extinto.
Assim, os republicanos de 14 de Maio, conforme expressão de José do
Patrocínio eram bem-vindos. Para a Gazeta Nacional, as novas filiações ao Partido
Republicano não implicavam em simples vingança ou tentativa de indenização pelos
proprietários. Estes, segundo a folha, agora poderiam livremente respaldar o regime
que traria o desenvolvimento para o país. Nenhum coração “verdadeiramente
republicano” teria simpatia pela escravidão. As novas adesões não comprometiam a
natureza do Partido. 65
64 “Conversões republicanas entre os lavradores” in Gazeta Nacional, 27 de abril de 1888, p.2. 65 idem, ibidem.
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Assim, o objetivo da Gazeta Nacional era associar monarquia e escravidão.
Não existindo a escravidão, a monarquia não fazia mais sentido:
Como quer que seja, os fazendeiros, fazendo violento o
fôlego esforço para libertar os seus escravos, têm razão de tornar-se republicanos. Só a escravidão os ligava a monarquia. Um monstruoso contrato para a exploração universal do país prendia a lavoura ao chefe do regime monárquico.
Hoje uma das partes, é infiel a esse contrato; o que resta a outra parte, burlada e prejudicada em seu desumano interesse?66
Próximo à Lei Áurea, a Gazeta Nacional objetivava construir a imagem que a
ação da Princesa Isabel não foi um sacrifício do trono. A regente só teria reagido a
um fato: a abolição foi feita pelos escravos e pelos abolicionistas. A vitória da
república, neste contexto, era uma questão de tempo, pois a monarquia foi forçada a
romper o contrato com os lavradores.
Se até meados da década de oitenta, o objetivo dos partidos era não se
comprometer com a causa abolicionista, o mesmo pode ser dito sobre agremiações
abolicionistas da Corte na fase mais intensa de luta contra a escravidão, que
procuravam não deixar as questões políticas suplantar a “razão abolicionista”.67 Na
Confederação Abolicionista, por exemplo, de acordo com o abolicionista e jornalista
José do Patrocínio transitavam interesses, elementos dos três partidos, afirmando
que “a pátria vale mais que os partidos”68.
66 idem, ibidem. 67 Neste momento, discursos favoráveis à abolição eram feitos pelos três partidos, que, naquela fase, já tinham uma posição oficial pelo fim do cativeiro, o Liberal desde 1884, o Republicano a partir de 1887 e o Conservador em 1888. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.437. 68 “Abolicionistas no seu posto” in Cidade do Rio, 23 de abril de 1888.
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A Gazeta Nacional respondeu à Confederação Abolicionista, em particular a
José do Patrocínio, dizendo que foi a pressão das ruas, dos antiescravistas que
fizeram o governo assinar as leis emancipacionistas. O apoio ao candidato
republicano, Quintino Bocaiúva, não comprometeria a causa abolicionista. Era
necessário ver os interesses ocultos da Confederação:
A Confederação Abolicionista, usando de um direito que não
lhe pode ser contestado, publicou ontem um manifesto, recomendando a candidatura do Sr. Ministro da Justiça, e censurando que o partido republicano apresente candidato seu no próximo pleito eleitoral do 1º Distrito da Corte.
O fato singular é este: predomina na Confederação Abolicionista elemento considerado republicano. Surge, pois, no seio do republicanismo uma divergência que exige estudo a fim de se averiguar de que lado está a razão, e quem melhor cumpre seu dever na sustentação do ideal republicano.
(...) Por exagerado temos os receios da Confederação quanto ao
resultado do pleito eleitoral, desde que o Sr. Vianna tem tantos adeptos. Quando, porém, acontecesse triunfar a candidatura republicana, não correriam perigo as sagradas instituições, nem seria prejudicada a abolição. Temos mais fé no povo, e somos para com ele mais justo do que a Confederação. Quem até hoje, apesar dos governos, tem imposto a abolição, há de fazê-la triunfar até o fim.69
José do Patrocínio justificou o respaldo à candidatura do conservador Ferreira
Viana, afirmando que colocava a abolição antes da república:
Entendeu-se e muito bem que nenhum homem, por maior que
ele seja, por mais título que ele tenha à gratidão nacional, tem o direito de adiar por um minuto a hora da liberdade pessoal de seu semelhante.
O candidato republicano, bem o sabemos, não tinha esse propósito; mas, concorrendo às urnas para disputar a prioridade de
69 “O Manifesto da Confederação Abolicionista” in Gazeta Nacional,14 de abril de 1888, p. 1
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forma de Governo, se vencesse, teria obrigado o Governo a tratar concomitantemente de acautelar a liberdade dos cativos dos assaltos dos senhores e o trono, do ataque dos seus adversários intransigentes.
Ora, se é legítimo que o republicano anteponha a forma de Governo à libertação de seus concidadãos escravizados, é também natural que o monarquista o faça [...].70
José do Patrocínio também travou polêmica com Silva Jardim no que tange à
indenização e ao crescimento do partido com as adesões dos republicanos de 14 de
Maio. Silva Jardim fazia discursos em São Paulo aprovando a nova realidade do
partido e acusava Patrocínio de submissão à princesa Isabel. José do Patrocínio,
com o artigo “Respondo...”, debateu com Silva Jardim. Primeiramente, reproduziu
parte de um discurso proferido pelo seu desafeto em São Paulo:
Estava o sr. Silva Jardim a pedir que o deixassem rir, e os
seus ouvintes faziam-lhe cócegas à vaidade, quando lhe irrompem dos lábios estas palavras:
‘Deixai que me ria desses republicanos abolicionistas que, depois da abolição, ajoelharam-se aos pés da Monarquia’.
- Uma voz – José do Patrocínio - O orador – ‘Eu não sei onde há monturos, e quando os
haja, eu, como bom republicano, não devo revolvê-los’. 71
Mais à frente no mesmo artigo, José do Patrocínio reiterava sua aproximação
com a princesa Isabel e tecia críticas à postura dos republicanos quanto ao
envolvimento com o abolicionismo. Para ele, a glória da abolição deveria caber à
princesa:
70 “Abolicionistas no seu posto” in Cidade do Rio, 23 de abril de 1888. 71 “Respondo...” in Cidade do Rio, 14 de setembro de 1888.
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O que fez a princesa regente? Ainda, sob o Ministério
Cotegipe, ela, a santa, a meiga Mãe dos Cativos, dava à propaganda abolicionista tudo quanto podia: as abundâncias de piedade do seu coração. Seus filhos, os pequenos príncipes, nos seus jornaizinhos glorificavam a propaganda abolicionista, enquanto ela, a princesa, debaixo de chuva e aos estampidos do trovão esmolava pelos cativos, e quando voltava ao palácio repartia um pedaço do seu manto de rainha com os escravos foragidos, que iam implorar-lhe proteção.
Os republicanos não assumiam a responsabilidade da propaganda abolicionista; a princesa não se arreceava de tornar patentes, públicos os seus desejos de ver extinta a escravidão.
Qual é mais nobre? O republicano que não arriscou um voto, ou a princesa que jogou num assomo de fraternidade a coroa da sua dinastia?
Deixo à História a resposta.72
O recurso a fazer perguntas sem respostas diretas no texto (quando na
verdade essas respostas foram tratadas ao longo) era uma espécie de lacuna que
José do Patrocínio deixava para que fossem completadas no momento da leitura. A
Gazeta Nacional também adotava esta tática, conforme podemos constatar em duas
passagens anteriores. A construção deste tipo de narrativa, que buscava uma
posição no momento da leitura, visava fazer com que o público se colocasse a favor
do autor no debate travado. Era uma forma do jornalista mostrar ter conhecimento
do sentimento e da afinidade de seu público. Assim, além de intensa querela entre
autores, essas polêmicas tinham um caráter de reforço da identidade entre os jornais
e seus leitores.
72 Idem, ibidem
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Rio de Janeiro, 1884-1888.
134
Quintino Bocaiúva foi alvo direto das críticas de José do Patrocínio. Se em
abril, no momento da eleição para o Parlamento, o chefe do Partido Republicano
merecia o “respeito nacional”, com as polêmicas estabelecidas com os republicanos
após a Lei Áurea, o quadro mudava. Patrocínio afirmava no Cidade do Rio que
Bocaiúva tinha decadência intelectual e falhas na vida, não podendo travar luta
jornalística, pois seu abolicionismo era de última hora.73 Assim Bocaiúva foi tratado:
O sr. Quintino Bocaiúva não se imiscuiu na propaganda
abolicionista senão depois que estava patente o seu triunfo, quando o sr. Visconde de S. Salvador de Matosinhos assegurou-se um dalário para defender no O Paiz a causa dos cativos.
Até assumir a redação desse jornal, o sr. Quintino Bocaiúva não passava de um inimigo dissimulado do abolicionismo; entendia que esta propaganda era um mergulho no abismo.
(...) Para que precisávamos nós do prestígio do sr. Quintino?
Antes que ele houvesse proferido uma palavra sobre o abolicionismo, a confederação abolicionista havia feito aceitar pelo parlamento o seu manifesto, e tinha produzido a solenidade comemorativa da libertação do Ceará, que abalou festivamente toda a população da cidade.74
O termo nós, utilizado por Patrocínio, já era indicativo da distinção entre o que
considerava como sinceros abolicionistas e os membros do Partido Republicano,
com o qual rompera. A própria princesa Isabel tinha estima pelo jornalista e
colocava-os entre os monarquistas com quem sabia que podia contar no
Parlamento: ‘Nosso amigo Nabuco, além dos snres. Rebouças, Patrocínio e Dantas,
poderão dar auxílio a partir do dia 20 de novembro quando as Câmaras se reúnem
73 “À ponta da pena” in Cidade do Rio, 04 de janeiro de 1889. 74 “À ponta da pena” in Cidade do Rio, 05 de janeiro de 1889.
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para a posse da nova Legislatura”.75 Ou seja, Patrocínio foi elencado pela princesa
entre os conhecidos e próximos membros dos partidos monárquicos .
Para o Partido Republicano do Rio de Janeiro, Patrocínio era um traidor, pois
colocou a abolição sem indenização à frente da forma de governo. Apesar do
jornalista considerar a república superior à monarquia, discordava no que tangia ao
tratamento oferecido ao processo de abolição pelos republicanos. Com a ascensão
do Gabinete Ouro Preto, em junho de 1889, Patrocínio iniciou uma nova
aproximação com os membros do Partido da Corte.76
A Gazeta Nacional no artigo “Resposta à Cidade do Rio”, discordava do
“apóstolo da liberdade” ao afirmar que os republicanos pretendiam prorrogar o
cativeiro para conseguir votos dos proprietários de escravos. Nesta polêmica,
também reproduziu artigos da Federação e da A Província de São Paulo, que
criticavam a postura do jornalista abolicionista frente ao Partido Republicano após a
Lei Áurea. A Gazeta Nacional lastimava a divisão do partido: “Pela desunião e a falta
de aquiescência a um chefe, autorizamos qualquer curioso a duvidar de nossa
capacidade para constituir um todo homogêneo e idôneo e desempenhar os altos
encargos da direção dos negócios públicos”.77
Quintino Bocaiúva, por sua vez, afirmava inexistir razão para não aceitar as
adesões de fazendeiros após o fim do cativeiro. “Um mal entendido escrúpulo” não
poderia cercear o crescimento do Partido:
75 “O lado rebelde da princesa Isabel” in Revista Nossa História, nº 31, ano 3, maio de 2006, p. 69. 76 MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados... p.78. 77 “Os republicanos fluminenses” in Gazeta Nacional, 23 de maio de 1888.
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Rio de Janeiro, 1884-1888.
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Todo o interesse do partido que criáramos e que já se contava fortemente aparelhado a lutar com o próprio governo nas eleições, era ver aumentadas suas fileiras, não importa que com adversários de véspera e cuja adesão nos parecia suspeita. Aquelas simpatias que se desagregavam do trono haviam de ir a alguma parte; nós não as chamamos, mas não era de boa política repeli-las por um mal entendido escrúpulo, que não havia como apurar.78
No discurso e na prática de Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo e Silva Jardim,
a república era a causa primeira. Eram abolicionistas sim, porém transigiam com os
interesses dos escravistas que deram fôlego para a vitória da república. Contudo,
por mais que os discursos, os artigos destes republicanos não adotassem uma
postura firme quanto à indenização, na prática, a queima dos arquivos relativos à
escravidão existente no Ministério da Fazenda, a mando do ministro Rui Barbosa,
ainda no Governo Provisório, encerrava as pressões dos antigos proprietários,
definindo a abolição sem indenização.79
Próximo ao 13 de Maio, em torno da princesa Isabel e dos republicanos,
tínhamos, fundamentalmente a disputa pela memória da abolição. Assim, os
documentos divulgados pela imprensa eram monumentos no sentido atribuído por
Jacques Le Goff, ou seja, resultados da disputa e da relação de poder da sociedade
que o fabricou, tentando construir as lembranças do fato para o futuro.80 Neste
momento, o que estava em cena era a construção da memória da abolição, na qual
78 “Como se fez a república” citado in BOCAIÚVA, Quintino. Idéias políticas de Quintino Bocaiúva, p.70. 79 GONÇALVES, João Felipe. Rui Barbosa. Pondo as idéias no lugar. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000, p. 73-74. 80 LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento” in História e memória..., p.526.
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a imagem da princesa Isabel, dos escravos, dos abolicionistas republicanos ou não
estavam sendo forjadas81. Como expressou Patrocínio, em meios a essas polêmicas
sobre a quem caberia à gloria da abolição, caberia “à História a resposta”.
81 Segundo Ângela Gomes de Castro, “(...)estudar uma cultura política, ou melhor, trabalhar com a sua formação e divulgação – quando, quem, através de que instrumentos – é entender como uma certa interpretação do passado (e do futuro) é produzida e consolidada, integrando-se ao imaginário ou a memória coletiva de grupos sociais, inclusive os nacionais.” História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões in SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda Baptista, GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Culturas políticas, ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. p.33.
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4 – CIDADANIA E ABOLIÇÃO
Em O Paiz e na Gazeta Nacional, a escravidão era questionada por dificultar
o crescimento econômico do país e por comprometer o aprimoramento da nação
brasileira. Mas, paralelamente a esse discurso preocupado com o desenvolvimento
nacional, o respeito à liberdade, como direito inalienável do ser humano, era um
argumento central nos artigos veiculados pelas duas folhas.
Os caminhos apontados por estes intelectuais/políticos tinham como
fundamento a defesa dos princípios liberais e a defesa dos direitos políticos e civis.
A partir dos artigos veiculados nestes periódicos, é possível uma análise do sentido
e dos limites da cidadania estabelecidos por estes abolicionistas e republicanos da
cidade do Rio de Janeiro.
4.1. O caso Castro Malta
O caso Castro Malta publicado pelo O Paiz foi ilustrativo do peso que a lógica
liberal do respeito aos direitos civis teve para os homens que escreveram e leram os
jornais do Rio de Janeiro da década de oitenta. Através dele, verifico que a liberdade
e a segurança individual de todos os homens, tendo o Estado o dever de assegurá-
las , tinham força nos discursos de então.
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Malta era efetivamente um pobre diabo, um artista, um
operário; mas não tinha, por isso, menos direito a sua vida, a sua honra e a sua liberdade. Era um cidadão, e tanto bastava1.
A narrativa apresentada sobre o desaparecimento de Castro Malta foi
representativa do poder da imprensa em construir um fato, no período. Pela citação
acima, podemos constatar que o homem em questão foi qualificado como uma
pessoa comum, um homem do povo, explicitado na expressão “um pobre diabo”.
Mas para o autor, Quintino Bocaiúva, sua qualidade maior era ser um cidadão, um
homem livre, e esta condição “tanto bastava” para que seus direitos fossem
garantidos pelo Estado.
Se a partir da narração do episódio Castro Malta, O Paiz conseguiu
conquistar a atenção e a participação dos leitores, e, ao mesmo tempo, atrair outros
jornais da Corte para o acontecimento, é sinal que os temas envolvidos no evento
sensibilizavam a população do Rio de Janeiro.
O denominado “Desaparecimento de Castro Malta” ou “Caso Castro Malta” foi
artigo de fundo de O Paiz durante todo o mês de dezembro de 1884 e janeiro de
1885. Em alguns números, o assunto chegava a tomar toda a primeira página. O
tema tinha um forte apelo popular, pois tratava-se do sumiço de um homem comum,
onde os indícios, levantados pela redação da folha, apresentavam a arbitrariedade
da polícia da Corte como responsável pelo desaparecimento.
1 “Acaba-se o mistério” in O Paiz, 28 de novembro de 1884, p.1.
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De uma simples matéria de O Paiz em final de novembro de 1884, o fato
tomou repercussão no Rio de Janeiro, implicando até no pedido de exoneração do
Chefe de Polícia da Corte, Tito Augusto Pereira de Mattos, prontamente aceito pelo
Ministro da Justiça, Conselheiro Francisco Maria José Pereira, em 31 de dezembro
de 1884, e a participação da Academia Imperial de Medicina no episódio.
Com o título “Mas o que é isto?”, O Paiz iniciou uma série de artigos sobre o
sumiço de João Alves de Castro Malta. O espanto apresentado por Quintino
Bocaiúva no nome atribuído à matéria era em razão da possibilidade de Malta ter
sofrido um recrutamento forçado. Para o autor, o Brasil vivia constantes violações à
liberdade individual feitas por representantes da própria lei:
Não há recrutamento; mas os supostos bandidos usam
uniforme militar(...) Não há recrutamento, mas as vítimas escrevem, talvez
coagidas, deixando suas cartas nos estabelecimentos militares, onde se dizem recolhidas.
Temos, portanto, o direito de supor que os agentes fantásticos possuem domínios impenetráveis à vista dos verdadeiros agentes da autoridade pública, onde em cárceres privados, retém suas presas2.
Sendo ou não recrutamento, o caso Castro Malta, para o jornalista,
envergonhava o Brasil perante as demais nações, comprometia a imagem do país
no exterior e assombrava internamente a população desprotegida, que só contava
com a imprensa para resguardá-la de desmandos do poder público. Como podemos
verificar a “missão” do jornalismo era reiterada ao longo do fato
2 26 de novembro de 1884, p.1
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
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De acordo com o periódico, amigos e parentes de Castro Malta procuraram
sua redação em busca de solucionar o misterioso sumiço deste brasileiro na Praça
da Constituição. A partir daí, O Paiz apresentou uma trama envolvendo a Polícia da
Corte, os médicos da Casa de Detenção e funcionários do cemitério de São
Francisco Xavier, criando um cenário de mistério sobre o que, de fato, ocorreu com
Castro Malta.
Ressalto que a cor branca de Castro Malta não foi enfatizada no decorrer do
episódio, sequer foi informada em seus primeiros números. Para aqueles que
acompanhavam o caso desde seu início, não era possível identificar a cor do
desaparecido. Somente no episódio da primeira autópsia, essa informação do “pobre
diabo” foi apresentada entre tantas outras características físicas.
Este dado faz com que acredite que para argumentação central de Quintino
Bocaiúva sobre o desrespeito à liberdade individual de um “homem do povo”, de “um
filho obscuro do trabalho”, sua cor, naquele momento não era relevante. Vale frisar
que desde meados do século XIX, com toda a pressão dos escravos pela conquista
da alforria, ser livre cada vez menos era sinônimo de ser branco3. Para o leitor, “o
pobre diabo” poderia ser um branco, um negro ou um mestiço livre4.
O nome de João Alves de Castro Malta figurava entre as prisões feitas por
urbanos, motivadas pelo que consideravam ser desordem e vagabundagem na
Praça da Constituição no dia 16 de novembro de 1884. Sendo detido, foi
inicialmente levado para a Estação do Primeiro Distrito, em seguida para a
Delegacia e depois para a Casa de Detenção. Em 22 de novembro, havia o registro
3 CASTRO, Hebe. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.99.
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
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da morte de João Alves Castro de Mattos no obituário da Repartição Funerária do
Cemitério São Francisco Xavier, ocorrida em 19 do mês corrente. O falecido tinha 30
anos presumíveis. Foi qualificado como artista encanador, sem trabalho efetivo e
sem declaração de residência. A causa do falecimento foi atribuída a uma congestão
hepática e foi sepultado na vala comum nº 143.
As indagações de O Paiz dirigidas à Polícia da Corte foram diversas: Castro
Malta e Castro Mattos eram a mesma pessoa? Como havia morrido três dias depois
de preso, se segundo seus parentes e amigos, ele gozava de plena saúde? Como o
médico legista e, ao mesmo tempo, perito da polícia constatara a causa de seu
falecimento? Se chegou moribundo à Casa de Detenção, por que não foi
encaminhado diretamente para a Santa Casa de Misericórdia?
Essas perguntas estavam sempre respaldadas no respeito à vida humana, na
liberdade ceifada por representantes do Estado sem aparente motivo. As críticas
eram feitas ao Império por não cumprir, segundo Bocaiúva, sua função essencial de
proteger a todos os brasileiros, independente de sua posição ou rede de influência:
O caso porém, é tão estranho, tão confuso, tão emaranhado
de circunstâncias contraditórias, que nós julgamos necessário, por honra das próprias autoridades provocar um inquérito.
O desgraçado que já morreu não tinha parentes e amigos poderosos: era um desvalido, como o são ordinariamente todos os filhos obscuros do trabalho, todos os operários anônimos.
Mas a sociedade é a mãe; mas o Estado é o pai de todos os cidadãos e onde faltam proteção e amparo individual, aí estão o ampara e proteção da Lei5.
4 Para uma discussão sobre cor e identidades sociais, verificar LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Brasil Império. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 5 idem ibidem
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
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143
A folha exigiu das autoridades a exumação do cadáver para comprovar se o
corpo era ou não o de Castro Malta, para constatar a real causa da morte e sendo
congestão hepática se foi espontânea ou resultado de efeito traumático. O Paiz
reforçava que Malta não era desordeiro e vagabundo, conforme informações que
levantou. Ainda mais, o horário e o local da prisão, às 10h da manhã em praça
pública, eram sinais que estava simplesmente sentado, quando foi abordado pelos
urbanos. Sua prisão era mais um ato de arbitrariedade praticado pela polícia do Rio
de Janeiro.
No dia seguinte, 27 de novembro, Castro Malta voltava a receber destaque
com o título “O caso misterioso”. Neste número, ele não foi tratado como morto, e
sim como desaparecido. A polícia prendeu e não informava para os parentes e
amigos o destino dado ao detido.
Ainda argumentava que se o falecimento tivesse ocorrido, se Castro Malta e
Castro Mattos fossem a mesma pessoa, a certidão de óbito com os dados
concedidos pela polícia era uma prova do descompromisso das autoridades com o
povo. Informações importantes sobre a vida de Castro Malta eram desconhecidas.
Ignorava-se seu estado civil, sua nacionalidade, sua naturalidade, sua residência e o
princípio causador da congestão hepática. O ponto alto do artigo era o desprezo que
as autoridades demonstravam pelo homem comum. Castro Malta teria morrido na
Casa de Detenção, onde havia uma enfermaria e quatro médicos e sequer teve
assistência. O jornal foi categórico ao afirmar que o não tratamento médico ao detido
resultou em homicídio.
No terceiro dia, com o título “Acaba-se o mistério”, o jornal sentia-se vitorioso
pois o Chefe de Polícia, Tito Mattos, decidiu pela exumação do cadáver para
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
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confirmar a identidade de Castro Malta e averiguar a causa de sua morte. Portanto,
em dois dias, O Paiz, que na época divulgava uma tiragem de onze mil exemplares,
conseguiu reabrir um caso que teria sido como outros falecimentos da Corte, se os
familiares não contassem com o apoio do jornal: uma prisão por desordem, onde o
preso posteriormente faleceu e foi sepultado numa vala comum.
Com os artigos de fundo de O Paiz construiu-se o Caso Castro Malta. A
polícia da Corte teve de fazer autópsia e prestar esclarecimento ao Ministro da
Justiça, Francisco Maria Sodré Pereira. Segundo Quintino Bocaiúva, cartas dos
leitores foram dirigidas à redação do jornal dando legitimidade à ação empreendida
em nome da liberdade e da segurança individual:
Felizmente, nesta questão, vemos com prazer que alguns ilustrados colegas nos alentam com sua poderosa coadjuvação, identificando-se com o nosso sentimento honroso que inspira e dirige a nossa pena; e as cartas obsequiosas que, em não pequeno número, temos recebido, dão testemunha da comoção legítima que abalou o sentimento público em face do caso estranho que ainda não sabemos se encobre ou não um vergonhoso atentado6.
O Paiz reproduziu o longo ofício do Chefe da Polícia da Corte ao Ministro da
Justiça explicando o acontecido no Caso Castro Malta. Fica explícito que foram as
publicações do jornal que motivaram a exumação e a própria necessidade de
explicação da Polícia do Rio de Janeiro a seus superiores. A citação a seguir é
fundamental para percebemos o poder de criar um fato da redação de O Paiz em
novembro de 1884, ainda no início de sua existência:
6 27 de novembro de 1884, p1.
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
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145
Ilm. e Exm. Sr – O Paiz, em artigo de fundo da sua folha de
hoje, refere o fato de haver, há dias, desaparecido um indivíduo, artista encanador, sem trabalho efetivo quando desapareceu, porque pouco antes foram dispensado de comparecer à oficina.
Diz a mesma folha que esse indivíduo chamava-se João Alves de Castro Malta e que seus amigos, deram afinal com seu nome na lista das prisões efetuadas pela Polícia, e que mais tarde, nas folhas do dia 22 e na lista do obituário, encontraram os amigos do mesmo um nome semelhante ao dele, isto é, João Alves de Castro Mattos, falecido de congestão hepática, sem declaração de residência e onde falecera e que toda a diferença estava no último sobrenome7.
A partir de então Tito Mattos, passou a narrar todo o processo de Malta da
prisão na Praça da Constituição ao falecimento na Casa de Detenção. Afirmava que
não havia embasamento para a suspeita de O Paiz de que Castro Malta tinha
desaparecido. O Chefe da Polícia afirmou com veemência que o homem em questão
estava morto. A rigor, a falha era o simples erro no livro de assentamento do
cemitério São Francisco Xavier.
Quando parecia que tudo ia se acalmar, que a folha estava satisfeita com o
desfecho do caso, a exumação, ocorrida no dia 28 de novembro, foi um momento de
mais desmandos e desrespeito das autoridades, na apreciação da redação de O
Paiz. O corpo não foi reconhecido pelos parentes e amigos que estavam presentes
no cemitério São Francisco Xavier. Depois de averiguada a cova nº143, tendo a
negativa dos que conheciam Malta, abriram também a 142 e a 144. O médico perito
dr. Pedro Autran da Matta Albuquerque foi o único que reconheceu o cadáver de
Castro Malta na cova 143, o que causou descontentamento em todos os presentes,
inclusive no público, que acompanhando o caso pelo jornal, só foi para assistir a
7 “Epígrafe”, 28 de novembro de 1884, p.1
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exumação. Mesmo com a discordância, o cadáver foi retirado para autópsia. Para
agravar ainda mais a situação, o resultado apontou como causa da morte pleurezia
suporada, diferente, portanto, de congestão hepática, que aparecia no registro do
óbito.
À exumação foram os jornais Brazil, Folha Nova, Gazeta da Tarde e O Paiz. A
Gazeta de Notícias e O Apóstolo, mesmo não comparecendo oficialmente ao
cemitério São Francisco Xavier, deram destaque ao acontecido. O Paiz foi
representado pelo médico perito dr. Henrique Monat, membro da Academia Imperial
de Medicina. Ele, discordando do dr. Autran, constatou que o crânio era de um
homem com aproximadamente 40 anos, acima, portanto, da idade de Castro Malta.
Podemos, assim, verificar que o caso Castro Malta, centrado no respeito à
liberdade e à segurança individual, envolvia já a imprensa do Rio de Janeiro e
instituições renomadas como a Academia Imperial de Medicina. A julgar pelas cartas
de apoio recebidas pela redação e a presença de populares no cemitério São
Francisco Xavier, os leitores de O Paiz também estavam sensibilizados e exigindo a
solução do caso.
O jornal Gazeta da Tarde confirmou a importância de O Paiz para o caso
Castro Malta e a presença do público que acompanhava o fato pelas folhas na
expressão “muitos curiosos em número avultado”:
Com efeito, hoje às 11 ½ da manhã, dirigiram-se ao cemitério de S. Francisco Xavier o Sr, 3º delegado, acompanhado do respectivo escrivão, os médicos da polícia drs. Thomaz Coelho e Autran, representantes do Brazil, Paiz, Folha Nova e Gazeta da Tarde, e muitos curiosos em número avultado.
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A redação do Paiz, que criteriosamente levantou a questão (grifo nosso), levou como perito o dr. Monat.
Achavam-se ainda presentes os Drs. Campos da Paz, pela redação desta folha, o Spindola, Schreiner e Marcondes8.
Com as divergências quanto ao reconhecimento do corpo e à contestação do
resultado da autópsia, os meses de dezembro e janeiro, tiveram sempre em
destaque o caso Castro Malta. Tinha uma matéria constante intitulada Castro Malta.
Documentos para a história. A folha colocava em xeque toda a ação da Polícia e dos
médicos envolvidos. O assunto ocupava a atenção de O Paiz. Nesses seus
primeiros meses de existência, o episódio era o diferencial de suas publicações.
Logo após O Paiz revelar as diferenças de conclusão entre o perito que o
representou e o perito da polícia, o dr. Monat foi preso na Corte e “maltratado” pelo
tenente Heller da Estação do Primeiro Distrito. Ao ser comunicado, o Chefe de
Polícia disse que apenas poderia pedir desculpas ao médico. Assim, criou-se outro
ponto de discussão entre O Paiz e as autoridades da Corte. Agora, era um médico
conhecido que teve seus direitos violados.
A Academia Imperial de Medicina entrou em cena, registrando em ata, sua
indignação à violência sofrida por um de seus membros. Em sessão de 09 de
dezembro, acompanhada pelo O Paiz, declarou que se a causa da morte fosse
pleurezia suporada, Malta não poderia três dias antes circular normalmente pelas
ruas do Rio de Janeiro. A razão da morte era incompatível com o quadro de saúde
que até então apresentava. Posteriormente, a Academia Imperial de Medicina
constituiu uma comissão que solicitou e conseguiu a análise do crânio autopsiado.
Concluiu que pertencia a um homem com mais de 40 anos, acima, portanto, da
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idade de Castro Malta, reforçando a avaliação do dr. Monat e discordando do laudo
do dr. Autran.
A posição da Academia ofereceu mais munição para O Paiz criticar
diariamente as autoridades públicas, passando pelos médicos legistas, Chefe de
Polícia, Ministro da Justiça e o próprio D. Pedro II. O Estado não cumpria sua
função:
Não deve a autoridade uma justificativa de seus atos aos parentes do morto?
Nem aos amigos? Nem à sociedade inteira, que se não pode conceder com a
idéia de que um cidadão desaparece das mãos da autoridade, sem que esta indique claramente o destino que lhe deu?
Nem o próprio Augusto Chefe do Estado, cujo título mais glorioso, o de Defensor Perpétuo do Brasil, nada mais significa se ele deixasse de ser o Defensor Perpétuo de todos os brasileiros?9.
Com toda essa repercussão, o Chefe de Polícia decidiu por outra autópsia, no
considerado oficialmente, corpo de Castro Malta. Na nova exumação, aumentou o
número de folhas presentes. Segundo Bocaiúva, estavam no cemitério a Gazeta de
Notícias, Jornal do Comércio, Revista Ilustrada, O Mequetrefe, Brazil, Diário do
Brazil, A Folha Nova, Gazeta da Tarde e, evidentemente, O Paiz. Como podemos
constatar, o número de periódicos da cidade do Rio de Janeiro, que ofereciam
destaque ao episódio, cresceu.
O resultado do relatório da comissão de peritos, que contou com
representantes da Academia Imperial de Medicina, saiu em 28 de janeiro de 1885,
8 28 de novembro de 1884, p.1 9 “Hoje mais do que nunca”, 21 de dezembro de 1884, p.1
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quando Tito Mattos, já tinha pedido exoneração. Para um certo desencanto da
direção de O Paiz, constatou-se que o cadáver era mesmo de Castro Malta e que a
causa da morte era pleurezia suporada. O erro anterior foi um diagnóstico de
congestão hepática feito sem exame pelo doutor Autran para o registro do óbito.
O Paiz reconheceu que falhou na apreciação da identidade do cadáver e da
causa da morte, pois “deixou as emoções” guiarem alguns artigos. Porém,
independente do resultado da nova autópsia e do inquérito, o jornal levantava
pontos que deveriam ser questionadores da ação das autoridades. Para a redação
da folha, a negação da assistência médica, o descaso da administração do cemitério
com os pobres, o desrespeito à vida humana e a violação à liberdade individual
fizeram parte do episódio que não deixaram de existir por conta do reconhecimento
do corpo de Castro Malta e da confirmação do motivo de seu falecimento.
Praticamente fazendo o desfecho do caso, publicava o jornal:
Castro Malta é um mito: não existiu... Foi uma fantasia, uma criação caprichosa, uma legenda, um
humbug propagado pelo Paiz para o fim de causar sensação e atrair leitores.
Sua vida anterior, sua filiação, sua certidão de batismo, sua profissão, sua prisão, sua enfermidade presumida, sua morte, seu próprio cadáver duas vezes autopsiado e ultimamente reduzido a simples carcaça óssea – tudo isso foi pura invenção do redator principal de O Paiz.
E veja-se o que é o poder da imaginação. No fim de poucos dias, Malta foi a preocupação exclusiva do
espírito público. (...) Castro Malta foi uma invenção de O Paiz! E no entanto toda a imprensa, sem faltar ao concerto o Diário
Oficial, apoderou-se do assunto e o discutiu largamente até que a atitude do povo se tornou ameaçadora e exigiu a desafronta da justiça e da moralidade pública.
(...)
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150
Como vitória moral, bastava-nos, a nós da imprensa, o resultado da nossa ação coletiva da defesa dos princípios tutelares do direito e da ordem pública, da liberdade e da vida do cidadão10.
Para a linha interpretativa deste trabalho, o caso Castro Malta não pode ser
entendido como mera criação do redator principal de O Paiz para atrair leitores. Ele
é importante para entendermos o habitus da época a partir da repercussão que sua
apresentação teve para o público. Este era formado pelo Chefe de Polícia da Corte,
pelo Ministro da Justiça, pelos redatores de outras folhas, pelos presentes às
exumações, pelos ditos pobres parentes e amigos do falecido, pelos membros da
Academia Imperial de Medicina, pelos que enviaram carta de apoio à redação e,
evidentemente, por aqueles que anonimamente acompanhavam o desenrolar do fato
construído por O Paiz.
A repercussão do episódio ligou-se ao apelo a valores que homens do
período queriam solidificar. A violação da liberdade e da segurança de um cidadão
comum feita por aqueles que deveriam protegê-la sensibilizou o redator e o público
de O Paiz. O caso Castro Malta revelou o quanto o tema da liberdade individual e a
função do Estado em garanti-la para todos os cidadãos foram caros para os autores
e leitores da imprensa do Rio de Janeiro em meados da década de oitenta,
momento em que a campanha abolicionista ganhava as ruas e o Parlamento.
10 “Ainda Castro Malta”, 01 de fevereiro de 1885, p.1
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4.2. Liberalismo, cidadania e abolição
“Para nós o liberto é um cidadão, sujeito ao regime comum.”11
Pouco antes da assinatura da Lei Áurea, a imprensa do Rio de Janeiro
analisava projetos que foram aventados para o fim do cativeiro. Um deles gerou a
contundente frase acima. Era a proposta de abolição da escravatura imediata, total,
mas com prestação de serviço por três meses e residência obrigatória do liberto por
dois meses no município em que residia no momento da alforria. A posição da
Gazeta Nacional era que a abolição não poderia aceitar restrições de nenhum tipo à
liberdade. O liberto era um cidadão devendo estar submetido aos mesmos direitos e
deveres, inclusive penais, dos demais homens.
Nestes momentos finais da escravidão, a questão central deixava de ser uma
postura contra ou a favor ao fim do cativeiro, mas como proceder para seu desfecho.
Segundo a Gazeta Nacional, a proposta de prestação de serviço e de residência
obrigatória era a qualificada pelos proprietários de escravos e por integrantes do
governo como prudente. Mas, para a folha, representava a formação de duas
categorias de cidadãos, uns com total liberdade de ir e vir, de fixar residência, de
trabalho e outros ainda marcados pelos passado como escravo, tendo sua
autonomia cerceada. Resulta daí, a afirmação acima que foi publicada isoladamente
no alto da página, reforçando que, para esses republicanos do Rio de Janeiro, a
11 “O Projeto”, 06 de abril de 1888, p.2.
O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição.
Rio de Janeiro, 1884-1888.
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abolição deveria ser imediata, incondicional e sem criar categorias distintas de
cidadãos.
Apesar de todas as diferenças de trajetória e propostas políticas, os homens
da geração de 1870 pensaram o Brasil a partir do liberalismo e do cientificismo12. Os
discursos proferidos no parlamento, nas conferências ou publicados nos jornais
foram expressões de como as idéias liberais e as teorias raciais foram por eles
interpretadas.
Por pensar e projetar o Brasil apoiado em referenciais europeus, estudiosos
analisaram o pensamento e a prática política dos homens do século XIX como
artificialismo, distante da realidade brasileira, que ainda contava com o trabalho
escravo e não tinha passado pela Revolução Industrial13. Um ponto desta discussão
era se as idéias de origem européia estavam “dentro ou fora do lugar” no Brasil.14
Recentes trabalhos sobre os homens e as instituições oitocentistas, entendem a
produção do período como uma releitura, uma reinterpretação, uma atribuição de
novos sentidos aos conceitos, a partir da realidade imediata. As idéias não eram
12 MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil na virada do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p.29. 13 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977; NOGUEIRA, Marco Aurélio. “As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco e a república. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Emília Viotti da Costa ressalta as diferenças sócio-econômicas entre a Europa e o Brasil de então: (...) o liberalismo, no Brasil, não se apoiou nas mesmas bases, nem teve os mesmos objetivos. Os princípios liberais importados não se forjaram na luta da burguesia contra a aristocracia e a realeza, nem evoluíram, como na Europa do século XIX, em função da revolução industrial, pois esta só correria no Brasil no século XX.” In Da monarquia à república. Momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 5ª edição, p.121. 14 SCWARCZ, Roberto“As idéias fora do lugar”, in Estudos CEBRAP (3), janeiro de 1973; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho.“As idéias estão no lugar”, in Cadernos de Debate, São Paulo, Brasiliense (1), 1976; Neste sentido, Marco Aurélio Nogueira afirma que “(...) Não encontrando, todavia, bases internas condizentes com sua racionalidade formal, o liberalismo tinha de ser assimilado com certas “adaptações” capazes de evitar os riscos do artificialismo: era obrigado a um ajuste para conviver com a escravidão, o latifúndio, a hipertrofia estatal, os mecanismos de cooptação e a ideologia do favor. Com isso, aparecia entre nós como uma ‘idéia fora do lugar’ e despojado de caráter heróico e revolucionário que tivera em sua origem” in As desventuras do liberalismo...., p. 65
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copiadas e nem meramente distorcidas, eram reelaboradas por essas elites, que se
apoiavam na literatura internacional para pensar o futuro do país15.
O liberalismo surgiu na Europa do século XVIII como substrato ideológico
para a luta contra o poder absolutista e norteou valores e práticas políticas na
constituição da sociedade burguesa a partir da Revolução Industrial, questionando
as bases sociais e econômicas do Antigo Regime. Na América, inspirou os
movimentos de separação das colônias de suas metrópoles, em busca da liberdade
comercial, da autonomia política e do constitucionalismo.
O termo adquiriu diferentes conotações dependendo por quem e para que era
utilizado. Mas em geral, o liberalismo, adotado pelas sociedades burguesas em
formação, entendia a liberdade como a capacidade de “possuir e de acumular, sem
limites e a título privado, bens econômicos, assim como a liberdade de empreender
operações econômicas”16. Os liberais defendiam que o governo deveria assegurar
condições para que os cidadãos se desenvolvessem e, paralelamente, gerassem
riquezas com seus talentos e virtudes. Esta ótica fazia oposição a sociedade
centrada nos privilégios de nascimento, próprios do Antigo Regime. A valorização da
capacidade de crescimento a partir das competências pessoais negava uma
estrutura social que naturalizava as desigualdades sociais a partir de uma ordem
divina17.
15 “Não se trata de entender a adoção das teses raciais como mero reflexo, uma cópia desautorizada, mas antes indagar sobre seus novos significados contextuais, bem como verificar sua relação com a situação social, política, econômica e intelectual vivenciada pelo país” in SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.242. 16 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 41. 17Sobre a trajetória do pensamento liberal, ver MANENT, Pierre. História intelectual do liberalismo. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
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Segundo este pressuposto, o Estado, respeitando e garantindo a liberdade e
a segurança individuais, só deveria agir de forma punitiva para impedir que os
indivíduos prejudicassem uns aos outros18. Ele deveria assegurar os chamados
direitos civis, ou seja, os direitos fundamentais à vida, ao dispor sobre o próprio
corpo, de locomoção, de ir e vir, de manifestação do pensamento, de liberdade de
imprensa19. O cidadão só poderia ter sua liberdade cerceada nas situações em que
burlasse às leis, que cometesse crime. Como vimos, de acordo com O Paiz, no caso
Castro Malta, acreditava-se que esses direitos teriam sido violados pelo próprio
poder público.
No Brasil, a existência da escravidão limitava a vivência dos direitos civis da
cidadania também para os proprietários. O Império recebeu como herança colonial a
grande propriedade rural, que resistia à ação da lei, um poder público comprometido
com o poder privado e a negação da condição humana do escravo quando não
reconhecia seu inalienável direito à liberdade20. A cidadania restrita implicou que
uma parte da população estava abaixo e outra se considerava acima da lei. No
quotidiano da sociedade patriarcal, a igualdade presente no texto da Constituição de
1824 era negada através de práticas de privilégios e arrogância entre os próprios
cidadãos21.
18 De acordo com Antonio Carlos Peixoto, “(...) O ponto básico do qual o liberalismo parte é então exatamente este: a tensão entre a ação individual e o ordenamento exterior ao indivíduo que condiciona as ações desse mesmo indivíduo. Mas, o que define, antes de tudo, o liberalismo, a partir desta tensão é, então, a primazia da ação humana” Liberais ou conservadores” in GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal (org.) O liberalismo no Brasil Imperial. Origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Revan/UERJ, 2001, p.13 19Utilizo o conceito de cidadania a partir da já clássica leitura de T.H. Marshall envolvendo os direitos políticos, civis e sociais na obra Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 20 CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.45. 21 idem, ibidem, p.53.
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Para os homens que fizeram a emancipação política ou que construíam a
ordem saquarema, no Brasil, liberalismo casava-se com escravidão. O Estado liberal
era aquele que garantiria a liberdade comercial, o latifúndio, a escravidão, a unidade
territorial. Estaria centrado no direito de propriedade, o que incluía a posse dos
escravos22. Ser liberal, no período, significava ser o conservador da liberdade
política e econômica alcançada com a emancipação. Conforme sintetizou Alfredo
Bosi, liberdade então equivalia ao poder de produzir, vender e comprar; ao poder de
representar-se politicamente para os homens livres qualificados; ao poder de
sustentar juridicamente a escravidão e o latifúndio23.
O Estado liberal, formado com a vitória do Regresso, realçava a liberdade
como responsabilidade pública24. O liberalismo clássico, que enfatizava os direitos
individuais, só teve condições de se desenvolver no Brasil, a partir da década de 60,
com o crescimento do número de profissionais liberais urbanos, tornando
contraditórios, aos olhos dos atores, a defesa das idéias liberais e a permanência do
cativeiro25.
22 Na Europa, na primeira metade do XIX, o liberalismo também vivia os impasses de indivíduos de status legalmente iguais e os interesses dos homens que controlavam o Estado e a propriedade. Verificar HOBSBAWM, Eric. A Era do capital. 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.117-126. 23 “A escravidão entre dois liberalismos” in BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.199-200. 24 Na dimensão pública, “(...) o conceito de Liberdade cruza-se com o de Responsabilidade, imprimindo novas significações à desigualdade e reafirmando certas clivagens. De uma lado a distinção entre cidadãos ativos e não ativos ganhava o conteúdo de naturalização da distinção entre sociedade política e sociedade civil, fazendo da primeira o espaço natural onde os cidadãos legitimam o monopólio da Responsabilidade e da última o espaço naturalizado ocupado pelos meros súditos.” In MATTOS, Ilmar, O Tempo Saquarema. A formação do Estado Imperial. São Paulo: HUCITEC, 1990, p.149. 25 CARVALHO, José Murilo. Teatro de Sombras. A política imperial. Rio de Janeiro: UFRJ, Relume-Dumará, 1996, p.188.
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Denso estudo sobre as possibilidades de convivência entre liberalismo e
escravidão no Brasil, em meados século XIX, encontramos no trabalho de Keila
Grinberg. Através do estudo da trajetória e do pensamento de Antonio Pereira
Rebouças, (advogado autodidata, deputado-provincial, deputado-geral, conselheiro
do Império e pai do engenheiro André Rebouças), a historiadora analisa a
articulação que ele fez entre o direito de propriedade e o direito civil, intensamente
defendidos pelo parlamentar. Antônio Rebouças era favorável que o critério
censitário fosse o divisor de águas da cidadania. Somente através da renda deveria
se definir quem deveria ser eleitor ou participar da guarda nacional, por exemplo. Era
contra a imputação de restrições aos libertos, que por meio de seus talentos e
virtudes, conseguissem renda suficiente para participar da vida política do país. A
escravidão era vista, por ele, como legítima, era uma forma de propriedade. Porém,
a partir do momento em que o escravo conquistasse sua alforria, qualquer tipo de
exclusão tinha de ser calcada nos mesmos critérios dos demais cidadãos, ou seja,
deveria depender dos rendimentos e bens adquiridos. No liberalismo de Antonio
Rebouças, não importava a cor de quem tinha posses26.
O Paiz, desde sua fundação, debruçava-se sobre o tema da liberdade
individual, do respeito à segurança, como base para a sustentação da sociedade
civil. O Estado deveria ser o garantidor da liberdade para todos sem distinção:
26 “Para ele, era possível a existência de uma sociedade liberal escravista que não fosse racista: ela não seria racista a partir do momento em que, livre da escravidão, qualquer cidadão teria igualdade de oportunidades sociais, políticas e econômicas” in O fiador dos brasileiros. Cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 185. Sobre o tema, ver também MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
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Desgraçada a sociedade onde o direito de um não fosse o direito de todos.
Sem esse vínculo jurídico que deve ligar todos os cidadãos de um país, sem essa solidariedade moral, que á a base de toda associação política não pode haver nem povo nem pátria.
A liberdade é o direito de todos; a segurança individual é a garantia comum27.
A postura frente à escravidão foi um divisor de águas do liberalismo antes e a
partir da geração de 187028. A existência do cativeiro impossibilitava que o princípio
da liberdade imperasse no Brasil. Para a geração de 1870, o liberalismo era
indissociável do trabalho livre, pois através dele, seria possível o desenvolvimento
de valores positivos em relação à labuta. A valorização do trabalho ficava
comprometida com a permanência da escravidão.
Para esses jornalistas liberais republicanos, somente em liberdade, os
homens teriam condições de alcançar seu desenvolvimento. A liberdade deveria ser
estendida a todos, sem distinção, “Cumpre não desvirtuar a conquista alcançada; a
todos nós corre o dever de impedir que uma escravidão seja substituída por outra,
sob qualquer pretexto ou forma que seja” 29. A Lei do Ventre Livre foi utilizada como
argumento em defesa da liberdade. O acoutamento do fugidos não devia ser
considerado como crime, pois, para O Paiz, se a lei de 1871 reconhecia o direito ao
pecúlio, ao ser emancipado pelo próprio esforço, “o escravo-coisa passou à
categoria de objeto de museu”30.
27 “Insistimos e insistiremos”, 05 de dezembro de 1884, p.1 28 BOSI, Alfredo. op. cit, p.225. 29 “Sursum Corda” in Gazeta Nacional, 11 de maio de 1888, p2. 30 “Escravos acoutados” in O Paiz, 15 de junho de 1885, p.1.
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Novos e velhos desentendimentos ou formas de exclusão – como a proposta
de abolição prudente - deveriam ser superados em nome da liberdade individual,
que também implicava na liberdade da pátria: Deve ser o nosso empenho defender
a liberdade de cada um, defendendo a de todos, e mostrando que só o
congraçamento dos cidadãos, esquecidos antigos e muitos agravos, podem resultar
a felicidade e o engrandecimento da Pátria.”31
Neste sentido, se o discurso centrado na razão nacional, ou seja, aquele que
entende o fim do cativeiro como uma etapa obrigatória para o desenvolvimento do
país, para a formação da nação brasileira em compasso com o ritmo da civilização e
do progresso, foi fator permanente na crítica ao escravismo no Brasil, a razão
individual, presente na defesa da extensão dos direitos civis, também foi um alicerce
na construção dos discursos favoráveis à abolição e à república feitos pelos liberais
republicanos do Rio de Janeiro.
Desta forma, no que tange à Gazeta Nacional e a O Paiz, analiso
diferentemente de José Murilo de Carvalho quando afirma que “o argumento da
liberdade individual como direito inalienável era usado com pouca ênfase”32 em favor
da abolição. Para o autor, fora do campo religioso, o embasamento do discurso pelo
fim do cativeiro no Brasil era a razão nacional, enquanto nos Estados Unidos e na
31 Idem, ibidem. 32 CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil....., p. 51. “A razão nacional, isto é, o obstáculo instransponível que a escravidão colocava no caminho da construção da nação brasileira, do corpo de cidadãos, tornara-se particularmente forte para parte da elite política, a Coroa à frente, durante a guerra contra o Paraguai. (...) Tais razões foram, sem dúvida, de grande peso para a decisão do governo de iniciar o processo abolicionista” in “A escravidão e a razão nacional in Pontos e bordados. Escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 57.
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Europa, a razão individual sustentava a fala dos abolicionistas33.
Para estes dois jornais de caráter republicano, a lógica da razão individual, do
respeito às liberdades amparava os discursos. O caso Castro Malta revelou como
desde o início de sua circulação, O Paiz, por exemplo, apresentava uma narrativa
preocupada com os direitos civis de “um pobre diabo”. Mediante a argumentação
elaborada nestes jornais, defendo que a razão individual, tanto quanto a razão
nacional, inspirou o abolicionismo dos grupos liberais republicanos do Rio de
Janeiro.
O Paiz, citando o jornal Tribuna de Pernambuco, publicou artigo intitulado “O
preço de um homem”. O objetivo era fazer uma crítica ao projeto de Lei dos
Sexagenários que estabelecia o preço médio dos cativos. A idéia central era que um
homem não tem preço. Estabelecer valores para o ser humano era negar sua
própria humanidade:
O legislador deve ter brilho. Ele não deve esquecer a moral e a honra que são o maior apanágio do indivíduo, como também das nações.
Se a consciência pública é e deve ser o seu espelho e guia, é preciso que ele não se rebaixe; não se degrade, não se avilte.
O preço venal de um homem! O legislador que o fixa não tem vergonha da maior das vergonhas que tem conspurcado a humanidade.
Há ainda um mercado em que se compra e que se vende seres humanos?34
33 Cidadania no Brasil..., p.52 34 “O Paiz” in O Paiz, 22 de julho de 1885, p.1.
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Sobre a fuga e o acoutamento de escravos fugidos, por exemplo, as duas
folhas não os apresentavam como crime. Entendiam como a luta natural por um
direito inalienável do ser humano. Vale relembrar o discurso de Rui Barbosa,
reproduzido pelo O Paiz: “A fuga, no escravo, é um crime? Não: é a defesa natural; é
o exercício de um direito que nenhuma lei, nesse mundo, ousaria negar”35. Assim,
constato que O Paiz e a Gazeta Nacional tinham preocupações com os direitos
civis, utilizavam o argumento do direito de todos à liberdade em seus discursos
abolicionistas36.
A centralização administrativa e política do Império e o Poder Moderador
eram colocados em xeque a partir dos princípios do liberalismo. A concentração de
poderes não permitia o atendimento às diferenças provinciais, não abria espaço para
as iniciativas individuais:
Descentralizar é a suprema fórmula do progresso. É dividir o
trabalho, é atender de perto as necessidades diferentes, é, principalmente – e nisso consiste sua maior virtude – restringir a autoridade pública. Quanto menos governo, melhor, porque haverá mais ativa liberdade individual. (...)
As reformas democráticas obedecem a esta altíssima tendência – enfraquecer a autoridade, fortalecer a liberdade individual37.
35 “Escravos acoutados” in O Paiz, 15 de junho de 1885, p.1. 36 Ricardo Salles também enfatiza a necessidade de se pensar o abolicionismo para além da razão nacional: “o abolicionismo de Nabuco, Rebouças e Patrocínio e outros não se prendeu a uma razão nacional, mas a uma posição radical moralmente contrária à escravidão e firmemente favorável à conquista de uma cidadania plena por parte dos antigos escravos e seus descendentes.” In Joaquim Nabuco...., p. 120. 37 “Monarquia federativa”, 12 de maio de 1888, p.2
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Para os liberais republicanos, apesar de toda reticência da Gazeta Nacional
no posicionamento da abolição sem indenização, o liberalismo era incompatível com
o cativeiro de parte da população. Suas propostas teóricas coadunavam-se com
suas possibilidades políticas concretas e correspondiam à dinâmica própria da
tensão entre interesses políticos dos intelectuais e posicionamento teórico dos
políticos. Caso, por exemplo, a Gazeta Nacional. Órgão republicano reconhecesse a
indenização - atraindo a simpatia para sua causa dos descontentes com os rumos
da Lei Áurea -, legitimaria o direito de propriedade sobre o escravo. Em
contrapartida, o não reconhecimento da legitimidade da indenização, reforçaria o
direito inalienável de todos os homens à liberdade, mas poderia trazer prejuízos
políticos.
A posição oscilante da Gazeta Nacional em relação à indenização não
implicou, em meu ver, em uma postura dúbia no que diz respeito aos direitos civis e
à escravidão. Ao contrário, a omissão, naquele momento, significou não expor uma
linha que atingiria um terreno fecundo de crescimento para o movimento
republicano. Ela também refletia as ambigüidades vividas pelas elites intelectuais
nesta fase de transição para o trabalho livre.
De acordo com Maria Fernanda Lombardi Fernandes, postura semelhante
teve o propagandista Silva Jardim ao defender seus ideais republicanos e
abolicionistas. Para Jardim, “a república tudo valia”. Assim, mesmo sendo favorável
à abolição sem indenização e da inserção do liberto na sociedade sem critérios
excludentes, por várias vezes, calou-se ou optou por uma posição dúbia para
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assegurar a simpatia de proprietários de escravos38. Ainda mais considerando que,
nesta fase final do cativeiro, concentrou sua atuação política em São Paulo, a
fórmula adotada por Jardim tornar-se bastante compreensível.
Se o tema dos direitos civis foi caro para esses liberais republicanos, o dos
direitos políticos não foi diferente. Uma plataforma de luta foi a ampliação dos
homens em condições de voto. A reforma eleitoral de 1881 que alterou os critérios
para participação no processo eleitoral foi objeto de questionamentos. A
Constituição de 1824 estabelecia a eleição para o Legislativo em dois turnos – o
Executivo das províncias, presidente, era nomeado pelo governo central -, podendo
participar todos os homens maiores de 25 anos com renda anual mínima de 100 mil-
réis. O voto era obrigatório para todos que atendessem a essas exigências. No
primeiro turno, participariam os votantes, que escolheriam os eleitores. Estes,
homens com renda anual mínima de 200 mil-réis, elegeriam os deputados e
senadores. A renda exigida não era elevada e permitia que a maioria da população
participasse das eleições primárias, sendo, mais inclusiva, que a legislação eleitoral
vigente no período na Europa.39 Os libertos só podiam participar das eleições
primárias. Somente o homem nascido livre poderia ser eleitor.
A reforma eleitoral de 1881 mudou o perfil dos participantes das eleições no
Império. A eleição para o Parlamento tornou-se direta, o voto agora era facultativo,
não havia restrição para o liberto, o critério censitário permaneceu, sendo a renda
mínima 200 mil-réis e proibia-se o voto do analfabeto. Essa mudança foi muito
significativa, pois excluiu a maioria da população dos direitos políticos, estando no
38 Esperança e desencanto. Silva Jardim e a república. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2004 p. 65-66 39 CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil..., p. 25-37.
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caminho inverso ao que ocorria na Europa40. Ainda quando transitava o projeto da
reforma, Lopes Trovão fez uma avaliação negativa, pois restringiria o número de
pessoas com acesso ao voto:
Contudo, o projeto da reforma eleitoral não passa de mais um
sofisma com que a atual situação liberal ilude seu próprio programa, ilaqueia a boa fé pública, compromete as doutrinas democráticas de que se diz representante legítima.
(...) Apesar de vir trajado de caras mais sedutoras não nos iludiu.
Por baixo da camada de ouro com que o cobriram, conhecemos logo que era uma pílula de strichinina destinada a matar o cão nacional – o povo.
Vamos ter, portanto, uma lei eleitoral aristocrática, reacionária, eminentemente conservadora, hipocritamente rotulada com o título de eleição direta pela censo baixo41.
Acompanhando os artigos publicados em O Paiz, constato discordâncias da
folha com a configuração do eleitorado em consequência da reforma eleitoral de
1881. No momento da discussão da Lei dos Sexagenários, houve o elogio à
formação de um grupo parlamentar abolicionista, mas paralelamente criticaram a
exclusão da maioria da população do processo eleitoral. A própria legitimidade da
representação foi colocada em dúvida:
40 Idem, ibidem, p. 38-45. De acordo com Eric Hobsbawm, “o reaparecimento da pressão popular na década de 1860 fez com que fosse impossível manter a política do tipo isolada. Pelo final do período, somente a Rússia tzarista e a Turquia Imperial mantinham-se como simples autocracias na Europa, enquanto, por outro lado, o sufrágio universal não era mais prerrogativa dos regimes surgidos de revoluções” in A Era do Capital... p.121 41 “Reforma eleitoral” in O Combate, 11 de junho de 1880, p.1.
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A organização do grupo parlamentar abolicionista tem aos nossos olhos um duplo alcance.
Ela serve para dar corpo e coesão às forças parlamentares que apóiam francamente a idéia abolicionista e para dar prestígio e representação da maioria do povo brasileiro, que, por vício da lei eleitoral, acha-se privada de manifestar sua opinião.
Tratando-se de uma reforma social e política de tanta magnitude, é bom não esquecer que, pela nossa defeituosa constituição eleitoral, somos 13 milhões de indivíduos representados por 125 deputados, que apenas exprimem a delegação de 120 mil eleitores42.
A Gazeta Nacional também teceu críticas à exclusão do povo do processo
eleitoral como resultado da reforma de 1881 e, evidentemente, só reconhecia a
república como regime capaz de aumentar a participação política:
Está para breve a campanha eleitoral pelo primeiro distrito da
Corte. Não há escurecer a importância do pleito e a
responsabilidade do eleitorado. No antigo regime celebrizaram-se algumas paróquias daquele
distrito pelas batalhas feridas entre capoeiras e fósforos, oficialmente reconhecidos ‘a flor da gente’.
Com a eleição direta foram excluídos das urnas não só os desordeiros e facínoras, mais ainda a grande massa popular, que representa o trabalho honesto e as obscuras virtudes da classe média.
Aristocratizou-se o eleitorado ou, para dizer melhor, entregou-se o eleitorado ao funcionalismo público, secundado pelo capital ocioso e por todas as classes privilegiadas.
Aumentou acaso, no resultado final a independência, o critério de patriotismo?
É lícito duvidar43.
A expressão fósforo refere-se ao homem que se fazia passar por um outro
eleitor com o objetivo de angariar mais votos para os partidários de seu chefe
42 “O grupo parlamentar abolicionista”, 13 de julho de 1885, p.1 43 “Eleição no Primeiro Distrito”, 04 de abril de 1888, p. 1.
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político44. A preocupação com o fato de o eleitorado ser composto pelo
funcionalismo público era absolutamente plausível para uma folha republicana.
Sendo as eleições abertas, isso garantia o voto para os partidos do governo,
resultado do receio em dependentes do Estado em votar em candidatos
republicanos. Assim, a Gazeta Nacional afirmava que o eleitorado do Rio de Janeiro
era comprometido com a situação.
Nos artigos da Gazeta Nacional e O Paiz, os direitos políticos e civis da
cidadania eram enfatizados. A forma republicana com o rodízio do poder e a maior
participação eleitoral garantiriam a cidadania no Brasil, pois afinal, segundo Quintino
Bocaiúva, “a república é o mais perfeito dos governo humanos”.45
De acordo com as publicações de a Gazeta Nacional, a república seria o
momento em que a vontade da população, com direito ao voto, prevaleceria sobre a
vontade da família reinante. As mudanças ocorridas dentro da monarquia seriam
sempre parciais, pois a liberdade, por excelência, só existe na ordem republicana:
Devemos ter muito medo das reformas dos políticos da monarquia. Elas são sempre incompletas e sempre para pior, porque os reformadores estão dominados por uma idéia fixa: a dos interesses oligárquicos em que se baseiam a estabilidade de sua fortuna política e de família. Essas liberdades vêm sempre em prejuízo das liberdades públicas, são o produto do embuste, do sofisma, da mistificação e da fraude; reformas que logo no ano seguinte, tal como a eleitoral do Sr. Saraiva, que é espoliação dos direitos do povo, tais como todas as outras46.
44 Cidadania no Brasil..., p. 34. 45 “A conquista da instrução” in O Paiz, 03 de julho de 1885, p.1 46 “A municipalidade da Corte” in Gazeta Nacional, 20 de março de 1888.
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A representação política foi questão crucial para os liberais republicanos, quer
fosse através da cobrança ao Partido Liberal, como fez Lopes Trovão, em 1880, ou
do reconhecimento que somente a república poderia tornar mais legítimas as
eleições no Brasil:
Os deploráveis exemplos com que os doutores eleitorais nos
estão edificando; a variada instrução que nos estão fornecendo quanto aos meios de iludir a lei e de fraudar a expressão do voto, a própria simpatia leviana com que o povo, conforme sua paixão ou sua idéia, recebe e aplaude de todas essas monstruosas, desde que elas favoreçam aos candidatos que mais lhes interessam, demonstram um grande atraso na nossa educação política e atestam uma corrupção dos costumes e um abastardamento do caráter cívico, que não nos pode honrar nem prometer auspiciosos resultados47.
O Paiz afirmou que a maneira que se encontravam organizadas as eleições
no Império, a fraude, o desrespeito aos resultados oficiais era a regra. O próprio
eleitor tornava-se cúmplice deste processo:
De norte a sul, é preciso que uma só corda vibre nesta quadra
eleitoral – a corda da intolerância selvagem. Tanto para o governo quanto para a oposição o crime é não
vencer. Para isso os dois partidos governamentais contribuem com o
seu melhor esforço – desde a trapaça e a fraude até a violência; desde o roubas das atas até o roubo das vidas!
Deste vergonhoso espetáculo que está nos oferecendo o eleitorado direto e censitário, cumpre dize-lo, cabe o maior quinhão de responsabilidade ao governo imperial.48
47 “A eleição”, in Gazeta Nacional, 06 de janeiro de 1888, p.1 48 “O que se vê e o que não se vê” in O Paiz, 10 de janeiro de 1885, p.1
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República, para esses periódicos, significava tanto uma forma de governo
contraposta à monarquia, principalmente com suas críticas ao Poder Moderador e a
centralização administrativa, quanto uma comunidade política ideal, fundamentada
na virtude dos cidadãos e no amor à pátria49. Essa república era pensada de acordo
com os princípios do liberalismo, mas não se confundia com os princípios
democráticos. Neste momento, os direitos sociais da cidadania apareciam de forma
indireta quando esses homens diziam que a partir das competências e talentos de
cada um que o bem-estar seria alcançado.
Diferentemente dos novos liberais, como André Rebouças e Joaquim Nabuco,
que chegaram a pensar na revisão da estrutura fundiária e em mudanaças
educacionais para o país, os liberais republicanos centraram sua argumentação nos
direitos civis e políticos. Vale frisar que do ponto de vista do pensamento liberal, a
não formulação de propostas que trouxessem o bem-estar da população como um
todo, em nada comprometia seus princípios. De acordo com os projetos de
sociedade, enquanto o tema da liberdade foi caro para os liberais, o tema da
igualdade, extrapolando os aspectos jurídicos, foi caro para os regimes
democráticos50. No liberalismo do século XIX, a igualdade na liberdade ofereceria
condições para o desenvolvimento dos que tivessem talentos e virtudes.51
49 Para uma discussão sobre o significado da república no movimento republicano, especialmente no pensamento de Silva Jardim, verificar FERNANDES, Maria Fernanda Lombardi. Esperança e desencanto... 50 “(...) O liberalismo e a democracia pareciam mais adversários que aliados; o tríplice slogan da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – expressava melhor uma contradição que uma combinação”. In HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 1789-1848. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1991, p.262. 51 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1990.
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Afirmo que a garantia dos direitos civis e dos direitos políticos foram os limites
do projeto de cidadania no discursos dos periódicos Gazeta Nacional e O Paiz entre
1884 e 1888. Sendo o liberto, um cidadão sujeito ao regime comum, oferecer
vantagens e restrições ao recém saído do cativeiro, implicaria em retirá-lo da
condição de comum no discurso destes liberais. De qualquer forma, a cidadania não
era pensada somente para os segmentos proprietários, a segurança, o bem-estar, o
respeito ao direito de ir e vir, o direito à participação no processo eleitoral deveriam
ser garantidos a todos não somente aos “bons cidadãos”.
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5 – ESCRAVOS, LIBERTOS E NAÇÃO
A questão nacional preocupava tanto as elites européias quanto as brasileiras
do século XIX. O que era uma nação? Quais eram os critérios de pertencimento e de
exclusão? Estas respostas eram dadas a partir da articulação do liberalismo e das
teorias raciais científicas.
No Brasil, essa discussão foi paralela ao processo de abolição da
escravatura, com conseqüente necessidade de incorporação do liberto à nação do
final do oitocentos. Existia uma atenção especial para o como controlar seus atos,
como normatizá-lo, de forma que em condições de liberdade não comprometesse o
futuro promissor do país. Entre o escravo pacato e o criminoso em potencial, estas
foram as imagens veiculadas nos periódicos, foco deste estudo, sobre aqueles que
constituiriam os chamados nacionais.
5.1.Etnocentrismo científico, liberalismo e nação
O século XIX foi um período de triunfo para a ciência. Na Europa, as
descobertas científicas reforçavam a crença inexorável no progresso da
humanidade, expressando também sua materialização. O desenvolvimento da
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Química, da Física, da Biologia, o aumento da rede de transportes e comunicação,
enfim, as maravilhas do mundo industrial e capitalista confirmavam a pujança da
sociedade européia. O saber científico deveria se sobrepor às demais formas de
conhecimento para que o progresso social fosse contínuo. No Brasil, a Engenharia
representava a área que tornava visível o desenvolvimento do país, com a
construções de ferrovias e portos1.
A partir de estudos no campo da Biologia, Charles Darwin apresentou o
processo de evolução das espécies e de seleção natural, onde os mais fortes e os
mais adaptados ao meio predominariam. Herbert Spencer, em sua leitura do
darwinismo, ofereceu base para criação de um racismo a partir de uma razão
científica. As idéias desses teóricos foram utilizadas para se pensar as sociedades e
organizações humanas, sendo as diferenças físicas e culturais entre os diversos
povos interpretadas mediante o conceito de seleção natural2. Da mesma forma, que
ocorria com outros animais, com os homens, as espécies superiores, também
deveriam dominar os menos evoluídos. No entendimento da época, a dominação
dos povos da Ásia e da África pelos europeus era uma etapa da evolução das
sociedades.
A partir da legitimidade que a ciência, vista de acordo com os padrões
iluministas, concedia à noção de raças humanas e a sua hierarquização, consolidou-
se o etnocentrismo científico. Os brancos e a cultura ocidental ao controlarem,
1 Sobre a engenharia no período, verificar HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma. A modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988; LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer. Dos trapiches ao porto. Um estudo sobre a área portuário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, Secretaria Municipal de Cultura, 1991; BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, Secretaria Municipal de Cultura, 1992; COELHO, Edmundo Campos, As profissões imperiais. Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.
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outros povos, estariam ajudando no processo de desenvolvimento da vida na Terra3.
A etnografia e Antropologia européia do século XIX reforçavam o discurso da
dominação sobre a África e a Ásia. Além dos aspectos econômicos e políticos, a
conquista feita pelos povos, vistos como os mais capazes, tinha uma dimensão de
nova consciência planetária, pois tratava-se de uma atitude generosa dos civilizados
ao levarem conhecimento, cultura, organização aos considerados primitivos. A idéia
de superioridade da raça branca justificava os meios e os fins da dominação
colonialista.
A noção de raça quebrou a unicidade da condição humana. Quem viveu no
século XIX tinha a certeza de que os homens não integravam a mesma espécie4. Os
grupos humanos foram compreendidos como pertencentes a raças distintas. Assim,
atos que implicavam em subordinação, discriminação, desigualdades e violência
tinham por base a existência de espécies diferenciadas, não apenas física, como
também intelectual e moralmente.
De acordo com a linha evolutiva, o tipo humano que estivesse bem próximo
ao macaco seria o mais atrasado. Na leitura predominante, o africano foi, em
essência, esse elemento. A concepção de inferioridade dos povos da África ou a dos
2 LÈVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa: Estampa, 4ª edição,1989. 3 “Temos aqui o ponto central em torno do qual se organizaram as expedições universais, verdadeiros rituais de massa em que os grandes impérios se afirmavam segundo sistemas classificatórios tanto para os produtos de exibição como para os povos e nações participantes. Assim, povos e culturas expostos obedecendo a uma organização temporal eram classificados em selvagens, bárbaros e civilizados; em uma palavra, o planeta foi dividido entre uma raça superior glorificada por uma missão civilizatória auto-atribuída e raças inferiores.” In HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à História Contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005, p.131-132. 4 A idéia de raças humanas ainda permeia o pensamento e ações sociais no século XIX. Embora tenha sido superada no campo da Biologia, em várias situações, ela se faz presente no senso comum, em movimentos sociais e em trabalhos sociológicos. Podemos encontrá-la em discursos neonazistas ou de organizações que, pretendendo combater o racismo, acabam reforçando, de forma subjacente, a idéia de raça. Para um aprofundamento da discussão, ver GUIMARÃES, Antonio Sergio. Classes, raças e democracia. São Paulo: FAPESP/Editora 34, 2002; MAIO, Marco, SANTOS,
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asiáticos dependia dos critérios de quem julgava as semelhanças com os tipos que
antecederam ao atual homem branco5.
A série de artigos com o sugestivo título O atual homem primitivo, de autoria
de Artur Viana de Lima, publicada na Gazeta Nacional, foi exemplar para demonstrar
como se reportava aos estudos científicos para pensar os diferentes grupos e como,
no Brasil, as idéias tinham, através da imprensa, uma grande circulação. Os textos
foram divulgados de 24 de janeiro a 11 de fevereiro de 1888 e já no primeiro artigo a
tônica da discussão foi bem definida:
O indivíduo das raças verdadeiramente retardatárias
apresentam um conjunto de particularidades que consideravelmente o afastam do tipo humano superior, o homem branco. (...)
Quanto ao encéfalo das raças inferiores, pesa menos; e suas circunvoluções – como já tinham notado Cuvier e Tiedmann, e como determinaram as observações de R. Wagner, Gratiolet e Broca – são menos numerosas e de conformação mais rudimentar. As diversas partes do esqueleto também fornecem traços de inferioridade: na raça africana, o humerus apresenta disposições pitecóides e os ossos são mais densos e mais duros.
(...) O africano, como nossos antepassados selvagens, tem pronunciada as impressões musculares e as cristas notavelmente desenvolvidas. Muitos de seus músculos, o grande dorsal, o grande reto do abdome, apresentam diz o Dr. Bordier, disposições que deparamos no macaco e que nunca ou raro encontramos no branco.6
Considerando o patrimônio genético, avaliava-se a fase e o potencial de
desenvolvimento dos povos. O tema da alteridade, a crença nas diferentes raças, a
Ricardo (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/Centro Cultural do Banco do Brasil. REVER. 5 De acordo com Eric Hobsbawm, “O argumento é frágil, mas era um apelo natural para aqueles que queriam provar a inferioridade racial, por exemplo, dos negros em relação aos brancos – ou melhor, de qualquer um em relação a brancos. (A forma de macaco poderia ser discernida pelo olho do preconceito até nos chineses e japoneses, como testemunham muitos desenhos da época).” In A era do capital. 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.275. 6 24 de janeiro de 1888, p.3.
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hierarquização promovida pela ciência fizeram parte do “narcisismo europeu e sua
busca de fronteira entre si e o outro”7, contestavam os ideais igualitários das
revoluções burguesas e sustentavam o racismo científico.
Cada raça teria suas vantagens e desvantagens. Apesar de ser considerar o
branco como o mais intelectualmente desenvolvido, o negro, por exemplo, era visto
pelos positivistas como a raça afetiva. Neste contexto, a figura do mestiço era
emblemática, pois representava a mistura das espécies. Estudiosos europeus,
como Paul Broca, chegavam a afirmar que, como era resultado de espécies
distintas, os mestiços eram estéreis, à semelhança da mula. Outros, como Conde de
Gobineau, acreditavam que os mestiços herdavam as piores características das
espécies em cruzamento. Em uma ou em outra leitura, a miscigenação deveria ser
evitada, pois comprometeria o desenvolvimento dos diferentes grupos. Gobineau,
que residiu no Rio de Janeiro, previu que o povo brasileiro seria extinto em
aproximadamente duzentos anos por conta da miscigenação8.
A distinção entre os humanos, dependendo do intérprete, poderia estar ligada
à monogenia ou a poligenia, ou seja, poderiam ser entendida como desigualdades
temporárias ou diferenças intransponíveis na trajetória de desenvolvimento dos
povos9. Para os monogenistas, a raça branca era a mais avançada, contudo, o
aprimoramento também era possível para as demais espécies, pois os homens
tinham a mesma origem, apenas se encontravam em pontos específicos na trajetória
7 A África na sala de aula... p. 134. 8 DAMATTA, Roberto. Relativizando. Uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 74-75. 9 Um balanço sobre as diferentes teorias raciais produzidas no século XIX, encontramos em SCHWACZ, Lilia Moritz. “ Um história de ‘diferenças’ e ‘desigualdades’. As doutrinas raciais do século XIX” in O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870- 1930. São Paulo: Companhia das Letras.
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universal do progresso e da civilização. Já para os que defendiam a poligenia, os
povos eram diferentes por si, tendo capacidades e condições específicas de
crescimento.
Assim, dependendo de uma interpretação ligada à monogenia ou a poligenia,
essas diferenças poderiam ser superadas ou não. Para os que defendiam a origem
única da humanidade, os povos estariam em fase distintas de um desenvolvimento
que era único. Portanto, apesar da civilização européia ser vista como a mais
avançada, o desenvolvimento também era possível a outros povos. Para os que
defendiam uma linha evolutiva diferenciada, os povos seriam essencialmente
diferentes, tendo, cada um, uma capacidade própria de desenvolvimento e,
conseqüentemente, um destino, como resultado do processo de seleção natural.
Para o raciocínio que nos interessa neste momento, seja na monogenia ou na
poligenia, o destino do indivíduo estaria intrinsecamente ligado a seu patrimônio
biológico. Em princípio, as teorias raciais científicas que tanto adeptos tiveram na
Europa e no Brasil, ao entenderem o indivíduo a partir das regras da evolução e da
seleção natural, ao estabelecerem um determinismo biológico, estavam em
discordância com os princípios do liberalismo que preconizavam que o sucesso dos
indivíduos estaria ligado aos talentos e virtudes pessoais.
Como os postulados das teorias raciais científicas tiveram força em um século
XIX que preconizava a liberdade individual e os direitos civis? Como pensadores
liberais poderiam preconizar o etnocentrismo científico? Por que tais correntes foram
complementares e não excludentes no discurso da burguesia oitocentista?
Eric Hobsbawm afirma que o sucesso concomitante das teorias raciais
científicas e do liberalismo no século XIX deriva dos princípios do evolucionismo
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social que reforçavam a lógica de dominação e de exclusão burguesa. Para isso,
colaboraram a noção de competição – já familiar para os liberais – e a defesa que os
homens eram desiguais10.
A associação que os burgueses fizeram entre os dois pensamentos resultou
na interpretação de que, no processo de seleção natural, os que estavam no topo
da pirâmide eram justamente aqueles que possuíam mais talentos, competências e
virtudes. Esses estariam com melhor preparo para a concorrência do mercado
capitalista. Apesar do patrimônio genético comprometer o campo da liberdade
individual ao restringir as potencialidades humanas, estava implícito que, até no que
tangia à estrutura biológica, havia o reconhecimento dos que eram mais
considerados mais inteligentes e capazes. A competição capitalista seria
responsável pelo processo de seleção natural, de distinção entre dominantes e
dominados, entre vencedores e perdedores.
Com a mesma força ideológica, as teorias raciais ofereceram um argumento
inquestionável para o cerceamento da participação efetiva na vida política de parte
da população. Os pobres, os iletrados, na qualidade de inferiores, não poderiam
decidir sobre o destino do país, pois seu discernimento, sua capacidade de tomar
decisões acertadas eram menores que a dos vitoriosos na estrutura capitalista da
“carreira aberta ao talento”11.
10 A Era do Capital..., p.277. 11 “(...) O argumento era tão lisonjeiro quanto conveniente – tão conveniente que as classes médias estavam inclinadas a tomá-los dos aristocratas (que haviam por longo tempo se considerado uma raça superior) por razões internas e também internacionais: os pobres eram pobres porque biologicamente inferiores e, por outro lado, se cidadãos pertenciam às ‘raças inferiores’, não era de se espantar que eles permanecessem pobres e atrasados.” In A era do capital..., p. 276.
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O evolucionismo social pertenceu mais à política do que a ciência do século
XIX12. As teorias raciais foram um substrato, por excelência, para a restrição da
democracia e para a dominação da Ásia e da África. Se os princípios liberais não
tinham justificativas consistentes para a defesa das desigualdades civil e política,
para o não reconhecimento do direito de autodeterminação dos povos asiáticos e
africanos, encontrou no racismo científico uma fonte em que muito precisava beber.
O etnocentrismo científico respaldava os liberais na interpretação e projeção de um
mundo em que os homens eram de espécies desiguais, de capacidade desiguais,
portanto, poderiam ter direitos e deveres desiguais.
Através das teorias raciais, o liberalismo burguês não apenas legitimava a
desigualdade entre os homens, como também ajudava a estabelecer que
sociedades poderiam ser consideradas como nação13. A idéia geral era que da
mesma forma que os organismos iam do simples ao complexo, as sociedades
humanas também tinham estágios evolutivos que iam das tribos às nações.
A preocupação com a questão nacional sensibilizou a Europa do século XIX
expressa em conflitos entre povos para verem reconhecidos sua identidade coletiva
e o direito de autodeterminação. Mas, para o princípio da nacionalidade que
predominou até 1870, o direito a autodeterminação somente se justificava quando o
país era economicamente viável. Povos da África e grupos lingüísticos europeus
com pequeno número de integrantes, por exemplo, não poderiam constituir uma
12 Idem, ibidem, p. 277. 13 HOBSBAWM, Eric. “A nação como novidade: da revolução ao liberalismo” in Nações e nacionalismo desde 1870. Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
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nação, eles só tinham a ganhar ao serem anexados por sociedades mais
complexas14.
A partir de 1880, na Europa, com a crescente pressão pela democratização, a
ampliação dos participantes do processo eleitoral e o surgimento do movimento de
massas, a definição dos indivíduos de que pertenciam ou não à nação passava a ser
um critério para discernir que tinha ou não direitos políticos. A construção da
identidade nacional baseava-se num conjunto de aspectos comuns procurados na
trajetória dos povos como língua, religião, cultura, rituais, instituições e na invenção
de novas tradições, que ajudavam a cimentar a identidade15.
Para as elites intelectuais da América, era fundamental reforçar os laços
culturais e étnicos com a Europa. Buscava-se uma aproximação com o considerado
berço da humanidade Ocidental, gregos e romanos, e ratificar a posição dos novos
países independentes como nações economicamente viáveis e com tradição. O
objetivo era fazer da América a imagem do Ocidente, na qual a civilização e a
progresso eram consubstanciados.
No Brasil, as teorias raciais e o liberalismo também influenciaram os discursos
e os projetos das elites intelectuais sobre a formação da nação. Se as idéias liberais
já estavam presentes no processo de emancipação política, as teorias raciais
14 “(...) Contudo, a heterogeneidade nacional dos Estados-nações foi aceita sobretudo porque parecia claro que as nacionalidades pequenas, e especialmente as pequenas e atrasadas, só tinham a ganhar fundindo-se em nações maiores e fazendo, através destas, sua contribuição para a humanidade.” In Nações e nacionalismo..., p.46. 15 De acordo com Eric Hobsbawm: “A ampliação do progresso da democracia eleitoral e a conseqüente aparição da política de massas, portanto, dominaram a invenção das tradições oficiais no período de 1870-1914. O que tornava isso particularmente urgente era a predominância tanto do modelo das instituições constitucionais liberais quanto da ideologia liberal. (...) Após a década de 1870, portanto, quase que certamente junto com o surgimento da política de massas, os governantes e observadores da classe média redescobriram a importância dos elementos ‘irracionais’ na manutenção da estrutura e da ordem social.” In HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence (orgs). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p.275-276.
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científicas conseguiram ressonância a partir da década de 70. Justamente no
momento em que a sociedade começava a se preparar para a abolição da
escravatura e a conseqüente incorporação dos negros, futuros libertos, a categorias
de nacionais. A assinatura da Lei do Ventre Livre, associada ao fim do tráfico
internacional de escravos, sinalizavam que o fim da cativeiro no Brasil era um fator
de tempo.
No último quartel do século XIX, ao se discutir a formação da nação, discutia-
se em decorrência a questão racial16. Como civilizar o país, como colocá-lo no
caminho do progresso, se era marcado por uma população negra e mestiça? Como
estender os direitos políticos e civis sem ameaçar a prosperidade econômica e
social? Estas eram questões subjacentes nas propostas de abolição da
escravatura17. Era preciso equacionar os princípios e dilemas levantados pelo
liberalismo e pelas teorias raciais na formação da nação brasileira18. Afinal, se
dependesse das previsões de Conde de Gobineau, o futuro do Brasil já estava
comprometido.
16 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças...; GOMES, Heloísa Toller. “O discurso político” in As marcas da escravidão.O negro e o discurso oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/EDUERJ, 1994; SILVA, Eduardo. “Os assuntos brasileiros” in Dom Oba II, D’África, o Príncipe do Povo. Vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras1997. 17 Entre as elites intelectuais que discutiam a formação do povo brasileiro, o embranquecimento era uma alternativa proposta para a constituição da nação. “O ingresso efetivo de negros e mestiços no mundo formal da cidadania, (...) juntamente com a nova feição do espaço mundial real e narrativo da “era das nações”, iria resultar numa nova narrativa da nação brasileira. Esta se caracterizará, desde então, por tensão entre a cultura branca brasileira e sua origem marcada pela presença do sangue negro e índio. Na mestiçagem e no desaparecimento simbólico dos negros e dos mestiços encontrava-se a chave para solução desta tensão”. in SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco. Um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002., p. 114-115 18 De acordo com Célia Maria Marinho de Azevedo, para Joaquim Nabuco “o abolicionismo brasileiro caracterizava-se como um movimento essencialmente político cujos objetivos era reconstruir a nação sobre uma base de trabalho livre e integração racial” in Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil. Uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, p.94.
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Para além do discurso de dominação burguesa - voltado para mascarar as
diferenças sociais através do homogeneidade – a nação deve ser interpretada como
uma complexa rede simbólica. Ao ser definida, responde-se a questões que
atravessam os grupos humanos: “Quem somos nós? Quem somos diante do
mundo? Quais as nossas necessidades?”19. O discutir a questão nacional significava
tratar da identidade coletiva, da relação dos cidadãos entre si, com a natureza e da
construção da própria alteridade20.
Os textos publicados em O Paiz e a Gazeta Nacional foram representativos
deste momento em que as elites na Europa e no Brasil estiveram voltadas para a
questão do quem somos nós, quais os critérios de pertencimento à nação, pois
justamente a partir da definição da semelhança e da alteridade, distinguia-se a quem
atribuir direitos civis e políticos. Os próprios nomes atribuídos às folhas traziam de
forma subjacente esta temática. Os termos país e nacional eram significativos das
preocupações destes intelectuais com a construção da identidade coletiva.
19 MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 79. 20 “(...) se não há contraste entre o que está sendo comparado, então não há identidade, pois o conteúdo da identidade é o diferente, o qual é revelado na relação constrativa.(...). Não há identidade entre os idênticos, como se sabe, porque não diferem não havendo o que contrastar. Parece permanecer, portanto, a questão: o que é identidade? Certamente, o conteúdo da identidade é a diferença: se há diversidade, então há identidade”. FAULHABER, Priscila. “Identidade étnica em discussão” in D’INCAO, Maria Ângela & SILVEIRA, Isolda Maciel da (orgs.) A Amazônia e a crise da modernização. Belém, M. P.E.G., 1994, p. 322.
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5.2. Em condições de escravidão e de liberdade
De acordo com a abordagem anteriormente empreendida, a Gazeta Nacional
e O Paiz tinham seus redatores principais ligados ao grupo liberal republicano.
Assim, muito embora, seja equivocado entender o pensamento expresso nas duas
folhas como representante dos grupos republicanos do Rio Janeiro como um todo,
pois os positivistas abolicionistas, por exemplo, não seriam contemplados, acredito
que em razão da importância dos nomes envolvidos na redação, as idéias contidas
em O Paiz e a Gazeta Nacional foram significativas do pensamento dos liberais
republicanos da Corte.
Na década de oitenta, em particular depois da Lei dos Sexagenários, a fuga
de escravos, as ações de liberdade e a formação de quilombos enfraqueceram a
representação do negro resignado com o cativeiro. Escravos e abolicionistas
estavam em cena pela conquista da liberdade. Apesar de toda a preocupação das
lideranças urbanas com a paz social, para os proprietários de escravos, pelos
menos, era inevitável a sensação de perturbação da ordem21.
Nesta imprensa, palco da luta pela abolição, a imagem que se veiculava do
negro era estratégica para se conseguir maior apoio para a causa emancipacionista.
Paralelamente a esse objetivo, os discursos produzidos por estes abolicionistas
21 AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco. O negro no imaginário das elites. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; MACHADO, Humberto Fernandes. Escravos, senhores e café. A crise da cafeicultura do Vale do Paraíba Fluminense. Niterói: Cromos, 1993; MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, São Paulo: EDUSP, 1994; MATTOS, Hebe Maria. Os significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
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estavam em consonância com as teorias raciais científicas, com as idéias de
progresso, de ordem social e civilização.
Assim, aqueles que escreveram artigos de cunho abolicionista na Corte
tinham dois marcos. O primeiro era balizado pela busca de simpatizantes para o
movimento. Neste caso, o negro não poderia representar perigo. As idéias de
espírito ordeiro, companheiro, dado ao trabalho eram apresentadas como
características natas dos negros que nem mesmo a violência da escravidão
conseguiu abalar. A passividade e a generosidade fizeram parte de um discurso que
pretendia atrair leitores para a abolição imediata e incondicional.
O segundo marco apresentava uma representação sobre o escravo marcada
pela ótica das teorias raciais científicas. De acordo com esta visão, se o fim do
cativeiro não fosse cercado de cuidados, o desenvolvimento do país ficaria
comprometido. A inferioridade intelectual e moral dos africanos e de seus
descendentes em relação aos brancos era comprovada pelos estudos
antropológicos. Mas, em geral, a perspectiva da monogenia predominava, pois
expressavam que apesar da cultura inferior e de sua tendência aos vícios, a
evolução dos negros e, em conseqüência, a dos nacionais, era possível. Bastava
ficar atento a seus comportamento para corrigir os vícios que, a qualquer momento,
poderia apresentar.
Os discursos construídos a partir destes dois marcos podem ser entendidos
como contraditórios, considerando que nos meses próximos à abolição, as imagens
dos negros variavam de escravos pacatos a criminoso em potencial, as vezes até no
mesmo exemplar. Entretanto, estas alternâncias correspondem justamente à
dinâmica social do momento em que se defendia o fim do cativeiro. As narrativas
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sobre os negros tinham inspiração liberal e altruísta e, ao mesmo tempo, dialogavam
com etnocentrismo científico. O dilema ficou expresso nas construções sobre o
cativo e sobre as conseqüências da abolição para a nação brasileira.
Desta forma, não considero como discrepâncias internas dos artigos estas
variações de imagens. Entendo como dilema próprio dos grupos que, no final dos
oitocentos, defenderam o fim da escravidão, que acabava por estar presente em
seus textos abolicionistas. A necessidade da abolição em oposição ao receio de
suas conseqüências para o país.
É possível que esta situação tenha sido mais delicada para os vários
abolicionistas descendentes de africanos. A título de exemplo, podemos citar André
Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama e Ferreira de Meneses. Como homens do
final do século XIX, as tensões entre o “negro bom” e o “negro degenerado” também
foram encontradas em suas produções e , por vezes, sofreram preconceitos por
parte das elites das quais pertenciam22. Certamente, o dilema que viveram foi ainda
maior, pois era a própria trajetória pessoal ou familiar que tinham de equacionar para
pensar na abolição e na nação a partir das acertivas das teorias raciais.
Entre os estudos que, partindo dos jornais abordaram as representações
sobre o negro no final do século XIX, a produção de Lilia Moritz Schwarcz tem
especial interesse para esta parte do trabalho. A autora analisou como a imprensa
estava voltada para cristalizar concepções sobre o escravo e o liberto, unificar
22 MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados: a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro. 1880-1889. Tese de Doutorado, São Paulo, Universidade de São Paulo, mimeo, 1991;GOMES, Heloísa Tolles. As marcas da escravidão. O negro no discurso oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/EDUERJ, 1994; AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999; PESSANHA, Andréa Santos. Da abolição da escravatura à abolição da miséria. A vida e as idéias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet, 2005.
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condutas no trato da abolição e formar uma opinião pública sobre o escravidão e seu
término23. Ela estudou especialmente os jornais Correio Paulistano, A Província de
São Paulo e a Redempção e trabalhou na perspectiva sincrônica, ao pensar no
contexto de produção e difusão destas representações nas diferentes seções dos
jornais, e na diacrônica, ao comparar os preconceitos, o imaginário sobre o negro no
último quartel do século XIX.
Foram três recortes temporais analisados por Schwarcz na intenção de
compreender as diferentes narrativas sobre o negro nos periódicos. O primeiro
corresponde ao período de 1875 a 1885, no qual ele era apresentado como um
elemento bárbaro, perigoso e o proprietário como vítima absoluta24. Em geral, seu
nome não era identificado nas matérias, era desconhecido, pervertido e diferente do
familiar.
O segundo equivale ao período de 1885 e 1888, núcleo justamente do
trabalho ora desenvolvido. Neste intervalo, os periódicos condenavam a existência
da escravidão. A Redempção, de publicação de Antônio Bento, tinha feições mais
abolicionistas. Na fase, em razão do recrudescimento do movimento pelo fim do
cativeiro e das razões científicas apontadas, as imagens sobre o escravo mudaram.
De uma maneira geral, ele passou de algoz da fase anterior para vítima no atual
recorte. A necessidade da tutela, a inferioridade racial dos negros eram pontos
repetidos e comuns nas folhas, mesmo nos jornal de Antônio Bento. Estas
observações também foram feiras por Humberto Fernandes Machado ao analisar a
imprensa abolicionista do Rio de Janeiro. A postura paternalista e reformista,
23Retrato em branco e negro: jornais e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 24 Idem, ibidem, p.164
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segundo o autor, justificaram-se pela preocupação, antes de tudo, com a ordem e
com o reconhecimento pelos abolicionistas da necessidade de proteção aos
negros25.
O último recorte temporal de Schwarcz vai da abolição até 1900. Nesta fase,
com o término da escravidão e a implantação da República, caberia a definição de
quem deveria ser cidadão e quais “os limites que a raça negra poderia trazer para
essa jovem nação”26. Os temas eram o preto ébrio, alucinado, desleal e com práticas
bárbaras. Assim sobre o negro recaía dois estigmas o da escravidão e o da herança
biológica27.
As caracterizações das imagens sobre os negros nestes intervalos temporais
estabelecidos por Schwarcz são importantes para construirmos um quadro sobre as
narrativas a respeito dos negros nos jornais de São Paulo, por ela, analisados.
Contudo, conforme a autora destaca, essas imagens não podem ser entendidas de
forma estanque, sem justaposições ou transições. Nos jornais, a Gazeta Nacional e
O Paiz, até em razão da preocupação dos liberais republicanos com a república, as
qualidades encontradas pela autora para a segunda e a terceira fases, por exemplo,
já podem ser verificados no intervalo de 1884 a 1888.
25 Palavras e brados... 26 Retrato em branco e negro..., p. 221. 27 Idem, ibidem, p. 245.
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5.2.1. Índole pacata
As ditas características natas do negro para a ordem, a obediência e para o
trabalho foram narrativas apresentadas por jornalistas abolicionistas na intenção de
convencer aos leitores de que a libertação não representaria perigo para a
sociedade como um todo. A índole pacata do escravo brasileiro foi um argumento
utilizado na defesa da abolição imediata e incondicional:
Dois fatos culminantes, indicam no presente e podem atestar
no futuro, a fisionomia característica da evolução abolicionista: a passagem dos foragidos de Mogi Mirim pela cidade de Itu, abandonado de todo o auxílio e entregue ao maior pavor; e a fidalga generosidade dos libertos da fazenda do Barão de Nova Friburgo, recusando salário para a colheita fluminense.
Entre esses fatos capitais, motivo de meditação para os espíritos superiores, muitos outros incidentes comprovam a índole admiravelmente pacata e refletida do escravizado brasileiro.(grifo nosso)
Aqueles dois acontecimentos, o primeiro realmente épico, pois que nem de gente polida e independente se poderia esperar tanta cordura, tanto acerto ao jornadear perseguido por meio da população aterrorada e sem defesa, sem que dos emigrantes partisse um grito injurioso, uma violência, um arranque de cobiça, ódio ou luxúria, constatam a nobreza dos impulsionadores do movimento, revoltados que apenas justavem com a palavra e a pena.
(...) Nem os abolicionistas tão injuriados na dolorosa fase de
luta de conquista incansável, fizeram do escravizado um ente pervertido e criminoso, nem o escravo tem-se mostrado inapto para esta mudança de condição, hoje prometido, embora de modo vago, pelo governo (grifo nosso)28.
Em abril de 1888, a Gazeta Nacional reforçava a preocupação com a
construção da memória da abolição no Brasil. A ação dos escravos e as orientações
28 “Idéias e homens” in Gazeta Nacional, 29 de abril de 1888, p.1.
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dos abolicionistas, conforme podemos constatar na passagem acima, deveriam
confirmar para os contemporâneos e documentar para a história a “fisionomia da
evolução abolicionista”.
A moeda da “fisionomia abolicionista”, a partir do artigo, tinha duas faces. De
um lado o espírito ordeiro, representado na índole pacata do cativo. De outro, a
nobreza dos abolicionistas, que se entregaram à causa somente com a “palavra e a
pena”. De acordo com o periódico, se, diferentemente de outros países, o Brasil não
precisou das armas para acabar com o trabalho escravo, isso se devia à conduta
dos abolicionistas, mas principalmente à natureza dos escravizados brasileiros.
A cordialidade foi apresentada como característica não somente do negro,
mas do brasileiro. Esse caráter nacional, segundo O Paiz, garantia a tranqüilidade
do processo de abolição:
Neste momento não há espaço no coração brasileiro senão
para dois sentimentos: o de júbilo pelo resgate da honra da nação, restituindo-se a liberdade à raça escravizada, e a de admiração pelo caráter nacional (...) oferecendo ao mundo o espetáculo até aqui nunca visto, o de efetuar uma revolução desta magnitude sem explosão de ódio, sem lutas e sem derramamento de sangue.
Na história da abolição da escravidão na América a página de honra fica pertencendo ao Brasil29.
De acordo com Célia Maria Marinho de Azevedo, a imagem do escravo como
vítima, acorrentado, indefeso marcou as representações dos segmentos
abolicionistas tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos30. A imprensa do Rio de
Janeiro utilizava o termo escravizado para indicar a ilegalidade da condição, pois, de
29 “Abolição”, 09 de maio de 1888, p.1. 30 AZEVEDO, Célia Maria Marinho. “Imagens do Escravo” in Abolicionismo: Brasil e Estados Unidos...
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acordo com o movimento, a maioria tinha entrado após a Lei de 1831 ou era
descendente deste. Portanto, seus proprietários burlavam a legislação. Além do
mais, no próprio termo escravizado está implícita a idéia da violência, pois o cativeiro
não era visto como uma situação natural, mas sim resultado de arbitrariedade
cometida pelos senhores.
Nos artigos das duas folhas, a injustiça marcava a representação da
escravidão. Ela se concretizava na própria violência que aviltava a espécie humana.
Não importava se o negro estava na escala evolutiva na condição de superioridade
ou inferioridade, o que valia era sua condição humana. A injustiça com o uso da
expressão escravizado era reafirmada até por conta da ilegalidade da manutenção
do cativeiro.
O escravo apresentado como o inimigo doméstico, verificado no trabalho de
Célia Maria Marinho de Azevedo31, não foi a característica marcante dos artigos
abolicionistas publicados na Gazeta Nacional e em O Paiz nos meses que
imediatamente antecederam a abolição. Ao contrário, a índole pacífica do negro, que
mesmo tratado de forma abrupta, não agia na mesma proporção, foi o tom mais
marcante dos discursos. O senhor que era representado como o que praticava
crueldades e, muitas vezes, gratuitamente.
Acredito que as divergências de conclusão em relação ao trabalho de
Azevedo ocorreram em decorrência do recorte e do objeto adotados. A autora
31 “Os abolicionistas brasileiros dificilmente definiriam os senhores como o inimigo do escravo, tal como fez o Reverendo Bourne, e tantos outros abolicionistas americanos depois dele. Ao contrário, eles tendiam a enfatizar a idéia inversa de que o escravo era o inimigo do senhor. Se eles quisessem ser entendidos pelos proprietários escravistas e seus filhos, era preciso traçar um desenho que fizesse sentido no cotidiano do senhor de escravos do campo e da cidade. A imagem do escravo como um inimigo doméstico, ao invés de um irmão, não deve ser vista, porém, como um mero expediente tático, empregado por abolicionistas para persuadir senhores e senhoras
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analisou o movimento abolicionista em toda sua extensão e concentrou esforços,
para o entendimento das imagens sobre os escravos feitas por abolicionistas
brasileiros, na produção do monarquista Joaquim Nabuco. Por outro lado, ao fazer
análise comparativa com os Estados Unidos, Azevedo trabalhou com a oposição
escravo irmão, para o abolicionismo dos Estados Unidos, e escravo inimigo
doméstico, para o abolicionismo brasileiro. Acredito que este dualismo não ocorreu
com a mesma densidade nos diversos grupos favoráveis à abolição, por exemplo
positivistas abolicionistas, liberais republicanos e novos liberais. Assim, apesar de
todas as semelhanças existiram diferenças na forma de construção do argumento
pelo fim do cativeiro no Brasil. Acredito também que ao trabalhar com modelos
corre-se o risco de reduzir alguns campos de observação, como as ambigüidades de
pensamento.
A escravidão, para os liberais republicanos, era apontada como um mal
sustentado pelo regime monárquico. Se o cativeiro foi mantido por tanto tempo, não
era por culpa dos republicanos. Ao tecerem críticas à monarquia, criticavam, em
conseqüência, o poder moderador e a escravidão. Os vícios existentes no Brasil
eram derivados, em seus discursos, da forma de governo adotada a partir da
emancipação política. Caberia um trabalho comparativo entre a pensamento
abolicionista de Nabuco, representante dos novos liberais, e Aristides Lobo,
representante dos liberais republicanos, por exemplo. Contudo, isto é uma outra
empreitada.
sobre o erro da escravidão. A visão do escravo como um inimigo doméstico imbricava-se nas próprias origens do anti-escravismo no Brasil (...)Abolicionismo: Brasil e Estados Unidos... p. 108-109.
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A Gazeta Nacional e O Paiz, como outras folhas abolicionistas do Rio de
Janeiro, almejavam sensibilizar o público, noticiando os horrores da escravidão32.
Neles, os cativos apareciam como vítima da ação dos proprietários. Assim, ocorreu
com o caso do escravo Raimundo, que foi comprado do Norte e morreu por conta
das violências ordenadas por seus proprietários em São Paulo. Assim, começava a
ser construída a trajetória do cativo:
Escravo de um fazendeiro cuja feroz concubina era o algoz de
todos os servos, sofreu os horrores de um cativeiro que cada vez mais se lhe tornava.
E como para suavizar as agruras de uma vida tão cheia de sofrimentos, casou-se com a sua parceira Salustiana, uma esbelta rapariga, cujo primeiro marido tinha morrido, vítima de horrível desastre33.
A vida de Raimundo, na fazenda, ao lado de Salustiana, transcorria com a
tranquilidade possível. Até que um dia apareceu morta uma besta de estimação da
fazenda e a responsabilidade foi atribuída ao cativo. Porém, segundo a folha, não
existiam indícios da culpa do acusado. Começava, então, a seqüência de sofrimento
de Raimundo: “De tão forte e robusto que era foi aos poucos definhando; o seu
corpo ia aos poucos se transformando em uma chaga viva e os açoites quotidianos
continuavam”34.
A cumplicidade entre fazendeiros proprietários de escravos no intuito de
esconder os crimes que cometiam foi demonstrada no caso:
32 MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados... p.154 33 “Cenas da escravidão”, 29 de abril de 1888. 34 Idem, ibidem.
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Como o seu estado se agravava de dia-a-dia, a feroz senhora, talvez, receando mais tarde a intervenção da polícia, mandou pedir remédio a um fazendeiro vizinho, que era médico e que também “poupava” seus escravos, e que, por isso, encobria as faltas de sua colega35.
Mediante a tanto sofrimento, Raimundo morreu: “Afinal chegou o dia de
liberdade para o infeliz e ele deixou este mundo sem saudades, pois pedia sempre a
morte como lenitivo para seus males”36.
No final do artigo, ao revelar a quem pertencia a fazenda, o leitor era
envolvido na narrativa. Pela forma da redação, pretendia-se apontar a estranheza e
causar no público a cumplicidade no sentimento de indignação. Para os que liam a
Gazeta Nacional, pelo tom, aquela não deveria ser uma situação aceitável: E sabe o
leitor onde tudo se passou? Na fazenda de um padre!!!37
A história de Raimundo levanta alguns pontos interessantes sobre as imagens
veiculadas sobre negros e brancos na imprensa do Rio de Janeiro entre 1884-
188838. É o escravo aquele que procura construir família e era a vítima da ação do
proprietário. A rigor, na trajetória de Raimundo, o proprietário que era representado
como o inimigo do escravo. A situação do senhor era agravada por ser um padre
vivendo no concubinato.
35 Ibidem. 36 Ibidem. 37 Ibidem. 38 Lilia Moritz Schwarcz analisou as representações de negros e brancos nos jornais Correio Paulistano, A Província de São Paulo e a Redempção a partir dos contrastes: “Ao mesmo tempo em que as notícias vão como que constituindo representações de negros, constituem, por contraste e oposição, diferentes imagens de brancos. (...) Assim ao representar o negro, o branco constituiu-se ao mesmo tempo como imagem invertida do que normalmente se apresente e oferece.” In Retratis em branco e negro..., p. 167.
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O episódio apresentava Salustiana como a viúva que buscou o segundo
casamento. Mesmo na condição de escrava, mostrava preocupação de constituir
família. Para o jornal, os laços matrimoniais consistiam numa forma de abrandar o
sofrimento da escravidão, já seu proprietário, sendo padre, vivia em situação de
concubinato. Os padrões de comportamento esperados entre os senhores, naquele
acontecimento, estavam entre os “infelizes” cativos.
A senhora concubina foi qualificada como feroz, capaz de cometer injustiças e
tentar burlar às leis. No texto, encontramos também a cumplicidade do fazendeiro
médico na intenção de evitar a descoberta do crime. A moralidade dos proprietários
era questionada enquanto Salustiana chorava a morte do companheiro.
É importante ressaltar que o assassinato de Raimundo foi publicado no
mesmo exemplar do artigo sobre a jornada pacífica dos escravos de Mogi Mirim e da
generosidade dos de Nova Friburgo. Enquanto os negros eram representados como
tendo a índole pacata, que fugiam do cativeiro sem ódio, sem violência, tinham como
contraponto o branco, proprietário, que era feroz, injusto em suas ações.
A representação do negro como pacífico era difundida até nos momentos de
rebeldia, conforme vimos em citações anteriores. As fugas em massa de São Paulo
eram retratadas como jornada sem violência. Termos como emigrantes, retirantes
eram utilizados para caracterizar os fugitivos. A cordialidade era apresentada como
uma das características do escravizado brasileiro.
A associação do liberto com o catolicismo também era estabelecida. O Paiz
informava que os ex-escravizados faziam ladainhas para agradecer o fim do
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cativeiro39. Em maio de 1888, noticiava que escravos rezavam pela melhora da
saúde do Imperador. Mais uma vez, o negro aproxima-se do catolicismo e não
representa o perigo. Na publicação do jornal, após a alforria, ele fazia orações em
agradecimento.
A passividade e a necessidade de uma liderança para se alcançar a
libertação foram uma das marcas do negro apresentada pelo O Paiz. A procura de
um protetor pelo cativo para conseguir a alforria era uma imagem veiculada: (...)
Tanta gente parece demais que é prudente que o cativo, esse pobre que há três
séculos mendiga de porta em porta (grifo nosso), desconfie ante a grandeza40. A
imagem de passividade foi construída através da idéia pedir. Caso a abolição fosse
uma dádiva dos proprietários, os negros saberiam ser gratos. Afinal, como fizeram
os escravos da fazenda de Nova Friburgo que até recusavam salários ao
conseguirem a liberdade.
A força da imprensa era reconhecida, de acordo com O Paiz, pelos próprios
libertos a ponto de encaminharem telegramas para a redação do jornal para
agradecer a atuação na propaganda. A folha, assim, noticiava a atitude de libertos
de São Fidélis: Os ex-escravizados cumprimentam a imprensa abolicionista nas
pessoas de Quintino Bocaiúva, Nabuco e Joaquim Serra41.
Além de reforçar o papel dos periódicos e a cordialidade do negro, a
passagem é interessante para se inferir sobre o público dos jornais. Se o telegrama
foi mandado ou não por libertos de São Fidelis, o fato é secundário para a análise
39 16 de maio de 1888, p.1. 40 “Tópicos do Dia” in 1º de maio de 1888, p.1. 41 21 e 22 de maio de 1888, p.1.
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que empreendo. Mesmo que não tenha sido redigido por esses ex-escravos, foi
apresentado pelo periódico nesta condição. Assim, para os leitores de O Paiz, que
poderiam incluir parte dos atuais libertos não haveria estranheza que o recém saído
da escravidão encaminhassem telegramas à redação dos jornais e, que constituísse,
portanto, parte de seu público, mesmo que minoritário.
Ao construírem a imagem do escravo pacífico, generoso, grato e do senhor
injusto, pretendia-se sensibilizar o público para a injustiça cometida contra os negros
e para os perigos a nação brasileira corria com a manutenção do cativeiro. Afinal,
por contraste, o leitor era levado a verificar que a longo existência da escravidão
tinha aviltado mais o dono que o cativo.
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5.2.2. Desvarios de senhores, escravos e libertos
Entre 1884 e 1888, os crimes cometidos por escravos também tinham
espaços nos periódicos da cidade do Rio de Janeiro, como ocorreu com o
assassinato da senhora Luiza de Carvalho pelo liberto Eduardo em Campos42.
Contudo, O Paiz a Gazeta Nacional, no intuito de fortalecer a campanha
abolicionista, os assassinatos de escravos feitos pelos segmentos proprietários
receberam destaque.
O objetivo destes jornais era mostrar que se a escravidão brutalizava os
negros, atingia ainda mais seus senhores. Dos segmentos proprietários, eram
esperados comportamentos civilizados. Mas, os homicídios que praticavam, muitas
vezes em grupo, indicavam como o cativeiro, para esses periódicos, esmaecia a
moralidade da sociedade brasileira como um todo.
Sobre a crueldade e a falta de racionalidade do branco em relação à
escravidão, O Paiz destacava, por vezes, que o escravo cometia o crime e ia para a
delegacia se entregar. Em contrapartida, os proprietários não respeitavam as
autoridades constituídas, fazendo barbaridades com suspeitos que estavam sob
cuidados do Estado e até com quem não tinha envolvimento com o crime:
Os pobres pretos que nenhuma parte tomaram no
assassinato do infeliz moço foram todos esbordoados e surrados barbaramente, a ponto de morrerem dois ou três pelos castigos.
O assassino, que já estava preso, foi castigado e arrastado pelo terreiro da fazenda, até que sucumbiu nesse miserável estado,
42 “Assassinato” in Gazeta Nacional,12 de abril de 1888, p.1
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sendo em seguida os seus restos atirados aos porcos! Parece impossível que isso fosse feito por mais de 60 homens, a sangue frio, mas é certo43.
O nome deste artigo era “Tranqüilidade para todos” e sua tônica era que a
segurança não deveria ser garantida somente para os donos da lavoura, deveria
incluir a todos. Afirmava que especial atenção deveria ser dada aos escravos, pois
ficavam na dependência dos proprietários. Até mesmo na delegacia, em razão da
barbaridade dos proprietários e de seu desrespeito à lei, os negros eram
ameaçados.
O Paiz, no artigo “Mais uma vergonha para nós”, também matéria de fundo,
abordou o crime cometido contra um escravo que assassinou seu senhor, Adriano
Martins Ramos. A crítica do jornal se dirigia aos homens que invadiram a delegacia e
mataram o cativo assassino. Entretanto, apesar de sair em defesa do escravo,
somente o nome do senhor foi identificado, o cativo permanece desconhecido, como
aquele que não era familiar:
A imprensa noticiou o deplorável fato do assassino do
fazendeiro Adriano Martins Ramos, residente na Freguesia do Mar de Hespanha.
Como era natural, esse fato produziu a maior consternação, mesmo porque o homicídio foi agravado pelos ferimentos produzidos no pai da vítima Luiz Antonio Martins Ramos, homem sexagenário e muito apreciado.
Por si só bastavam esse conjunto de circunstâncias para impressionar o público; mas as conseqüências dessa fatalidade, de que agora temos conhecimento, são para nós igualmente dolorosas.
43 “Tranquilidade para todos” in O Paiz, 27 de junho de 1885, p.1.
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Tendo sido preso o assassino, no dia seguinte, um grupo de cem pessoas dirigiu-se ao lugar onde ele se achava e a seu turno assassinaram-no de modo mais bárbaro e cruel44.
A idéia de barbárie, de selvageria recaía nos segmentos proprietários.
Mediante a impotência do poder público na correção desses assassinos em grupo, a
imprensa tinha a função de denunciar e buscar sensibilizar a população para atos
não civilizados, para o desrespeitos às leis feitos pelos brancos:
Bem ao contrário, inspira-nos horror e, seja qual for a
justificação que alegam esses com seus atos selváticos, estão desonrando a nossa pátria, coletiva ou individualmente, não representam para nós, mais do que criminosos, uns monstros que nem podem alegar a escusa de sua ignorância e rudeza, porque se presumem homens civilizados.
Se, como não o podemos desconhecer, a justiça se encontra impotente para punir os assassinos que em legião assaltam as prisões para vitimarem os escravos encarcerados por homicídios de senhores ou feitores; a imprensa, pelo menos, tem o dever de flagelar com a sentença de sua mais acre censura, essas aberrações do critério humano, esse delírio de espíritos transviados (...)45
Acabar com o trabalho compulsório era uma forma de resgatar também os
segmentos proprietários de sentimentos e atitudes de selvageria. A escravidão
também atingia os presumidamente civilizados. Nos artigos, os crimes praticados
pelos escravos contra feitores e senhores eram abrandados pelas suas condições
de vida, pois o cativeiro atingia a dignidade e a racionalidade humana. As
brutalidades cometidas pelos senhores, para as folhas, mostrava o quanto a
sociedade brasileira já estava comprometida:
44 25 de fevereiro de 1885, p.1. 45 Idem, ibidem.
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Não há dúvida que é sempre lamentável e constristador o fato
desastroso do homicídio praticado por um escravo na pessoa de seu senhor, sobretudo quando este, por suas qualidades, é estimado no círculo de seus vizinhos, mas além de não serem raros os exemplos de pessoas muito amáveis no círculo das relações de seus iguais, não o serem nas suas relações com seus escravos, acresce que o atentado por ser individual, fruto da loucura ou da perversidade de um só homem, mal educado, não justifica nem atenua a crueldade da vindita exercida contra um preso inerme, que só da justiça social deve esperar a punição de seu crime.
A repetição desses atentados, escandalizadores para nossa civilização, depondo contra a nossa cultura social e contra a brandura e humildade de nossos costumes, só serve para provar que se perdeu a fé na justiça e que cada um é competente por si só para sumariamente processar, condenar e executar aquele de que tem agravo.46
A “brandura e a humildade de nossos costumes” ficavam ameaçadas a cada
crime cometido coletivamente por proprietários de escravos. A permanecer aquele
estado social, que futuro poderia ser esperado da nação brasileira? Como justificar
no exterior essa imagem criada pelos proprietários? Nos artigos de O Paiz, esses
atos de violência praticados pelos proprietários reforçavam que a permanência da
escravidão comprometeria o progresso moral da sociedade brasileira.
Uma outra concepção era apresentada sobre o negro e formava um quadro
de ambigüidades próprio deste momento. Quanto mais próxima estava a abolição da
escravatura, o dilema do escravo cordial e do liberto que precisava ser controlado
para evitar o mundo do crime, do alcoolismo e da mendicância começava a ter mais
força nas folhas.
Entre os artigos desse cunho, mereceu destaque o “Meios de Repressão”,
publicado pela Gazeta Nacional, gerando, inclusive, polêmicas com José do
46 Idem, ibidem.
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Patrocínio. Neste texto, a folha afirmava que para segurança da sociedade, era
necessário criar meios coercitivos para controlar a vagabundagem do recém liberto:
Se existiu até há pouco um pretenso direito para coagir a criatura humana a suportar, sem culpa nem crime, os mais atrozes flagícios, supomos não ser irracional, indicar-se-lhe a necessidade indeclinável de optar por um meio honesto de vida, bem como criar medidas preventivas contra os desvarios de possíveis e de esperar-se.
Não vamos em nosso exagerado sentimentalismo coibir-se de cuidar de nós mesmos e conceder tamanhas regalias que anulem ou adulterem a bondade de nossas intenções. (grifo nosso)
Um milhão de homens disseminados relativamente em limitada área vaso recobrar a liberdade. Não intentamos suscitar-lhes embaraços; o mais simples bom senso e a previdência do dia de amanhã levam-nos a meditar sobre as conseqüências de atos; e antes que principie e se inaugure a série de tropelias, excessos de todo o gênero será prudente atinar no corretivo que, neste caso e para o indicado fim, tornar-se-ia estímulo de moralidade e prévio escarmento dos caracteres perversos47.
Assim, em abril de 1888, o escravo era representado como dotado de
cordialidade e bondade, mas, paralelamente, a preocupação com seus instintos
aparecia. Com a abolição, ele ficaria livre para o vício e para a mendicância. Em
condições de liberdade, o negro necessitaria de mecanismo de controle pois, como
era de se “esperar”, teria um comportamento avessos ao “meio honesto de vida” .
Os sentimentos generosos da parte “boa da sociedade”, representada pelo
pronome “nós” – demonstrando a identidade social entre autor e leitor potencial da
folha - não poderiam ficar a mercê da abolição sem meios que garantissem a
presença do liberto no mundo do trabalho e o controle de seus vícios.
47 26 de abril de 1888, p.1
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O tom do artigo, na fase final da campanha abolicionista, teve uma
repercussão negativa. Por mais três exemplares a Gazeta Nacional teve de explicar
o que quis dizer com o artigo “Meios de Repressão”. Nos dias 29 de abril e 1º de
maio, publicou artigos de fundo intitulados “Resposta à Cidade do Rio”, e no dia 02
de maio saía o artigo “Tréplica”. Nestes textos, o jornal polemizou com Patrocínio
que acusava a folha republicana de tentar restringir a liberdade do negro, utilizando
outras formas de controle, a partir das idéias contidas na referida publicação.
O nome atribuído ao artigo já explicitava a intenção da folha republicana.
Colônias correcionais deveriam ser estabelecidas com o objetivo de controlar os
desvarios dos libertos. O Paiz, ainda na fase dos festejos do 13 de Maio, chamava a
atenção da polícia da cidade do Rio de Janeiro para a crescente mendicância,
atestando que ultimamente “aviltava na Corte o número de indivíduos em completa
ociosidade e que vivem a explorar a caridade pública”48. O texto afirmava que era
preciso criar mecanismos para reduzir a considerada vadiagem. Esta fazia com que
a “sociedade em geral” sofresse as consequências negativas desses “pobres” que
não trabalhavam. O Paiz também demonstrava preocupação com o aumento do
alcoolismo entre essa população49.
A partir do teor destes artigos, conforme afirmou a Gazeta Nacional, era
preciso “cuidar de nós mesmos”, os considerados cidadãos, prevenindo-se do
“outro”, da alteridade que poderia comprometer a ordem.
Por outro lado, de acordo com o artigo “Imparcialidade” da Gazeta Nacional,
“a hereditariedade e a educação determinam cada homem a pensar de certo
48 “Mendigos ociosos” in O Paiz, 27 de maio de 1888, p.1. 49 “O alcoolismo” in O Paiz, 17 de agosto de 1888, p1.
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modo”50. Nesta afirmação, verifico a influência de uma concepção das
potencialidades humanas marcada pela sua herança genética, ou seja, a famosa
questão das raças do século XIX.
Se os indivíduos pensariam e agiriam em consonância com suas matrizes
biológicas, a educação - que nos artigos publicados, era entendida como os meios
de correção - aparecia como uma possibilidade de aprimorar aqueles que não
tiveram uma carga genética positiva.
Os artigos “Mendigos ociosos” e “Meios de repressão” veiculados,
respectivamente, em O Paiz e na Gazeta Nacional foram representativos do
pensamento desses liberais republicanos do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em
que festejavam a abolição, tinham receio do perigo que o liberto poderia representar
para a sociedade brasileira, caso não fossem criados métodos que o mantivesse no
mundo do trabalho. Essa postura, a meu ver, não implica em contradições. Ela era
representativa das ambigüidades de homens que defendem a abolição da
escravatura e pensavam a nação brasileira, centrados nos princípios liberais e no
etnocentrismo científico.
50 03 de abril de 1888, p.1.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho, analisei os discursos sobre o processo de
abolição da escravatura e sobre o cativo veiculados nos jornais O Paiz e Gazeta
Nacional. Constatei que, através da imprensa, a associação entre abolição e
república era consubstanciada. Muito embora os dois movimentos não tenham se
confundido na década de oitenta, esses periódicos de caráter republicano não
podiam secundarizar questões que inflamavam os ânimos e comprometiam o
destino da sociedade brasileira. As divergências na condução do processo
abolicionista, a rigor, a que causa oferecer prioridade – abolição ou república -,
geraram cisões dentro do movimento republicano da cidade do Rio de Janeiro, tendo
as folhas como tribuna.
Os jornais O Paiz e a Gazeta Nacional, que contaram com lideranças do
Partido Republicano na chefia de suas redações, podem ser considerados como
representantes dos grupos liberais republicanos da geração de 1870. Para estes
homens, a república tinha o sentido de regime da virtude, do congraçamento entre
cidadãos que ascenderiam socialmente através das capacidades e dos talentos,
negando a sociedade de privilégios características do Antigo Regime.
Esses periódicos defenderam a liberdade como direito inalienável. Para eles,
conforme afirmou Quintino Bocaiúva, em O Paiz, o negro, desde 1871, não era
legalmente reconhecido como coisa, era um ser humano e, por isso, deveria ser livre
como qualquer homem. Nos discursos destes jornais, a postura paternalista deveria
ser adotada pelos senhores para garantir o trânsito entre o trabalho escravo e o livre.
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Essa valorização do negro como sujeito possibilitou que no processo de
construção da memória da abolição, a Gazeta Nacional - como forma de enfraquecer
a imagem da princesa Isabel e, em conseqüência da monarquia - enfatizasse a luta
dos escravos como responsável pelo 13 de Maio. A folha apresentava os negros
como os protagonistas da abolição, negando qualquer ação redentora da regente,
pois, ela, simplesmente, teria respondido à liberdade já alcançada pelos próprios
escravos.
No discurso desses liberais republicanos, a extensão dos direitos civis e
políticos só seria concretizada no regime das virtudes representado pela república,
em contraponto ao servilismo da monarquia. As balizas dessa cidadania eram
colocadas a partir do liberalismo, que não se confundia com os princípios
democráticos. Estando garantida a igualdade na liberdade, o passo essencial já
estaria colocado.
As ambivalências de um discurso que apresentava o negro de escravo
bondoso a criminoso potencial foram representativas da própria dinâmica de uma
sociedade que articulava liberalismo e teorias científicas raciais. Assim, para esses
republicanos liberais, o liberto seria um cidadão comum, que deveria ser integrado,
sem distinção, a categorias dos nacionais. Entretanto, em nome de uma nação que
se pretendia civilizada e próspera, em condição de liberdade, o negro deveria passar
por mecanismo de controle para que o desenvolvimento do país não fosse
ameaçado.
Desta forma, a partir da razão individual e da razão nacional, um projeto de
nação livre e republicana, calcado nos princípios do liberalismo e do etnocentrismo
científico, foi veiculado pelos jornais O Paiz e a Gazeta Nacional.
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