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56 v12 DE JUNHO DE 2008 REPORTAGEM ECONOMIA O país da fome A situação é dramática para cadsa vez mais famílias. Histórias de pessoas que a crise empurrou para a miséria POR TERESA CAMPOS* H esita um pouco antes de respon- der. Aperta as mãos, respira fun- do e depois deixa sair a confissão: «Como é que faço? Olhe, se não houver carne ou peixe, bebo leite ou, então, como um pedacinho de pão», diz Teresa. À porta do Centro Paroquial do Castelo de Sesimbra, no meio da azáfama da distribui- ção mensal de comida na freguesia, Teresa Correia, 47 anos, explica assim como está a sentir na pele os efeitos da crise. Sem traba- lho desde o fim do Verão, aquela ex-empre- gada de restauração ainda tentou esticar o subsídio de desemprego, parcos 400 euros, durante dois meses. Em Janeiro, não lhe so- brou alternativa senão candidatar-se àquele cabaz de arroz, massa e feijão, para ter o que pôr na mesa, lá em casa. Sozinha, com uma menina de 7 anos ao seu cuidado, segue um lema mais que compreensível: «À pequenina é que não há-de faltar.» No início, aparecia ali um bocadinho acanhada. Agora, já não. «Pedir não faz mal nenhum, não é? Se as pes- soas dão, é de boa vontade.» Num morro so- branceiro à vila de Sesimbra, a freguesia do Castelo é a maior do concelho. Actualmen- te, socorrem-se daquela ajuda perto de 80 agregados familiares, num total de 200 pes- soas. Só no último ano surgiram 50 novos pedidos de apoio. A situação agravou-se de tal maneira que o padre, Francisco Mendes, 33 anos, viu-se obrigado a dizê-lo com todas as letras. «A fome está de regresso ao distri- to de Setúbal.» Mas não é preciso vasculhar num dos distri- tos mais pobres do País para encontrar famí- lias em dificuldades. O quadro repete-se, na paróquia da Póvoa de Santo Adrião, concelho de Loures, onde chegam todos os meses mais de cem pedidos de ajuda. E a história da fa- mília de Adriano comprova que a fome pode chegar aos estractos mais qualificados da população. De origem cabo-verdiana, na casa dos 40 anos, Adriano nunca conseguiu um emprego condizente com os seus estudos – e o mestrado que tirou nos Estados Unidos não lhe mete comida na mesa. Agarrou o possível, desde uma empresa de viveiros a uma loja de electrodomésticos. Sempre acima da linha de sobrevivência. Mas quando ficou desempre- gado, a frágil estabilidade financeira de que a família gozava ruiu. O custo dos tratamen- tos de uma filha deficiente e a renda da casa esgotaram o orçamento da família. O passo seguinte foi recorrer ao Fundo de Apoio às Famílias Necessitadas da freguesia. Os casos multiplicam-se por todo o País e o aumento do custo de vida estão a criar uma classe de novos pobres, oriundos da classe média e que já não ganham o suficiente para levar comida para casa. GRITOS DE ALERTA Um primeiro aviso soou pela voz da presi- dente do Banco Alimentar Contra a Fome (BACF), em Outubro de 2007. Isabel Jonet, 48 anos, veio a público avisar que a situação estava a ficar insustentável para milhares de portugueses que, mesmo com emprego e sa- TERESA CORREIA Desempregada, conta com a ajuda do Centro Paroquial do Castelo, em Sesimbra, para alimentar a família FOTO: NUNO FOX

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ECONOMIA GRITOS DE ALERTA Um primeiro aviso soou pela voz da presi- dente do Banco Alimentar Contra a Fome (BACF), em Outubro de 2007. Isabel Jonet, 48 anos, veio a público avisar que a situação estava a fi car insustentável para milhares de portugueses que, mesmo com emprego e sa- 56 v 12 DE JUNHO DE 2008 TERESA CORREIA Desempregada, conta com a ajuda do Centro Paroquial do Castelo, em Sesimbra, para alimentar a família POR TERESA CAMPOS* FOTO: NUNO FOX

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REPORTAGEM ECONOMIA

O país da fomeA situação é dramática para cadsa vez mais famílias.

Histórias de pessoas que a crise empurrou para a miséria POR TERESA CAMPOS*

Hesita um pouco antes de respon-der. Aperta as mãos, respira fun-do e depois deixa sair a confi ssão: «Como é que faço? Olhe, se não

houver carne ou peixe, bebo leite ou, então, como um pedacinho de pão», diz Teresa. À porta do Centro Paroquial do Castelo de Sesimbra, no meio da azáfama da distribui-ção mensal de comida na freguesia, Teresa Correia, 47 anos, explica assim como está a sentir na pele os efeitos da crise. Sem traba-lho desde o fi m do Verão, aquela ex-empre-gada de restauração ainda tentou esticar o subsídio de desemprego, parcos 400 euros, durante dois meses. Em Janeiro, não lhe so-brou alternativa senão candidatar-se àquele cabaz de arroz, massa e feijão, para ter o que pôr na mesa, lá em casa. Sozinha, com uma menina de 7 anos ao seu cuidado, segue um lema mais que compreensível: «À pequenina

é que não há-de faltar.» No início, aparecia ali um bocadinho acanhada. Agora, já não. «Pedir não faz mal nenhum, não é? Se as pes-soas dão, é de boa vontade.» Num morro so-branceiro à vila de Sesimbra, a freguesia do Castelo é a maior do concelho. Actualmen-te, socorrem-se daquela ajuda perto de 80 agregados familiares, num total de 200 pes-soas. Só no último ano surgiram 50 novos pedidos de apoio. A situação agravou-se de tal maneira que o padre, Francisco Mendes, 33 anos, viu-se obrigado a dizê-lo com todas as letras. «A fome está de regresso ao distri-to de Setúbal.»

Mas não é preciso vasculhar num dos distri-tos mais pobres do País para encontrar famí-lias em difi culdades. O quadro repete-se, na paróquia da Póvoa de Santo Adrião, concelho de Loures, onde chegam todos os meses mais de cem pedidos de ajuda. E a história da fa-

mília de Adriano comprova que a fome pode chegar aos estractos mais qualifi cados da população. De origem cabo-verdiana, na casa dos 40 anos, Adriano nunca conseguiu um emprego condizente com os seus estudos – e o mestrado que tirou nos Estados Unidos não lhe mete comida na mesa. Agarrou o possível, desde uma empresa de viveiros a uma loja de electrodomésticos. Sempre acima da linha de sobrevivência. Mas quando fi cou desempre-gado, a frágil estabilidade fi nanceira de que a família gozava ruiu. O custo dos tratamen-tos de uma fi lha defi ciente e a renda da casa esgotaram o orçamento da família. O passo seguinte foi recorrer ao Fundo de Apoio às Famílias Necessitadas da freguesia.

Os casos multiplicam-se por todo o País e o aumento do custo de vida estão a criar uma classe de novos pobres, oriundos da classe média e que já não ganham o sufi ciente para levar comida para casa.

GRITOS DE ALERTAUm primeiro aviso soou pela voz da presi-dente do Banco Alimentar Contra a Fome (BACF), em Outubro de 2007. Isabel Jonet, 48 anos, veio a público avisar que a situação estava a fi car insustentável para milhares de portugueses que, mesmo com emprego e sa-

TERESA CORREIA Desempregada, conta com a ajuda do Centro Paroquial do Castelo, em Sesimbra, para alimentar a família

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lário, não conseguiam assegurar as necessi-dades básicas. Segundo as contas do BACF, no ano passado, a ajuda chegou a mais de 200 mil pessoas – e há mais, em lista de espera.

«A estatística não ofi cial é muito maior, porque inclui pessoas que passam por difi -culdades mas têm vergonha de o mostrar», justifi ca a persistente activista contra a po-breza. Há um mês, após a última campanha de recolha de alimentos, deixou escapar o desabafo de que pessoas que ajudavam apa-recem agora a pedir ajuda. «Depois de uma campanha, recebemos uma média de 70 e-mails por dia, a dar conta de difi culdades.»

E toda esta gente está a encher os locais onde se oferecem refeições. Atente-se no número 47 de Avenida Almirante Reis, em Lisboa: podia ser um restaurante como ou-tro qualquer. Mas a agitação e a fi la de pesso-as à porta denunciam a diferença. O Refeitó-rio dos Anjos, ou a «sopa dos pobres» como é conhecido, está aberto todo o ano e serve uma média de 568 refeições gratuitas diárias à população carenciada de Lisboa.

«Ninguém sai daqui com fome», é a certe-za dada por António Rosa Antunes, 47 anos, director do Centro de Apoio Social, no qual se integra o refeitório. No primeiro trimestre deste ano, apareceram ali 105 novos utentes. Luísa Carvalho da Silva, 43 anos, há já um ano que entra e sai do refeitório, querendo passar despercebida, tarefa difi cultada pelo cabelo ruivo e os olhos azuis. Era empregada de es-critório, mas fi cou desempregada. Agora, a opção é almoçar e jantar ali, todos os dias.

Há quatro meses, muitas pessoas em difi -culdades começaram também a aparecer na Pizzaria Il Panzone, nas Galerias Via Veneto. Diz Cândida Craveiro, 52 anos, a dona do es-paço, que não consegue negar uma refeição «a quem tem fome». O passa-palavra levou as pessoas ao seu restaurante. «E olhe que não aparecem apenas sem-abrigo...»

POBREZA ENVERGONHADA Esta é apenas parte de uma realidade para a qual também alertou, recentemente, o 1.º Relatório do Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa. «Há um grupo

‘Em 12 anos de trabalho, nunca vi tantos alunos a precisarem de refeições grátis na escola’ Adriana Campos, psicóloga da Escola Básica 2,3, de Leça da Palmeira

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crescente de gente a precisar de ajuda», as-segura Sérgio Aires, 39 anos, o director da instituição.

Será a remar contra essa corrente que cresceram as hortas urbanas de subsistên-cia. Entalado entre o Bairro do Zambujal e o da Boavista – dois bairros degradados do concelho da Amadora –, Manuel Furtado, 64 anos, ressuscita a máxima: «A terra a quem a trabalha.» O cabo-verdiano é um dos agri-cultores que ocuparam uma parcela de ter-reno, num aglomerado de hortas com vista para o nó rodoviário da CRIL. As cebolas, feijão, batatas, ervilha e tomate seriam um luxo se comprados no supermercado, para quem tem uma reforma de 260 euros. De en-xada na mão, Manuel pondera o futuro, no caso de a autarquia o despejar: «Vou morrer de fome. Não dá para me safar.»

Ao seu lado, Maximiano Teixeira, 72 anos, um dos pioneiros da «CRILcultura», teste-munha o aumento do número de hortas nos últimos três anos. Começa por dizer que o faz para passar os tempos livres mas, a dada altura da conversa, a máscara cai: «Tenho de ser sincero. Passamos muitas difi culdades. Nem sempre temos um prato de carne.»

A tentar enganar a crise, outros deixaram--se seduzir pelo crédito fácil. Agora fazem fi la no gabinete de Natália Nunes, 39 anos, advogada da Deco – Associação de Defesa do Consumidor. Responsável pelas consul-tas de aconselhamento a famílias enterra-

das em empréstimos, conta-nos que estas pessoas, com idades entre os 35 e os 45 anos, instrução secundária ou mesmo superior, conhecem agora o sentido mais penoso da expressão «apertar o cinto».

SEM NADA NO ESTÔMAGOAs difi culdades que as famílias sentem não passam, obviamente, despercebidas, a quem lhes acompanha os fi lhos todos os dias. Ma-nuel Lemos, 59 anos, presidente do Secreta-riado Nacional da União das Misericórdias, assegura que há creches e jardins de infância onde se reforçam as refeições às segundas e às sextas-feiras – para colmatar as falhas do fi m-de-semana. Gabriela Silva, 56 anos, co-ordenadora do Projecto de Educação para a Saúde na Secundária D. Pedro V, em Lisboa, tem a mesma experiência: há alunos que lhe confessam que estão em jejum «porque não

havia nada em casa», depois de, na véspera, terem jantado «arroz cozido». Agora, no bar da escola, há, todos os dias, um jarro de lei-te disponível. E Gabriela não se deu por sa-tisfeita: está já a tentar que, para o ano, haja também uma sopa e uma peça de fruta «para quem precisar». É uma preocupação parti-lhada por Adriana Campos, 35 anos, psicólo-ga da Escola Básica 2,3, de Leça da Palmeira, no concelho de Matosinhos. «Em 12 anos de trabalho, nunca vi tantos alunos a precisa-rem de refeições grátis na escola.»

Em Baião, o município mais pobre do dis-trito do Porto, houve entretanto uma melho-ria substancial no apoio nutricional infantil – desde que a Câmara passou a garantir o almoço aos miúdos do primeiro ciclo. Mas as inquietações, na região, não desaparece-ram. «Há imensos idosos a viver sozinhos, em condições muito degradadas», observa

ERMELINDA CARVALHO

CARLA SILVA

MANUEL FURTADO

GISELA RODRIGUES, SANTARÉM

JORGE, PATRÍCIA E OS TRIGÉMEOS

Radiografi a da fome 232 mil pessoas apoiadas pelo Banco Alimentar Contra a Fome

51 646 refeições servidas na «sopa dos pobres», no primeiro trimestre de 2008

30 mil benefi ciários do Rendimento Social de Inserção (RSI) voltaram ao apoio social

104 980 benefi ciários do RSI só no distrito do Porto. É o dobro dos valores registados em Lisboa (42 763) e Setúbal (19 615)

1 976 pedidos de ajuda à Deco, em 2007, contra os 905 do ano anterior. Nos primeiros três meses de 2008 foram 761

60% dos que recorrem à AMI procuram ajuda alimentar

50% de aumento da procura em casas de penhores, em Lisboa e Porto, face a 2007

9% dos portugueses vive com menos de 10 euros por dia, contra 5% na Europa

4 em cada dez desempregados, segundo a CGTP, não têm subsídio

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a médica Helena Oliveira, 44 anos. «Apare-cem aqui em situação de extrema magreza.»

URGÊNCIA DE ALIMENTOSFome: necessidade ou grande apetite de comer; urgência de tomar alimento; misé-ria, indigência extrema. A defi nição é do Dicionário Universal da Texto Editores. Se perguntarmos a Sofi a Guiomar, 38 anos, nu-tricionista do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a des-crição é mais crua: «É a manifestação mais severa de falta de alimentos, que provoca uma sensação dolorosa, com consequências físicas e psíquicas.» Nas crianças, as conse-quências podem refl ectir-se em notas esco-lares mais baixas. Já os adultos podem ver o rendimento do trabalho diminuir.

Mas nada disso importa, quando é pre-ciso fazer contas. Numa tese que elaborou sobre a fome em Portugal, em 2002, a nutri-cionista percebeu que carne e peixe já eram produtos «luxuosos» para uma boa parte da

SOPA DOS POBRES, LISBOA

MAXIMIANO TEIXEIRA

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população. «Não me esqueço de um grupo de alentejanos que só queria um fi o de azeite para dar sabor às sopas de pão escaldadas.»

No interior alentejano, a fome não é um fenómeno novo. Na década de 90, a cidade de Moura (Beja) sofreu uma seca que deixou em pele e osso a margem esquerda do rio Guadiana. Hoje, a situação alastrou à mar-gem direita do rio. Forçando um sorriso nos lábios, Sónia Santos, 30 anos, explica como são ultrapassados esses momentos em que o dinheiro não dá para todas as refeições. Já teve de pedir, de porta em porta. Noutras alturas, esmolou comida num lar de idosos e num infantário, para alimentar o marido e os três fi lhos. Desde Fevereiro recebe ajuda da Associação Moura Salúquia, que distribui comida do Banco Alimentar Contra a Fome.

PRESSÃO CRESCENTE Duzentos quilómetros a norte, o panorama não é melhor. A denúncia é do cónego José da Graça, 65 anos, presidente do Banco Ali-mentar Contra a Fome, em Abrantes. «Nun-ca tive tanta gente a bater-me à porta. A Se-gurança Social manda as pessoas para aqui para as ajudarmos.» E dali saem todas as 40 toneladas de comida angariadas por campa-nha. Mas podiam sair mais. «Há um ano, as pessoas pediam dinheiro para comprarem o que lhes faltava; hoje, só querem comida.»

São famílias que sobrevivem graças a mui-ta ajuda e imaginação. É assim na casa de Er-melinda Carvalho, 63 anos, reformada por invalidez, e que vive com os cinco fi lhos, em Santarém. Demasiadas vezes, a solução é ir à Misericórdia buscar comida. Há também aquele truque da multiplicação dos géneros: «Quando temos um frango, cozinhamos metade e misturamos com arroz ou massa.»

Mais 200 e tal quilómetros a norte, até ao Porto. Ali a crise fez-se sentir no núme-ro crescente de utentes do Centro Porta Amiga, da Assistência Médica Internacional (AMI): de 2006 para 2007, os pedidos de aju-da duplicaram. A instituição presta vários tipos de serviços – roupa, médico… – mas, confi rma o seu presidente, Fernando Nobre, 50 anos, «60% das pessoas que recorrem a nós vêm à procura de ajuda alimentar». Este médico sem fronteiras sabe que «fome» é uma palavra explosiva mas assegura que de nada vale fazer a política de avestruz. «É obvio que não é igual à do Mali ou à do Ban-gladesh. São graduações diferentes. Mas que há gente a passar fome, há…» Ou, então, que precisa de fazer uma grande ginástica or-çamental. Como Jorge e Patrícia Soares, 32 e 34 anos, a quem sobra muito mês, no fi m do salário – ele trabalha numa empresa de

construção civil, ela é empregada têxtil. Sem pré-aviso, o agregado familiar sofreu uma infl ação de 150%, com a chegada de trigéme-os, em 2003. A vida daquela família do Bairro da Previdência, em Ramalde, no Porto, ga-nhou claramente em animação mas passou a ser planeada em fracções. Sempre que há uma despesa extraordinária, como aconte-ceu quando o fi lho Ricardo teve bronquioli-te, a coisa aperta… Patrícia confi rma: «Não dá para ninguém fi car doente, porque já não temos mais onde cortar. Só se deixarmos de comer…» Vale-lhes a Porta Amiga, que os ajuda a abastecer a despensa.

VIDAS INTERROMPIDAS Fala-se em 2 milhões de pobres, em Portugal, e 200 mil a passar fome, números do Insti-tuto Nacional de Estatística, divulgados em Outubro. O mais recente relatório da Comis-são Europeia traça, também, o mais negro dos quadros sobre a situação social e econó-mica portuguesa. Segundo esse documento, o nível de desigualdade de rendimentos é o maior da Europa. A crer nos últimos dados disponíveis, em Portugal há 9% da população que vive com menos de 10 euros por dia. Na Europa, a média é de 5 por cento.

É com pouco mais do que isso que se ar-ranja Carla Silva, licenciada em Português--Inglês, 29 anos, uma mãe solteira que zela por Eva, com 6 meses. Em Setembro, para-

ram as aulas num centro de estudos e expli-cações e os quase 800 euros mensais, que complementava com os 400 da reforma da mãe. Três meses depois, a mãe não resistiu a um cancro. A assistente social do hospital encaminhou-a para a ajuda alimentar.

O importante é não baixar os braços, asse-gura Angélica Marques, 27 anos, que cresceu na Cova da Moura e há dois anos conseguiu alugar uma casa em Idanha, no concelho de Sintra. «Lá era mais fácil, não pagava ren-da…» diz, a tentar disfarçar o sufoco. Efectiva na peixaria, num hipermercado, em Lisboa, só para a casa vão metade dos seus 550 euros de salário. O resto é para criar os três fi lhos. Com quatro meses de renda em atraso, cor-re o risco de despejo. Mas não desiste.

Para quem, como elas, tenta ganhar esta guerra, vale tudo. «A nossa política de vida é mostrar que não somos pobres», assume Dieudonne Silva, 38 anos, licenciado em Ges-tão. Apesar de nunca ter trabalhado nesta área, não faz outra coisa. «Tudo o que fazemos é contado ao cêntimo.» Desde que deixou a Carris, em 2006, viu-se obrigado a pedir ajuda. A Câmara de Lisboa deu-lhes um tecto, num bairro de habitação social, e a Misericórdia fornece-lhes um cabaz de bens alimentares. «De vez em quando, o padre também nos dá umas senhas do McDonald's. Para animar as crianças.» *COM INÊS FARO, JOÃO LUZ, MÁRIO CAMPOS E PEDRO SANTOS

DIEUDONNE SILVA ANGÉLICA MARQUES

MANUELA SILVA, MOURA

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