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O pagador de promessas

Dias Gomes

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proibida a reproduo total ou parcial,por quaisquer meios, sem autorizao prvia,por escrito, da editora.

Capa Carol S

Detalhe da obra "Caminho para Lisboa, "O Aleijadinho:>", de Antnio Francisco Campo, MG.

30 .398 O30

BIBLIOTECA PBLICA DO PARAN

NO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA

CIP - Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Gomes, Dias, 1922-

" O pagador de promessas / Alfredo Dias Gomes.

36'ed. _ 36aed. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2002

(Coleo Prestgio)

ISBN 85-00-91391-6

Teatro brasileiro (Literatura).

CDD - 869.92

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Dias Gomes

Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador, Bahia, a 19 de outubro de 1922. A realizou seus primeiros estudos, passando a residir no Rio de Janeiro a partir de 1935. Cursou vrias carreiras, entre as quais Direito e Engenharia, sem concluir nenhuma delas. Escreveu sua primeira pea teatral aos 15 anos, A Comdia dos Moralistas, obtendo com ela o prmio do Servio Nacional do Teatro. Mais tarde, aos 19 anos, viu sua primeira obra encenada, P-de-Cabra, com sucesso de pblico e de crtica, sendo saudado por Viriato Corra, o mais importante crtico da poca, como aquele que seria, "mais cedo ou mais tarde, o autor mais importante do teatro brasileiro". Nessa sua primeira fase como dramaturgo, Dias Gomes escreveu ainda Amanh Ser Outro Dia; Doutor Ningum; Zeca Diabo; Joo Cambo, quase todas encenadas por Procpio Ferreira. Alguns textos desta fase permanecem inditos no teatro, como O Pobre Gnio; Eu Acuso o Cu; Sinhazinha; O Homem que no Era Seu e Beco sem Sada, que foram apresentados apenas pelo rdio, anos mais tarde. Em todos eles, Dias revela j a preocupao de questionar a realidade brasileira, ou, como diria Anoto Rosenfeld, "de oferecer uma imagem crtica da realidade brasileira, naquilo que caracteristicamente brasileiro e naquilo que tipicamente humano".

A partir de 1944, Dias Gomes estendeu suas atividades ao rdio, para o qual foi levado por Oduvaldo Vianna, pai, tendo atuado em vrias emissoras de So Paulo e do Rio, escrevendo e dirigindo programas. Foi diretor artstico da Rdio Bandeirantes de So Paulo, da Rdio Clube do Brasil (Rio) e da Rdio Nacional (Rio). Nessa fase, publicou quatro romances, Amanh ser Outro Dia; Um Amor e Sete Pecados; A Dama da Noite e Quando Amanh?

Em 1954, aps nove anos de ausncia do teatro, fez nova experincia cnica com Os Cinco Fugitivos do Juzo Final, produzida por Jaime Costa, com direo de Bibi ferreira. Mas foi em 1960, com O Pagador de Promessas, que retornou definitivamente ao teatro. O estrondoso sucesso nacional e internacional desta pea fez com que seu nome atravessasse as fronteiras do pas, sendo hoje Dias Gomes, talvez, o nosso dramaturgo mais conhecido e mais representado no exterior. Vertido para o cinema, O Pagador de Promessas conquistou a "Palma de Ouro", no Festival deCannes de 1962, alm de vrios outros prmios nacionais e internacionais. Seu texto est traduzido para os seguintes idiomas: ingls, francs, russo, polons, espanhol, italiano, vietnamita, hebraico, grego e seruo-croata, tendo sido encenado nos Estados Unidos (seis produes), Polnia (quatro produes), Unio Sovitica, Cuba, Espanha, Itlia, Grcia, Israel, Argentina, Uruguai, Equador, Peru, Mxico, Vietn do Norte (durante a guerra) e Marrocos.

Na dcada de sessenta, Dias Gomes escreveu ainda as seguintes peas: A Invaso; A Revoluo dos Beatos; Odorico.O Bem-Amado; O Bero do Heri (proibida pela censura); O Santo Inqurito; O Tnel; Dr. Getlio, Sua Vida e Sua Glria e Vamos Soltar os Demnios.

Em 1969, pressionado pela censura, que vetara vrios textos seus, e sentindo que dificilmente poderia continuar sua obra teatral, a menos que se adaptasse s novas limitaes impostas pelo regime vigente, preferiu experimentar um novo meio de expresso, a televiso. Sem trair a sua temtica, levou para a TV suas preocupaes polticas e sociais, escrevendo uma srie de telenovelas que deram ao gnero um alto nvel artstico e uma linguagem prpria. Vero Vermelho; Assim na Terra Como no Cu; Bandeira 2; O Bem-Amado; O Espigo; Roque Santeiro (proibida pela censura); Saramandaia e Sinal de Alerta constituem um ciclo que repete na TV a tentativa de pintar um vasto painel de nossa realidade, levando ao espectador a conscincia da necessidade de transform-la.

A partir de 1978, aps novo perodo de afastamento, durante o qual apenas se preocupou com reencenaes de suas peas em todo o mundo, Dias Gomes voltou a escrever para o teatro. As Primcias foi publicada em livro e O Rei de Ramos foi encenada com enorme sucesso. Segundo Anoto/ Rosenfeld, autor de um dos mais inteligentes estudos sobre a sua obra, esta "no seu todo, se apresenta repleta de esplndidas invenes, povoada de uma humanidade exemplar na glria e na misria. Distinguem-na a imaginao rica, a variedade de caracteres vivos, a extraordinria latitude da escala emocional, indo dos comoventes destinos de Z do Burro e Branca Dias ao riso amargo de O Bero do Heri e Dr. Getlio, e franca gargalhada de Odorico. Aberta ao sublime, sensvel grandeza trgica, a obra recorre ao mesmo tempo aos variados enfoques do humor, do sarcasmo e da ironia para lidar com os aspectos frgeis ou menos nobres da espcie humana. (...) Por isso a obra amorvel e respira futuro".

Prmios:

Prmio Nacional de Teatro (I.N.L.), 1960

Prmio Governador do Estado (SP), 1960

Prmio Melhor Pea Brasileira (A.P.C.T.), 1960

Prmio "Padre Ventura" (C.I.C.T.), 1962

Prmio Melhor Autor Brasileiro (A.B.C.T.), 1962

Prmio Governador do Estado da Guanabara, 1962

Laureada no III Festival Internacional de Teatro, em Kalsz, Polnia

Em Verso Cinematogrfica:

"Palma de Ouro", do Festival de Cannes, 1962

1 Prmio do Festival de S. Francisco (EUA), 1962

"CriticsAward" do Festival de Edimburgo, Esccia, 1962

I Prmio do Festival da Venezuela, 1962

Laureada no Festival de Acapulco, Mxico, 1962

Prmio "Saci" (S. Paulo), 1962

Prmio Governador do Estado (SP), 1962

Prmio Cidade de S. Paulo, 1962

Prmio Humberto Mauro

Para

Janete, com amor.

Para Pscoa! Longo

e Edison Carneiro.

Personagens:

Z-do-Burro

Rosa

Marli

Bonito

Padre

Sacristo

Guarda

Beata

Galego

Minha Tia

Reprter

Fotgrafo

Ded Cospe-Rima

Secreta

Delegado

Mestre Coca

Monsenhor

Manoelzinho Sua-Me

E a Roda de Capoeira

Ao: - Salvador poca: - Atual

Primeiro Ato

Primeiro Quadro

Ao subir o pano, a cena est quase s escuras. Apenas um jato de luz, da direita, lana alguma claridade sobre o cenrio. Mesmo assim, aps habituar a vista, o espectador identificar facilmente uma pequena praa, onde desembocam duas ruas. Uma direita, seguindo a linha da ribalta, outra esquerda, ao fundo, de frente para a plateia, subindo, enladeirada e sinuosa, no perfil de velhos sobrados coloniais. Na esquina da rua da direita, vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta, com uma escadaria de quatro ou cinco degraus. Numa das esquinas da ladeira, do lado oposto, h uma vendola, onde tambm se vende caf, refresco, cachaa etc.; a outra esquina da ladeira ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acmulo de andares no previsto inicialmente. O calamento da ladeira irregular e na fachada dos sobrados vem-se alguns azulejos estragados pelo tempo. Enfim, uma paisagem tipicamente baiana, da Bahia velha e colonial, que ainda hoje resiste avalancha urbanstica moderna.

Devem ser, aproximadamente, quatro e meia da manh. Tanto a igreja como a vendola esto com suas portas cerradas. Vem de longe o som dos atabaques dum candombl distante, no toque de Iansan. Decorrem alguns segundos at que Z-do-Burro surja, pela rua da direita, carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira. A passos lentos, cansado, entra na praa, seguido de Rosa, sua mulher. Ele um homem ainda moo, de 30 anos presumveis, magro, de estatura mdia. Seu olhar morto, contemplativo. Suas feies transmitem bondade, tolerncia e h em seu rosto um "qu" de infantilidade. Seus gestos so lentos, preguiosos, bem como sua maneira de falar. Tem barba de dois ou trs dias e traja-se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira. Rosa parece pouco ter de comum com ele. uma bela mulher, embora seus traos sejam um tanto grosseiros, tal como suas maneiras. Ao contrrio do marido, tem "sangue quente". agressiva em seu "sexy", revelando, logo primeira vista, uma insatisfao sexual e uma nsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar. Veste-se como uma provinciana que vem cidade, mas tambm como uma mulher que no deseja ocultar os encantos que possui.

13

Z-do-Burro vai at o centro da praa e a pousa a sua cruz, equilibrando-a na base e num dos braos, como um cavalete. Est exausto. Enxuga o suor da testa.

Z

(Olhando a igreja) essa. S pode ser essa.

(Rosa pra tambm, junto aos degraus, cansada, enfastiada e deixando j entrever uma revolta que se avoluma).

ROSA

E agora? Est fechada.

Z

cedo ainda. Vamos esperar que abra.

ROSA

Esperar? Aqui?

Z

No tem outro jeito.

ROSA

(Olha-o com raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato). Estou com cada bolha dgua no p que d medo.

Z

Eu tambm. (Contorce-se num ritus de dor. Despe uma das mangas do palet). Acho que os meus ombros esto em carne viva.

ROSA

Bem feito. Voc no quis botar almofadinhas, como eu disse.

Z

(Convicto) No era direito. Quando eu fiz a promessa, no falei em almofadinhas.

ROSA

Ento: se voc no falou, podia ter botado; a santa no ia dizer nada.

Z

No era direito. Eu prometi trazer a cruz nas costas, como Jesus. E Jesus no usou almofadinhas.

ROSA

No usou porque no deixaram.

Z

No, nesse negcio de milagres, preciso ser honesto. Se a gente embrulha o santo, perde o crdito. De outra vez o santo olha, consulta l os seus assentamentos e diz: - Ah, voc o Z-do-Burro, aquele que j me passou a perna! E agora vem me fazer nova promessa. Pois v fazer promessa pr diabo que o carregue, seu caloteiro duma figa! E tem mais: santo como gringo, passou calote num, todos os outros ficam sabendo.

ROSA

Ser que voc ainda pretende fazer outra promessa depois desta? J no chega?...

Z

Sei no... a gente nunca sabe se vai precisar. Por isso, bom ter sempre as contas em dia.

(Ele sobe um ou dois degraus. Examina a fachada da igreja 'procura de uma inscrio).

ROSA

Que que voc est procurando?

Z

Qualquer coisa escrita... pra a gente saber se essa mesmo a igreja de Santa Brbara.

ROSA

E voc j viu igreja com letreiro na porta, homem?

Z

que pode no ser essa...

ROSA

Claro que essa. No lembra o que o vigrio disse? Uma igreja pequena, numa praa, perto duma ladeira...

Z

(Corre os olhos em volta) Se a gente pudesse perguntar a algum...

ROSA

Essa hora est todo o mundo dormindo. (Olha-o quase com raiva). Todo o mundo... menos eu, que tive a infelicidade de me casar com um pagador de promessas. (Levanta-se e procura convenc-lo). Escute, Z... j que a igreja est fechada, a gente podia ir procurar um lugar pra dormir. Voc j pensou que beleza agora uma cama?...

Z

E a cruz?

ROSA

Voc deixava a cruz a e amanh, de dia...

Z

Podem roubar...

ROSA

Quem que vai roubar uma cruz, homem de Deus? Pra que serve uma cruz?

Z

Tem tanta maldade no mundo. Era correr um risco muito grande, depois de ter quase cumprido a promessa. E voc j pensou; se me roubassem a cruz, eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roa at aqui. Sete lguas.

ROSA

Pra qu? Voc explicava santa que tinha sido roubado, ela no ia fazer questo.

Z

o que voc pensa. Quando voc vai pagar uma conta no armarinho e perde o dinheiro no caminho, o turco perdoa a dvida? Uma ova!

ROSA

Mas voc j pagou a sua promessa, j trouxe uma cruz de madeira da roa at igreja de Santa Brbara. Est a a igreja de Santa Brbara, est a a cruz. Pronto. Agora, vamos embora.

Z

Mas aqui no a igreja de Santa Brbara. A igreja da porta pra dentro.

ROSA

Oxente! Mas a porta est fechada e a culpa no sua. Santa Brbara : deve saber disso, que diabo.

Z

(Pensativo) S se eu falasse com ela e explicasse a situao...

ROSA

Pois ento... fale!

Z

(Ergue os olhos para o cu, medrosamente e chega a entreabrir os lbios, como se fosse dirigir-se santa. Mas perde a coragem) No, no posso...

ROSA

Por que, homem?! Santa Brbara to sua amiga... Voc no est em dia com ela?

Z

Estou, mas esse negcio de falar com santo muito complicado. Santo nunca responde em lngua da gente... no se pode saber o que ele pensa. E alm do mais, isso tambm no direito. Eu prometi levar a cruz at dentro da igreja, tenho que levar. Andei sete lguas. No vou me sujar com a santa por causa de meio metro.

- ROSA

E pra voc no se sujar com a santa, eu vou ter que dormir no cho, no "hotel do padre". (Olha-o com raiva e vai deitar-se num dos degraus da escada da igreja). E se tudo isso ainda fosse por alguma coisa que valesse a pena...

Z

Voc podia no ter vindo. Quando eu fiz a promessa, no falei em voc, s na cruz.

ROSA

Agora voc diz isso. Dissesse antes...

Z

No me lembrei. Voc tambm no reclamou...

ROSA

Sou sua mulher. Tenho que ir pra onde voc for ..

Z

Ento...

Rosa ajeita-se da melhor maneira possvel no degrau, enquanto Z-doBurro, no menos cansado do que ela faz um esforo sobre-humano para no adormecer. Cochila, montando guarda sua cruz. Subitamente, irrompem na praa Marli e Bonito. Ela tem, na realidade, vinte e oitoanos, mas aparenta mais dez. Pinta-se com algum exagero, mas mesmo assim no consegue esconder a tez amarelo-esverdeada. Possui alguns traos de uma beleza doentia, uma beleza triste e suicida. Usa um vestido muito curto e decotado, j um tanto gasto e fora de moda, mas ainda de bom efeito visual. Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertar-se de uma tirania que, no entanto, necessria ao seu equilbrio psquico - a explorao de que vtima por parte de Bonito vem, em parte, satisfazer um instinto maternal frustrado. H em seu amor e em seu aviltamento, em sua degradao voluntria, muito de sacrifcio maternal, ao qual no falta, inclusive, um certo orgulho. Bonito insensvel a tudo isso. Ele frio e brutal em sua "profisso". Encara a explorao a que submete Marli e outras mulheres, como um direito que lhe assiste, ou melhor, um dom que a natureza lhe concedeu, juntamente com seus atributos fsicos. Em seu entender, sua beleza mscula e seu vigor sexual, aliados a um direito natural de subsistir, justificam plenamente seu modo de vida. de estatura um pouco acima da mdia, forte e de pele trigueira, amulatada. A ascendncia negra visvel, embora os cabelos sejam lisos, reluzentes de gomalina e os traos regulares, com exceo dos lbios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas. Veste-se sempre de branco, colarinho alto, sapatos de duas cores. Descem a ladeira, ela na frente, a passos rpidos. Ele a segue, como se viessem j de uma discusso.

BONITO

Espere. No adianta andar depressa...

MARLI

melhor discutirmos isso em casa.

BONITO

(Alcana-a e obriga a parar torcendo-lhe violentamente o brao) No, vamos resolver aqui mesmo. No tenho nada que discutir com voc...

MARLI

(Livra-se dele com um safano, mas seu rosto se contrai dolorosamente) Estpido!

BONITO

Ande, vamos deixar de mas-mas. Passe pra c o dinheiro.

MARLI

(Tira do bolso do vestido um mao de notas e entrega a ele) No podia esperar at chegar em casa?

BONITO

(Chega mais para perto do jato de luz e conta as notas, rapidamente) S deu isto?

MARLI

S. A noite hoje no foi boa. Voc viu, o "castelo" estava vazio.

BONITO

E aquele galego que estava conversando com voc quando cheguei?

MARLI

Uma boa conversa. Queria se fretar comigo. Ficou mangando a noite toda e no se resolveu...

BONITO

(Mete subitamente a mo no decote de Marli e tira de entre os seios uma nota) Sua vaca!

Ele faz meno de dar-lhe um bofeto, ela corre e refugia-se atrs da cruz. Z-do-Burro desperta de sua semi-sonolncia.

MARLI

Eu precisava desse dinheiro. Pra pagar o quarto, voc sabe.

BONITO

No gosto de ser tapeado. Por que no pediu?

MARLI

E voc dava?

BONITO

Claro que no. (Guarda o dinheiro na carteira) Isso ia fazer falta no meu oramento. Tenho compromissos e voc bem sabe que no gosto de pedir dinheiro emprestado. uma questo de feitio.

)) MARLI

E eu, que fao pra pagar o quarto? J devo dois meses e a dona anda me olhando atravessado.

BONITO

(Indiferente) um problema seu. Tenho muita coisa em que pensar.

MARLI

Eu sei, eu sei no que voc pensa...

BONITO

(Sorri e h em seu sorriso uma sombra de ameaa) Penso, por exemplo, que voc, de trs meses pra c, est fazendo muito pouco. A Matilde est fazendo quase o dobro...

MARLI

(Compreende a ameaa, avana para ele sacudida pelo cime e pelo pavor de perd-lo) Eu sei, voc est dando em cima daquela arreganhada. Ela mesma anda dizendo.

BONITO

Eu no dou em cima de mulher nenhuma, voc sabe disso. uma questo de princpios.

MARLI

Quer dizer que ela quem est dando em cima de voc!

BONITO

Ela perguntou se eu estava precisando de dinheiro.

MARLI

(Ansiosamente) E voc?...

BONITO

Eu s pedi umas informaes de ordem tcnica, arrecadao diria etc...

MARLI

(Agarra-o freneticamente pelos braos) Bonito, voc no aceitou o dinheiro dela, aceitou?! Voc no aceitou o dinheiro daquela vagabunda!

BONITO

(Olha-a friamente) E que tinha, se aceitasse? Eu tambm preciso viver.

MARLI

Mas o que eu lhe dou no chega?!

BONITO

Voc compreende, eu tambm tenho ambies; Se eu no tivesse qualidades, bem. Mas eu sei que tenho qualidades. justo que viva de acordo com essas qualidades.

MARLI

Mas o que lhe falta? Eu no tenho lhe dado tudo que voc me pede? Se for preciso, dou mais ainda. No pense que por medo de que voc me largue pela Matilde, no. (Alisa sua roupa e admira-o, maternalmente) porque tenho prazer em ver voc vestido com a roupa que eu dei, com os sapatos que eu comprei e com a carteira recheada de notas que eu ganhei pra voc. Tenho orgulho, sabe?

BONITO

(Desvencilha-se dela) Pois ento veja se na prxima vez no esconde dinheiro no decote. Tenho certeza de que a Matilde no capaz de um gesto feio desses.

MARLI

Ela capaz de coisas muito piores. Se voc quiser, eu lhe conto.

BONITO

(Bruscamente) No quero ouvir nada. Quero que voc v pra casa.

MARLI

(Decepcionada) Voc no vai comigo?

BONITO

No, vou ficar um pouco mais por aqui. V na frente que daqui a poucoeu apareo por l.

MARLI

(Enciumada) E o que que voc vai ficar fazendo na rua a uma horadessas?

BONITO

(Com muita seriedade) Ora, mulher, eu preciso trabalhar! (Acende um cigarro, abstraindo-se da presena de Marli, que o fita como um co escorraado pelo dono. S ento este se mostra intrigado com a cruz no meio da praa. Examina-a curiosamente e por fim dirige-se a Z-do-Burro) sua?

Z balana a cabea em sinal afirmativo. Marli vai at escada da igreja, senta-se num degrau, sem se incomodar com Rosa, deitada mais acima, tira os sapatos e movimenta os dedos doloridos.

BONITO

(Nota a igreja, faz uma associao de ideias) Encomenda?

Z

No, promessa.

BONITO

(A princpio parece no entender, depois ri). Gozado.

Z

No acho.

BONITO

No falei por mal. Eu tambm sou meio devoto. At uma vez fiz promessa pra Santo Antnio...

Z

Casamento?

BONITO

No, ela era casada.

Z

E conseguiu a graa?

BONITO

Consegui. O marido passou uma semana viajando...

Z

E o senhor pagou a promessa?

BONITO

No, pra no comprometer o santo.

Z

Nunca se deve deixar de pagar uma promessa. Mesmo quando dessas de comprometer o santo. Garanto que da prxima vez Santo Antnio vai se fingir de surdo. E tem razo.

BONITO

O senhor compreende, Santo Antnio ia ficar mal se soubessem que foi ele quem fez o trouxa viajar. (Nota que Marli ainda no se foi) Que que voc ainda est fazendo a?

MARLI

Esperando voc.

BONITO

(Vai a ela) J lhe disse que vou depois. Vai ficar agora grudada em mim?

MARLI

(Levanta-se) Escute, Bonito... voc no podia deixar eu ficar ao menos com aquela nota?

BONITO

J lhe disse que no. No insista.

MARLI

Mas eu preciso pagar o quarto!

BONITO

O quarto seu, no meu.

MARLI

Mas o dinheiro meu. justo que eu fique ao menos com algum.

BONITO

justo por qu?

MARLI

Porque fui eu que trabalhei.

BONITO

E desde quando trabalhar d direito a alguma coisa? Quem lhe meteu na cabea essas idias? (Olha-a de cima a baixo, com desconfiana) Est virando comunista?

Marli fita-o com dio e sai bruscamente pela direita. Bonito acompanha-a com o olhar e depois sorri, tira o dinheiro do bolso e torna a cont-lo.

Z

(Candidamente) Esse dinheiro... dela mesmo?

BONITO

(Guarda o dinheiro) Bem, esta uma maneira de olhar as coisas. E toda coisa tem pelo menos duas maneiras de ser olhada. Uma de l pra c, outra de c pra l. Entendeu?

Z

No...

BONITO

No vale a pena explicar. uma questo de sensibilidade.

Z

O senhor ... marido dela?

BONITO

No, sou assim uma espcie de fiscal do imposto de renda. (Sobe, como se fosse sair, mas se detm diante de Rosa, cujo vestido, levantado, deixa- ver um palmo de coxa).

ROSA

(Abre os olhos, sentindo que est sendo observada) Que ?

BONITO

Nada... estava s olhando... Rosa conserta o uestido.

BONITO

No deve ser l muito confortvel essa cama... Rosa olha-o com raiva.

BONITO

(Olha-a mais detidamente) E olhe que voc bem merece coisa melhor.

ROSA

Diga isso a ele (Aponta Z-do-Burro).

BONITO

A ele?

ROSA

Meu marido.

BONITO

Ah, voc tambm veio pagar promessa...

ROSA

Eu no, ele. E por causa dele estou dormindo aqui, no batente de uma igreja, como qualquer mendiga. (Senta-se)

Z

No deve faltar muito para abrir a igreja. O senhor sabe que horas so?

BONITO

(Consulta o relgio) Um quarto para as cinco.

Z

Sabe a que horas abre a igreja?

BONITO

No, no bem o meu ramo...

Z

Mas s seis horas deve ter missa. Hoje o dia de Santa Brbara...

ROSA

(Ressentida) s seis horas. Tenho que agentar mais de uma hora ainda neste batente duro. E a promessa no minha!

BONITO

capaz da porta da sacristia j estar aberta.

Z

O senhor acha?

BONITO

Padre acorda cedo...

Z

s cinco horas?

BONITO

Ento; tem que se preparar para a missa das seis.

Z

verdade...

BONITO

Por que o senhor no vai ver?

Z

... (Hesita um pouco)

BONITO

A porta do lado de l...

Z

Rosa, voc vigia a cruz, eu vou dar a volta... no demoro. (Sai)

BONITO

Pode ir sem susto que eu ajudo a tomar conta de sua cruz. (Depois que Z-do-Burro sai) das duas.

ROSA

S que uma ele carrega nas costas e a outra... se quiser que v atrs dele. (Levanta-se)

BONITO

E voc no mulher para andar atrs de qualquer homem... ao contrrio, uma cruz que qualquer um carrega com prazer...

ROSA

(Com recato, mas no fundo envaidecida) Ora, me deixe.

BONITO

Palavra. Seu marido no lhe faz justia. Isso no trato que se d a uma mulher... mesmo sendo mulher da gente.

ROSA

Se ele faz pouco de mim, faz pouco do que dele.

BONITO

No discuto. S acho que voc no mulher para dormir em batente de igreja. Tem qualidades para exigir mais: boa cama, com colcho e melhor companhia.

ROSA

No fale em cama pra quem tem o corpo modo, como eu.

BONITO

To cansada assim?

ROSA

Duas noites sem dormir, sete lguas no calcanho...

BONITO

Sete lguas? Quantos quilmetros?

ROSA

Sei l... s sei que sete vezes amaldioei aquele dia em que fui roubar caju com ele na roa dos padres...

BONITO

Ah, foi assim...

ROSA

A gente faz cada besteira...

BONITO

Quanto tempo faz?

ROSA

Oito anos...

BONITO

E voc casou com ele?

ROSA

Casei.

BONITO

Sem gostar?

ROSA

(Depois de um tempo) Gostava, sim. Sabe, na roa, o homem feio, magro, sujo e mal vestido. Ele at que era dos melhores. Tinha um stio. .

BONITO

E da?

ROSA

Da, eu achei que ele garantia tudo que eu queria da vida: homem e casa. A gente quando franga, com licena da palavra, tem merda na cabea

BONITO

(Algo interessado) Ele tem um stio, ?

ROSA

Tinha, agora tem s um pedao. Dividiu o resto com os lavradores pobres.

BONITO

Por qu?

ROSA

Fazia parte da promessa.

BONITO

Que que est esperando? Virar santo?

ROSA

No brinque. Pelo caminho tinha uma poro de gente querendo que ele fizesse milagre. E no duvide. Ele capaz de acabar fazendo. Se no fosse a hora, garanto que tinha uma romaria aqui, atrs dele.

BONITO

Depois de cumprir a promessa, ele vai voltar pra roa?

ROSA

Vai.

BONITO

E voc?

ROSA

Tambm. Por qu?

BONITO

Se voc viesse pra cidade, eu podia lhe garantir um bonito futuro...

ROSA

Fazendo o qu?

BONITO

Isso depois se via.

ROSA

Eu no sei fazer nada.

BONITO

(Segura-a por um brao,) Mulheres como voc no precisam saber coisa alguma, a no ser o que a natureza ensinou. .

Rosa puxa o brao bruscamente, depois de manter, por alguns segundos, um olhar de desafio.

ROSA

No faa isso! Ele pode voltar de repente

BONITO

Ele deve ter ido acordar o padre. (Volta a aproximar-se dela)

ROSA

(Desvencilha-se dele novamente) Me solte. (Volta a sentar-se na escada) Eu queria era dormir. Dava a vida por uma cama... com um lenol branco . e uma bacia dgua quente onde meter os ps.

BONITO

Eu posso lhe arranjar um hotelzinho aqui perto...

(Rosa lana-lhe um olhar hostil.

BONITO

Isso sem segundas intenes... s pra voc dormir, descansar dessa romaria.

ROSA

No quero me meter em encrencas.

BONITO

No h nenhum perigo de encrenca. Sou muito cotado com o porteiro do hotel e tenho boas relaes com a polcia. Nesta zona, todos respeitam o Bonito.

ROSA

(Quase sensualmente) Bonito.

BONITO

(Vaidoso) um apelido...

ROSA

(Olha-o de cima a baixo).

BONITO

(Senta-se junto dela)

ROSA

No chegue perto, estou muito suada.

BONITO

No hotel tem banheiro... para quem andou sete lguas, um banho de chuveiro e depois uma cama com colcho de mola. .

ROSA

Colcho de mola mesmo?

BONITO

Ento ..

ROSA

Nunca dormi num colcho de mola. Deve ser bom.

BONITO

Uma delcia...

Entra Z-do-Burro pela direita. Bonito levanta-se.

Z

Tudo fechado. Tem jeito no.

ROSA

(Revoltada) E eu que agente este batente duro at Deus sabe l que horas.

Z

Pacincia, Rosa. Seu sacrifcio fica valendo.

ROSA

Pra quem? Pra Santa Brbara? Eu no fiz promessa nenhuma.

Z

Oxente! Melhor ainda. Amanh, quando voc fizer, a santa j est lhe devendo!

ROSA

Nunca vi santo pagar dvida. (Volta a deitar-se no degrau)

BONITO

(Assumindo um ar to eclesistico quanto possvel) A senhora faz mal em ser to descrente. Quem sabe se Santa Brbara j no est providenciando o pagamento dessa dvida? E quem sabe se no escolheu a mim pra pagador?

Z

(Muito ingenuamente) O senhor no era fiscal do imposto de renda? Agora pagador de Santa Brbara...

BONITO

Meu caro, com o custo de vida aumentando dia a dia, a gente tem que se virar. Mas no esse o caso. Digo que Santa Brbara j deve estar tratando de liquidar o dbito hoje contrado com sua senhora, porque me fez passar por aqui esta noite.

Z

No vejo nada de mais nisso.

BONITO

Porque o senhor no sabe que eu posso, em cinco minutos, arranjar uma boa cama, com colcho de mola, num hotel perto daqui.

Z

Pra ela?

BONITO

E pr senhor tambm.

Z

Eu no posso. Tenho que esperar abrir a igreja. Se soubesse que no iam roubar a cruz...

BONITO

(Rapidamente) Oh, no, a cruz no deve ficar sozinha. Esta zona est cheia de ladres. A cruz de madeira e a madeira est carssima.

Z

o que eu acho. No devo sair daqui.

BONITO

Mas eu posso ficar tomando conta, enquanto o senhor e sua senhora vo descansar.

Z

O senhor?

BONITO

E por que no?

Z

Mas a igreja pode demorar a abrir. Pelo menos uma hora ainda.

BONITO

Eu espero. Sua esposa me contou a caminhada que fizeram, o senhor carregando nas costas essa cruz atravs de lguas e lguas, para cumprir uma promessa. Isso me comoveu.

Z

Mas no justo. No foi o senhor quem fez a promessa.

HOSA

Ele est querendo ajudar, Z.

Z

Mas no direito. Eu prometi cumprir a promessa sozinho, sem ajuda de ningum. E essa histria de dormir no hotel no est no trato.

BONITO

E sua senhora est no trato?

Z

Rosa? No, ela pode ir.

BONITO

Nesse caso, se quiser que eu leve sua senhora... ao menos ela descansa enquanto espera pelo senhor.

Z

Voc quer, Rosa? Quer ir esperar por mim no hotel? (Volta-se para Bonito) hotel decente?

BONITO

(Fingindo-se ofendido) Ora, o senhor acha que ia indicar...

Z

Desculpe, que sempre ouvi dizer que aqui na cidade...

BONITO

Pode confiar em mim.

Z

longe daqui?

BONITO

No, basta subir aquela ladeira...

Z

Que que voc diz, Rosa?

ROSA

(Percebendo o jogo de Bonito) Quero no, Z. Prefiro ficar aqui com voc.

Z

Ainda agora mesmo voc estava se queixando.

BONITO

No pra menos. Deve estar exausta. Sete lguas.

Z

Afinal de contas, voc tem razo, a promessa minha, no sua. V com o moo, no tenha acanhamento.

BONITO

Eu vou com ela at l, apresento ao porteiro, que meu conhecido - sim, porque uma mulher sozinha, o senhor sabe, eles no deixam entrar - depois volto para lhe dizer o nmero do quarto. Daqui a pouco, depois de cumprir a sua promessa, o senhor vai pra l.

Z

Se o senhor fizesse isso, era um grande favor. Eu no posso me afastar daqui.

BONITO

Nem deve. Primeiro, Santa Brbara.

ROSA

Z, melhor eu ficar com voc...

Z

Pra que, Rosa? Assim voc vai logo descansar numa boa cama, no precisa ficar a deitada nesse batente frio...

BONITO

Um perigo! Pode pegar uma pneumonia.

ROSA

(Inicia a sada. Pra, hesitante. Pressente o perigo que vai correr. Procura, com o olhar, fazerZ-do-Burro compreender o seu receio) Z...

Z

Ahn, sim. (Enfia a mo no bolso, tira um mao de notas) Pode ser que precise pagar adiantado...

ROSA

(Recebe o dinheiro. Encara o marido) Talvez seja melhor, depois de entregar a cruz, voc mandar tambm rezar uma missa em ao de graas...

Z

(Sem entender o alcance da sugesto) , no m idia. Rosa sobe a ladeira e Bonito a segue.

BONITO

(Saindo) Volto num minuto.

Z

Est bem.

(Senta-se ao p da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela. Aos poucos, vencido pelo sono. As luzes se apagam em resistncia)

Segundo Quadro

As luzes voltam a acender-se, lentamente, at dia claro. Ouvem-se, distante, rudos esparsos da cidade que acorda. Um ou outro buzinar, foguetes estouram saudando Iansan, a Santa Brbara nag, e o sino da igreja comea a chamar para a missa das seis. Mas nada disso acorda Z-do-Burro. Entra, pela ladeira, a Beata. Toda de preto, vu na cabea, passinho mido, vem apressada, como se temesse chegar atrasada. Passa por Z-doBurro e a cruz sem not-los. Pra diante da escada e resmunga.

Fica a critrio da direo utilizar neste quadro figurantes que descero a ladeira e entraro na igreja

BEATA

Porta fechada. sempre assim. A gente corre, com medo de chegar atrasada e quando chega aqui a porta est fechada. Por que no abrem primeiro a porta, pra depois tocar o sino? No, primeiro tocam o sino, depois abrem a porta. Isso esse sacristo (Pra de resmungar ao ver a cruz. Ajeita os culos, como se no acreditasse no que est vendo. Aproxima-se e examina detalhadamente a cruz e o seu dono adormecido. Sua expresso da maior estranheza) Virgem Santssima!

Neste momento, abre-se a porta da igreja e surge o Sacristo. um homem de perto de 50 anos. Sua mentalidade, porm, anda a pelos quatorze. Usa culos de grossas lentes, mope. O cabelo teima em cair-lhe na testa, acentuando a aparncia de retardado mental. Ele parece bbedo de sono. Boceja largamente, ruidosamente, depois de abrir a primeira banda da porta. Espreguia-se e solta um longo gemido. Depois que abre toda a porta, encosta-se por um momento no portal e cochila, sem dar pela Beata, que se aproxima.

BEATA

(D-lhe uma leve cotovelada) Ei, rapaz...

SACRISTO

(Desperta muito assustado) Sim, Padre, j vou!...

BEATA

Que padre coisa nenhuma...

SACRISTO

Ah, a senhora...

BEATA

Vou me queixar ao Padre Olavo dessa mania de bater o sino antes de abrir a porta da igreja. Eu ouo o toque, venho pondo as tripas pela boca, chego aqui, e a porta ainda est fechada.

SACRISTO

Tambm por que a senhora vem logo na missa das seis? Por que novem mais tarde?

BEATA

(Malcriada) Porque quero. Porque no da sua conta. (Aponta para acruz) Que isso?

SACRISTO

Isso o qu?

BEATA

Est vendo no? Uma cruz enorme no meio da praa...

SACRISTO

(Apura a vista) Ah, sim... agora percebo... uma cruz de madeira... e parece que h um homem dormindo junto dela...

BEATA

Vista prodigiosa a sua! Claro que uma cruz de madeira e que h um homem junto dela. O que eu quero saber a razo disso.

SACRISTO

No sei... como quer que eu saiba? Por que a senhora no pergunta

a ele?

BEATA

(Bruscamente) Eu que no vou perguntar coisa nenhuma!

SACRISTO

Talvez ele tenha desgarrado da procisso...

BEATA

Que procisso? De Santa Brbara? A procisso ainda no saiu. E j viu algum carregar cruz em procisso? Nem na do Senhor Morto. (Benze-se e entra apressadamente na igreja)

O Sacristo aproxima-se de Z-do-Burro, curioso. E quando entra Bonito, pela ladeira. Ele v a igreja aberta, estranha.

BONITO

Oxente...

SACRISTO

(Olha-o aparualhado) uma cruz mesmo...

BONITO

E que pensou voc que fosse? Um canho? (Aproxima-se de Z-do-Burro, Sono de pedra... no acordou nem com os foguetes de Santa BrbaraDizem que assim que dormem as pessoas que tm a conscincia tranqila e a alma leve... (Cnico) Eu tambm sou assim, quando caio na cama um sono s. (Sacode Z-do-Burro) Camarado... oh, meu camarado!...

Z

(Desperta) Oh, j dia...

BONITO

J. E a igreja j est aberta, voc pode entregar o carreto.

Z

(Levanta-se, com dificuldade, os msculos adormecidos e doloridos) verdade...

BONITO

Eu voltei aqui pra lhe dizer o nmero do quarto de sua mulher. o27. Um bom quarto, no segundo andar. (Apressadamente) Pelo menos foi o que o porteiro me garantiu.

Z

Ah, obrigado...

BONITO

O hotel aquele ali, o primeiro, logo depois de subir a ladeira e dobrar direita. Hotel Ideal Eu demorei um pouco porque fiquei jogando damas com o porteiro.

SACRISTO

(Vivamente interessado) Ganhou?

BONITO

Empatamos.

SACRISTO

Ah, eu tambm sou louco por damas!

BONITO

(Examina-o de cima a baixo) Francamente, ningum diz... Padre Olavo surge na porta da igreja.

SACRISTO

(Como se tiuesse sido surpreendido em falta) Padre Olavo!...

Z

Preciso falar com ele...

Sacristo dirige-se apressadamente igreja. Pra na porta, ante o olhar intimidador de Padre Olavo. um padre moo ainda. Deve contar, no mximo, quarenta anos. Sua convico religiosa aproxima-se do fanatismo. Talvez, no fundo, isto seja uma prova de falta de convico e autodefesa. Sua intolerncia - que o leva, por vezes, a chocar-se contra princpios de sua prpria religio e a confundir com inimigos aqueles que esto ao seu lado - no passa, talvez, de uma couraa com que se mune contra uma fraqueza consciente.

PADRE

(Para o Sacristo) Que est fazendo a?

SACRISTO

( guisa dedefesa) Estava conversando com aqueles homens.

PADRE

E eu l dentro sua espera para ajudar missa. (Repara em Bonito e Z-do-Burro) Quem so?

SACRISTO

No sei. Um deles quer falar com o senhor.

Z

(Adianta-se) Sou eu, Padre. (Inclina-se, respeitoso e beija-lhe a mo)

PADRE

Agora est na hora da missa. Mais tarde, se quiser...

Z

que eu vim de muito longe, Padre. Andei sete lguas...

PADRE

Sete lguas? Para falar comigo.

Z

No, pra trazer esta cruz.

PADRE

(Olha a cruz, detidamente) E como a trouxe... num caminho?

Z

No, Padre, nas costas.

SACRISTO

(Expandindo infantilmente a sua admirao) Menino!

PADRE

(Lana-lhe um olhar enrgico) Psiu! Cale a boca! (Seu interesse por Z-doBurro cresce) Sete lguas com essa cruz nas costas. Deixe ver seu ombro. Z-do-Burro despe um lado do palet, abre a camisa e mostra o ombro. Sacristo espicha-se todo para ver e no esconde a sua impresso

SACRISTO

Est em carne viva!

PADRE

(Parece satisfeito com o exame) Promessa?

Z

(Balana afirmativamente a cabea) Pra Santa Brbara. Estava esperando abrir a igreja...

SACRISTO

Deve ter recebido dela uma graa muito grande! Padre faz um gesto nervoso para que o Sacristo se cale.

Z

Graas a Santa Brbara, a morte no levou o meu melhor amigo.

PADRE

(Padre parece meditar profundamente sobre a questo) Mesmo assim, no lhe parece um tanto exagerada a promessa? E um tanto pretensiosa tambm?

Z

Nada disso, seu Padre. Promessa promessa. como um negcio. Sea gente oferece um preo, recebe a mercadoria, tem que pagar. Eu sei que tem muito caloteiro por a. Mas comigo, no. toma l, d c. Quando Nicolau adoeceu, o senhor no calcula como eu fiquei.

PADRE

Foi por causa desse... Nicolau, que voc fez a promessa?

Z

Foi. Nicolau foi ferido, seu Padre, por uma rvore que caiu, num dia de tempestade.

SACRISTO

Santa Brbara! A rvore caiu em cima dele?!

Z

S um galho, que bateu de raspo na cabea. Ele chegou em casa, escorrendo sangue de meter medo! Eu e minha mulher tratamos dele, mas o sangue no havia meio de estancar.

PADRE

Uma hemorragia.

Z

S estancou quando eu fui no curral, peguei um bocado de bosta de vaca e taquei em cima do ferimento.

PADRE

(Enojado) Mas meu filho, isso atraso! Uma porcaria!

Z

Foi o que o doutor disse quando chegou. Mandou que tirasse aquela porcaria de cima da ferida, que seno Nicolau ia morrer.

PADRE

Sem dvida.

Z

Eu tirei. Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma cachoeira. E que de que o doutor fazia o sangue parar? Ensopava algodo e mais algodo e nada. Era uma sangueira que no acaba mais. L pelas tantas, o homenzinho virou pra mim e gritou: corre, homem de Deus, vai buscar mais bosta de vaca, seno ele morre!

PADRE

E... o sangue estancou?

Z

Na hora. Pois um santo remdio. Seu vigrio sabia? No sendo de vaca, de cavalo castrado tambm serve. Mas h quem prefira teia de aranha.

PADRE

Adiante, adiante. No estou interessado nessa medicina.

Z

Bem, o sangue estancou. Mas Nicolau comeou a tremer de febre e no dia seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido: eu sa de casa e Nicolau ficou. No pde se levantar. Foi a primeira vez que isso aconteceu, em seis anos: eu sa, fui fazer compras na cidade, entrei noBar do Jacob pra tomar uma cachacinha, passei na farmcia de "seu" Zequinha pra saber das novidades - tudo isso sem Nicolau. Todo mundo reparou, porque quem quisesse saber onde eu estava, era s procurar Nicolau. Se eu ia na missa, ele ficava esperando na porta da igreja...

PADRE

Na porta? Por que ele no entrava? No catlico?

Z

Tendo uma alma to boa, Nicolau no pode deixar de ser catlico. Mas no por isso que ele no entra na igreja. porque o vigrio no deixa. (Com grande tristeza) Nicolau teve o azar de nascer burro... de quatro patas.

PADRE

Burro?! Ento esse... que voc chama de Nicolau, um burro?! Um animal?!

Z

Meu burro... sim senhor.

PADRE

E foi por ele, por um burro, que fez essa promessa?

Z

Foi... bem verdade que eu no sabia que era to difcil achar uma igreja de Santa Brbara, que ia precisar andar sete lguas pra encontrar uma, aqui na Bahia...

BONITO

(Que assistiu a toda a cena, um pouco afastado, solta uma gargalhada grosseira) Ele se estrepou.

Padre Olavo olha-o, surpreso, como se s agora tivesse notada a sua presena, Bonito pra de rir quase de sbito, desarmado pelo olhar enrgico do padre.

Z

Mas mesmo que soubesse, eu no deixava de fazer a promessa. Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito...

PADRE

Rezas?! Que rezas?!

Z

Seu vigrio me disculpe... mas eu tentei tudo. Preto Zeferino rezador afamado na minha zona: Sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de gado, tudo isso ele cura com duas rezas e trs rabiscos no cho. Todo o mundo diz... e eu mesmo, uma vez, estava com uma dor de cabea danada, que no havia meio de passar... Chamei preto Zeferino, ele disse que eu estava com o Sol dentro da cabea. Botou uma toalha na minha testa, derramou uma'garrafa dgua, rezou uma orao, o sol saiu e eu fiquei bom.

PADRE

Voc fez mal, meu filho. Essas rezas so oraes do demo.

Z

Do demo, no senhor.

PADRE

Do demo, sim. Voc no soube distinguir o bem do mal. Todo homem assim. Vive atrs do milagre em vez de viver atrs de Deus. E no sabe se caminha para o cu ou para o inferno.

Z

Para o inferno? Como pode ser, Padre, se a orao fala em Deus? (Recita) "Deus fez o Sol. Deus fez a luz, Deus fez toda a claridade do Universo grandioso. Com sua Graa eu te benzo, te curo. Vai-te Sol, da cabea desta criatura para as ondas do Mar Sagrado, com os santos poderes do Padre do Filho e do Esprito Santo". Depois rezou um Padre Nosso e a dor de cabea sumiu no mesmo instante.

SACRISTO

Incrvel!

PADRE ,

Meu filho, esse homem era um feiticeiro.

Z

Como feiticeiro, se a reza pra curar?

PADRE

No pra curar, para tentar. E voc caiu em tentao.

Z

Bem, eu s sei que fiquei bom. (Noutro tom) Mas com o Nicolau no houve reza que fizesse ele levantar. Preto Zeferino botou o p na cabea do coitado, disse uma poro de oraes e nada. Eu j estava comeando a perder a esperana. Nicolau de orelhas murchas, magro de se contar as costelas. No comia, no bebia, nem mexia mais com o rabo para espantar as moscas. Eu vi que nunca mais ia ouvir os passos dele me seguindo por toda a parte, como um co. At me puseram um apelido por causa disso: Z-do-Burro. Eu no me importo. No acho que seja ofensa. Nicolau no um burro como os outros. um burro com alma de gente. E faz isso por amizade, por dedicao. Eu nunca monto nele, prefiro andar a p ou a cavalo. Mas de um modo ou de outro, ele vem atrs. Se eu entrar numa casa e me demorar duas horas, duas horas ele espera por mim, plantado na porta. Um burro desses, seu padre, no vale uma promessa?

PADRE

(Secamente, contendo ainda a sua indignao) Adiante.

Z

Foi ento que comadre Mida me lembrou: por que eu no ia no candombl de Maria de Iansan?

PADRE

Candombl?!

Z

Sim, um candombl que tem duas lguas adiante da minha roa. (Com a conscincia de quem cometeu uma falta, mas no muito grave) Eu sei que seu vigrio vai ralhar comigo. Eu tambm nunca fui muito de freqentar terreiro de candombl. Mas o pobre Nicolau estava morrendo. No custava tentar. Se no fizesse bem, mal no fazia. E eu fui. Contei praMe-de-Santo o meu caso. Ela disse que era mesmo com Iansan, dona dos raios e das trovoadas. Iansan tinha ferido Nicolau... pra ela eu devia fazer uma obrigao, quer dizer: uma promessa. Mas tinha que ser uma promessa bem grande, porque Iansan, que tinha ferido Nicolau com um raio, no ia voltar atrs por qualquer bobagem. E eu me lembrei ento que Iansan Santa Brbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roa at a Igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz to pesada como a de Cristo.

PADRE

(Como se anotasse as palavras) To pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a...

Z

A Santa Brbara.

PADRE

A Iansan!

Z

a mesma coisa...

PADRE

(Grita) No a mesma coisa! (Controla-se) Mas continue.

Z

Prometi tambm dividir minhas terras com os lavradores pobres, mais pobres que eu.

PADRE

Dividir? Igualmente?

Z

Sim, padre, igualmente.

SACRISTO

E Nicolau... quero dizer, o burro, ficou bom?

Z

Sarou em dois tempos. Milagre. Milagre mesmo. No outro dia j estava de orelha em p, relinchando. E uma semana depois todo o mundo me apontava na rua: - "L vai Z-do-Burro com o burro de novo atrs!" (Ri) E eu nem dava confiana. E Nicolau muito menos. S eu e ele sabamos do milagre. (Como que retificando) Eu, ele e Santa Brbara.

PADRE

(Procurando inicialmente controlar-se) Em primeiro lugar, mesmo admitindo a interveno de Santa Brbara, no se trataria de um milagre, mas apenas de uma graa. O burro podia ter-se curado sem interveno divina.

Z

Como, Padre, se ele sarou de um dia pr outro...

PADRE

(Como se no o ouvisse) E alm disso, Santa Brbara, se tivesse de lhe conceder uma graa, no iria faz-lo num terreiro de candombl!

Z

que na capela do meu povoado no tem uma imagem de Santa Brbara. Mas no candombl tem uma imagem de Iansan, que Santa Brbara...

PADRE

(Explodindo) No Santa Brbara! Santa Brbara uma santa catlica! O senhor foi a um ritual fetichista. Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifcio!

Z

No, Padre, foi a Santa Brbara! Foi at a igreja de Santa Brbara que prometi vir com a minha cruz! E diante do altar de Santa Brbara que vou cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que ela fez por mim!

PADRE

(D alguns passos de um lado para outro, de mo no queixo e por fim detm-se diante de Z-do-Burro, em atitude inquisitorial) Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir a sua promessa?

Z

(No entendeu a pergunta) Que pretendo? Voltar pra minha roa, em paz com a minha conscincia e quite com a santa.

PADRE

S isso?

Z

S...

PADRE

Tem certeza? No vai pretender ser olhado como um novo Cristo?

Z

Eu?!

PADRE

Sim, voc que acaba de repetir a Via Crucis, sofrendo o martrio de Jesus. Voc que, presunosamente, pretende imitar o Filho de Deus...

Z

(Humildemente) Padre... eu no quis imitar Jesus...

PADRE

(Corta terrvel) Mentira! Eu gravei suas palavras! Voc mesmo disse que prometeu carregar uma cruz to pesada quanto a de Cristo.

Z

Sim, mas isso...

PADRE

Isso prova que voc est sendo submetido a uma tentao ainda maior.

Z

Qual, Padre?

PADRE

A de igualar-se ao Filho de Deus.

Z

No, Padre.

PADRE

Por que ento repete a Divina Paixo? Para salvar a humanidade? No, para salvar um burro!

Z

Padre, Nicolau...

PADRE

um burro com nome cristo! Um quadrpede, um irracional! A Beata sai da igreja e fica assistindo cena, do alto da escada.

Z

Mas Padre, no foi Deus quem fez tambm os burros?

PADRE

Mas no Sua semelhana. E no foi para salv-los que mandou seu Filho. Foi por ns, por voc, por mim, pela Humanidade!

Z

(Angustiadamente tenta explicar-se) Padre, preciso explicar que Nicolau no um burro comum... o senhor no conhece Nicolau, por isso... um burro com alma de gente...

PADRE

Pois nem que tenha alma de anjo, nesta igreja voc no entrar com essa cruz! (D as costas e dirige-se igreja. O sacristo trata logo de seguilo).

Z

(Em desespero) Mas Padre... eu prometi levar a cruz at o altar-mor! Preciso cumprir a minha promessa!

PADRE

Fizesse-a ento numa igreja. Ou em qualquer parte, menos num antro de feitiaria.

Z

Eu j expliquei...

PADRE

No se pode servir a dois senhores, a Deus e ao diabo!

Z

Padre...

PADRE

Um ritual pago, que comeou num terreiro de candombl, no pode terminar na nave de uma igreja!

Z

Mas Padre, a igreja...

PADRE

A igreja a casa de Deus. Candombl o culto do diabo!

Z

Padre, eu no andei sete lguas para voltar daqui. O senhor no pode impedir a minha entrada. A igreja no sua, de Deus!

PADRE

Vai desrespeitar a minha autoridade?

Z

Padre, entre o senhor e Santa Brbara, eu fico com Santa Brbara.

PADRE

(Para o Sacristo) Feche a porta. Quem quiser assistir missa que entre pela porta da sacristia. L no d para passar essa cruz. (Entra na igreja)

A Beata entra tambm apressadamente atrs do padre. O Sacristo, prontamente, comea a fechar a porta da igreja, enquanto Z-do-Burro, no meio da praa, nervos tensos, olhos dilatados, numa atitude de incompreenso e revolta, parece disposto a no arredar p dali. Bonito, um pouco afastado, observa, tendo nos lbios um sorriso irnico. A porta da igreja se fecha de todo, enquanto um foguetrio tremendo sada Iansan.

CAI O PANO LENTAMENTE.

Segundo Ato

Primeiro Quadro

Aproximadamente, duas horas depois. Abriu-se a vendola e o Galego aparece trepado num caixote, amarrando um cordo com bandeirolas vermelhas e brancas que vai da porta da venda ao sobrado do lado oposto. Z e sua cruz continuam no meio da praa. Ouve-se um prego: "Beiju... olha o beiju!" Logo aps, surge no alto da ladeira uma preta em trajes tpicos, com um tabuleiro na cabea. Ela desce a ladeira e ao passar pelo Galego sada.

MINHA TIA

Iansan lhe d um bom-dia.

GALEGO

(Espanhol) Gracias, Minha Tia.

Minha Tia vai at igreja e a, junto dos degraus, pra.

A critrio da direo e em momentos em que no prejudiquem a ao, transeuntes cruzaro a praa, durante todo o ato.

MINHA TIA

(Para o Galego) Quer vir aqui dar uma mozinha pra sua tia, meu branco?

Galego apressa-se a ir ajud-la. Retira primeiro o cavalete que est sobre o tabuleiro, abre-o, depois ajuda-a a tirar o tabuleiro da cabea e coloc-lo em cima do cavalete.

MINHA TIA

Santa Brbara lhe pague. (Nota Z-do-Burro) Oxente! Que aquilo?

GALEGO

No sei. J estava ac quando abri a venda. Parece maluco. (Volta a pregar as bandeirolas, enquanto Minha Tia pe-se a arrumar o fogareiro, procura acend-lo).

Desce a ladeira, passo mole, preguioso, Ded Cospe-Rima. Mulato, cabeleira pixaim, sob o surrado chapu de coco - um adorno necessrio sua profisso de poeta-comerciante. Traz, embaixo do brao, uma enormepilha de folhetos: abecs, romances populares em versos. E dois cartazes, um no peito, outro nas costas. Num se l: "ABC da Mulata Esmeralda - uma obra-prima" e no outro "Saiu agora, t fresco ainda! O que o cego Jeremias viu na Lua".

DED

(declama)

Bom dia, Galego amigo! dia assim eu nunca vi; para saudar Iansan, no repare eu lhe pedi: me empreste por obsquio dois dedos de parati.

GALEGO

, com esta histria de hacer versos, usted sempre me leva na conversa, (entra na venda e d a volta por trs do balco) boa mesmo essa do cego Jeremias? (Serve o parati).

DED

(Bombstico, teatral) Uma epopeia. Uma nova Ilada, onde Tria a Lua e o cavalo de Tria o cavalo de So Jorge! (Tira um exemplar e coloca sobre o balco) Em paga do parati.

GALEGO

Si, pro... vo prefiro Ia otra, Ia da mulata Esmeralda.

DED

Uma prova de bom gosto, Galego! (Troca os folhetos) tambm uma obra-prima. Lembra Castro Alves, modstia parte. (Bebe o parati de um trago. Refere-se s bandeirinhas) Bandeirinhas vermelhas e brancas, as cores de Iansan. Depois diz que no cr em candombl.

GALEGO

Yo no creo, pro hay quem crea. E yo soy um comerciante...

DED

Somos dois! (Estende nouamente o clice) Mais uma dose. Esta eu pago amanh. (Galego faz cara feia, mas enche de novo o clice).

A Beata entra da direita e detm-se junto a Minha Tia, ao ver Z-do-Burro. Mostra-se surpresa e indignada.

BEATA

o cmulo! Ainda est a!

MINHA TIA

No vai abrir a igreja hoje, laia? Dia de Santa Brbara...

BEATA

(Lana um olhar acusador a Z-do-Burro). No enquanto esse indivduo no for embora.

MINHA TIA

Que foi que ele fez?

BEATA

Quer entrar com essa cruz na igreja.

MINHA TIA

S isso?

BEATA

E voc acha pouco? Acha que Padre Olavo ia permitir?

MINHA TIA

Oxente! Por que no? Foi promessa que ele fez?

BEATA

Foi. Mas promessa de candombl. Pra uma tal de Iansan... que Deus me perdoe. (Benze-se). Dirige-se para a esquerda e ao passar por Z-doBurro insulta-o) Herege! (Sobe a ladeira, seguida do olhar de comovedora incompreenso de Z-do-Burro).

DED

(Quuiu a conversa. Para o Galego) Vou ver se Minha Tia me d um abar. (Atravessa a praa. No sem mostrar-se intrigado e curioso ao passar por Z-do-Burro) Bom dia, Minha Tia!

MINHA TIA

Bom dia, seu Ded. (Oferece) Acaraj, abar, beiju... Vem benzer!

DED

(Aponta) Um abar. Pago daqui a pouco, quando entrar o primeiro dinheiro.

MINHA TIA

Eu j sabia... (Entrega o abar embrulhado numa folha de bananeira).

DED

(Referindo-se a Z-do-Burro) Que histria essa?

MINHA TIA

O Senhor ouviu?

DED

Ouvi.

MINHA TIA

(Com respeito) Obrigao pra Iansan... (Toca com as pontas dos dedos o cho e a testa).

DED

Por isso o Padre no deixou ele entrar?

MINHA TIA

... coitado.

DED

Chegou a fechar a porta.

MINHA TIA

O senhor entende?

DED

Entendo no.

MINHA TIA

O Padre um homem to bom.

DED

A senhora acha?

MINHA TIA

Ento. Ele to amigo dos pobres, faz tanta caridade. Sei no.

O Guarda entra pela direita. Vai direto a Z-do-Burro. um homem que procura safar-se dos problemas que se lhe apresentam. Sua noo do dever coincide exatamente com o seu temor responsabilidade. Seu maior desejo que nada acontea, a fim de que a nada ele tenha que impor a sua autoridade. No fundo, essa autoridade o constrange terrivelmente e mais ainda o dever de exerc-la.

GUARDA

Ol, amigo.

Z

Ol.

GUARDA

(Refere-se cruz) para a procisso de Santa Brbara?

Z

No.

GUARDA

Porque a procisso no sai daqui, sai do Mercado aqui perto e vai at igreja da Sade.

Z

No tenho nada com essa procisso.

GUARDA

E o senhor est aqui fazendo o qu? Esperando a festa? Ainda muito cedo. So oito e meia da manh. S na parte da tarde que isso pega fogo.

Z

Estou aqui desde quatro e meia da manh.

GUARDA

Quatro e meia?! (Coa a cabea, preocupado) O senhor deve ser um devoto e tanto! Mas acontece que escolheu um mau lugar...

Z

A culpa no minha.

GUARDA

Sim, eu sei, no foi o senhor quem inventou a festa de Santa Brbara. Mas eu tambm no tenho culpa de ser guarda. Minha obrigao facilitar o trnsito, tanto quanto possvel.

Z

Sinto muito, mas no posso sair daqui.

GUARDA

(Sua pacincia comea a esgotar-se,) Ai, ai, ai, ai, ai... eu estou querendo me entender com o senhor...

Z

(Irritando-se tambm um pouco) Eu tambm estou querendo me entender com o senhor e com todo o mundo. Mas acho que ningum me entende.

Ded Cospe-Rima, que assistiu a toda a cena, no resiste curiosidade e vem presenci-la mais de perto. Minha Tia tambm acompanha tudo com interesse.

Z

Aquela mulher me chamou de herege, o Padre fechou a porta da igreja como se eu fosse Satans em pessoa. Eu, Z-do-Burro, devoto de Santa Brbara.

DED

Mas afinal, o que que o senhor quer?

Z

Que me deixem colocar esta cruz dentro da igreja, nada mais. Depois, prometo ir embora. E j estou vexado mesmo por isto!

DED

Foi promessa. Promessa que ele fez.

GUARDA

(Raciocina, - operao que lhe parece custar tremendo esforo fsico) Promessa... colocar a cruz dentro da igreja... No vejo dificuldade nenhuma nisso. Fala-se com o padre e...

Z

Se o senhor conseguir que ele abra a porta e me deixe entrar, est tudo resolvido.

GUARDA

(Pensa mais um pouco, v que no h outra maneira de resolver o problema, decide-se) Pois bem, eu vou falar com ele. (Dirige-se para a porta da igreja. Ante os olhares de grande expectativa do Galego, de Ded, de Minha Tia).

DED

No vou l ajudar tambm porque eu e esse padre estamos de relaes cortadas, (Sai)

GUARDA

(Bate na porta vrias vezes, sem resultado, encosta o rosto na porta e chama) Padre? Abra um instante, por favor!

Segundos aps, abre-se uma fresta e surge por ela a cabea do Sacristo, receoso.

GUARDA

Quero falar com o padre.

SACRISTO

(Certifica-se de que no h perigo, abre um pouco mais a porta). Entre!

Guarda tira o quepe e entra. Sacristo fecha a porta rapidamente. Rosa desce a ladeira. Vem um pouco apressada, como se temesse no mais encontr-lo ali. Mas quando v Z-do-Burro, diminui o passo, tranqiliza-se em parte. No perde, entretanto, um certo ar culposo procuradisfarar.

ROSA

Voc ainda est a! (Nota a igreja fechada) A igreja no abriu?

Z

Abriu, sim. Mas o Padre no quer me deixar entrar com a cruz

ROSA

Por qu?

Z

(Balana a cabea, na maior infelicidade) No sei, Rosa no sei H duas horas que tento compreender... mas estou tonto tonto como se tivesse levado um coice no meio da testa. J no entendo nada parece que me viraram pelo avesso e estou vendo as coisas ao contrrio do que elas so. O cu no lugar do inferno... o demnio no logar dos santos

ROSA

(Refletindo na prpria experincia) isso mesmo. de repente, a gente percebe que outra pessoa. Que sempre foi outra pessoa horrvel

Z

Mas no possvel, Rosa. Eu sempre fui um homem de bem Sempretemi a Deus.

ROSA

(Concentrada em seu problema) Z, isso est parecendo castigo!

Z

Castigo? Castigo por qu? Por eu ter feito uma promessa to grande? Por ter sido no terreiro de Maria de Iansan? Mas se santa Brbara no estivesse de acordo com tudo isso, no tinha feito o milagre

ROSA

Z, esquea Santa Brbara. Pense um pouco em ns.

Z

Em ns?

ROSA

Em mim, Z.

Z

Em voc?

ROSA

Sim Z, em mim, sua mulher.

Z

Que que voc quer? No dormiu, no descansou?

ROSA

(Sem fit-lo) Z, vamos embora daqui.

Z

Agora?

ROSA

Sim, agora mesmo.

Z

No posso Voc sabe que eu no posso voltar antes de chegar ao fim da promessa. No ia ter sossego o resto da vida.

ROSA

Voc acredita demais nas coisas.

Z

porque voc no pensa no que pode acontecer.

ROSA

Mais do que j aconteceu?

Z

Que aconteceu? A caminhada, as noites sem dormir, e agora ser xingado como a figura do diabo? Tudo isso nada, comparado com o castigo que pode vir.

ROSA

Mas se o Padre no quer deixar voc entrar com a cruz, que que voc ainda vai ficar fazendo aqui?

Z

O Guarda foi falar com ele. Estou esperando. (Como que desculpando-se por no pensar na situao dela) Voc, se quiser, pode ir comer qualquer coisa.

ROSA

(Ante a impossibilidade de comunicar a ele o seu problema) J tomei caf no hotel.

Z

No era bom o hotel que aquele camarada arranjou?

ROSA

Muito bom. Tinha at pia no quarto e colcho de mola.

Z

Fiquei um pouco preocupado.

ROSA

(Ferida pela falta de cimes dele) Comigo?

Z

Voc num hotel, sozinha. Cidade grande, a gente nunca sabe. Se bem que o moo garantiu que era hotel de famlia.

ROSA

No tinha ento que ter cuidado. O moo era de toda confiana. To amvel, to prestativo...

REPRTER

(Entra acompanhado do Fotgrafo) L est ele. (Vai a Z, enquanto o Fotgrafo circula procura de ngulos. O Reprter vivo e perspicaz. Dirige um cumprimento entusiasta a Z-do-Burro) Bom dia, amigo! (Aperta efusivamente a mo de Z-do-Burro) Parabns! O senhor um heri.

Z

(com estranheza) Heri?

REPRTER

(Com entusiasmo) Sim, sete lguas carregando esta cruz. (Calcula o peso) Pesada, hem? Sete lguas... quarenta e dois quilmetros. A maior marcha que eu fiz foi de vinte e quatro quilmetros, no Servio Militar. E o fuzil no pesava tanto assim. (Ri, mas seu riso murcha como um balo, ante o ar de desconfiana de Rosa e Z-do-Burro) Oh, desculpe... eu sei que o senhor fez uma promessa. A comparao no foi muito feliz... (Para o Fotgrafo) Carij, pode bater uma chapa. (Posa de frente para Z-doBurro, de caderno e lpis em punho) Finja que est falando comigo.

Z

(Comea a impacientar-se) Fingir que estou falando... pra qu?

REPRTER

E dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber. O senhor vai ficarfamoso.

Z

(Contrariado] Mas eu no quero ficar famoso, eu quero...

ROSA

(Interrompe, em tom de repreenso) Que isso, Z. Seja mais delicadocom o moo. Ele da gazeta...

REPRTER

Mulher dele?

ROSA

Sou. Tambm andei sete lguas - meu p tem cada calo dgua destetamanho.

REPRTER

Maravilhoso. E em quanto tempo cobriram o percurso?

ROSA

(No entendeu) Como?

REPRTER

Quero dizer: quando saram de l, de sua cidade?

ROSA

Da roa. Samos ontem de manhzinha. Cinco horas da manh.

REPRTER

A que horas chegaram aqui?

ROSA

Antes das cinco.

REPRTER

Fizeram o percurso ento em 24 horas. Com uma cruz que deve pesar?.,. (Olha interrogativamente para Z-do-Burro)

Z

(Contrariado) No sei, no pesei.

REPRTER

Por menos que pese, um "record"! Sob este aspecto, podemos considerar um grande feito esportivo. Uma prova de resistncia fsica... (para Rosa) e de dedicao...

Rosa sorri, envaidecida, sentindo-se herona tambm.

REPRTER

Mas como nasceu a idia dessa... peregrinao? (As perguntas so feitas a Z-do-Burro, mas este recusa-se a respond-las).

ROSA

No nasceu idia nenhuma. O burro adoeceu, ia morrer - ele fez promessa pra Santa Brbara.

REPRTER

O burro? Que burro?

ROSA

O Nicolau.

Z

(Irritado) Por qu? O senhor tambm vai achar que o meu burro no vale uma promessa?

REPRTER

No, de modo algum... eu... eu apenas no sabia... ento, tudo isso... quarenta e dois quilmetros... a cruz... tudo por causa de um burro... (Repentinamente, antevendo o interesse que despertar a reportagem) Fabuloso!

ROSA

E no foi s isso. Ele prometeu tambm repartir o stio com aquela cambada de preguiosos.

Z

Que preguiosos. Gente que quer trabalhar e no tem terra.

REPRTER

Repartir o stio... diga-me, o senhor a favor da reforma agrria?

Z

(No entende) Reforma agrria? Que isso?

REPRTER

o que o senhor acaba de fazer em seu stio. Redistribuio das terras entre aqueles que no as possuem.

Z

E no estou arrependido, moo. Fiz a felicidade de um bocado de gente e o que restou pra mim d e sobra.

REPRTER

(Toma notas) a favor da reforma agrria.

Z

bem verdade que se o meu burro no tivesse ficado doente, eu notinha feito isso...

REPRTER

Mas, e se todos os proprietrios de terra fizessem o mesmo. Se o governo resolvesse desapropriar as terras e dividi-las entre os camponeses?

Z

a muito bem feito. Cada um deve trabalhar o que seu.

REPRTER

(Ofenciva) contra a explorao do homem pelo homem. O senhor pertence a algum partido poltico?

Z

(Com alguma vaidade, dissimulada num sorriso modesto) J quiseram me fazer vereador... qual...

ROSA

O que atrapalhou foi o burro.

REPRTER

O burro? Por qu?

ROSA

Aonde ele vai, o burro vai atrs. Se ele fosse eleito, o burro tambm tinha que ser...

REPRTER

, mas desta vez, "seu"...

Z

Z-do-Burro, seu criado.

REPRTER

..."seu" Z-do-Burro, o senhor ser eleito com burro e tudo. (Confidencial) Escute aqui, ser que essa histria da promessa no um golpe para impressionar o eleitorado?

Z

(Ofendido) Golpe?!

REPRTER

E de mestre! Avalio a agitao que o senhor fez com isso. Pelas estradas, no caminho at aqui, deve ter-se juntado uma verdadeira multido para v-lo passar.

Z

, tinha...

ROSA

Muito moleque tambm.

REPRTER

E imaginem a volta! A chegada sua cidade, em carro aberto, banda de msica, foguetes!

Z

O senhor est maluco? No vai haver nada disso.

REPRTER

Vai. Vai porque o meu jornal vai promover. S fao questo de uma coisa: que o senhor nos d a exclusividade. Que no conceda entrevistas a mais ningum. (Noutro tom) claro que o senhor ter uma compensao... (Faz com o indicador e o polegar um gesto caracterstico) e tambm a publicidade. Primeira pgina, com fotografias, o senhor e sua senhora...mandaremos fotografar tambm o burro - em poucas horas o senhor ser um heri nacional.

Z

(Profundamente contrariado) Moo, eu acho que o senhor no me entendeu .. ningum ainda me entendeu...

REPRTER

(Sem lhe dar ateno) O diabo foi o senhor ter escolhido um dia como o de hoje. Sbado. Amanh domingo, o jornal no sai. S segunda-feira. E o nosso Departamento de Promoes precisaria preparar a coisa... Podemos dar o furo na edio de hoje, mas o barulho mesmo s segunda-feira. Quando o senhor pretende voltar?

Z

Por mim, j estava de volta.

Abre-se parcialmente a porta da igreja. O Sacristo deixa o Guarda passar e torna a fech-la. O Guarda vem ao encontro de Z-do-Burro, que o aguarda sem muita esperana.

GUARDA

(Balana a cabea, desanimado) No consegui nada.

Z

O senhor falou com o padre?

GUARDA

Falei, argumentei... no adiantou. E ainda tive que ouvir um sermo deste tamanho. Ele acha que, em vez de ir pedir para deixar o senhor entrar na igreja, eu devia era lev-lo preso. Claro que eu no vou fazer isso, mas o senhor bem que podia ter arranjado uma promessinha menos complicada.

ROSA

Tambm acho.

GUARDA

Porque no adianta o senhor ficar aqui; o padre j disse que no abre a porta e no abre mesmo - eu conheo ele.

REPRTER

timo! Mas isso timo! Assim temos um pretexto para adiar a entrega da cruz para segunda-feira. Dar tempo ento de organizarmos tudo. As entrevistas, as apresentaes no rdio... e a sua volta triunfal com batedores e banda de msica!

Z

(Cada vez mais contrariado e mais infeliz) Moo, eu vim a p e vou voltar a p.

ROSA

(Ela vislumbrou nas palavras do Reprter uma possibilidade confusa de libertao, ouviu-as num entusiasmo crescente) Oxente! No seja estpido, homem! O moo est querendo ajudar a gente.

Z

Ento ele que me ajude a convencer o vigrio a abrir a porta...

REPRTER

Eu vou j entrevistar o vigrio. Mas fique certo de uma coisa: seja qual for o seu objetivo, uma publicidadezinha no far mal algum... (Pisca o olho para Z-do-Burro, que no percebe a insinuao) Carij, bata mais uma chapa. (Para Z-do-Burro) Quer fazer o favor de carregar a cruz? (Para Rosa) A senhora tambm. Z-do-Burro fica indeciso, sem palavras para traduzir a sua indignao.

ROSA

Vamos, Z! (Empurra-o para baixo da cruz e coloca-se a seu lado, numa atitude forada)

O Guarda tambm procura, discretamente, aparecer na fotografia. A cena caricatural, com Rosa escancarando-se num sorriso de dentifrcio, Z-doBurro vergado ao peso da cruz e de sua imensa infelicidade. E o Guarda, de peito estufado, disputando honrosamente a sua participao no acontecimento.

GALEGO

(Sai da venda, apressado e dirige-se ao Fotgrafo) Um momento! O senhor no podia fazer aparecer tambm o meu estabelecimento? Sabe... uma publicidadezinha...

Fotgrafo coloca-se de molde a aparecer, no fundo, a venda. Galego corre para junto do balco e posa.

REPRTER

timo. Pode bater, Carij.

O Fotgrafo bate a chapa.

REPRTER

Obrigado. Esta vai sair hoje na primeira pgina. (Para o Fotgrafo) Vamos agora entrevistar o vigrio.

GUARDA

melhor o senhor ir pela porta da sacristia.

Z

Eu levo o senhor at l.

REPRTER

(No gosta da idia) No, acho melhor o senhor esperar aqui...

Z

(Com deciso,) Mas eu quero ir com o senhor.

REPRTER

(Cede, de m vontade) Est bem. (Sai, com Z-do-Burro e o Fotgrafo)

Ouvem-se buzinas insistentes.

GUARDA

Garanto que agora o padre vai abrir a igreja. No h quem no tenha medo da imprensa. (Olha na direo da direita). Eu vou pra l, que a coisa est piorando. (Sai pela direita).

Bonito desce a ladeira e pra na vendola. Rosa o v e no esconde a sua emoo.

BONITO

(Para o Galego) Uma dupla.

GALEGO

Ol, Bonito. Usted por aqui "de madrugada"... (Serve a cachaa).

ROSA (Vai venda e encosta-se no balco, ao lado de Bonito) Um caf, moo.

BONITO

Ainda?...

ROSA

Ainda.

BONITO

No sei como voc agenta.

ROSA

Eu tambm no.

BONITO

Ele desconfiou de alguma coisa?

ROSA

Nada. Ele s pensa na cruz e na promessa,

BONITO

Sabe que eu fui pra casa dormir e no consegui?

ROSA

Por qu?

BONITO

Fiquei pensando em voc.

ROSA

Melhor que no pense.

BONITO

Est arrependida?

ROSA

Estou.

BONITO

Agora um pouco tarde.

ROSA

No no. Uma noite a gente pode apagar.

BONITO

A gente pode apagar uma poro de noites. Isso no deixa marca.

ROSA

Em mim deixou. Nem sei como ele no v. D at raiva. D vontade de contar tudo.

BONITO

No m idia. Ele no homem violento. Podia era largar voc aqui na cidade e voltar sozinho pra roa. Isso resolvia tudo.

ROSA

Resolvia o qu?

BONITO

Sua vida. Voc tem futuro.

ROSA

Adianta no. Minha sina essa mesma. s vezes eu tenho vontade, sim, de arrumar a trouxa e ganhar a estrada. Mas no tenho coragem. E se tivesse, no ia saber pra onde ir...

BONITO

Quando eu era menino, fui guia de cego...

ROSA

No estou cega. E sabia muito bem o que estava fazendo. Como sei tambm que sou capaz de fazer de novo, se ele no me levar daqui. Mesmo sem querer.

BONITO

Se voc no se livrar dele, vai acabar idiota como ele.

ROSA

(Procurando uma justificativa para sua falta de coragem) Ele precisa demim.

BONITO

Ele tem o burro.

ROSA

Estpido!

BONITO

No quis comparar...

ROSA

Ele muito homem, fique sabendo!

BONITO

Se assim, por que voc tem tanta sede?...

ROSA

(Ela se sente cada vez mais empurrada para ele, como para um abismo, e no h nela, precisamente, um desejo de resistir ao salto definitivo. H apenas a imensa fraqueza da pessoa humana no momento das grandes decises) Que tinha voc de aparecer aqui de novo?

BONITO

Foi voc quem veio falar comigo.

ROSA

Voc me obriga a fazer o que eu no quero.

BONITO

(Ri, cnscio de seu poder de seduo) Que culpa tenho eu de ter nascido, com tantas qualidades?

Ela vai voltar ao centro da praa. Ele a segura pelo brao.

BONITO

(Baixo) Espere...

ROSA

(Idem) Est louco?

BONITO

Pelo jeito, ele ainda vai ficar muito tempo a. Entendeu?

ROSA

(Solta-se dele com um safano) No entendo nada. Voc doido e eu estou ficando doida tambm.

BONITO

Ele no pode sair de junto da cruz. Mas voc pode... pode ir descansar no hotel... ou mesmo ir rezar em outra igreja, pedir a outro santo pra ajudar a convencer o padre a abrir a porta... Um reforo sempre bom...

Entra Z-do-Burro. Rosa e Bonito disfaram.

MINHA TIA

(Detendo-o) E ento?...

Z

Eles no quiseram que eu entrasse. Acham melhor falar com o Padre em particular...

MINHA TIA

(Assume uma atitude de extrema cumplicidade) Meu filho, eu sou "ekdi" no candombl da Menininha. Mais logo o terreiro est em festa. Voc fez obrigao pra Iansan, Iansan est l pra receber!

Z

(Ele no entende) Como?

MINHA TIA

Eu levo voc l! Voc leva a cruz e a santa recebe! Voc fica em paz com ela!

Z

Iansan...

MINHA TIA

Foi ela quem lhe atendeu!

Z

Mas a igreja...

MINHA TIA

Mande o padre pr inferno! Leve a sua cruz no terreiro! Eu vou comvoc!

Z

(Hesita um pouco e por fim reage com veemncia) No, no foi num terreiro que eu disse que ia levar a cruz, foi numa igreja. Numa igreja de Santa Brbara.

MINHA TIA

Santa Brbara Iansan. E Iansan est l! Vai baixar nos seus cavalos!Vamos!

- Z- .

No. No a mesma coisa. No a mesma coisa.

Abre-se a porta da igreja e surgem Reprter, Fotgrafo e Sacristo.

REPRTER

(Para o Sacristo) O senhor acha que o padre no deixa mesmo ele entrar?

SACRISTO

O senhor no ouviu ele dizer? Satans! Satans sob um dos seus mltiplos disfarces!

REPRTER

Satans disfarado em Jesus Cristo... acho que um pouco forte. Em todo caso, isso l com ele. Eu confesso que no sou muito entendido na matria. O que interessa mant-lo aqui, pelo menos at segunda-feira. Se for preciso, mandarei vir comida e bebida. Contanto que ele no v embora antes de segunda-feira. Z-do-Burro d um passo em direo igreja. Sacristo assusta-se.

SACRISTO

Com licena, senhores, com licena. (Entra e fecha a porta, precipitadamente). Fotgrafo vai vendola.

REPRTER

(Vindo a Z-do-Burro) Nada feito, meu camarada. O padre uma rocha. (Procura estimul-lo a resistir] Mas ele vai acabar cedendo. Se voc no arredar p daqui, ele vai ter que abrir a igreja. Eu lhe garanto. Agora a causa no somente sua, tambm do nosso jornal. E sendo do nosso jornal, do povo!

Z-do-Burro olha-o como se procurasse inutilmente entender um ser vindo de outro planeta.

REPRTER

Eu o aconselho a resistir. Afinal de contas, um direito. Direito que o senhor adquiriu em 42 quilmetros de "via crucis". Eu confio no senhor. (Para Rosa) Leia o meu jornal hoje tarde. Vai ser um estouro. (Sai seguido do Fotgrafo)

BONITO

Jornalistas, ?

ROSA

. (Com vaidade( Tiraram o meu retrato. Ser que vo publicar mesmo?

BONITO

Se estivesse nua, eu garantia. Assim... no sei.

Neste momento, entra Marli pela direita. Ao ver Bonito junto a Rosa, avana para ele em atitude agressiva.

MARLI

Eu sabia!... Tinha que estar atrs de algum rabo-de-saia!

BONITO

Que que voc vem fazer aqui?

MARLI

Venho saber por que o senhor no apareceu em casa esta noite.

BONITO

Que casa?

MARLI

A minha casa.

BONITO

Estava indisposto. Fui para o meu hotel.

MARLI

(Mede Rosa de alto a baixo) Sim, eu estou vendo a sua "indisposio".

BONITO

(Em voz contida, mas enrgico) No faa escndalo!

MARLI

Por qu? Est com medo do marido dela?

BONITO

No estou com medo de ningum, mas no vou deixar voc fazer a senhora passar vexame.

MARLI

(Irnica) A senhora... se ela senhora, eu sou donzela...

BONITO

(Autoritrio) Marli, me obedea!

MARLI

Est querendo bancar o macho na frente dela, ?

BONITO

Eu no tenho nada com ela!

MARLI

Voc passou a noite com ela!

O rosto de Z-do-Burro se cobre de sombras e ele busca nos olhos de Rosa uma explicao. Ela no o fita.

BONITO

(Segura Marli por um brao, violentamente) Vamos para casa!

MARLI

No! Primeiro quero tirar isso a limpo. Quero que essa vaca saiba que voc meu. (Com orgulho) Meu! (Grita para Rosa) Esta roupa foi comprada com o meu dinheiro! Esta e todas as que ele tem!

BONITO

(Perde a pacincia, ameaador) Se voc no for para casa imediatamente, nunca mais eu deixo voc me dar nada!

MARLI

(Deixando-se arrastar por ele na direo da direita) Ele meu, ouviu? Fique com seu beato e deixe ele em paz! meu homem! meu homem! H uma pausa terrivelmente longa, na qual Z-do-Burro apenas fita Rosa, silenciosamente, sob o impacto da cena. Em seu olhar, l-se a dvida, a incredulidade e sobretudo o pavor diante de um mundo que comea a desmoronar. As luzes se apagam em resistncia.

Segundo Quadro

Trs horas da tarde. Z-do-Burro e Rosa continuam no meio da praa. Minha Tia com seu tabuleiro, na porta da igreja, o Galego na venda, Ded Cospe-Rima entra da direita.

"ABC da Mulata Esmeralda", romance completo contando toda a vida de Esmeralda, desde o nascimento, no Beco das Inocncias, at a morte, por trinta facadas, na Rua da Perdio. (Oferece a Z-do-Burro) 10 cruzeiros...

Z-do-Burro recusa com um gesto.

DED

(L, declamando)Ai, meu Senhor do Bonfim, dai-me muita inspirao, dai-me rima e muita mtrica pra fazer a descrio das penas de Esmeralda na Rua da Perdio.(Para Z-do-Burro) Estava pensando... sabe que essa sua briga com o Padre dava um abec? Quer, eu escrevo.

Z

(Com deciso) No.

DED

Por que no quer? Abec em versos, ficava bonito...

Z

No.

DED

Versos que, modstia parte, so lidos pela Bahia inteira. (Com inteno) Inclusive pelo Padre Olavo... e no por me gabar, meu camarada, mas aqui como me v, poeta pela graa da Virgem e do Senhor do Bonfim,eu sou um homem temido! Quando eu anuncio que vou escrever um folheto contando as bandalheiras desse ou daquele deputado... ah, menino, no tarda o fulano me procurar pra adoar meus versos. (Faz com os dedos um sinal caracterstico de dinheiro). Se eu anunciar nesta tabuleta que vou escrever o "ABC de Z-do-Burro", tenho certeza de que o Padre abre logo a porta e vem ele mesmo carregar a cruz.

Z olha-o com desconfiana.

ROSA

Que preciso pra isso?

DED

Bem, o consentimento dele, em primeiro lugar. E em segundo, sabe... papel est pela hora da morte, a tipografia est cobrando os olhos da cara...

ROSA

Ah, preciso pagar...

DED

A uns cinco contos pra ajudar. (Vai a Z) Mas garanto o resultado.

Z

(Vigorosamente) No quero que faa nada.

DED

Olhe que o senhor se arrepende. Garanto que basta anunciar, o Padre se borra todo...

Z

(Corta, irritado) No quero, j disse!

DED

Est bem. Quem perde o senhor. O senhor e a Poesia nacional.

Mestre Coca desce a ladeira, gingando e pra na vendola. um mulato alto, musculoso e gil. Veste calas brancas "boca de sino" e camisa de meia.

COCA

Buenas.

GALEGO

Opa!

DED

Boa tarde, Mestre Coca.

COCA

Ded Cospe-Rima... precisa arranjar um servio de homem, meu camarada... (Para o Galego) Me d um porongo. (Galego serve a cachaa,) (Ouvem-se troves longnquos) Dia de Santa Brbara... tem que roncar trovoada.

DED

J largou a estiva, Mestre Coca?

COCA

J. Descarreguei um cargueiro holands at uma hora e ca no mundo. Hoje, dia de Iansan, no dia de carregar peso, dia de vadiar.

DED

Vamos ter capoeira hoje?

COCA

Mais logo. Mais logo vamos ter vadiao. Vou jogar com Manoelzinho Sua-Me. (Nota Z-do-Burro) Me disseram que tinha aqui um homem querendo entrar na igreja com uma cruz e o Padre no queria deixar...

GALEGO

esse a.

COCA

Mas lugar de cruz no dentro da igreja?

DED

, mais parece que a cruz pra Iansan, e o Padre no gostou da histria.

COCA

E fechou a porta?

DED

No de admirar. Outro dia ele no quis proibir que eu vendesse meus livros aqui na porta da igreja?

COCA

Por qu?

DED

Disse que o "ABC da Mulata Esmeralda" era indecente. Falou isso num sermo. E de l pra c essas beatas quando passam por mim viram a cara, como se eu fosse a pintura do Co.

GALEGO

No me gustan los padres. Pero esse est haciendo um buen servido. Por causa dele a freguesia aumentou e j fui at fotografado.

DED

Se ele quisesse, eu fazia o Padre abrir a porta em dois tempos.

GALEGO

Nada. Deixa ei hombre a. Quanto mais demorar, mejor...

DED

Vou dar um pulo at o Mercado de Santa Brbara.

COCA

Ah, l a festana j comeou de hoje. Capoeira, roda de samba... est bom que est danado.

DED

Tem turista?

COCA

Vi uns gringos.

DED

Vou at l. (Sobe a ladeira com os folhetos embaixo do brao).

ROSA

(Para o marido) Sabe que horas so? Trs horas da tarde. Voc no est com fome?

Z

No V ali na mulher no tabuleiro, compre qualquer coisa pra voc(Tira do bolso uma nota)

Rosa toma a nota e vai a Minha Tia

MINHA TIA

Que , laia?

ROSA

Qualquer coisa pra matar a fome

MINHA TIA

Precisa mesmo de hoje que vosmincs esto a.

ROSA

Desde manh cedo.

MINHA TIA

(Fitando Z do Burro com simpatia e incredulidade) E ele parece um homem to bom

SECRETA

(O "tira" clssico Chapu enterrado at os olhos, mos nos bolsos, inspira mais receio que respeito primeira vista, tanto pode ser o representante da lei, como o fugitivo da lei Entra pela direita e atravessa a cena, lentamente, em direo vendola Ao passar por Z do Burro, demora nele um olhar de desabusada cunosidade) Uma dupla (Olha em torno, procurando algum, consulta o relgio)

ROSA

(Durante a entrada do Secreta, esteve escolhendo alguns quitutes no tabuleiro da baiana Recebe os agora, embrulhados em folha de banana, das mos da preta. Paga)

MINHA TIA

Diga a ele que no desanime, Iansan tem fora'

Rosa

leva os quitutes para Z do Burro Este recusa com um gesto Entra da direita o Guarda, com um jornal na mo

GUARDA

Vejam a Primeira pgina com retrato e tudo' (Mostra o jornal a Rosa, que corre ansiosamente)

ROSA

Meu retrato?

GUARDA

Eu tambm sa

ROSA

(Examina o retrato) Hum o senhor saiu muito bem a cpia fiel'

GUARDA

(Sorri vaidoso) eu acho que sa bem vou levar pra minha mulher

ROSA

Quem saiu mal fui eu (Faz uma careta de desagrado) Horrvel

GUARDA

No ligue Fotografia de gazeta assim mesmo

Z

(Sua atitude para com Rosa agora de recalcada e surda revolta Embora ele no parea ter certeza ainda de sua infidelidade, instintivamente comea a perceber que ela se encontra do outro lado, do lado daqueles que, por este ou aquele motivo, no o compreendem, ou fingem no compreend-lo) Afinal, que que diz a?

GUARDA

(Como se s agora lhe ocorresse ler a reportagem) Ah, sim (l) " O novo Messias prega a revoluo"

Z

(Estranha) Revoluo? (Espicha o pescoo e l por cima do ombro doguarda)

GUARDA

E, revoluo Est aqui (Continua) "Sete lguas carregando uma cruz, pela reforma agrria e contra a explorao do homem pelo homem " (Entreolham-se sem entender)

Z

Eu bem achei que aquele camarada no era certo da bola

GUARDA

(Continuando a ler) "Para o vigrio da parquia de Santa Brbara, Satans disfarado Quem ser afinal Z do Burro? Um mstico ou um agitador? O povo o olha com admirao e respeito, pelos caminhos por onde passa com sua cruz, mas o vigrio expulsa o do templo No entanto Z do-Burro est disposto a lutar at o fim. Acho que o moo no entendeu bem o seu caso (Olha-o com certa desconfiana) Ou ento fui eu que no entendi (Da o jornal a Z do-Burro) Podem ler Mas no joguem fora (Iniciando a sada) Quero levar pra casa (Sai)

ROSA

Z, no estou gostando disso

Z

Nem eu

ROSA

No entendi bem o que botaram na gazeta, mas uma coisa me diz que isso no bom

Z

(No esconde o ressentimento que guarda dela) Bem Mana de Iansan disse A promessa tinha que ser bem grande Com certeza Santa Brbara achou que no era bastante o que eu prometi e est cobrando o restante (Fita Rosa) Ou est me castigando por eu ter prometido to pouco

ROSA

Ento eu tambm estou sendo castigada

Z

Ou pode ser que esteja me fazendo passar por tudo isso pra me experimentar Pra ver se eu desisto da promessa. Santa Brbara esta me tentando e ainda ha pouco quase que eu caio

ROSA

Quando?

Z

Quando aquela sujeita disse tudo aquilo. O sangue me subiu na cabea e se eu me deixo tentar tinha matado um homem ou uma mulher... Ia preso... e no podia cumprir a promessa. Pensei nisso, naquela hora e agentei tudo calado. Foi uma prova. Tudo isso uma provao.

ROSA

(Agarrando-se a uma justificativa para sua prpria falta) Deve ser, sim. a nica explicao pra tudo que aconteceu. Santa Brbara me usou pra pr voc prova.

Z

Mas Santa Brbara no teria feito isso se no conhecesse voc melhorque eu...

ROSA

(Veemente,) Eu senti, Z... senti que havia uma vontade mais forte do que a minha me empurrando pra l... E voc ajudando. Voc tambm culpado. Eu no queria ir e voc insistia. No pra me desculpar, mas se tudo obra de Santa Brbara, o que que eu podia fazer?

Z

Podia resistir tentao, como eu tenho resistido.

ROSA

Era diferente. No era a mim que ela estava pondo prova. Era a voc. E se ela santa, se ela pode fazer milagre, pode me obrigar a fazer o que eu no quero, como obrigou. Pode botar o diabo no meu corpo, como botou. Mas isso no vai acontecer mais. Acho at que isso nem aconteceu. Pois se foi uma provao divina...

Z

(No muito convencido.) Esse assunto ns vamos resolver depois, na volta. (L o jornal).

Entra Bonito pela direita e vai diretamente vendola. Aproxima-se do Secreta. Traz um jornal embaixo do brao.

BONITO

(Em voz baixa, disfaradamente) Voc veio depressa. (Para o Galego) Uma dose.

Galego serve.

SECRETA-

(Idem) Que que voc quer falar comigo? Se sobre a sua volta Polcia...

BONITO

(Corta, sorrindo) No, nada disso. Nem estou pensando mais em voltar. Estou muito bem de vida.

SECRETA

Mas tome cuidado. Esto com sua ficha em dia...

BONITO

(Ri) No acredito. Vocs vivem comendo mosca. Olha a... (Indica, como olhar, Z-do-Burro) No meu tempo, esse cabra j estava no xilindr (Noutro tom) E vocs me expulsaram...

SECRETA

Quem ele?

BONITO

(Mostrando o jornal) Tome, leia... Vocs nem lem gazeta e querem estar em dia. (O Secreta pe-se a ler o jornal atentamente, dando de vez em quando, uma mirada para Z-do-Burro, como a comprovar as afirmativas. Bonito atira uma nota sobre o balco).

SECRETA

Voc j conversou com ele?

BONITO

J. O homem perigoso. Banca o anjo de procisso, mas no toa que o padreco dali de frente fechou a igreja e jurou que ele no entra.

SECRETA

, mas a coisa esquisita.

BONITO

Eu, se fosse voc, "guardava" ele por uns dias...

SECRETA

Tambm no pode ser assim. Tenho que investigar, depois comunicar ao Comissrio.

BONITO

Qual, vocs no sabem trabalhar. D o flagra no homem!

SECRETA

Flagra de qu? Ele no est fazendo nada...

BONITO

Como no? Agitao social!

SECRETA

Venha comigo.

BONITO

(Iniciando a passagem) Ele vai lhe contar a histria de um burro, mas no v nessa conversa.

GALEGO

(Para Mestre Coca) Polcia... esto querendo prender ei hombre!

COCA

Est certo, no. Fazer promessa no