O OURO DOS CORCUNDAS · 2014-11-19 · ladainha, que para o Pasquino não havia dinheiro morto. ......

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O OURO DOS CORCUNDAS PAULO MOREIRAS

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O OURO DOS CORCUNDAS

PAULO MOREIRAS

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I

Desde o princípio do mundo que a inveja cega os homens e toma, nas paixões da alma, vaidoso domicílio. E tão cegos se acham esses invejosos, tão ofuscados no seu entendimento, que cuidam que os outros é que são cegos e incapazes de lobrigar o cortejo de enganos que usam semear com as suas atitudes mesquinhas e torpes. É um vício difícil de tragar, pois, se todos se dispõem a apontar a inveja ao próximo, a verdade é que se escusam a vê-la em si mesmos; homem algum será capaz da assunção desse horrível predicado perante outros e apenas no seu íntimo, no escuro dos seus sentimentos, reconhe-cerá a sua maior dor e a sua maior fraqueza.

Quando um homem não cede logo à inveja, ela acaba por ir ter com ele, esteja onde estiver, nem que seja no fim do mundo. E não há forma de lhe escapar, que a maldita se reveste de várias manei-ras e insidiosamente se manifesta, não deixando ninguém a salvo das suas ferinas manhas, gangrenando consciências e alarves imagi-nações.

Ao chegar, naquela noite de finais de Abril, a Chão de Couce, vindo pela velha estrada dos Cabaços, que ligava Tomar a Coimbra, Vicente Maria Sarmento não sabia que estava a caminho de um poço de invejas. Na sua cabeça e no seu coração estava apenas o regresso, esse malfadado regresso, numa resignação aziaga que todos carregam quando tornam a casa depois de a terem deixado. Essa resignação tinha o sabor amargo de uma derrota – e isso doía, feria e obnubi-lava o espírito. Entre o pó das estradas e das veredas, Vicente Maria

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sentia na boca o gosto acre de um vencido. E, apesar de estar às por-tas da sua pátria, dos torrões que o tinham visto nascer, ainda não tinha coragem para entrar em casa.

Levantou as golas do casaco e afundou o chapéu, não por causa do vento frio e seco que se fazia sentir, soprado dos lados da serra do Altar Trevim, mas para que não o reconhecessem, assim, à socapa e sem aviso. Se o topassem, pareceria apenas mais um dos muitos cavaleiros que usavam passar por ali a desoras.

Vicente Maria passou pelo pelourinho, pelo largo da igreja, e diri-giu-se para casa de sua mãe, no pequeno lugar da Bufarda. Ainda era cedo para aparecer em penates. Tinha, mesmo assim, chegado atrasado. O pai, António Maria Sarmento, havia morrido justamente há nove dias contados, de acordo com a notícia que lhe transmitira Joaquim Botelho – que fazia com regularidade trânsito para Lisboa a mercar linhos e lãs da terra e o encontrara por acaso.

Precisava de mais um tempo, um tempo onde o próprio tempo não fosse tão apertado, tão frio e tão cruel. Precisava de estar com alguém que o compreendesse, que apenas o deixasse ali ficar, em silêncio, partilhando esse silêncio que só os cúmplices conseguem criar. Os cúmplices e os amantes.

Depois de olhar uma vez mais para a casa paterna, onde uma pe -quena luz tremeluzia – Bebiana estava ainda acordada, junto à lareira a alinhavar umas malhas, chorosa e desgostosa da vida –, Vicente Maria tirou o chapéu e persignou-se em memória do pai. Virou o cavalo e tomou o caminho de Pousaflores, em direcção à Venda do Negro e à taberna do Pasquino. Era lá que esperava encontrar a puta Tomásia, sua amiga e amante.

Ao longo da serra o percurso era longo e íngreme, mas a noite, como estava de lua cheia, permitia uma franca visibilidade das vere-das e cumeadas que se estendiam à sua frente. Apesar da prolon-gada ausência, ainda conhecia os trilhos, que pouco ou nada haviam mudado nos últimos anos.

A Venda do Negro era uma pequena povoação com cerca de uma dúzia de fogos no meio de nada, entre duas serras, esquecida do mundo e longe dos olhares curiosos, e isso era um dos trunfos que tornavam tão popular a taberna do Pasquino, assim chamado por causa de uns desatinos na juventude que fizeram com que perdesse

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metade daquele órgão carnoso que lhe ocupava o interior da boca. O que não deixava de ser curioso, pois ali, na sua casa, juntavam-se por vezes alguns mestres da língua viperina ou daquela chamada de trapos.

Embora todos soubessem que o Pasquino havia sido um cos-cuvilheiro de primeira água, e por muito curioso que ainda conti-nuasse a ser, todos se sentiam seguros, pois uma vez perdida a língua não se perderia mais por ela; o que permitia que os seus clientes se sentissem mais reconfortados e seguros da sua vida, fosse ela qual fosse.

De seu nome Sebastião Manuel Seco, nascido e criado debaixo de uma parreira de enforcado lá para as bandas de Maçãs de Dona Maria, o Pasquino era de estatura baixa e largo como um balseiro, ventrudo, com um bigode farfalhudo de pontas que lhe escondia a carreira dos dentes e o seu sorriso de rouba-a-rir. Do que mais gos-tava, logo a seguir ao vinho, era de dinheiro, de tal forma que pode-mos assegurar estarmos perante um ricanho, tão aferrado à dinheirama como as beatas às hóstias, pese embora, a modo de osga e com grande esforço, lá abrisse os cordões à bolsa para soltar algum dinheiro a juro, mas sempre depois de muito choradinho, caramunhas e basta ladainha, que para o Pasquino não havia dinheiro morto. Era então, ufano, que cofiava as pontas do bigode com um brilhozinho nos olhos, antevendo os lucros de tão samaritanas empresas, lembrando-se com galhardia dos versos de Gil Vicente:

Fundemo-nos todos em haver dinheiro;Porque quer seja nosso, quer seja alheio,É Deus verdadeiro.E ter mão na burra1.

Andava sempre de avental, que em tempos teria sido de linho branco – devido ao uso e às pingas de vinho, o dito fora ganhando outros matizes e cambiantes cores –, onde guardava religiosamente os seus amealhados cruzados que, de quando em vez, gostava de contar, para lhes sentir o peso e se encher de júbilo, voltando-se de

1 Burra – cofre de segurança em que se guarda dinheiro.

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costas para o balcão, à guisa de mouro virado para Meca. Sobre o Pasquino costumavam dizer que ninguém teria escolhido aquela profissão de taberneiro se não fosse pelo dinheiro. Era bem verdade, tão certa como Cristo na cruz.

Na sua excelsa taberna podia encontrar-se do melhor vinho da região, especialmente da sua pátria, mais encorpado do que os vinhos das freguesias de Chão de Couce, Avelar ou Aguda. Nunca se lhe conheceu mulher alguma, apesar de viver com mais de uma dezena delas debaixo do mesmo tecto: eram as suas bonejas, pro-ficientes na arte da galanteria marota.

Mais do que uma taberna, a casa do Pasquino era um verdadeiro lupanar, dos mais afamados prostíbulos das redondezas, pois ali se podia ouvir também um pouco de música, uma vez que as mulhe-res não só se entregavam aos prazeres da carne como exibiam tam-bém dotes musicais ou de dança, entretendo largamente a clientela e permitindo que as moedas escorregassem com grande liberali-dade para o avental do cobiçoso taberneiro.

O Pasquino tinha perdido a língua mas não os colhões, pois era mau como uma cesta de cobras e, em menos de um credo, se algum inoportuno lhe aperreasse o espírito, despachava-lhe umas valentes lambadas nos focinhos, sem tugir nem mugir. Se o caso fosse mais complicado de resolver e as mãos não chegassem, buscava o pisto-lete, sempre armado, que tinha escondido sob o balcão. Só assim conseguiria aguentar tanto poltrão, bandurrilha e petimetre que lhe entravam pela porta, cheios de ganas e vontades, nem sempre as mais de acordo com os sacros mandamentos.

Com ele costumava cirandar uma velha fina e astuta, qual alco-viteira das guerras velhas, que se dizia à boca pequena ser sua mãe, mas tal foi matéria que nunca se conseguiu comprovar ou atestar. O certo é que ela tomava conta das cachopas lá de casa e orientava os serviços na cozinha, dando ração ao rebanho à sua guarda e aos tresmalhados que usavam passar por aquelas bandas em busca de um quente agasalho para o estômago. Para que as raparigas andas-sem sempre bem aperaltadas, a velha também lhes tratava das ves-tes, dos enfeites e dos arrebiques, e de algum inusitado percalço que o comércio carnal pudesse provocar, livrando-as ainda dos pio-lhos ladros, valendo-lhes igualmente na doença, como se de uma

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mãe se tratasse. Ti Quitéria, afectuosamente, costumavam chamar- -lhe as cachopas.

A tia Quitéria era da mesma cepa que o patrão: entrava muda e saía calada, apenas se alongando no seu latim quando alguma das moçoilas demandava conselhos ou uma voz amiga, geralmente nas alturas em que fraquejava a sua venal vocação. Não querendo per-der nenhuma franga da sua capoeira, Pasquino olhava para a velha Quitéria e fazia-lhe sinal para que ela fosse remendar a situação, tal como se fosse uma manta de retalhos que necessitasse de cos-tura. Para tudo havia solução, menos para a morte, que a todos leva para a outra banda.

Era, pois, para esta afamada casa que se dispunha seguir Vicente Maria naquela noite de lua cheia.

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II

Alguns pingarolas e peraltas ainda permaneciam na beberrónia, na taberna do Pasquino, numa dolência parda, embalada pelo vinho de enforcado, especialidade da casa, entre outras pitanças que naquele antro de comes e bebes se podiam demandar; uns entretidos em ani-mada perlenga, outros cascabulhando sortes ou azares em cima dos tampos de mármore das mesas por onde rolavam, barulhentos e pra-zenteiros, uns quantos dados de pintas no jogo do quinquenove.

Mais para o lado, à sinistra, ficava uma ampla sala de estar, pró-pria para os femeeiros corrilhos, onde as luzes eram rarefeitas, não permitindo lobrigar quem por ali abancava; aí estanciavam três ou quatro conanas, cheios de mesuras e salamaleques, conversando cada um com a sua meretriz de eleição, enquanto bebiam copos de vinho e de capilé, num lascivo jogo de toca-e-foge; elas cheias de risinhos fáceis e eles ofertando miminhos galanteadores.

Vicente Maria franqueou a porta da taberna e tirou o chapéu poei-rento, batendo com as botas cardadas no tapete de esparto para se limpar do pó da estrada que lhe cobria grande parte das vestes.

Todos pararam o que estavam a fazer para tirar a letra ao pilan-tra que entrava, que naqueles conturbados tempos os estranhos eram sempre mirados de esguelha, não fossem esconder negregadas intenções, já que andava à solta grossa caterva de parvajolas, matu-tos e bargantes de alto coturno, tanto da banda dos miguelistas como dos partidários dos pedreiros-livres ou ditos liberais.

Não o reconheceram como filho da terra; ninguém viu naquele homem de pele tisnada pelo sol, bigode fino e suíças bem aparadas,

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o filho de António Maria Sarmento, o caleiro de Bufarda, havia pou-cos dias falecido.

Dormitando sobre o balcão encontrava-se o muquirana do Pas-quino, calado como toucinho num saco, alheio ao barulho que a mara-lha fazia, sonhando com outras venturas e fortunas, em longínquas distâncias daquele cu-de-judas.

Como ovelha acabada de chegar ao redil, Vicente Maria apro-ximou-se sorrateiro e deu uma palmada sonora em cima do balcão de mármore, peganhento dos copázios de aguardente que ali se esmi-fravam a trouxe-mouxe, acordando o sovina.

– Arre crica, isso é que é dormir – galhofou Vicente Maria, mirando as assarapantadas meninas dos olhos do Pasquino. – Ou estavas a lançar contas à vida, velhaco? Saúde, ó homem do diabo…

O Pasquino esbugalhou-se e topou Vicente Maria como se o coração lhe caísse aos pés, surpreso por tamanha aparição, qual avantesma na curva de um caminho. Tentou falar, mas nada saía debaixo daquele bigode farfalhudo. Rapidamente deu a volta ao balcão e abraçou-se amistosamente a Vicente Maria, que lhe que-ria tanto como a um filho. Apalpou-lhe os braços, rijos e secos, para ver como estava espigadote e taludo; um homem feito e que belo homem, bem cevado de carnes e alturas. Era, por assim dizer, o regresso do filho pródigo, daquele que ele nunca tivera. Estava contente, tão contente como um gato perante uma pratada de bofes. Até a tonalidade da sua cara, geralmente fechada e de má catadura, se avermelhou, tamanha era a alegria que o consumia por dentro.

– Ainda se come aqui alguma coisa de jeito? Estou cheio de ganas de comer qualquer bocado.

Pasquino arreganhou os dentes, que os tinha amarelos e escuros como as cabras do monte; virou-se para as bandas da cozinha e bateu palmas, requisitando os serviços da velha Quitéria.

– Basta-me uma côdea e uma pingoleta, não é preciso muito tra-balho – disse Vicente Maria. – Quando muito, umas azeitonas, só para enganar a malvada.

Pouco depois, por detrás do balcão, apareceu a pequena, caturra e enrugada Quitéria no seu passo lento e cadenciado, de quem não tem vontade de apressar a vida; sempre muito parca nas suas emotivas

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manifestações, esboçou um sorriso ao ver quem era o inusitado cava-leiro que chegava e disse:

– Vens muito são e escorreito.Vicente Maria cumprimentou-a com dois calorosos beijos, pois

a velha Quitéria, além de alcoviteira, também era assumida por ele como uma espécie de madrinha, não tanto para folares e confeitos mas para outros negócios de mantas e lençóis com Tomásia.

– Que queres comer, meu filho? – perguntou Quitéria, enquanto Vicente Maria se abancava numa mesa achegada ao balcão, do lado da cozinha e um pouco afastado da chusma de biltres e bisbórrias.

– Sirva-me aí umas rodelas de chouriça e um naco de broa, se ainda restar alguma coisa, e tu, meu grande mariola, arranja-me um pichel de tinto do enforcado, mas nada dessa zurrapa baptizada – chasqueou Vicente Maria.

Pasquino franziu o sobrolho esquerdo, movendo a espessa sobran-celha, como se lhe descobrissem onde guardava os melões, e pis-cou um olho cúmplice para Vicente, como que a querer dizer-lhe: «Não te preocupes, amigo, para ti só daquele que também eu bebo.»

Quitéria chegou da cozinha e depositou em cima do balcão, pelo lado de dentro, um prato com rodelas de chouriço, vários quadra-dos de queijo de cabra e presunto e umas grossas fatias de broa de milho.

– Sempre me saíste cá um pantomineiro – disse a velha Quité-ria, com um terno sorriso, regressando de imediato, sem mais ceri-mónias, para o novelo das suas ocupações.

Ao mesmo tempo, Pasquino tinha acabado de encher um quar-tilho de tinto e levou tudo para a mesa de Vicente, que arregalou os narizes perante tão olorosas e sápidas iguarias da sua terra natal, que havia muito lhe não passavam pelos gorgomilos.

De imediato ele encheu um copo de vinho e bebeu-o, sôfrego, cheio de saudades daquele néctar.

– Esta pinga está de truz – disse, com um estalido de língua, re -galado.

Pasquino sorriu, satisfeito, esfregando as mãos no avental. Depois regressou ao seu posto e deixou-se ficar na modorra do costume, como um inerte, sentado no vetusto banco de nogueira e apoiado com os cotovelos sobre o balcão, indiferente.

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Vicente Maria quedou-se em silêncio, saboreando o repasto, feliz da vida, como se aquela fosse a última refeição de um conde-nado ao patíbulo. Passados alguns instantes, olhou para o taberneiro e indagou por Tomásia, onde andava ela, que não havia música para animar a noite. Pasquino levantou os olhos em direcção aos apo-sentos do primeiro andar, no cimo das escadas, juntando as mãos como se dissesse que ela estava a rezar.

Aquele sinal fazia parte do seu código, da secreta linguagem que geralmente se desenvolvia em prostíbulos daquele calibre; signifi-cava que ela estava no confessionário, ou seja, no quarto com um cliente. Vicente Maria aquiesceu com um aceno de cabeça e voltou às vitualhas que repousavam em cima da mesa, rememorando velhas paixões e emoções.

A mais famosa de todas as putas naquela casa era Tomásia Mar-garita – generosa como Friné2 –, também conhecida por Banza, devido aos seus talentos na viola portuguesa e no bel-canto, já para não falar no mester da fornicação, que a todas dava sotas3, mani-lhas e ases. Por esta altura deveria rondar os trinta e três ou trinta e quatro anos.

Depois de tanto tempo ausente, Vicente Maria desejava muito estar com ela, ver como lhe corria a vida; apenas estar, contemplando, numa atitude mística e maravilhosa, como se mirasse um fenómeno ou milagre da natureza, pois as mulheres eram um milagre da natu-reza – e que belo milagre, gostava Vicente de pensar.

Apesar dos anos passados, ainda não tinha esquecido a redonda forma do seu rosto, a alvura da pele fina e delicada como alabastro, o seu longo e ondulante cabelo negro, da cor do azeviche, que ele tanto adorava cheirar e sentir sobre o seu peito, como espigas de trigo, esvoaçantes, num meigo sussurro. Como poderia, por Deus e por todos os santos, olvidar o verdegai aquoso e brilhante dos olhos de Tomásia, de diáfanos contentamentos e ardências, onde tantas vezes se perdera e se entregara sem resistência? Devido à passagem dos anos, talvez a encontrasse mais roliça, mas, seguramente, ainda continuaria a ser uma bonita mulher.

2 Friné – célebre cortesã da antiga Grécia (400 a. C.).3 Sota – nos jogos de cartas representa a figura da Dama.