O Operariado e o Anarquismo em Amanhã, de Abel Botelho

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    O operariado e o anarquismo em Amanhã, de Abel Botelho

    António Martins Gomes (CHC –  FCSH)

    Acreditar que a felicidade se resolve por este processo tão simples:

    a anarchia, isto é  –   supressão de leis e de organização, ficando só de pé avontade de cada um, não é resolver o problema social: parece-me que aocontrario é complical-o. [...] Porque o anarchismo pode mudar as coisas, masnão pode raspar a lepra da alma humana. (Raul Brandão, 1895)

    Abel Botelho nasce em Tabuaço (1854) e morre em Buenos Aires (1917), onde

    se encontrava, como diplomata, ao serviço da República Portuguesa. A sua obra

    essencial é publicada entre 1891 e 1910, sendo de destacar os cinco volumes da

    “Patologia Social”: O Barão de Lavos (1891), O Livro de Alda (1898), Amanhã (1901),

     Fatal Dilema (1907) e o romance de tese republicana Próspero Fortuna (1910).

    Filiado na escola naturalista, Abel Botelho nunca foi muito apreciado ou

    reconhecido no meio literário, uma vez que a sua escrita entra em conflito com os

    valores estéticos da burguesia oitocentista, ao expor despudoradamente aspectos

    repulsivos da sociedade portuguesa, como a depravação da aristocracia decadente, a

     pobreza asquerosa do operariado, a pederastia ou a prostituição, temas até aí abafados

     pela hipocrisia social e pouco explorados pela geração positivista de 70; esta ousadia

    terá certamente contribuído para que, por relutância ou mero preconceito académico,historiadores e críticos literários tenham, em geral, ignorado os romances de Abel

    Botelho ou optado mesmo por uma crítica menos positiva.

    Redigido entre Outubro de 1895 e Novembro

    de 1896, o romance  Amanhã  aborda três questões

    intensamente debatidas na capital portuguesa em finais

    do século XIX: a social, a política e a religiosa. Ao

    reflectir o antagonismo de classes num momento deascensão do catolicismo e de difusão do anarquismo

     pelos trabalhadores, esta obra inaugura em Portugal a

    exposição literária das míseras condições sociais do

     proletariado, tal como já havia sucedido com Charles

    Dickens em Hard Times (1854) ou com Émile Zola em

    Germinal (1885). Com efeito, o seu conteúdo envolve a

    intensificação da luta do operariado fabril dos bairros ribeirinhos de Marvila e Xabregas

    e decorre ao longo dos sete meses de celebrações religiosas que assinalaram o sétimo

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    centenário do nascimento de Santo António, mais precisamente entre Novembro de

    1894 a Junho de 1895.

     Na década de 90, aumenta a contestação aos efeitos negativos do Ultimato

    inglês, sendo a sublevação militar de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, a tarefa mais

    radical executada pela “geração activa” do Partido Republicano Português. Em Amanhã,

    a ficção romanesca concentra-se nos principais eventos históricos ocorridos neste

     período de profunda depressão económica, documentando a implantação do anarquismo

    no seio do operariado, o crescente recurso à greve1, a visita de delegados da

    Internacional, o desfile de trabalhadores no 1º de Maio de 1895 entre os Restauradores e

    o Largo do Rato, a procissão do Centenário Antoniano, ocorrida a 29 de Junho desse

    ano, ou ainda a preparação de um atentado bombista.

    Com efeito, 1895 é um ano-chave na orientação libertária dos socialistas

     portugueses, como refere Luiz Gonçalves: “Desde 1882, e principalmente desde 1895,

     parece ser o anarquismo o ideal economico e político dos socialistas portuguezes, pelo

    menos dos que mais se salientam como taes.” (Gonçalves 1905: 184).

    O anarquismo, cuja etimologia provém da raiz grega an  (sem) e arkhê 

    (governo), é uma corrente de pensamento socialista que veicula a dissolução do Estado

    em todas as suas formas históricas, o combate à autoridade civil e religiosa, e a

    construção de uma sociedade sem leis. As suas diversas vertentes doutrinais –  tais como

    o socialismo libertário, o individualismo, o mutualismo ou o anarco-sindicalismo  –  têm

    ainda em comum a luta pela abolição das desigualdades sociais e pela transformação da

    economia privada numa nova ordem em que os meios de produção serão controlados

     pelo operariado.

    Ao longo da História, socialistas libertários como William Godwin, Jean-Pierre

    Proudhon, Mikhail Bakounine e Piotr Kropotkine, aludem ao poder do Estado como o

     principal motivo de perpetuação da desigualdade social. Em Qu’est -ce que la propriété? (1840), Proudhon emprega  pela primeira vez a palavra “anarquia” para denominar um

    modelo de sociedade mutualista, sem a tutela estatal. É precisamente por via da obra de

    Proudhon, autor referenciado em  Amanhã, que são divulgadas as primeiras ideias

    anarquistas em Portugal, visando criar melhores condições humanas para os

    1 Greve é um neologismo derivado do lexema francês  grève, surgido a partir do nome da praçaonde se situa a Câmara Municipal de Paris, a actual Place de l'Hôtel-de-Ville, ponto de

    encontro de gente sem emprego ou de trabalhadores descontentes com as suas condições.Em Portugal, o primeiro surto grevista ocorre em 1872, em luta pela redução do horáriolaboral, pela abolição do trabalho nocturno e pelo aumento salarial.

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    trabalhadores através da união em cooperativas e federações; um dos órgãos promotores

    do associativismo é O Eco dos Operários, fundado em 1850.

    Em 1864, surge a Associação Internacional dos

    Trabalhadores, que irá exercer um papel determinante na

    Península Ibérica a partir da década de 702,

    especialmente na organização do movimento operário

    em estruturas associativas. Um ano após a criação da

    AIT, também conhecida como Primeira Internacional, o

    Catecismo Revolucionário  de Mikhail Bakounine

    salienta que a força laboral é a forma mais eficaz de

    evolução civilizacional e de libertação do homem:

    O trabalho é a base fundamental dadignidade e do direito humano. Pois é unicamente pelo trabalho livre e inteligente que o homem,tornando-se por sua vez criador e conquistador sobre o mundo exterior e sobre a sua própria bestialidade, humanidade e direito, cria o mundo civilizado. (1865)

    Em 1871, o ano da Comuna de Paris e das Conferências Democráticas do

    Casino Lisbonense, Antero de Quental expõe as ideias essenciais da Internacional num

    texto decisivo para a consolidação do socialismo em Portugal, enfatizando igualmente o

    trabalho e a luta de classes:

    Há, efectivamente, um grande combate travado; há dois exércitos e duas bandeiras inimigas: dum lado o Trabalho, do outro o Capital: dum lado aqueles que,trabalhando, produzem; do outro lado, aqueles que, sem esforço, e só porquemonopolizaram os instrumentos do trabalho, terras, fábricas, dinheiro, vivem da pesada contribuição que impõem a quem, para produzir e viver, precisa daquelesinstrumentos, daquele capital. (Quental, 1980, 9)

    Para além de Carrilho Videira, um outro autor referido na obra de Abel Botelho

    é José Fontana (1840-1876), considerado o primeiro doutrinador do movimento

    operário em Portugal. Imbuído do espírito da Internacional e inspirado em Bakounine,

    forma as bases da resistência operária, convoca greves e organiza as primeiras

    manifestações do 1º de Maio. Em 1872, promove a criação da Associação Fraternidade

    Operária. Mateus, o operário protagonista de  Amanhã, tem o seu retrato na parede do

    seu quarto, ao lado do de Kropotkine, e chega a tecer algumas considerações elogiosas a

     propósito da missão evangelizadora deste grande ideólogo:

    2 Para mais pormenores acerca da fundação da Internacional em Portugal, cf. Anselmo Lorenzo,“A fundação da Internacional em Portugal”, in João Medina,  As Conferências do Casino e o

    Socialismo em Portugal , 1984, 179-189, e António José Saraiva, “Como e por quem foifundada a Internacional em Lisboa”, in  A Tertúlia Ocidental  –   estudos sobre Antero deQuental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e outros, 2ª ed., 1995, 51-60.

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    Pois José Fontana […] viu o espectáculo doloroso da miserável inércia donosso povo e tremeu de indignação, consumiu-se de piedade. Quase simultaneamente,o estrondear do canhão nas ruas de Paris, os paroxismos iconoclastas da Internacional,anunciavam ao proletariado de todo o mundo que havia soado a hora de ele impor asua vontade, de fazer ouvir dominadoramente a sua voz. E então José Fontana foi oarrojado clarim da Ideia nova em Portugal. Veio soletrar-nos o novo Verbo. (Botelho1982, 456)

    Em 1886, a visita do ideólogo francês Elisée Reclus vem estimular a fundação

    de algumas associações anarquistas e a edição de obras como A Anarquia na Evolução

    Socialista, de Piotr Kropotkine. Em Novembro do ano seguinte, surge no Porto  A

     Revolução Social , o primeiro jornal anarquista, em cujo Número-Programa é publicada

    a Declaração de Princípios do Grupo Comunista-Anarquista em Lisboa, onde se afirma

    que a propriedade individual e os instrumentos de trabalho provocam a miséria dos

    operários, e que o Estado é a causa do privilégio, da divisão de classes e da corrupçãosocial; como meios de acção, propõe o recurso à abstenção eleitoral, à deserção militar,

    à greve violenta e à propaganda ilegal.

    Para o final do século XIX, o pensamento libertário é já difundido por várias

     publicações periódicas, tais como A Revolta (1892), A Propaganda (1894), O Agitador ,

    Grito de Revolta  e O Lutador   (1895). O romance de Abel Botelho alude mesmo a

    alguns órgãos de imprensa nacional, como Pátria e O Século, e de imprensa estrangeira,

    como Avanti!, Combattiamo, La Dinamite, Révolté, Eguaglianza e Vanguarda.Ao longo dos vinte e três capítulos de  Amanhã, o narrador referencia ainda um

    vasto número de autores, dado que, ao longo dos anos, muitas das suas obras teóricas

    foram sendo acumuladas na “rica biblioteca  profissional” de Mateus, um autodidacta

    amante de livros e ávido de conhecimentos destes novos princípios políticos, sociais e

    económicos:

    [...] em suma, um curso perfeito de iniciação, o foral completo da doutrina comunista-anarquista, trazida desde a origem na sua evolução vertiginosa  –  estremecido tesouro

    que o Mateus, durante anos, sistematicamente amontoara, com uma paciência, umaisenção e uma porfia inarráveis, tirando muitas vezes ao vestuário e ao sustento para poder acrescentá-lo. (Botelho 1982, 194)

    É, na verdade, colossal o elenco de livros e autores subversivos que moldam o

     pensamento do protagonista: O Capital , de Karl Marx;  A Sociedade Futura, de Jean

    Grave; Páginas Rubras, de Sévérine; Os Bastidores do Anarquismo, de Flor O’Squarr; 

     Filosofia da Anarquia e Da Comuna à Anarquia, de Carlo Malato; A Moral Anarquista 

    e Um Sonho de Ansiedade, de Piotr Kropotkine; A Rússia Subterrânea, de Kravtchinski

    (publicado em 1882, sob o pseudónimo de Stepniak); O Socialismo Integral , de BenoitMalon (1891); a  Psicologia do Anarquista Socialista, de Augustin Hamon (1893); O

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     Anarquismo, de António de Serpa Pimentel (1894); ou, entre outros,  A Conquista do

     Pão, de Paul Reclus (publicada em 1895, esta obra é da autoria de Kropotkine).

    Como refere Abel Botelho na Dedicatória, em  Amanhã “bacilam e fermentam

    os mais tragicamente desoladores aspectos da Miséria”; assim, o enredo desta narrativa

    decorre numa Lisboa pobre, envolvendo essencialmente a zona oriental junto ao Tejo: o

    estreito vale de Chelas, o Poço do Bispo e o Cabo Ruivo; a fábrica de cartuchame e o

    apeadeiro de Braço de Prata, onde, vindos no expresso de Madrid, são recebidos os

    delegados da AIT; a Rua de Marvila com os seus raros candeeiros de petróleo; ou a Vila

    Dias e a “ilha” do Grilo, espaços

    onde os operários da fábrica têxtil de

    Almargem residem.

    É ainda descrita, com toda a

    minudência naturalista, a cidade no

    seu quotidiano finissecular, tendo

    como pano de fundo principal os

     bairros populares de Alfama,

    Alcântara, Mouraria, Benfica,

    Xabregas e Marvila: o lausperene comprado em Santa Justa; o santeiro da Rua Augusta

    e a mulher que vende tintura no Rossio; Santa Apolónia e o Terreiro do Paço, por onde

     passam os carros da  Lusitana; a Escola Politécnica, onde Mateus se tinha matriculado;

    as igrejas de S. Vicente de Fora e de S. Domingos, aonde as famílias iam à missa; a

    Feira da Ladra; e os centros de propaganda anárquica, como o Largo da Páscoa, o Pátio

    do Fiúza (Alcântara), as ruas do Bem-Formoso e do Arsenal, e a Junqueira, em frente à

    Cordoaria.

    Ao nível do associativismo, um pilar fundamental na união dos povos e do

     proletariado, a obra menciona diversas Organizações, tais como, para além da járeferida Associação Internacional dos

    Trabalhadores, a Liga das Artes Gráficas, a

    Associação Fraternal dos Fabricantes de

    Tecidos e Artes Correlativas, ou a Voz do

    Operário, editora de um periódico muito

    elogiado pelo narrador : “A benemérita Voz

    do Operário, sempre firme e inalterável na prossecução do seu programa  –  a união pela vida  –  chamava com insistência às armas

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    os correligionários pela voz tão autorizada como difusa do seu jornal;” (Botelho 1982,

    251). 

    Ao descrever as reuniões clandestinas de propaganda anarquista, o autor

     procura transmitir essa mesma ligação extremosa entre a classe trabalhadora, cujos

    membros e ramos profissionais se misturavam ordeiramente:

    Viam-se ali, numa cordial promiscuidade indistintamente baralhados, os mais prestigiosos chefes socialistas, e representantes das classes dos torneiros, serralheiros,fundidores, tipógrafos, litógrafos, canteiros, jardineiros, tanoeiros, mecânicos emmadeira, calceteiros, marceneiros, sapateiros, tecelões, condutores de carroças,cocheiros, cigarreiros, manipuladores de farinha, refinadores de açúcar, corticeiros,oleiros, carpinteiros de carros, pintores, carregadores, fabricantes de carruagens,latoeiros, varinos e outros mais. Eram todos os baixos misteres e profissões. Toda amiuçalha, toda a escória. (Botelho 1982, 351-352)

    O romance  Amanhã  é protagonizado por Mateus, um contramestre de uma

    tecelagem em Lisboa que irá convocar greves, preparar manifestações, organizar

    reuniões com dirigentes estrangeiros, e planear uma revolução para destruir o regime, a

    ser iniciada durante o préstito das Celebrações Antonianas. Solidamente consolidado na

    mais genuína ideologia libertária, todo o discurso deste líder operário é proferido contra

    a entidade estatal:

    [...] o Estado é uma pura excrescência que vive à custa de todos nós. Dispensa-se... Elenada nos faz, nada nos traz de bom...[...]- É uma organização artificial, violenta, contrária às leis naturais... a qual nãoaproveita senão a um limitadíssimo número de indivíduos, com prejuízo de todos osoutros... que não tem outro fim senão explorar o mísero trabalhador! (Botelho 1982,46)

    Dois delegados da Internacional deslocam-se a Portugal para doutrinar os

    operários em reuniões clandestinas, durante as quais os incentivam à união em

    Associações de classe para ganharem força as suas reivindicações. O pensamento de um

    destes dirigentes confirma a mesma ideia de Mateus quando associa a decadência social

    ao regime monárquico e, sobretudo, à estrutura estatal:O Estado, nascido da divisão da sociedade em castas, atingiu o seu período áureo,quando? Com a centralização monárquica absoluta. Depois, pela adopção do sistemarepresentativo e a consequente democratização social, começou do Estado, comoinstituição, a inevitável decadência. (Botelho 1982, 322-323)

    Para além do Estado, os anarquistas opõem-se ainda ao patriotismo e à religião,

    dois instrumentos usados pelo poder para tiranizar os povos ao longo dos séculos.

    Mateus, o líder revolucionário cujo nome coincide ironicamente com o do primeiro

    evangelista do Novo Testamento, dirige-se aos seus colegas num discurso panfletário,

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    onde culpa a religião pelo atraso do país e considera o amor à pátria um sentimento

    egoísta da burguesia:

    O patriotismo é uma das muitas e habilidosas formas de opressão que, paraimpunemente nos esmagarem, têm inventado os ricos e poderosos. Durante séculos,

    vocês sabem, o seu meio de dominação foi outro: foi a religião. Quanto tempo asclasses privilegiadas não exploraram e cavalgaram a seu bel-prazer o povo,ameaçando-o, fanatizado e embrutecido, com o temor dum Deus de açougue,vingativo, cruel... com os tétricos horrores das penas do inferno! E depois, quandoessa formidável criação de hipocrisia e de embuste caiu, quando o espectro religiosose esvaiu na sombra e o poder de Roma se afundou no ridículo, substituíram-no então pela ideia de pátria. (Botelho 1982, 57-58)

    [...] em Portugal o jesuitismo arrastara a nação ao último grau de abjecçãomoral e fizera muito de propósito estagnar as ciências, as letras e as artes, no maisesterilizante marasmo de que há notícia em toda a história pátria. (idem, 182)

    Ao longo do século XIX, desde o liberalismo romântico da monarquia

    constitucional ao positivismo realista da Regeneração fontista, a hegemonia da Igreja

    Católica vai perdendo a sua influência tentacular; contudo, esta instituição ganha um

    novo alento na década de 90, após a publicação das encíclicas  Rerum Novarum, onde é

    estabelecida a participação dos católicos na actividade política.

    Em Portugal, a fé católica ganha novo alento a partir de 1895, o ano do

    Congresso Católico Internacional e das celebrações de Santo António. O romance de

    Abel Botelho retrata precisamente a questão religiosa no seu auge:

    Andava ao tempo em Lisboa um pouco acesa a questão religiosa. Durante osúltimos oito anos que o partido ultramontano, cobrando progressivos alentos, vinhaestadeando um crescente aparato de forças e promovendo a aliciação de influênciasnovas. (Botelho 1982, 249)

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    Após as medidas legislativas sobre a saúde pública e a construção de

    cemitérios, que vêm dessacralizar a morte e retirar ao seu cerimonial o rentável

    monopólio da Igreja Católica, a sociedade adquire um espírito mais laico. A narrativa

    dá-nos uma perspectiva do cemitério do Alto de São João, um “jardim de pedra”

    inaugurado em 1835 na zona oriental para sepultar sobretudo a população mais pobre:

    “[...] o encastelamento sepulcral do Alto de S. João, todo riscado a arestas de mármore e

    agulhas de cipreste.” (Botelho 1982, 108).

    As alusões do Padre Sebastião aos funerais realizados pela classe operária

    também confirmam, por sua vez, a crescente laicização da morte: “Eles não querem

    saber de nós para nada, eles não concorrem à igreja, não conservam as mulheres, não

    legitimam os filhos… nem sequer os mortos respeitam, porque os levam civilmente ao

    cemitério!” (Botelho 1982, 93).

    Esta “cidade dos mortos” serve para Abel Botelho denunciar não só a desgraça

    extrema ou o forte anticlericalismo da classe operária, mas também para registar alguns

    casos trágicos de violência doméstica, a incidir usualmente sobre os mais desprotegidos

    em termos sociais –  mulheres e crianças:

     No Domingo Gordo, duas vezes fez o passeio lúgubre da “ilha” do Grilo aoAlto de S. João, a singela carreta negra da Voz do Operário. Para levar, primeiro, aChica, da qual era voz corrente entre o povo que as brutalidades do pai tinhamabreviado a existência; e depois, vitimada pela discrasia galopante do desgosto, ahéctica e inconsolável Ana, com a filha mais nova, mortinha de inanição. (Botelho1982, 408-409)

    Segundo Mikhail Bakounine, o regime anárquico só

    é possível através do recurso a uma revolução violenta, a

     partir da qual desaparecerão todas as instituições para dar

    lugar a uma nova sociedade. Seguindo esta linha de

    raciocínio, alguns estrategas libertários passam à acção

    directa; o terrorismo individual, nascido com o firme

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     propósito de desencadear uma revolução para destruir o aparelho estatal, ocorre em

     países como França, Alemanha, Itália, Espanha, Rússia e Portugal, sendo praticados

    diversos actos e atentados violentos entre os anos 70 do século XIX e a primeira década

    do século XX.

    Para provocar a mudança desejável em Portugal, os adeptos mais radicais

    rejeitam a via eleitoral ou a mediação político-partidária, e optam por recorrer à

    sabotagem ou por dedicar-se inclusive ao fabrico de bombas artesanais, que cederão

    mais tarde à Carbonária e ao PRP, no apoio à luta pela implantação da República: em

    1892, uma bomba explode no Consulado de Espanha e há um atentado na casa do

    Conde de Folgosa.

    Em 1895, ocorre um atentado contra os manifestantes do centenário de Santo

    António de Lisboa, cuja bomba, segundo narra Abel Botelho, é fabricada por Mateus. A

     propósito deste episódio violento, um excerto do romance poderá ajudar a entender o

    motivo pelo qual o ataque bombista nunca chegou a ser uma actividade benquista dos

    revolucionários portugueses, mais favorecidos de “ brandos costumes”  –   durante uma

    sessão de demonstração de fabrico de engenhos explosivos, os operários sentem-se

     pouco confortáveis ao tomarem consciência dos efeitos devastadores da dinamite, que

    havia sido inventada por Alfred Nobel em 1868:

    A sessão havia tomado assim uma feição carniceira e odienta que repugnavaa uma parte da assembleia. Cheirava-lhe a sangueira e a carne derretida... já nãoestavam bem ali! Ante os seus alarmados corações, ante as suas sensitivas almas,formadas na severidade e na obediência, o grosso e imperioso belga revestia o aspectodum carrasco, o italiano era positivamente um demónio. (Botelho 1982, 335-336)

    Para resolver este inconveniente, os operários optam então por utilizar uma

    composição mais fraca, substituindo a dinamite por picrato de chumbo, e Mateus acaba

     por delinear o plano da revolução, distribuindo os revoltosos por cinco áreas urbanas

    nucleares:

    Ele tinha com efeito concebido, de colaboração com o Azinhal, um vasto ehábil plano estratégico.  –   O assalto, é claro, seria dado alta noite, e tinha de sersimultâneo, cingindo e afogando no mesmo decisivo instante, dentro da suagargalheira implacável, a desprevenida inacção de toda a cidade. Caminharia o ataque,ao mesmo tempo, por cinco zonas ou sectores. O primeiro, mais oriental, ao longo dorio, teria por guarnição o formigueiro enorme de operários que labutavam entre Braçode Prata e o Beato, e a sua missão consistiria em apoderarem-se de todos osestabelecimentos oficiais que por ali marginam o Tejo, o quartel de artilharia, oArsenal, a Alfândega, o Terreiro do Paço. O segundo sector teria a sua concentraçãoem Chelas, para marchar daí, pelo Alto de S. João, a tomar o Castelo de S. Jorge. Oterceiro sector, reunindo os revoltosos do Areeiro para o sul, por Sete Castelos, até ao

    Alto do Pina, entraria simultaneamente pelas portas do Poço dos Mouros e da Penha,ocupando esta altura, o Monte, a Graça e toda a linha de contrafortes que limitam por

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    este lado a cidade. Uma quarta zona conglobaria, junto ao Arco do Cego, toda a população fabril do Campo Grande, para marchar sobre Vale do Pereiro e a Baixa.Finalmente, a quinta zona, abrangendo Campolide, Terras do Seabra e Fonte Santa,estava a cargo dos revoltosos de Alcântara, e incumbia-lhes, entre outras ciosas,arrasar o Colégio de Campolide e opor uma barreira aos socorros que tentassem vir deBelém e da Ajuda. (Botelho 1982, 477-478)

    A procissão católica organizada por altura do Congresso Católico Internacional

    e das comemorações do Centenário de Santo António, deveria ser, segundo Mateus, o

     ponto de partida para a revolução desencadeada pelos operários.

    Pela enumeração exaustiva de eventos ocorridos em Lisboa em meados da

    década de 90,  Amanhã  possui indubitavelmente um imenso e diversificado valor

    documental: a progressiva implantação do movimento anarquista no seio da classe

    operária, através da publicação de periódicos ou da organização em rede de movimentos

    associativos e centros de propaganda; a presença de dois delegados da Internacional; o

    elevado número de greves associadas à indústria têxtil (cf. Fonseca 1976, 150-157); a

    realização do Congresso Católico Internacional, em Maio de 1895; o cortejo religioso

    do centenário de Santo António, a 29 de Junho, em cujo percurso são lançados panfletos

    subversivos a criticar o regime (cf. Valente 1976, 48); e a preparação de um atentado

     bombista, que levará Hintze Ribeiro a promulgar a “lei celerada” de 13 de Fevereiro de

    1896.

     Neste romance, merece ainda nota de realce o capítulo XIX, cujas páginas

    descrevem minuciosamente a grandiosa manifestação de trabalhadores no 1º de Maio de

    1895, começando na Praça dos Restauradores, seguindo ao longo da Avenida e da Rua

    Barata Salgueiro, e terminando no Largo do Rato. Algumas palavras de ordem

     proclamadas nesta altura são expostas no desfile de carros alegóricos de cada profissão:

     Na frente do carro, entre cestos vindimos, pás e encinhos, lia-se em grandes

    letras de fogo: QUEREMOS 8 HORAS DE TRABALHO; e na cauda: A JOSÉFONTANA, O POVO, FARTO DE SOFRER. Aos lados baloiçavam-se escudetescom os dísticos: PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNAMO-NOS! e BREVE

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    CHEGA A NOSSA HORA! […] –  Mas eram por igual interessantes todos os carrosque na estatuída ordem iam seguindo, às dezenas, infindavelmente, desde as carretasdos pedreiros, dos serralheiros, dos curtidores e dos tipógrafos, até à fábrica emminiatura dos saboneteiros, o tonel monstro dos tanoeiros e o chalet  dos ceramistas,até à grande máquina Singer com a legenda: MATA SEM RUÍDO, levada num grupode costureiras. (Botelho 1982, 466)

     Numa representação nua e crua, Abel Botelho aborda em  Amanhã  a

    reivindicação dos direitos do operariado num dos momentos de maior conflito com o

     patronato em Portugal, e faz deste romance um retrato fidedigno da sórdida condição

    social dessas “vítimas da fome”, que, à semelhança do restante movimento internacional

    e tendo como lema a unidade do Trabalho contra o Capital, lutam pela sua emancipação,

    sem perder a esperança em conquistar melhores condições no dia de amanhã, uma

     palavra iniciada com a primeira letra do alfabeto e curiosamente contida no conhecido

    símbolo anarquista: “[...] haviam de partir agora, formidavelmente aprestados para a

    luta, os míseros e mesquinhos servos de ontem, transformados nos homens imperantes

    de amanhã!” (Botelho 1982, 500)

    Para adensar a história deste antagonismo político-social entre classes cujos

    interesses colidem necessariamente, germina uma relação amorosa entre o protagonista

    e Adriana, filha do dono da fábrica têxtil do Almargem, onde trabalha como

    contramestre. No fim deste enredo maniqueísta, Adriana vai a casa de Mateus para

    tentar dissuadi-lo dos seus propósitos violentos; contudo, o protagonista, dividido entre

    os sólidos ideais utópicos e o vacilante sentimento amoroso, não encontra outra

    alternativa senão cometer - aparentemente - o suicídio, fazendo detonar a bomba que

    tinha preparado para explodir durante a manifestação comemorativa do Centenário de

    Santo António.

    É, na verdade, um final pouco edificante para um herói revolucionário que

    ambicionava destruir todos os alicerces político-económicos mas sem nunca apresentar

    uma solução viável para a construção de uma sociedade utópica. Por sua vez, Mateus éuma personagem complexa, com a qual não simpatizamos totalmente se nos

    recordarmos que são sempre os sentimentos negativos do ódio e da vingança que o

    impelem à acção: o protagonista era filho de um grande proprietário duriense, arruinado

    após a abolição dos morgadios e as confiscações miguelistas. Nesta perspectiva, a sua

    revolta não deriva de razões altruístas, sendo apenas por motivos pessoais que vai

    ganhando um desprezo por toda a espécie de autoridade.

    O socialismo utópico é criticado subtilmente em determinados momentos danarrativa, como exemplifica o relato da refeição opípara de dois representantes da

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    Associação Internacional dos Trabalhadores, vindos a Lisboa a convite de Mateus. Vítor

     Neto, num ensaio onde utiliza a obra abeliana como fonte histórica, diz o seguinte a

     propósito do terceiro volume da série “Patologia Social”: 

    Abel Botelho, ao usar a ironia e a sátira em relação ao socialismo utópico e

    ao anarquismo, procura desacreditar estas ideologias que funcionavam como sistemas

    de representação das consciências dos revolucionários sobre o futuro, mas

    irrealizáveis na prática. (Neto 2000: 300)

     Neste sentido, e ao contrário de  Próspero Fortuna, onde é feita a apologia

    inequívoca do regime republicano, Amanhã não se apresenta como um romance de tese

    libertária: Abel Botelho foi sempre um patriota, uma peculiaridade desenquadrada da

    índole anarquista ou internacionalista, motivo que nos faz regressar à nossa epígrafe

    inicial, extraída de um artigo de 1895, onde Raul Brandão reflecte sobre a ineficáciadesta ideologia: “Porque o anarchismo pode mudar as coisas, mas não pode raspar a

    lepra da alma humana.” 

    Bibliografia

    AAVV. Pequena antologia do anarquismo. Stirner, Bakounine, Kropotkine. Lisboa: IniciativasEditoriais, 1975.

    BOTELHO, Abel. Amanhã. Porto: Lello & Irmão –  Editores, 1982.BRANDÃO, Raul. “O anarchismo (conclusão)”.  Revista d’Hoje. 2, 7 de Janeiro de 1895, pp.

    78-82.FONSECA, Carlos da. História do Movimento Operário e das Ideias Socialistas em Portugal  -

    IV. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1976, pp. 150-157.GONÇALVES, Luiz. A evolução do movimento operário em Portugal. Lisboa: Adolpho de

    Mendonça & Cª, 1905.LORENZO, Anselmo. “A fundação da Internacional em Portugal”, in João Medina,  As

    Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal . Lisboa: Publicações Dom Quixote,1984, pp. 179-189.

    MOISÉS, Massaud. A “Patologia social” de Abel Botelho. São Paulo: Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1961.

     NETO, Vítor. “Abel Botelho  –  Quadros de Patologia Social”.  Revista de História das Ideias, 21 –  História e Literatura. 2000, 261-306.QUENTAL, Antero de. O que é a Internacional . Lisboa: Ulmeiro, 1980.SÁ, Victor de. Formação do movimento operário português. Coimbra: Centelha, 1978.SARAIVA, António José. “Como e por quem foi fundada a Internacional em Lisboa”, in  A

    Tertúlia Ocidental  –   estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e

    outros. 2ª ed.. Lisboa: Gradiva, 1995, 51-60.VALENTE, Vasco Pulido. O Poder e o Povo: A Revolução de 1910. Lisboa: Publicações Dom

    Quixote, 1976.VENTURA, António. Anarquistas, republicanos e socialistas em Portugal  –  as convergências

     possíveis (1892-1910). Lisboa: Edições Cosmos, 2000.

    http://catalogo.biblioteca.iscte-iul.pt/cgi-bin/koha/opac-search.pl?q=pb:Centelha%20http://catalogo.biblioteca.iscte-iul.pt/cgi-bin/koha/opac-search.pl?q=pb:Centelha%20