o olho do fotýgrafo_szarkowski

11
1 SZARKOWSKI, John. The photographer’s eye. New York: Museum of Modern Art, 1966 1 . O OLHO DO FOTÓGRAFO John Szarkowski Introdução ESSE LIVRO É UMA INVESTIGAÇÃO sobre como as fotografias são e porque são assim. Ele se preocupa com o estilo e a tradição fotográfica: com o sentido das possibilidades que um fotógrafo hoje incorpora em seu trabalho. A invenção da fotografia supriu um processo de confecção de imagem radicalmente novo – um processo baseado não na síntese mas na seleção. Era uma diferença básica. As pinturas eram feitas – construídas a partir de um inventário de esquemas, habilidades e atitudes tradicionais – mas as fotografias, como diz o homem das ruas, eram tomadas. A diferença projetou uma questão criativa de uma nova ordem: como poderia esse processo mecânico e sem razão ser levado a produzir imagens significativas em termos humanos – imagens com clareza, coerência e um ponto-de-vista? Foi rapidamente demonstrado que não seria encontrada uma resposta por aqueles que amavam demasiadamente as velhas formas porque, em grande medida, o fotógrafo era ignorante das antigas tradições artísticas. Baudelaire, falando da fotografia, disse: “Esta indústria, ao invadir os territórios da arte, se tornou no seu inimigo mortal.”[1] E em seus próprios termos de referência Baudelaire estava parcialmente certo; certamente, o novo meio não poderia satisfazer os antigos padrões. O fotógrafo deve encontrar novos modos para tornar claro seu significado. Esses novos modos seriam descobertos por homens que poderiam abandonar suas fidelidades aos padrões pictóricos tradicionais – ou pelo artisticamente ignorante, que não teria nenhuma antiga fidelidade para romper. Tem havido muitos do último tipo. A fotografia, desde seus dias inaugurais, tem sido praticada por milhares que não compartilhavam nenhuma tradição ou treinamento comum, que não eram disciplinados e unidos por nenhuma academia ou grêmio, que consideravam seu meio diferentemente como uma ciência, uma arte, um negócio ou um entretenimento e que estavam freqüentemente desinformados a respeito do trabalho dos demais. Aqueles que inventaram a fotografia eram cientistas e pintores, mas seus praticantes profissionais eram um grupo muito 1 Tradução de Rui Cezar dos Santos publicada no site www.devolucoes.com.br (acesso em 30/08/2010). Este texto faz parte de um livro/catálogo da exposição The Photographer’s Eye, realizada no MoMA em 1966, e que teve curadoria de Szarkowski. Recentemente, foi publicado na coletânea organizada por Liz Wells (The photograph reader, 2003), disponível na Biblioteca da EBA. Na presente versão constam a introdução do livro e as notas que abrem cada módulo/capítulo onde são reproduzidas fotografias da exposição.

Transcript of o olho do fotýgrafo_szarkowski

Page 1: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  1  

SZARKOWSKI, John. The photographer’s eye. New York: Museum of Modern Art, 19661.

O OLHO DO FOTÓGRAFO

John Szarkowski

Introdução

ESSE LIVRO É UMA INVESTIGAÇÃO sobre como as fotografias são e porque são

assim. Ele se preocupa com o estilo e a tradição fotográfica: com o sentido das

possibilidades que um fotógrafo hoje incorpora em seu trabalho.

A invenção da fotografia supriu um processo de confecção de imagem radicalmente

novo – um processo baseado não na síntese mas na seleção. Era uma diferença básica. As

pinturas eram feitas – construídas a partir de um inventário de esquemas, habilidades e

atitudes tradicionais – mas as fotografias, como diz o homem das ruas, eram tomadas.

A diferença projetou uma questão criativa de uma nova ordem: como poderia esse

processo mecânico e sem razão ser levado a produzir imagens significativas em termos

humanos – imagens com clareza, coerência e um ponto-de-vista? Foi rapidamente

demonstrado que não seria encontrada uma resposta por aqueles que amavam

demasiadamente as velhas formas porque, em grande medida, o fotógrafo era ignorante

das antigas tradições artísticas. Baudelaire, falando da fotografia, disse: “Esta indústria, ao

invadir os territórios da arte, se tornou no seu inimigo mortal.”[1] E em seus próprios termos

de referência Baudelaire estava parcialmente certo; certamente, o novo meio não poderia

satisfazer os antigos padrões. O fotógrafo deve encontrar novos modos para tornar claro

seu significado.

Esses novos modos seriam descobertos por homens que poderiam abandonar suas

fidelidades aos padrões pictóricos tradicionais – ou pelo artisticamente ignorante, que não

teria nenhuma antiga fidelidade para romper. Tem havido muitos do último tipo. A fotografia,

desde seus dias inaugurais, tem sido praticada por milhares que não compartilhavam

nenhuma tradição ou treinamento comum, que não eram disciplinados e unidos por

nenhuma academia ou grêmio, que consideravam seu meio diferentemente como uma

ciência, uma arte, um negócio ou um entretenimento e que estavam freqüentemente

desinformados a respeito do trabalho dos demais. Aqueles que inventaram a fotografia

eram cientistas e pintores, mas seus praticantes profissionais eram um grupo muito                                                                                                                1 Tradução de Rui Cezar dos Santos publicada no site www.devolucoes.com.br (acesso em 30/08/2010). Este texto faz parte de um livro/catálogo da exposição The Photographer’s Eye, realizada no MoMA em 1966, e que teve curadoria de Szarkowski. Recentemente, foi publicado na coletânea organizada por Liz Wells (The photograph reader, 2003), disponível na Biblioteca da EBA. Na presente versão constam a introdução do livro e as notas que abrem cada módulo/capítulo onde são reproduzidas fotografias da exposição.

Page 2: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  2  

diferente. Holgrave, o herói daguerreotipista de Hawthorne, em The House of Seven

Gables, não era talvez muito diferente do típico:

“Embora hoje com apenas vinte e dois anos de idade, ele já foi um mestre de escola

rural; vendedor de uma loja rural; e o editor político de um jornal do interior.

Subseqüentemente, ele viajou como vendedor ambulante de água de colônia e

outras essências. Estudou e praticou odontologia. Ainda mais recentemente, foi um

conferencista público sobre hipnotismo, para cuja ciência ele possuía dotes muito

notáveis. Sua fase atual como daguerreotipista não era, em sua própria opinião,

mais importante nem provavelmente mais permanente que qualquer uma das

anteriores.”[2]

A enorme popularidade do novo meio gerou profissionais aos milhares – ourives,

funileiros, farmacêuticos, ferreiros e impressores convertidos. Se a fotografia era um

problema artístico novo, tais homens possuíam a vantagem de não ter nada para

desaprender. Entre si eles produziram uma torrente de imagens. Em 1853, o The New York

Daily Tribune estimou que naquele ano estariam sendo produzidos 3 milhões de

daguerreótipos.[3] Algumas dessas imagens eram o resultado de conhecimento e perícia,

sensibilidade e invenção; muitas eram produto de acidente, improviso, equívoco e

experimentação empírica. Mas se produzida por arte ou por sorte, cada imagem era parte

de um ataque maciço aos nossos tradicionais hábitos de ver.

Uma multidão ainda maior de snapshooters casuais juntou-se, nas últimas décadas

do século XIX, aos profissionais e amadores sérios. No início da década de 1880 a placa

seca, que podia ser adquirida já pronta para uso, substituiu o refratário e confuso processo

da placa molhada que demandava que a placa fosse preparada exatamente antes da

exposição e processada antes que a emulsão secasse. A placa seca desovou a câmera

portátil e a fotografia vernacular. A fotografia se tornara fácil. Em 1893 um escritor inglês

lamentava que a nova situação havia “criado um exército de fotógrafos que se deslocava

excessivamente sobre o globo terrestre fotografando objetos de todos os tipos, tamanhos e

formas, sob quase todas as condições, sem mesmo jamais pausarem para se perguntar,

será isso ou aquilo artístico? … Eles espiam uma vista, ela parece agradar, a câmera é

focalizada e o quadro exposto! Não há nenhuma pausa, porque haveria de haver? Porque a

arte pode errar mas a natureza não pode falhar, diz o poeta, e eles obedecem ao ditado.

Para eles, composição, luz, sombra, forma e textura são apenas demasiadas frases de

efeitos …”.[4]

Essas imagens, produzidas aos milhares por trabalhadores diaristas e por hobbyists

dominicais, eram diferentes de qualquer imagem antes delas. A variedade de sua

imaginária era prodigiosa. Cada variação sutil do ponto de tomada ou da luz, cada

Page 3: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  3  

momento evanescente, cada mudança na tonalidade da imagem criava uma nova imagem.

O artista treinado podia desenhar uma cabeça ou uma mão de uma dúzia de diferentes

perspectivas. O fotógrafo descobriu que os gestos de uma mão eram infinitamente variados

e que a parede de um prédio iluminado pelo sol não era, jamais, duas vezes igual.

A maioria desse dilúvio de imagens parecia sem forma e acidental mas algumas

alcançaram coerência, mesmo em suas esquisitices. Algumas das novas imagens eram

memoráveis e pareciam significativas além de suas limitadas intenções. Recordadas, essas

imagens ampliaram o senso de possibilidades das pessoas à medida que olharam

novamente para o mundo real. Enquanto eram relembradas elas sobreviveram, como

organismos, para reproduzir e evoluir.

Mas não era apenas o modo como a fotografia descrevia as coisas que era novo;

eram também novas as coisas que escolhera para descrever. Os fotógrafos fotografaram “

… objetos de toda natureza, tamanho e formas … sem jamais pausarem para se perguntar

será isso ou aquilo artístico?” A pintura era difícil, cara e preciosa e registrava o que era

sabidamente importante. A fotografia era fácil, barata e onipresente e registrava tudo:

vitrinas, casas rurais e animais de estimação das famílias, motores a vapor e pessoas sem

importância. E uma vez tornadas objetivas e permanentes, imortalizadas em uma imagem,

essas coisas triviais adquiriam importância. Ao final do século, pela primeira vez na história,

mesmo o homem pobre sabia como se pareciam seus ancestrais.

O fotógrafo aprendeu de dois modos: primeiro, do conhecimento íntimo, de um

trabalhador, de suas ferramentas e materiais (se sua placa não registrava as nuvens, ele

podia apontar sua câmera para baixo e eliminar o céu); e, segundo, ele aprendeu de outras

fotografias, que se apresentavam numa corrente incessante. Independentemente de sua

preocupação ser comercial ou artística, sua tradição foi formada por todas as fotografias

que deixaram marcas em sua consciência.

As imagens reproduzidas nesse livro foram feitas durante quase um século e um

quarto. Elas foram feitas, por vários motivos, por homens de interesses diferentes e talentos

variados. Elas tinham de fato pouco em comum exceto seus sucessos e um vocabulário

compartilhado: essas imagens eram inconfundivelmente fotografias. A visão que

compartilhavam não pertence a nenhuma escola ou teoria estética mas à própria fotografia.

O caráter dessa visão foi descoberto pelos fotógrafos no trabalho à medida que cresceu

sua consciência do potencial da fotografia.

Se isso é verdade, deve ser possível considerar a história do meio em termos da

progressiva consciência dos fotógrafos das características e problemas que pareceram

inerentes ao meio. Cinco dessas questões são consideradas a seguir. Essas questões não

definem categorias de trabalho discretas; ao contrário, elas devem ser consideradas como

aspectos interdependentes de um único problema – como vistas secionadas através do

corpo da tradição fotográfica. Como tal, espera-se que possam contribuir para a formação

Page 4: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  4  

de um vocabulário e de uma perspectiva crítica mais completamente responsiva ao

fenômeno único da fotografia

A Coisa em si

A primeira coisa que o fotógrafo aprendeu foi que a fotografia lidava com o real; ele

não apenas tinha que aceitar esse fato, mas valorizá-lo; a menos que o fizesse, a fotografia

o venceria. Ele aprendeu que o próprio mundo é um artista de inventividade incomparável e

que reconhecer seus melhores trabalhos e momentos, antecipá-los, elucidá-los e torná-los

permanentes requer inteligência ao mesmo tempo aguda e flexível.

Mas ele também aprendeu que a materialidade de suas imagens, não importa quão

convincente e inquestionável, era uma coisa diferente da própria realidade. Muito da

realidade era eliminado na estática e pequena imagem em preto e branco e algo dela era

mostrado com uma clareza não natural, uma importância exagerada. O sujeito e a imagem

não eram a mesma coisa embora, posteriormente, parecessem ser. O problema do

fotógrafo era ver não somente a realidade à sua frente mas a imagem ainda invisível e

tomar suas decisões em termos da última.

Esse era um problema artístico e não um problema científico, mas o público

acreditava que a fotografia não podia mentir e era mais fácil para o fotógrafo se ele também

acreditasse nisso, ou assim fingisse. Assim, ele provavelmente argumentaria que o que os

nossos olhos viam era uma ilusão e que o que a câmera viu era a verdade. O Holgrave de

Hawthorne, falando do retrato de um sujeito difícil disse: “Nós damos crédito (com os céus

amplos e luz solar básica) apenas para a descrição da mera superfície mas ele realmente

revela o caráter secreto com uma verdade que nenhum pintor jamais se aventuraria a

buscar, mesmo que pudesse detectá-la. … o ponto notável é que o original desgasta, aos

olhos do mundo … um sobrepujante semblante agradável, indicador de benevolência,

coração aberto, saudável bom humor e outras qualidades dignas de elogio da mesma

natureza. O sol, como você vê, conta uma história bem diferente e não será persuadido do

contrário após meia dúzia de pacientes tentativas de minha parte. Aqui temos um homem

astuto, sutil, duro, imperioso e, além disso, frio como gelo.”[5]

Em um sentido, Holgrave estava correto em dar mais crédito à imagem da câmera

que aos seus próprios olhos porque a imagem sobreviveria ao sujeito e se tornaria a

realidade relembrada. William M. Ivins Jr. Disse: “em qualquer momento dado, o relato

aceito de um evento é de maior importância que o próprio evento porque o que pensamos a

respeito e agimos sobre é o relato simbólico e não o próprio evento concreto.”[6] Ele disse

também: “O século XIX começou acreditando que o que era razoável era verdade e

terminaria acreditando que aquilo que via em uma fotografia era verdade.”[7]

Page 5: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  5  

O Detalhe

O fotógrafo estava preso às evidências das coisas e era seu problema forçar as

evidências a dizer a verdade. Ele não podia, fora do estúdio, posar a verdade; podia apenas

registrá-la da forma que a encontrara e era encontrada na natureza em uma forma

fragmentada e inexplicável – não como uma estória, mas como pistas dispersas e

sugestivas. O fotógrafo não podia montar essas pistas em uma narrativa coerente, podia

apenas isolar o fragmento, documentá-lo e por assim fazê-lo reivindicar para ele alguma

significância especial, um significado que ia além da simples descrição. A clareza

constrangedora com a qual a fotografia registrava o trivial sugeria que o sujeito jamais havia

sido propriamente visto antes, de que era de fato talvez não trivial, mas repleto de

significado não imaginado. Se as fotografias não podiam ser lidas como histórias, elas

podiam ser lidas como símbolos.

O declínio da pintura narrativa, no século passado, tem sido atribuído em grande

parte à ascensão da fotografia que “aliviou” o pintor da necessidade de contar estórias. Isso

é curioso uma vez que a fotografia nunca foi bem-sucedida no campo da narrativa. Ela de

fato raramente a tentou. As elaboradas montagens do século XIX, de Robinson e Rejlander,

laboriosamente compostas a partir de muitos negativos posados, tentavam contar estórias

mas esses trabalhos foram reconhecidos, em seu próprio tempo, como fracassos

pretensiosos. Nos primórdios das revistas ilustradas foi feita a tentativa de alcançar a

narrativa através de seqüências fotográficas, mas a coerência superficial dessas estórias

era geralmente alcançada às custas da descoberta fotográfica. A heróica documentação da

guerra civil americana, feita pelo grupo de Brady, e o registro fotográfico

incomparavelmente maior da segunda guerra mundial possuem isso em comum: nenhum

deles explicava, sem legendação extensiva, o que estava acontecendo. A função dessas

imagens não era a de tornar a estória clara, era a de torná-las real. Robert Capa, o grande

fotógrafo de guerra, expressou tanto a pobreza narrativa quanto o poder simbólico da

fotografia quando comentou, “Se suas imagens não são boas, você não está

suficientemente próximo.”

O Quadro

Uma vez que a imagem do fotógrafo não era concebida mas selecionada, seu

sujeito jamais era verdadeiramente discreto, jamais totalmente auto-contido. As margens de

seu filme demarcavam o que achava mais importante mas o sujeito que havia capturado

era outra coisa; ele se expandira em quatro direções. Se o quadro do fotógrafo cercava

duas figuras, isolando-as da multidão onde estavam, ele criava um relacionamento entre

essas figuras que antes não existira.

O ato central da fotografia, o ato de selecionar e eliminar, força uma concentração

na margem da imagem – a linha que separa incluídos e excluídos – e nas formas que são

Page 6: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  6  

por ela criadas.

Durante a primeira metade de século da existência da fotografia, as fotografias eram

copiadas no mesmo tamanho da placa exposta. Uma vez que a ampliação era geralmente

impraticável, o fotógrafo não podia mudar de idéia na câmara escura e decidir usar apenas

um fragmento de sua imagem sem reduzir, na mesma proporção, o seu tamanho. Se havia

comprado uma placa de oito por dez polegadas (ou pior, a houvesse preparado),

transportando-a como parte de seu pesado equipamento e a tivesse processado ele

provavelmente não iria se contentar com uma imagem com a metade daquele tamanho. Um

singelo sentido de economia era o bastante para levar o fotógrafo a tentar encher a imagem

até suas margens.

As margens da imagem raramente eram limpas. Pedaços de figuras ou de prédios

ou características da paisagem eram truncadas deixando uma forma pertencente não ao

sujeito mas (se a imagem era boa) ao equilíbrio, à propriedade da imagem. O fotógrafo

olhava o mundo como se fosse uma pintura em pergaminho, aberta entre as mãos, exibindo

um número infinito de cortes – de composições – à medida que o quadro avançava.

O sentido da margem da imagem como uma ferramenta de corte é uma das

qualidades da forma que mais interessaram os pintores inventivos no final do século XIX.

Até que ponto essa consciência derivou da fotografia e até que ponto da arte oriental, ainda

está aberto a estudos. Entretanto, é possível que a proeminência da imagem fotográfica

tenha ajudado a preparar o campo para uma apreciação da gravura japonesa e também

que as atitudes compositivas dessas gravuras devessem muito aos hábitos de ver que

derivaram da tradição dos pergaminhos.

Tempo

Não existe, de fato, tal coisa como uma fotografia instantânea. Todas as fotografias

são exposições temporais, de duração menor ou maior, e cada uma descreve uma parcela

discreta de tempo. Esse tempo é sempre o presente. Singularmente, na história das

imagens, uma fotografia descreve apenas aquele período do tempo em qual foi feita. A

fotografia alude ao passado e ao futuro apenas até ao ponto em que existe no presente, o

passado através de suas relíquias sobreviventes, o futuro através de profecia visível no

presente.

Nos dias dos filmes pouco sensíveis e objetivas pouco luminosas, as fotografias

descreviam um segmento de tempo de muitos segundos ou mais. Se o sujeito movia,

resultavam imagens que jamais haviam sido vistas anteriormente: cachorros com duas

cabeças e um molho de caudas, faces sem características, homens transparentes

estendendo suas diluídas substâncias por metade da placa. O fato de que essas imagens

foram consideradas (na melhor das hipóteses) como fracassos é menos importante que o

fato de que eram produzidas em quantidade; elas eram familiares a todos os fotógrafos e a

Page 7: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  7  

todos os fregueses que haviam posado para retratos de família com crianças contorcendo.

É surpreendente que a predominância dessas imagens radicais não tenha

despertado interesse nos historiadores da arte. A pintura de tempo-intervalado de Duchamp

e de Balla, feitas antes da primeira guerra mundial, tem sido comparada ao trabalho feito

por fotógrafos tais como Edgerton e Mili que trabalharam conscientemente com idéias

semelhantes um quarto de século depois, mas as fotografias acidentais de tempo-

intervalado do século XIX têm sido ignoradas – presumivelmente porque eram acidentais.

À medida que os materiais fotográficos foram tornados mais sensíveis, as objetivas

mais luminosas e os obturadores mais rápidos, a fotografia se voltou para a exploração de

sujeitos em rápido deslocamento. Da mesma forma que o olho é incapaz de registrar os

quadros simples de um filme projetado na tela à velocidade de 24 quadros por segundo, ele

é também incapaz de seguir as posições de um sujeito movimentando-se rapidamente na

realidade. O cavalo em galope é o exemplo clássico. Como havia sido adoravelmente

desenhado incontáveis milhares de vezes pelos gregos e egípcios, e persas e chineses e

posteriormente em todas as cenas de batalha e imagens esportivas do cristianismo, o

cavalo corria com as quatro patas estendidas, como um fugitivo de um carrossel. A tradição

foi quebrada não antes que Muybridge fotografasse, com sucesso, um cavalo em galope

em 1878. Foi assim também com o vôo dos pássaros, com a movimentação dos músculos

nas costas do atleta, com o panejamento da vestimenta de um pedestre e com as

expressões fugidias da face humana.

Imobilizar esses sutis nacos de tempo tem sido uma fonte de fascínio constante

para o fotógrafo. E enquanto perseguia esse experimento ele descobriu algo mais:

descobriu que havia um prazer e uma beleza nessa fragmentação do tempo que tinha

pouco a ver com o que acontecia. Isso tinha a ver, ao contrário, com ver a padronização

momentânea de linhas e formas que haviam sido anteriormente escondidas dentro do fluxo

do movimento. Cartier-Bresson definiu o comprometimento com essa nova beleza com a

frase O momento decisivo, mas a frase tem sido mal-entendida; a coisa que acontece no

momento decisivo não é um clímax dramático, mas visual. O resultado não é uma estória,

mas uma imagem.

O Ponto de tomada

Muito tem sido dito sobre a clareza da fotografia mas pouco tem sido dito sobre sua

obscuridade. E, não obstante, é a fotografia que tem nos ensinado a ver do ponto de vista

inesperado e nos mostrou imagens que proporcionam a sensação da cena ao mesmo

tempo em que retinha seu significado narrativo. Necessariamente, os fotógrafos escolhem a

partir das opções disponíveis e isso freqüentemente significa imagens do outro lado do

proscênio, mostrando as costas dos atores, imagens do ponto-de-vista dos pássaros, ou

das minhocas, ou imagens nas quais o sujeito é distorcido por um encolhimento extremo,

Page 8: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  8  

ou por nenhum, ou por um padrão pouco familiar de luz, ou por uma aparente ambigüidade

de ação ou gesto.

Ivins escreveu, com rara percepção, do efeito que essas imagens produziram nos

olhos do século XIX: “Inicialmente, o público comentou demasiado sobre o que chamava de

distorção fotográfica. … [Mas] não demorou muito e os homens começaram a pensar

fotograficamente e, desta forma, a ver por si mesmos coisas que anteriormente coube à

fotografia revelar a seus olhos atônitos e protestativos. Da mesma forma que a natureza

havia, um dia, imitado a arte ela, agora, ela começou, igualmente, a imitar a imagem

produzida pela câmera.”[8]

Após um século e um quarto, a habilidade da fotografia para desafiar e rejeitar

nossas noções esquematizadas da realidade ainda permanece fresca. Em sua monografia

sobre Francis Bacon, Lawrence Alloway comenta o efeito da fotografia sobre o pintor: “A

natureza evasiva de sua imaginária, que é chocante mas obscura, como fotografias de

acidente ou de atrocidade, foi alcançada pelo uso de amplo repertório de imagens visuais

da fotografia. … Fotografias jornalísticas sem legenda, por exemplo, freqüentemente

parecem como momentosas e extraordinárias. … Bacon usou essa propriedade da

fotografia de subverter a clareza da pose das figuras na pintura tradicional.”[9]

A influência da fotografia sobre os pintores modernos (e sobre os escritores

modernos) tem sido grande e inestimável. Estranhamente, é fácil esquecer que a fotografia

tenha também influenciado fotógrafos. Não apenas as grandes imagens de grandes

fotógrafos mas fotografia – seu grande todo indiscernível, homogêneo – tem sido o

professor, a biblioteca e o laboratório para aqueles que tem usado a câmera

conscientemente, como artistas. Um artista é um homem que procura novas estruturas para

nelas ordenar e simplificar sua sensação da realidade da vida. Para o fotógrafo artista,

muito de seu senso de realidade (onde sua imagem se inicia) e muito de seu senso de

ofício ou de estrutura (onde sua imagem é completada) são dons anônimos e inseparáveis

da própria fotografia.

A história da fotografia tem sido menos uma jornada que um crescimento. Seu

movimento não tem sido linear e consecutivo, mas centrífugo. A fotografia, e nosso

entendimento dela, se espalhou a partir de um centro; ela tem, por infusão, penetrado

nossas consciências. Como um organismo, a fotografia nasceu inteira. É na nossa

progressiva descoberta disso que está sua história.

Notas introdutórias aos módulos contendo as fotografias reproduzidas no catálogo

A Coisa em si

Mais convincentemente que qualquer outro tipo de imagem, uma fotografia evoca a

presença tangível da realidade. Seu uso mais fundamental e sua mais ampla aceitação têm

Page 9: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  9  

sido substitutos do próprio sujeito – uma versão mais simples, mais permanente, mais

claramente visível do fato puro.

Nossa fé na verdade de uma fotografia reside em nossa crença de que a objetiva é

imparcial e irá desenhar o sujeito como ele é, nem mais nobre nem mais mesquinho. Esta

fé pode ser ingênua e ilusória (porque embora a objetiva desenhe o sujeito, o fotógrafo

define-o), mas persiste. A visão do fotógrafo nos convence até ao ponto em que o fotógrafo

esconde sua mão.

O Detalhe

Para o fotógrafo, tendo deixado o estúdio, era impossível copiar os esquemas dos

pintores. Ele não podia dirigir uma batalha, como Uccello ou Velásquez, reunindo juntos

elementos que tinham estado separados no espaço e no tempo, nem podia rearranjar as

partes de sua imagem para construir um design que melhor o agradasse.

A partir da realidade à sua frente ele podia apenas selecionar aquela parte que

parecesse relevante e consistente e que preenchesse sua placa. Se ele não podia mostrar

a batalha, explicar seus propósitos e sua estratégia, ou distinguir seus heróis de seus vilões

ele podia mostrar o que era muito comum para ser pintado: a estrada deserta com balas de

canhão espalhadas, o barro incrustado nas rodas da carroça, as faces anônimas, a simples

figura partida junto à parede.

Intuitivamente, ele procurou e encontrou o detalhe significante. Seu trabalho, incapacitado

para a narrativa, voltou-se na direção do símbolo.

O Quadro

Citar fora de contexto é a essência do ofício do fotógrafo. Seu problema central é do

tipo simples: o que deve incluir, o que deve rejeitar? A linha de decisão entre dentro e fora é

a margem da imagem. Enquanto o desenhista começa a partir do meio da folha, o fotógrafo

inicia com o quadro.

As margens do fotógrafo definem o conteúdo.

Elas isolam justaposições inesperadas. Ao cercar dois fatos, elas criam um

relacionamento.

A margem da fotografia disseca formas familiares e mostra seu fragmento não-

familiar.

Ela cria as formas que cercam os objetos.

O fotógrafo edita os significados e padrões do mundo através de um quadro

imaginário. O quadro é o começo da geometria de sua imagem. Ele é para o fotógrafo como

a tabela para a mesa de bilhar.

Page 10: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  10  

Tempo

As fotografias possuem uma relação especial com o tempo, porque descrevem

apenas o presente.

Na fotografia primitiva as exposições eram longas. Se o sujeito movesse, suas

múltiplas imagens descreviam também uma relação espaço-tempo. Talvez tenham sido tais

acidentes que sugeriram o estudo fotográfico do processo do movimento e, posteriormente,

das formas virtuais produzidas pela continuidade do movimento no tempo.

Os fotógrafos descobriram um assunto inexaurível no isolamento de um simples

segmento de tempo. Eles fotografaram o cavalo no meio do galope, as expressões fugidias

da face humana, os gestos da mão e do corpo, o bastão acertando a bola, a gota

esborrachando-se no prato com leite.

Mais sutil foi a descoberta daquele segmento de tempo que Cartier-Bresson chamou

de o momento decisivo: decisivo não por causa do evento exterior (o bastão acertando a

bola) mas porque naquele momento o fluxo de formas e padrões mutantes foi percebido

como adquirindo equilíbrio e clareza e ordem – porque a idéia se tornou, por um instante,

em uma imagem.

O Ponto de tomada

Se o fotógrafo não podia mover seu sujeito, ele podia mover sua câmera. Para ver

claramente o sujeito – freqüentemente para vê-lo simplesmente – ele teve de abandonar

um ponto de tomada normal, e tomar sua imagem vista de cima, ou de baixo, ou de muito

próximo, ou de muito distante, ou pelas costas, invertendo a ordem de importância das

coisas, ou com o sujeito nominal de sua imagem escondido pela metade.

A partir de suas fotografias ele aprendeu que a aparência do mundo era mais rica e

menos simples que teria imaginado sua mente.

Ele descobriu que suas imagens podiam revelar não apenas a clareza mas a

obscuridade das coisas, e que estas imagens evasivas e misteriosas podiam também, em

seus próprios termos, parecer ordenadas e significativas.

……………………..

[1] – Charles Baudelaire, “Salon de 1859,” traduzido por Jonathan Mayne para “The Mirror

of Art, Critical Studies by Charles Baudelaire”. Londres: Phaidon Press, 1955 (Citado de “On

Photography, A Source Book of Photo History in Facsimile”, editado por Beaumont Newhall,

Watkins Glenn. N.Y.: Century House, 1956, p. 100.

[2] – Nathaniel Hawthorne, “The House of Seven Gables”, Nova Iorque: Signet Classics

edition, 1961, ps. 156-57.

[3] – A. C. Willers, “Poet and Photography,” em Picturescope, volume XI, # 4, Nova Iorque:

Page 11: o olho do fotýgrafo_szarkowski

  11  

Picture Division, Special Libraries Association, 1963, p. 46.

[4] – E. E. Cohen, “Bad Form in Photography,” em The International Annual of Anthony’s

Photographic Bulletin. New York and London: E. and H.T. Anthony, 1893, p. 18.

[5] – Hawthorne, citado, p. 85.

[6] – William M. Ivins Jr., “Prints and Visual Communications,” Cambridge, Mass.: Harvard

University Press, 1953, p. 180.

[7] – Idem, p. 94.

[8] – Idem, p. 138.

[9] – Lawrence Alloway, “Francis Bacon”. New York .: Solomon R. Guggenheim Foundation,

1963, p. 22.