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O OLHAR NA CLÍNICA DA PSICOSE INFANTIL IVY DE SOUZA DIAS Artigo apresentado ao Curso de Psicologia, Departamento de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, requisito parcial para obtenção do título de Psicóloga. Orientador: professor doutor Mário Fleig Avaliadora:professora doutora Ana Maria Gageiro Endereço para correspondência: Rua Doutor Freire Alemão, 351/302. Bairro: Mont Serra’t Porto Alegre- RS CEP: 90450-060 Telefones: (51) 99854147/(51) 33321119 Endereço Eletrônico: [email protected] São Leopoldo, Dezembro de 2006.

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O OLHAR NA CLÍNICA DA PSICOSE INFANTIL

IVY DE SOUZA DIAS

Artigo apresentado ao Curso de Psicologia, Departamento de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, requisito parcial para obtenção do título de Psicóloga. Orientador: professor doutor Mário Fleig Avaliadora:professora doutora Ana Maria Gageiro

Endereço para correspondência: Rua Doutor Freire Alemão, 351/302.

Bairro: Mont Serra’t Porto Alegre- RS CEP: 90450-060

Telefones: (51) 99854147/(51) 33321119 Endereço Eletrônico: [email protected]

São Leopoldo, Dezembro de 2006.

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O OLHAR NA CLÍNICA DA PSICOSE INFANTIL1

Ivy de Souza Dias2

Mário Fleig3

Resumo A proposta deste artigo é buscar, na teoria psicanalítica, elementos conceituais que sustentem a investigação sobre a questão do olhar na clínica infantil da psicose. Para tanto, parte-se de uma exposição a respeito da construção teórica sobre o Estágio do Espelho, como formador da função do eu. A seguir, faz-se um resgate das noções que situam a estrutura psicótica, por intermédio do estudo sobre os termos relativos à função paterna. Finalmente procura-se, a partir de um caso em atendimento, o qual foi o motivador das questões presentes nesta pesquisa, estabelecer algumas articulações entre teoria e clínica. Palavras-chave: Estágio do Espelho. Psicose. Olhar. Abstract The proposal of this article is to search, in the psychoanalysis theory, conceptual elements that support the inquiry on the question of the look in the infantile clinic of the psychosis. For this, it is initiated with an exposition regarding the theoretical construction about the Mirror Stage, as a constructor of the function of the I. Next, it is done a rescue of the knowledge that point out the psychotic structure, through the study about the relative terms to the paternal function. Finally, through a case in treatment, which was the main reason of the questions in this research, there is a tentative of establishing some connections between theory and clinic. Key words: Mirror Stage. Psychosis. Look. Sumário 1. Introdução. 2. A caminho do espelho. 2.1. O espelho como formador do

eu. 3. O sujeito aprisionado no espelho. 4. O menino que não nos olha: fragmentos de um caso clínico. 5. Conclusão. 6. Referências.

1 Artigo apresentado ao Curso de Psicologia, Departamento de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, requisito parcial para obtenção do título de Psicóloga, nov. 2006. 2 Acadêmica do Curso de Graduação em Psicologia, Departamento de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, nov. 2006. 3 Doutor, orientador e professor do Curso de Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, nov. 2006.

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PARECER DE RECOMENDAÇÃO Porto Alegre, 25 de janeiro de 2007. Ilmos. Srs. Associação de Ensino de Psicologia Prêmio Silvia Lane

Recomendo o trabalho de conclusão do curso de Psicologia, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, de minha orientanda, Ivy de Souza Dias, intitulado “O olhar na clínica da psicose infantil”, para concorrer ao prêmio Silvia Lane.

A proposta do trabalho de Ivy de Souza Dias foi a de buscar, na teoria psicanalítica, elementos conceituais que pudessem sustentar a investigação sobre a questão do olhar na clínica infantil da psicose. Para tanto, a autora partiu de uma exposição a respeito da construção teórica sobre o Estágio do Espelho, como formador da função do eu, remontando às suas fontes em Wallon, que por sua vez remeteram a ninguém mais do que Darwin. Avançando em direção à sua questão clínica, a autora fez um resgate das noções que situam a estrutura psicótica, por intermédio do estudo sobre os termos relativos à função paterna. Finalmente procurou, a partir de um caso em atendimento, o qual foi o motivador das questões da pesquisa, estabelecer algumas articulações entre teoria e clínica. Percebemos, ao longo do acompanhamento e orientação, o quanto a elaboração deste texto, na relação entre o estudo teórico e o trabalho clínico, foi determinante para o aprendizado e crescimento pessoal e profissional da autora.

Posto isso, consideramos oportuno recomendar o trabalho de Ivy de Souza Dias para concorrer ao prêmio Silvia Lane.

Atenciosamente,

Prof. Dr. Mario Fleig

Unisinos – PPG-Filosofia Psicanalista membro da Association lacanienne internacionale

e-mail: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO

O presente artigo nasce de uma indagação clínica posta a partir do tratamento de uma

criança, que veio mediante um encaminhamento psiquiátrico com o diagnóstico de psicose.

Desde os primeiros encontros com ela, nos intrigou sua dificuldade/impossibilidade de nos

olhar. Esta experiência despertou nosso interesse em pesquisar o seguinte tema: ao considerar

o olhar em sua função subjetiva e não somente como função orgânica, como pensar essa

questão a partir da clínica infantil da psicose? E mais: é possível afirmar que existe uma

singularidade no olhar psicótico? Em caso afirmativo, em que se constitui essa

especificidade?

Sabemos que atualmente há uma tendência geral de medicalização da sociedade e

também um reducionismo ao biológico na explicação do sofrimento psíquico. Trabalhar com

a clínica psicanalítica é apontar os limites da medicação e procurar a direção de um trabalho

terapêutico no qual o paciente é convocado a participar ativamente. Neste viés de trabalho, o

ponto central é o sujeito do inconsciente, quando o terapeuta fica colocado na posição de

escuta e o paciente no lugar da palavra. Da mesma forma, esta concepção de subjetividade é

levada para o trabalho com a clínica infantil, com a diferença de que a criança é escutada em

todas as suas formas de expressão.

O estudo das psicoses na clínica revela grande complexidade, uma vez que é muito

difícil conviver com a alteridade que a loucura provoca. Talvez por isso se encontrem poucos

profissionais dispostos na direção da escuta de tais sujeitos. É comum, no exercício deste

trabalho, encontrar equipes que acreditam no silenciamento dos pacientes mediante exclusivas

internações hospitalares ou apenas condutas medicamentosas.

O presente estudo incluirá a concepção em que o olhar é constituinte do sujeito. A

criança antecipa a forma de seu corpo, por meio de uma identificação imaginária com o seu

semelhante, para só depois construir a noção de corpo simbólico. Esta construção não obedece

somente a um tempo evolutivo, mas indica uma estruturação de ordem psíquica. A questão da

constituição da subjetividade e do desenvolvimento da criança apresenta-se a todo o momento

na clínica. Assim, entender este tema, em seus desdobramentos, constitui-se a sustentação

teórica do trabalho terapêutico com crianças.

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Ao considerar, então, a grande demanda de casos que envolvem a patologia da psicose

e um certo ecletismo que mascara as diferenças teóricas quanto à terapêutica desta clínica, é

que se coloca a justificativa para esta proposta de pesquisa. Desta forma, esta busca teórica,

sustentada pela abordagem psicanalítica, põe-nos diante da necessidade de entender como se

dão as relações do olhar com os momentos iniciais de estruturação psíquica do sujeito. Nesse

estudo, procuramos explorar o conceito de Estágio do Espelho na leitura lacaniana,

considerando algumas construções teóricas anteriores que abriram caminho para esta

definição.

A partir destas considerações, discorremos sobre o quadro clínico das psicoses,

buscando situar a concepção psicanalítica dessa estrutura, por meio da investigação sobre os

termos relativos à função paterna. Neste momento trabalhamos com os conceitos elaborados

por Freud e retomados por Lacan.

Para finalizar, buscamos nos recortes de um caso clínico em atendimento, questões

que produziram e sustentaram as indagações deste artigo. A partir daí procuramos estabelecer

articulações entre a prática clínica e a leitura teórica psicanalítica.

Como não é possível responder a essas questões de forma a esgotá-las, o esforço será

no sentido de vislumbrar algumas possibilidades para sustentar o trabalho clínico com

crianças psicóticas, especialmente com relação à questão do olhar. Poder compartilhar o

atendimento de Pedro4 significa enriquecer a nossa escuta e, portanto, o nosso trabalho

clínico.

2 A CAMINHO DO ESPELHO...

Ao publicar “A origem das espécies”, em 1859, Charles Darwin (2004) trazia para o

mundo uma descoberta que serviria como pano de fundo para muitas pesquisas posteriores:

sua arrojada teoria sobre a evolução das espécies por meio da seleção natural. Preocupado, no

entanto, com a aceitação que teriam as suas teses, as quais punham em dúvida a criação do

mundo por Deus, resultando essencialmente anticriacionistas, Darwin publicou nos anos

seguintes outros textos fundamentais para a sustentação de sua teoria.

4 Nome fictício para que se possa preservar o sigilo ético.

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Em “A expressão das emoções no homem e nos animais”, de 1872, Darwin (2000) traz

a idéia, a partir de descrições minuciosas e curiosos desenhos e fotografias, que também os

animais têm emoções – raiva, medo, ciúme – manifestadas por meio das expressões. Ele

examina e explica essas expressões do ponto de vista de sua funcionalidade no processo de

adaptação do indivíduo ao meio. Ao abordar as complexas emoções e expressões do homem,

contudo, ele defende, segundo a teoria da evolução, que nossas expressões são resquícios

herdados de antepassados primitivos, comuns tanto ao homem quanto a outros animais.

Dessa forma, em um capítulo sobre “as expressões especiais do homem”, nessa mesma

obra, Darwin (2000) descreve que a contração dos músculos em volta dos olhos, durante uma

expiração violenta ou quando o tórax expandido é fortemente comprimido, está intimamente

ligada à secreção de lágrimas. Segundo o autor, isso vale para diferentes emoções, mas

também independe delas. O olho e seus apêndices estão sujeitos a um número extraordinário

de reflexos e movimentos, sensações e ações associadas, além daquelas relacionadas às

glândulas lacrimais, por exemplo, quando os olhos piscam involuntariamente na aproximação

de um objeto, ou quando um barulho é subitamente ouvido.

Darwin (2000, p. 164) formula uma pergunta: por que há secreção de lágrimas durante

um ataque de choro ou em quaisquer outros esforços expiratórios violentos? E responde:

Se nossos bebês, durante um período precoce da vida, quando todo o tipo de hábito se estabelece com facilidade, tivessem sido acostumados a soltar gargalhadas (durante as quais os vasos dos olhos se dilatam) quando contentes com a mesma freqüência e duração dos seus berros de insatisfação, provavelmente mais tarde eles derramariam lágrimas com a mesma intensidade, tanto em um estado de espírito quanto no outro. Uma pequena risada, um sorriso ou mesmo um pensamento agradável teriam sido suficientes para provocar uma secreção moderada de lágrimas.

Segundo o autor, se os bebês, durante muitas gerações, e cada um por vários anos,

tivessem quase diariamente prolongadas crises de sufocação, durante as quais os vasos do

olho se dilatam e lágrimas são copiosamente segregadas, seria provável que mais tarde esse

comportamento se repetisse continuamente. A explicação para isso está na força do hábito

associado, pois um simples pensamento de sufocação, mesmo sem qualquer sofrimento

mental, seria suficiente para levar lágrimas aos olhos.

Mais tarde, Darwin (2000) aponta para uma associação entre as lágrimas que escorrem

do olho humano e um possível sofrimento pelo qual a pessoa vem passando. Ele expõe que,

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apesar de considerarmos o choro como um resultado incidental, tão desprovido de sentido

quanto a secreção de lágrimas provocada por um golpe no olho, ou um espirro causado por

uma luz brilhante na retina, isso não dificulta a nossa compreensão de como a secreção de

lágrimas serve de alívio para o sofrimento. E acrescenta que quanto mais violento ou intenso

for o choro, maior será o alívio – pelo mesmo princípio que faz com que a agonia da dor seja

aliviada pelo tremor do corpo inteiro, pelo ranger dos dentes ou por gritos agudos.

As idéias anteriormente referidas demonstram a concepção darwiniana que está

assentada sobre a base de uma imensa riqueza de observações do mundo natural. Dito de

outra forma, Darwin acreditava que toda a transformação de um indivíduo em sujeito é

comandada por uma dialética natural.

Henri Wallon (1968), baseando-se nas concepções de Darwin, cria suas próprias

perspectivas de entendimento em relação ao desenvolvimento psicológico da criança. Ele

concorda que nossas funções são orientadas pelo orgânico, mas paralelamente acrescenta a

dimensão social. Também afirma, em seus textos, que os dois pólos entre os quais se

desenvolve a atividade humana são as necessidades do organismo e as exigências sociais.

O autor apóia-se numa escolha teórica em favor do materialismo dialético, que irá

servir de suporte para sua concepção da Psicologia: materialista, quando situa a natureza

como realidade que existe independentemente da consciência humana; dialético, quando parte

do princípio de que a natureza é o resultado de múltiplas relações, condicionamentos e

movimentos. Ele a faz assentar-se numa doutrina que admite a coexistência de dois princípios,

nos quais a noção de desenvolvimento desempenha um papel central. O fator biológico,

ligado à maturação do sistema nervoso, é inseparável do fator social, constituído pelas

interações do homem com seu meio. O autor pensa o conjunto da Psicologia a partir da

infância. É a sucessão descontínua dos estágios, e depois suas transformações em termos de

crises, que fornece a chave da passagem do estado infantil à situação adulta. Segundo René

Zazzo (1978), no domínio da Psicologia, a teoria walloniana toma agressivamente o sentido

diametralmente oposto à atitude tradicional, arcaica, que apresentava a criança como uma

imagem reduzida e simplificada do adulto.

Wallon (1968) não revela interesse pelo drama concreto da pessoa, não se prende às

constituições estanques e não coloca em cena os fluxos do condicionamento. Por isso, sua

ótica consiste em construir uma psicobiologia, isto é, uma teoria das mentalidades, que leve

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em conta, de um lado, a cultura, e de outro, a hereditariedade. O seu método, portanto, reforça

o estudo das condições materiais do desenvolvimento da criança e procura verificar como se

edifica, por meio dessas condições, um novo plano de realidade, que é o da personalidade.

Na realidade, o que Wallon faz é nunca dissociar o biológico do social, porque um não

é redutível ao outro. Ele os situa, no homem, como estritamente complementares desde o seu

nascimento. As capacidades biológicas são as condições da vida em sociedade, mas o meio

social é a condição do desenvolvimento dessas capacidades. Nesta perspectiva, Wallon renova

profundamente as teorias científicas da motricidade e da emoção, como inicialmente Darwin

as concebia.

Sobre a emoção, Wallon (1968) acrescenta que na medida em que ela é estudada no

adulto adquire teorias múltiplas e contraditórias. Recolocada numa perspectiva genética, a

toma, então, em seu verdadeiro significado funcional. A emoção é um fato fisiológico do

ponto de vista orgânico e um comportamento social nas suas funções primitivas de adaptação.

No entendimento de Wallon, a emoção é contraditória nos seus efeitos. Ela oscila entre

um estado de confusão, de oposição e de discriminação a outro. Assim, a emoção esboça o

pensamento, a representação que lhe é contraditória e não contrária. Igualmente delimita a

distinção entre o ego e os outros e antecipa as afirmações da personalidade. Dessa forma, o

enxerto do social no orgânico tem na espécie humana uma importância decisiva, porque está

ligado à condição de existência do indivíduo desde o seu nascimento.

Em relação à descoberta freudiana, mesmo Wallon (1968) reconhecendo a sua

importância, ele rejeita a idéia de um primado absoluto do inconsciente e não propõe à

Psicologia a questão do seu estatuto. Tenta, antes, articulá-la com um novo domínio do saber,

situado no cruzamento das Ciências Sociais. De fato, ele introduz no campo da Psicologia um

certo número de conceitos que serão empregados pela segunda geração de psicanalistas, e

notadamente por Jacques Lacan, dentro do contexto de uma reformulação “francesa” da

doutrina freudiana, isto é, mediante uma releitura de Freud. Assim sendo, ele participa, num

primeiro momento, da introdução do freudismo e, num segundo momento, de sua renovação.

Em 1931, seis anos antes de ser nomeado professor do Colégio da França, Wallon

(1989) redige um texto admirável sobre a questão do espelho e a noção de corpo próprio. Seus

principais elementos serviriam de alicerce para Lacan elaborar dois conceitos fundamentais de

seu ensino: o imaginário e o simbólico.

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A aventura do espelho, apresentada como uma aparelhagem científica, é lançada por

Wallon da seguinte forma: quando um pato é privado de sua fêmea e encerrado num cômodo

revestido de espelhos, ele toma sua própria imagem pela da companheira ausente. Em

circunstâncias idênticas, um cão tem uma reação de evitação. Responde aos afagos, mas

recusa seu reflexo e se volta para seu experimentador.

Comparando as atitudes dos animais com a das crianças, Wallon (1989) constata a

presença de posturas diferentes, dependendo da idade. Argumenta que até o fim dos três

meses, a criança é insensível à imagem do espelho, mas no decorrer do quarto mês produzem-

se mudanças. O olhar se fixa e o bebê observa seu reflexo como se fosse estranho a sua

pessoa. O bebê, entretanto, esboça um sorriso. Dois meses depois, ainda sorri quando se olha

no espelho e, posteriormente, para a imagem de seu pai. Quando, porém, escuta a voz do pai

vinda de trás, volta-se para examinar se é seu pai mesmo que está ali. Ainda não consegue

fazer coincidirem no mesmo tempo e espaço um reflexo e uma imagem real. A criança

percebe com perfeição a relação existente entre a imagem e o seu modelo, mas não apreende a

existência de uma relação de dependência entre ambos.

No décimo mês a criança estende os braços para sua imagem e olha para ela quando

chamamos por seu nome. Assim, ela representa o seu corpo próprio por meio de fragmentos e

ao fim de um longo processo de exteriorização. Para unificar seu eu no espaço, a criança tem

de obedecer a uma necessidade dupla: é preciso que admita a existência de imagens que

pareçam com o real e deve afirmar a realidade de uma existência que escapa à percepção.

Assim, segundo Wallon (1989), a criança se acha presa em duas formas contraditórias da

representação: de um lado, encontra imagens sensíveis, mas não reais e, de outro, imagens

reais, mas subtraídas ao conhecimento sensorial.

A prova do espelho serve para a criança introduzir as distinções e equivalências entre

o eu e o mundo. Nela, forma-se a noção de corpo próprio, que conduz à unidade do eu. Num

primeiro tempo essa prova situa-se no âmbito da especularidade: não há relação entre a

imagem refletida no espelho e a real. Num segundo tempo, ao contrário, estabelece-se uma

relação que permite a constituição de um eu unificado num espaço imaginário que escapa ao

efeito especular. Wallon também compara essa etapa a uma forma antecipada de uma terceira

etapa, simbólica, que dará à criança os meios para organizar sua experiência sensível. Afirma

também que, por volta de um ano de idade, a capacidade de estabelecer distinções no espaço

define a função simbólica, e esta inaugura o campo para uma verdadeira aprendizagem da

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realidade subjetiva e objetiva. Neste estágio a criança já não se contenta em estabelecer uma

relação entre a imagem real e a imagem refletida. Aos 15 meses, o espelho assume uma nova

feição. Para mostrar sua mãe, a criança a percebe, primeiro, pelo espelho e depois, se volta

para ela sorrindo. Wallon (1989, p. 320) afirma: “Ela (a criança) finge atribuir a

preponderância à imagem, precisamente porque acaba de reconhecer claramente nesta a

irrealidade e o caráter puramente simbólico.”

Segundo Elisabeth Roudinesco (1988), quando Wallon redige o texto sobre a

psicogênese do corpo próprio e da unidade do eu, não estabelece nenhuma relação com o seu

trabalho e o de Freud. Situa sua experiência dentro dos limites de uma Psicologia centrada,

prioritariamente, em uma consciência dialética, na qual o inconsciente quase não tem lugar.

Wallon (1989) ignora que suas experiências irão desempenhar um papel fundamental na

história moderna do movimento psicanalítico francês, as quais serão fundamentais para Lacan

fazer sua leitura e retirar o seu Estádio do Espelho.5

Sabemos que todas as ciências, em especial as que estão sendo criadas, vão pedir

modelos emprestados a outras ciências. Lacan (1986) cita como exemplo a Geologia, pois

sem ela não poderíamos pensar que se pudesse passar, ao mesmo nível, de uma camada

recente à outra camada muito anterior. Freud [1895 (1972)], quando se refere ao processo

inconsciente, põe no seu interior as diferentes camadas que se distinguem do nível perceptivo,

ou seja, da percepção instantânea (S1, S2, etc...), ao mesmo tempo em que evidencia as

imagens e recordações. Esses vestígios registrados são posteriormente recalcados no

inconsciente. Assim, Lacan (1986) constrói a idéia de lugar psíquico, na referência freudiana

da explicação de um aparelho microscópio, que foi a forma encontrada para nos fazer

compreender o arranjo do mecanismo psíquico.

Lacan (1986, p. 108), entretanto, busca no aparelho da óptica, “muito mais simples

que um microscópio complicado”, a explicação para o surgimento da imagem. As imagens

ópticas apresentam diversidades singulares – algumas são puramente subjetivas, as chamadas

imagens virtuais, ao passo que outras são reais, ou seja, comportam-se sob certos aspectos

como objetos e podem ser tomadas como tais.

O olhar e a imagem tomam entre si uma referência. Um não existe sem o outro. É

através do olhar que a imagem se constitui e esse, por sua vez, não tem um sentido sem a

5 Aqui, entenda-se da mesma forma a grafia “Estágio” do Espelho ou “Estádio” do Espelho.

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imagem, “é a dependência do visível em relação àquilo que nos põe sob o olho do que vê.”

(LACAN, 1998, p. 73). O ato de “ver-se vendo” instaura no indivíduo a sensação de existir no

mundo e compõe a constituição de um eu6 fora de si mesmo, com função de entender-se,

“saber-se” dentro de um espaço e de um tempo.

Um olhar o surpreende na função de voyeur, o desorienta, o desmonta, e o reduz ao sentimento de vergonha. O olhar de que se trata é mesmo presença de outrem enquanto tal. Mas é de se dizer que, originalmente, é na relação de sujeito a sujeito, na função da existência de outrem como me olhando, que percebemos de que se trata no olhar? Não estará claro que o olhar só intervém na medida em que não é o sujeito nadificante, correlativo do mundo da objetividade, que se sente surpreendido, mas o sujeito se sustentando numa função de desejo? (LACAN, 1998, p. 84).

Lacan (1986) defende que toda a óptica repousa inteira numa teoria matemática sem a

qual é absolutamente impossível estruturá-la. Para que haja uma óptica é necessário que a

qualquer ponto dado, no espaço real, corresponda um só ponto no outro espaço, que é o

espaço imaginário. Para ele, esta é a hipótese estrutural fundamental, a qual, apesar de

simples, sem ela não se pode escrever a menor equação, nem simbolizar nada – a óptica

tornar-se-á impossível.

O espaço imaginário e o espaço real se confundem. Na óptica, o simbólico conta na

manifestação de um fenômeno. Por outro lado, em óptica há uma série de fenômenos que

podemos afirmar perfeitamente reais, posto que é a experiência que nos guia, mas na qual,

contudo, a subjetividade está constantemente comprometida.

Assim, Lacan (1986) inicia a descrição de seu entendimento do aparelho óptico: um

caldeirão, que próximo a uma semi-esfera bem polida no interior, ou seja, um espelho

esférico, produz uma imagem real. A cada ponto de um raio luminoso emanando de qualquer

ponto de um objeto colocado a uma certa distância, corresponde no mesmo plano, por

convergência dos raios refletidos na superfície da esfera, outro ponto luminoso – o que dá ao

objeto uma imagem real. Ele faz uma suposição de que tem a sua frente uma caixa, oca de um

dos lados, que está colocada sobre um suporte, no centro da semi-esfera. Em cima desta caixa

há uma jarra real. Por baixo há um ramo de flores. Lacan percebe que todos os raios

emanados de um ponto dado vêm ao mesmo ponto simétrico. A partir daí, forma-se uma

imagem real. Ele aponta para o fato de que no seu esquema os raios não se cruzam 6 A partir da segunda tópica freudiana, a teoria lacaniana concebe o eu no isso, dividindo-o num eu (moi) e num Eu (Je), que indica o sujeito determinado por um significante. Neste trabalho, o eu grafado em itálico compreende as duas dimensões do conceito.

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perfeitamente, mas afirma que isso também ocorre na realidade, e para todos os instrumentos

de óptica – só se obtém uma aproximação. Para além do olho, os raios continuam o seu

caminho e redivergem. Em direção ao olho, porém, são convergentes e dão uma imagem real,

uma vez que a característica dos raios, que impressionam um olho sob uma forma

convergente, é dar uma imagem real.

Convergentes vindo para o olho, divergem quando dele se afastam. Se os raios vêm impressionar o olho em sentido contrário forma-se uma imagem virtual. É o que se passa quando olham para uma imagem no espelho – vêem-na lá onde ela não está. Pelo contrário, aqui, vocês vêem lá onde ela está – com a única condição de que o nosso olho esteja no campo dos raios que já vieram cruzar-se no ponto correspondente. (LACAN, 1986, p. 111).

Ainda segundo Lacan (1986), esse esquema não pretende mudar a nossa afinidade com

o que manejamos em análise: relações ditas reais, objetivas e imaginárias. Explica, no entanto,

que permite ilustrar de uma maneira particular e simples o que resultar da estreita relação

entre o mundo imaginário e o mundo real na estrutura psíquica.

Lacan (1986, p. 112) admite não ter sido ele quem inventou essa experiência do “ramo

de flores invertido”, mas acrescenta que os autores que a inventaram acabaram auxiliando o

pensamento psicanalítico. “Com efeito, o domínio próprio do eu primitivo constitui-se por

clivagem, por distinguir-se do mundo exterior. O que está incluído lá dentro distingue-se do

que é rejeitado pelos processos de exclusão e de projeção.” Assim, surgem as primeiras

concepções analíticas do estágio primitivo da formação do eu: continente e conteúdo.

A partir do processo de maturação fisiológica do sujeito, este pode integrar

efetivamente as suas funções motoras e ter acesso a um domínio real de seu corpo. Só que é

antes desse momento que o sujeito toma consciência do seu corpo como totalidade. Dessa

maneira, Lacan (1986) reafirma a sua teoria do Estádio do Espelho – a visualização total do

corpo humano dá ao sujeito um domínio imaginário, prematuro e antecipatório de seu corpo

em relação ao domínio real. Esta formação é separada do processo de maturação e não se

confunde com ele. É, nas palavras de Lacan (1986, p. 113), “a aventura original por onde o

homem faz, pela primeira vez, a experiência de se ver, de se refletir e de conceber outro do

que aquele que é – dimensão essencial do humano que estrutura toda a sua vida fantasmática.”

Lacan (1986, p. 113) levanta a idéia de que é a imagem do corpo próprio que dá ao

sujeito a primeira condição que lhe permite situar o que é do eu e o que não é. A imagem do

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corpo, posta no esquema apresentado anteriormente, é como a jarra imaginária que contém o

ramo de flores real. Assim, podemos representar o sujeito antes do nascimento do eu e o

surgimento deste. Então, o autor propõe que se vire ao contrário o esquema – a jarra por baixo

e as flores por cima. “Podem à vontade tornar imaginário o que é real, com a condição de

conservar a relação dos sinais + - + ou - + -.”

Para que a ilusão se produza, ou seja, para que o olho que olha um mundo em que o

imaginário pode incluir o real e, com o mesmo gesto, formá-lo, onde o real também pode

incluir e, com o mesmo gesto, situar o imaginário, é preciso que esteja presente uma

condição: o olho deve estar no interior do cone. Dessa forma, não vê o que é imaginário, pois

nada do cone de emissão virá impressioná-lo.

Com isso, o sujeito que olha verá as coisas no seu estado real, ou seja, o interior do

mecanismo e uma jarra vazia, ou flores sozinhas, dependendo do caso. Então, a caixa é o

corpo, o ramo são os instintos e desejos. Nesse campo, o olho é o símbolo do sujeito. Na

relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal qual daí resulta, tudo depende

da situação do sujeito. E esta é essencialmente caracterizada pelo seu lugar no mundo

simbólico, ou seja, no mundo da fala.

2.1 O Espelho como Formador do eu

No Congresso Internacional de Psicanálise, em julho de 1949, Lacan abordou

novamente a concepção do Estágio do Espelho, porém, naquela ocasião, seus esclarecimentos

recaíram sobre a função do eu na experiência psicanalítica. Inicialmente ele partiu do aspecto

comportamental na explicação do Estágio do Espelho, em que comparou o filhote humano ao

filhote do chimpanzé. O humano, apesar de ser superado pelo chimpanzé em inteligência

instrumental, já reconhece sua imagem no espelho. Esse ato, com efeito, logo repercute na

criança mediante uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a relação dos

movimentos assumidos pela imagem com o seu meio refletido, e desse complexo virtual com

a realidade que ela reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas e os objetos que

estão ao seu redor.

Esse acontecimento pode introduzir-se a partir dos seis meses e se encerra aos dezoito

meses de idade, revelando um dinamismo libidinal, até então problemático, de uma estrutura

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ontológica do mundo humano que se insere em nossas reflexões sobre o conhecimento

paranóico. Compreendemos o Estádio do Espelho como uma identificação, no sentido pleno

que a análise atribui a esse termo, ou seja, uma transformação produzida no sujeito quando ele

assume uma imagem.

A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação [...], parece manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. (LACAN, 1998, p. 97).

Conforme Lacan (1998), o importante é que essa forma situa a instância do eu, desde

antes de sua determinação pelo social, até seu reconhecimento pelo Outro primordial. A

função do Estádio do Espelho revela-se como um caso particular da função da imago, que é

estabelecer uma relação do organismo com sua realidade. Essa relação com a natureza,

porém, é alterada no homem por uma certa abertura espontânea do organismo em seu meio.

Esse desenvolvimento é vivido como uma dialética temporal que projeta

decisivamente na história do indivíduo a sua formação: o Estádio do Espelho é um momento

cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o

sujeito, apanhado na ilusão da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma

imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade – e para a armadura enfim

assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu

desenvolvimento mental.

Nesse sentido, percebe-se que o conceito de eu, em Lacan (1998), está

fundamentalmente alienado ao Outro. Aliás, é esta idéia que produz a enigmática afirmação

lacaniana: “o eu é um Outro”. Ou seja, pelo seu estado de prematuridade, a criança é tomada

pelo reflexo especular. É este processo que produz a apreensão da forma global do corpo e ao

mesmo tempo contribui para a formação do eu. Antes de se constituir, o eu se confunde com

esta imagem que o forma e o aliena.

Segundo Lacan (1998, p. 116), há uma organização paranóica constitutiva da própria

emergência do eu. O autor relaciona esta questão com o conceito de transitivismo: crianças

pequenas com idades semelhantes, quando juntas confundem-se quanto aos gestos. Serão seus

ou do outro? São cenas privilegiadas que revelam a ambivalência entre o eu e o Outro:

14

A criança que bate diz ter sido batida, aquele que vê cair, chora. Igualmente, é em uma identificação a outro que ela vive toda a gama de reações de imponência e ostentação, das quais suas condutas revelam com evidência a ambivalência estrutural: escravo identificado a déspota, ator ao espectador, seduzido ao sedutor.

Assim, é próprio da constituição do eu uma dimensão de desconhecimento. O

elemento paranóico não aponta para uma psicopatologia e sim para o fato de que o eu se

forma fora de nós e, portanto, pode se tornar persecutório. É uma situação que pode ocorrer

no cotidiano de qualquer um: às vezes realmente temos a impressão de que alguém está nos

seguindo, ou atrás de nós. Aí, nesse momento, podemos afirmar que o olhar é imaginário.

Desse modo, é possível inferir que o sujeito jamais chega a identificar um eu, pois este não

cessa de escapar na medida em que o drama humano é justamente a constante busca da

identidade.

Para Lacan (1998, p. 102), o momento que se conclui o Estádio do Espelho é

inaugurado pela identificação com a imago do semelhante e pela cena do ciúme primordial,

que desde então liga o eu a situações sociais. É esse momento que decisivamente faz todo o

ser humano abrir-se para participar do desejo do outro, e que faz do eu esse mecanismo para o

qual qualquer impulso dos instintos será perigoso, ainda que corresponda a um

amadurecimento natural – “passa desde então a própria normalização dessa maturação a

depender, no homem, de uma intermediação cultural, tal como se vê no que tange ao objeto

sexual, no complexo de Édipo.”

3 O SUJEITO APRISIONADO NO ESPELHO

Conforme refere Charles Melman (1991), o título original do seminário de Lacan não

deveria ser “As Psicoses” mas “Estruturas Freudianas das Psicoses”. Tomar o termo somente

como psicoses poderia fazer supor que estas constituiriam um objeto que nos seria

naturalmente proposto, ou seja, algo como retomar o mito de uma espécie de conhecimento

natural. O autor afirma que é muito diferente falar de estruturas freudianas das psicoses, pois

aí sublinham-se os fatos de estrutura, tais como Freud os inaugurou e os delimitou e Lacan

conceituou como forclusão do Nome-do-Pai.

Melman inaugura a denominação Estruturas Lacanianas das Psicoses, uma vez que

desde os trabalhos de Lacan sobre o espelho, a importância está situada na forma paranóica da

15

formação do eu. O autor ainda acrescenta que para Freud o eu seria o guardião, o protetor, o

organizador da realidade, constituindo-se na instância combativa para manter um pedaço de

realidade, lutando contra o isso, contra o supereu, contra a própria realidade.

Dessa forma, percebe-se que aí, quando para Freud o eu seria o guardião da realidade,

para Lacan:

ele é o responsável por um desconhecimento que irá projetar sua sombra hostil sobre o mundo de nossos objetos, e que introduz a loucura no âmago do ser, uma vez que a busca de sua identidade ao ser não pode conduzir senão ao aprofundar da alienação fundadora. E, nesse ponto inicial, o que Lacan introduz sobre o direcionamento da psicose é que essa alienação fundadora, de algum modo, revela a autonomia, a independência desse eu. Na psicose, é esse eu, nos diz ele, que achar-se-ia em condições de tomar posse da palavra, de se pôr a falar por sua própria conta. (MELMAN, 1991, p. 8).

Antes da Psicanálise, o quadro da psicose não havia sido abordado senão de um ponto

de vista filosófico, epistemológico ou fenomenológico. Freud, em 1915, quando analisa o

Homem dos Lobos, vai introduzir o termo Verwerfung, primeiramente traduzido por

“rejeição”. Este termo especificará a psicose, uma vez que na neurose o que está em questão é

a Verdrängung, isto é, o recalque. Na verdade, desde “As Psiconeuroses de Defesa”

[1894 (1972)], Freud começa a delimitar a distinção entre a neurose e a psicose.

Ao analisar o texto das “Memórias do Presidente Schreber”, em 1903, Freud não

utilizou a palavra Verwerfung. Foi só em 1915, na análise do Homem dos Lobos que este

conceito tornou-se necessário. Foi a alucinação do dedo cortado neste caso clínico que

permitiu a Freud observar um efeito da relação do sujeito à castração: este efeito é diferente

daquele que Freud tinha observado na neurose. É importante destacar que o Homem dos

Lobos só reencontrou esse episódio alucinatório muitos anos mais tarde, a partir das cicatrizes

no nariz, quando se encontrou novamente confrontado com a rejeição primordial, isto é, uma

parte separada do corpo aparecendo sob forma alucinatória.

Esse modo de castração implica como pai um “personagem terrificante” que ameaça

uma castração real. Diz-se, então, que Freud chegou ao pai, agente da castração. Em relação

ao caso Schreber, quando Freud sublinhava a relação do sujeito ao pai, Lacan avança para a

questão da relação do sujeito ao significante.

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Lacan (1985), no seu Seminário 3 sobre “As Psicoses”, analisa em profundidade o

Caso Schreber trabalhado por Freud, bem como o próprio texto em que Freud se baseou,

“Memórias de um Neuropata”. Observa que na psicose se trata de “uma outra língua”. Além

disso Lacan (1985, p. 23), no mesmo texto, destaca que, como no sujeito normal a relação

com a fala é ambígua, no psicótico, por sua vez, há uma relação completamente identificada

com o seu eu:

é justamente o que se apresenta no fenômeno na alucinação verbal. No momento em que ela aparece no real, isto é, acompanhada desse sentimento de realidade, que é a característica fundamental do fenômeno elementar, o sujeito fala literalmente com o seu eu, e é como se um terceiro, seu substituto de reserva, falasse e comentasse sua atividade.

É em 1956 que Lacan escolhe, para traduzir Verwerfung, o conceito de forclusão,

especificando que se trata de uma forclusão do significante, a qual produz uma posição

subjetiva que, ao apelo do Nome-do-Pai, responda não o pai real, mas a carência do próprio

significante. A Verwerfung implica, portanto, que logo no início algo não é admitido em

termos de significantes primordiais, constituindo um buraco no simbólico.

A conseqüência é o sujeito ficar situado fora do campo simbólico, no que se refere a

estes significantes, que Lacan relaciona com o Nome-do-Pai. Dito de outro modo, não

havendo a inscrição dos significantes primordiais, o efeito pode ser apreendido no dizer do

paciente psicótico. No que respeita à psicose infantil, Lacan (1985, p. 135) faz uma

observação precisa no Seminário de 2 de fevereiro de 1955: “A psicose não é estrutural, de

jeito nenhum, da mesma maneira na criança e no adulto [...] sobre este ponto ainda não temos

doutrina nenhuma [...] sobre a psicose do adulto, a fortiori sobre a da criança, reina ainda a

maior confusão.”

Com isso, consideramos que a psicose, no tempo da infância, no tempo da passagem

que conduz o infans ao estatuto de falasser, é um campo a definir. Segundo Leda Bernardino

(2004), se à Psicanálise interessa o tempo lógico e não o tempo cronológico do

desenvolvimento, como pensar o momento de inscrição desta referência à falta – o Nome-do-

Pai? E, acrescenta, no caso da psicose, que pressupõe a não-inscrição ativa deste significante,

em que momento esta poderia ser situada? Seria uma não-inscrição definitiva?

Lacan (1998) situa a forclusão do Nome-do-Pai como um significante primordial e

específico. Forclusão no sentido de “ficar fora”, “rechaçar”, de não ter ocorrido uma

simbolização primordial. Isto é, a rede significante fica desamarrada, solta, por não haver um

17

significante organizador, que situe um lugar fálico para o sujeito. Este significante refere-se à

função de lei que aponta para o reconhecimento de uma filiação. Na falta desse lugar de

referência, é o próprio sujeito que precisa tecer a rede, procurando um lugar no mundo. Dessa

forma, o psicótico entra numa errância infinita tentando construir e reconstruir esta rede, mas

nunca garantindo sustentação.

Sabemos, com base na teoria psicanalítica, que a função paterna opera a separação

entre mãe e filho. E também que, para que a proibição simbólica possa operar a castração, é

necessário que toda uma série de efeitos tenham sido produzidos antes, como frustração e

privação. Lacan (1995) no Seminário IV, sobre a relação de objeto, considera a frustração

como um conjunto de impressões reais, vividas pelo sujeito numa fase do desenvolvimento

em que sua relação com o objeto real está centrada na imagem primordial do seio materno.

Conforme Jorge Volnovich (1991), a frustração se processa no campo real e seus efeitos são

observados no plano imaginário. Por exemplo, se uma criança é frustrada no seio materno, o

que irá imaginarizar? A frustração é, então, sentida imaginariamente pelo sujeito como um

dano. Ele se sente lesado por não lhe ter sido dado um objeto precioso e real.

Em relação à privação, Lacan (1995) sublinha que a falta está no real, significando que

ela não está no sujeito. Para que o sujeito tenha acesso à privação é preciso que ele conceba o

real como podendo ser diferente do que é, ou seja, que possa simbolizar. Volnovich (1991),

seguindo Lacan, assevera que é uma falta que se processa no simbólico. O sujeito se ressente

da ausência de um objeto simbólico. É a privação do Nome-do-Pai, da função paterna, lugar

do terceiro. Se a criança é privada da palavra do pai, do simbólico, os efeitos aparecem no real

inconsciente em forma de buraco, podendo apenas ser preenchido com delírios. Em relação à

criança, conforme citado anteriormente, a Lei que efetua corte chega por meio de um terceiro.

Para que este possa aparecer é condição que tenha ocorrido a experiência de que o bebê não é

Um, nem com o mundo, nem com sua mãe. Em outras palavras, que ele tenha atravessado a

experiência do Estágio do Espelho.

Dentro dos casos de psicose é típica a situação de uma mãe capaz de libidinizar seu

bebê de forma a introduzi-lo no júbilo do Estágio do Espelho, mas do qual essa criança não

pode mais sair. Então, segundo Elza Coriat (1997), uma das condições necessárias para que

ocorra a produção de uma psicose infantil é a impossibilidade de o bebê sair do momento

especular da estruturação psíquica. Esta autora assinala o tempo de origem de uma psicose da

seguinte forma: se o significante Nome-do-Pai não fez marca antes do primeiro ano de vida

18

do bebê, poderá conseguir fazê-la aos três e bastante menos aos seis. O importante a ressaltar

é que ao longo dos diferentes tempos da infância, é possível ir acompanhando como se

produzem as sucessivas inscrições do Nome-do-Pai, dentre elas: se não há angústia dos oito

meses, se não há interesse de brincar de fort-da, se continua a dizer eu ao invés de tu, se não

há criatividade no brincar.

Nessa vertente teórica, o quadro clínico da psicose porta uma concepção estrutural,

que pode ter múltiplas possibilidades fenomênicas: mutismo permanente ou verborragias;

hipercinesias ou imobilidades; crianças brilhantes em cálculos numéricos ou que apresentam

deficiências extremas, sem causa orgânica; crianças “mal-educadas”, que atraem

obrigatoriamente sobre si todos os olhares, ou crianças tão cuidadosas que sua existência pode

passar despercebida.

Qualquer um destes indicadores comportamentais pode ser encontrado também em

uma criança não psicótica, mas o que determina a inclusão de uma criança nesse quadro?

Conforme Coriat (1997), real, simbólico e imaginário não se enlaçam, por carência da

inscrição do Nome-do-Pai. Carência não é o mesmo que falha: na neurose a inscrição é

sempre falha, mas possibilita à criança o ordenamento necessário para se orientar neste

mundo e chegar a ter seu próprio desejo.

Piera Aulagnier (1993) alerta que, nos casos de psicose, há uma espécie de

impossibilidade para a mãe imaginarizar o corpo de sua criança que vai nascer. A relação

parece se dar entre a mãe e uma massa em seu próprio interior, uma espécie de preenchimento

corporal. O que decorre é que, se normalmente a presença do “corpo imaginado” é o que

permite um investimento libidinal da criança como corpo separado, neste caso ocorre um

desinvestimento narcísico da mãe em favor da futura criança. Há, porém, um

superinvestimento narcísico no próprio corpo da mãe. A conseqüência é que o corpo real da

criança não terá outro reconhecimento a não ser como testemunha da onipotência maternal.

Nos diferentes modos de entrada da criança na psicose, está sempre presente a

ausência de uma hipótese elaborada feita pela mãe sobre a demanda do filho. Desta forma, ele

precisa produzir funções defensivas, chamadas de psicóticas, pois as mensagens maternas só

contêm necessidade e não linguagem.

Sobre a linguagem, Françoise Dolto (1999), seguindo as proposições de Lacan,

assegura que a psicose é uma experiência de desumanização da criança, uma vez que nada

19

pode ser tão humano como a linguagem e a palavra. Afirma, ainda, que a palavra não é um

elemento a mais na humanização, mas o traço essencial na constituição da subjetividade.

O que a clínica psicanalítica ensina é que quando a criança se oferece, na

transferência, sempre do mesmo modo cristalizado nos seus sintomas psicóticos, é que

podemos afirmar que a defesa se organizou em estrutura e, com isso, afirmar que se trata de

um quadro psicótico. É por isso que Bernardino (2004) conclui em seu trabalho sobre as

psicoses que a proposta de um diagnóstico como ainda não decidido, além de necessitar de

tempo para a conclusão, aponta para uma escuta que não fecha caminhos.

4 O MENINO QUE NÃO NOS OLHA: FRAGMENTOS DE UM CASO CLÍNICO

É interessante, para avançar nas questões sobre o tema proposto, trazer pequenos

recortes de um caso clínico em atendimento7 há aproximadamente um ano. O protagonista é

Pedro, um menino de 12 anos, que vem, junto com a mãe, para uma primeira entrevista. Ele

iniciou o atendimento psiquiátrico, neste mesmo serviço, aos oito anos, devido a uma

“hiperatividade”. Desde então, aguarda na lista de espera um possível atendimento individual.

De imediato, constatamos que ele não se detém em nenhuma atividade. Seus sintomas

aparentes são de um menino agressivo, que perambula pela sala de atendimento sem ter um

destino fixo. Nitidamente apresenta uma falta de coordenação e de orientação no espaço.

Estes, no entanto, são os menores de seus problemas, na medida em que ele não sabe nada

sobre si e tampouco sua mãe consegue lhe propor algo.

A mãe relata que, após o menino ter iniciado o uso da medicação, seu filho mostra-se

mais calmo, já consegue se comunicar com os outros, apesar de não ter um bom

relacionamento com seus colegas de escola. É verdade que essa mãe se põe no lugar de uma

mulher que se completa no filho, pois diz nunca ter precisado de ninguém para cuidá-lo.

Quando questionada sobre o pai do menino, diz que ele tem uma nova família, mora em uma

outra cidade e “nunca deu bola para o Pedro” (sic). O seu discurso é representativo de sua

própria infância perdida e inenarrável, uma vez que ao trazer fragmentos de sua história

aponta para situações de abandono e dificuldades de relacionamento com o pai.

7 Esse atendimento clínico a que nos referimos tem como cenário uma instituição pública, vinculada à prefeitura de uma cidade na região do Vale dos Sinos.

20

As primeiras sessões com Pedro revelam-se difíceis, é como se não houvesse ninguém

com ele, apontando para um “sem lugar” transferencial. Desta forma, inicialmente, parece que

não se cria um vínculo que possa sustentar um processo terapêutico. Ele quer brincar com um

brinquedo, mas logo troca, não brincando com nenhum. Fica perambulando pela sala e

emitindo sons. O espaço da sala de atendimento é insuficiente para ele. Pede que se abra a

porta para brincar lá fora, circula pelo pátio um pouco, mas logo desiste, e volta para a sala,

pegando outros brinquedos. Pedro é uma criança inteligente, ativa e extremamente criativa

graficamente, que apresenta dificuldades de relacionamento interpessoal, uso ecolálico da

linguagem e, ao mesmo tempo, uma dificuldade de abertura para as intervenções do Outro.

Na sessão seguinte Pedro encontra algumas cartas de um jogo de memória e diz que

são “cartas holográficas”, que mais tarde entendemos que possuem esse nome porque mudam

o desenho geométrico tridimensional conforme a posição do olhar de quem as examina. Passa

a brincar com as cartas durante muitas sessões, não só observando seus desenhos um a um,

mas também propondo o jogo da memória, jogo esse que o toma por muitas semanas. Em

uma sessão pede que joguemos as cartas no pátio, dentro da casinha de brinquedos. É então

que começamos a perceber que em nenhum momento ele nos olha, nem quando o

interpelamos. Seu olhar, apressadamente, desvia do nosso rosto: ou ele olha para o teto ou

para o chão.

A intervenção avança, então, para o ambiente escolar de Pedro. Em uma conversa com

a professora, esta conta que o menino circula pela sala, agredindo os outros colegas, não

conseguindo dividir nada e não participando das atividades em grupo. Menciona ainda que a

mãe o trata como bebê (ele ainda toma mamadeira pela manhã e após o almoço). Em relação

ao pai do menino, a professora nada sabe dizer, uma vez que este nunca fora ao colégio.

Explica ainda que quando mencionou a importância de chamá-lo, a mãe respondeu que ele

jamais contribuiu na criação de Pedro e que nem mesmo quer saber do menino. Assim, ela

prefere mantê-lo afastado do pai.

A professora também interroga sobre o olhar do menino. Diz preocupar-se e não

entende porque ele nunca olha para ela. Conta que ele desvia o olhar do rosto dela quando é

questionado e que, se em algum momento os seus olhares se cruzam, ele não consegue

sustentar e começa a gritar e agredir os outros, perdendo o controle.

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Detenhamo-nos um momento na fala desta professora e façamos uma reflexão. Um

impasse já pode ser apontado como paradigmático na clínica com Pedro: algo do seu olhar

não consegue deslizar e produz-se uma impossibilidade de se voltar para o outro. Para tentar

abordar a questão, nos deixamos guiar pelo fio condutor do olhar, pelos elementos que o caso

clínico apresenta. Será que esse olhar está tão carregado de uma força ameaçadora? O que

Pedro encontraria ao sustentar esse olhar?

Contardo Calligaris (1989), ratificando a tese freudiana enuncianda já no “Projeto”

[1895 (1972)] e sustentada ininterruptamente, comenta que qualquer tipo de estruturação, seja

neurótica ou psicótica, é uma estruturação de defesa. Isso porque, na medida em que para se

subjetivar, para existir como sujeito (barrado pela castração, na neurose, ou não, na psicose)

ou ainda para obter alguma significação, é necessário que o sujeito seja diferente do real do

seu corpo. Por isso, o sujeito se estrutura em uma operação de defesa.

“De defesa contra quê? Contra o que seria, imaginariamente, o seu destino se ele não

se defendesse, se estruturando: ser – reduzido ao seu corpo – o objeto de uma Demanda

imaginária do Outro, se perder como objeto do gozo do Outro.” (CALLIGARIS, 1989, p. 14).

Conforme Gabriel Balbo e Jean Bergès (2003), o olhar implicado nas funções

defensivas no psicótico deve ser abordado em suas relações com a imagem especular, porque

é exatamente na relação da função do olhar com seu objeto que esta função defensiva vem se

sobrepor e jogar com o funcionamento do próprio olhar: funcionamento de abandono do

objeto; olhar errante; vazio; olhar grudado no teto. Por outro lado, na situação inversa, o olhar

da criança sempre buscando o olhar dos outros está ligado à função defensiva de fixar,

demonstrando que o olhar é o próprio objeto, isto é, a mãe pré-especular, o grande Outro de

onde nada pode cair.

Pelo fato de que na psicose é predominante a alienação no grande Outro e a separação

é problemática, o sujeito psicótico fica aprisionado na dualidade mãe-filho, como puro objeto,

sem o estabelecimento da diferença entre o eu e o Outro. No momento do Estágio do Espelho,

quando a criança entra em júbilo deve fazer o luto de que não é ele no meio de tudo o que

enxerga por todos os lados, em particular a mãe. Isso porque tudo olha o psicótico: uma

árvore, um animal... Ou seja, para esses pacientes não há queda no olhar, dado que este não

foi libidinizado, restando apenas como visão. Então, Balbo e Bergès (2002) destacam que é

preciso que a mãe transitive, que ela faça hipóteses a respeito do filho, que não admita

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certezas a respeito deste. É quando a mãe articula uma demanda que não somente o atravesse

na ordem da necessidade. Enfim, pode-se pensar que o Espelho sem limite é o Espelho sem

significante.

Dessa forma, para avançar na questão do olhar na psicose, é preciso advertir que sem a

experiência estruturante do espelho, o eu será prisioneiro das fantasias do corpo despedaçado.

Sem esta captação da imagem unitária do corpo no espelho, a confrontação futura do sujeito

com sua própria imagem será angustiante e esta angústia poderá se manifestar de diversas

maneiras: angústia de ser devorado pelo espelho; angústia do corpo multiplicado; angústia de

ser arrancado do próprio corpo e de ser projetado como corpo estranho no mundo das coisas.

Assim sendo, para Pedro se proteger do despedaçamento, ele necessita perder o olhar? E, se o

olhar for sustentado, ele é mortífero para Pedro?

Para Marie-Christine Laznik Penot (1991), o olhar, justamente no que ele tem de

contrário à visão, enxerga não o que está aí, mas um vir-a-ser. Quando a mãe dá sua falta,

possibilita inscrever um sujeito barrado, ou seja, é esta operação de doação que permite ver

surgir uma criança marcada pela falta. Isso poderia ser descrito como a falicização da criança,

que na leitura freudiana corresponde à noção de investimento libidinal. É importante observar

que essa falicização, segundo Penot (1998), se situa somente no olhar do Outro, pois na sua

relação à imagem, ao outro semelhante, o sujeito só pode se ver como marcado pela falta. Por

isso, como na psicose o sujeito não tem inscrição simbólica devido à ausência do significante

Nome-do-Pai, o olhar dos outros se revela ameaçador.

A autora ainda acrescenta que para poder ser colocada no lugar de Ideal para o olhar

de sua mãe, a criança já deve se situar para ela como objeto perdido. Para a mãe do psicótico,

no entanto, a criança não pode converter-se em objeto de desejo, mas aparecer como uma

peça orgânica. Diante de uma mãe que aparece como um grande Outro absoluto, a criança

cede seu corpo antes de tê-lo.

O que parece determinante são os efeitos relativos à instalação, ou não, do Estágio do

Espelho: o sujeito que é psicótico não pode se sustentar no olhar e na voz da mãe, ou seja, se

confronta com a impossibilidade de uma apropriação simbólica. Talvez fosse possível pensar

que ele não vai ser capturado no mundo, onde poderia projetar o que lhe acontece, mas acaba

ficando fora do mundo, num fora absoluto.

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Essa direção de abordagem enlaça-se com a questão do olhar, como espelho que

imaginariamente contorna, proporcionando certa consistência ao eu, na medida em que não

captura o sujeito como puro objeto. É, então, esta marca – a suposição de sujeito – que

aparece no olhar, possibilitando a saída do lugar de objeto para a constituição subjetiva.

Assim, trabalhar com esse elemento na clínica infantil da psicose é inscrevê-lo como

significante, convocando a criança na diferenciação de interior e exterior, de próprio ou

alheio, de responsabilizar seus atos perante os outros. Uma criança está psicótica porque seus

atos não se sustentam na elaboração e no enlace das próprias marcas, mas sim no olhar e no

gozo de um Outro encarnado em qualquer outro.

A criança psicótica, por suas questões estruturais, mantém-se na posição de criança

objeto e neste caso, o analista terá de entrar no lugar do Outro primordial, adianta Ângela

Vorcaro (1992). Nesta condição, o analista procura produzir o que não teve lugar: corte,

separação, negativização, furo, operações de subtração que levam ao engendramento de um

sujeito.

A cada vez que nos lançamos na clínica da psicose compreendemos que se trata de

uma experiência limite, em que o conhecimento, a experiência e a análise são apenas pontos

de partida, pois não temos idéia do caminho que faremos a cada vez, nem sabemos muito bem

aonde vamos chegar. É uma clínica temerária: sabemos que implica riscos, mas não sabemos

quais serão.

A escuta das crianças que são assim diagnosticadas e que recebemos para tratamento

representa um desafio. Enfrentar esse desafio pressupõe que teremos de apostar. Por isso,

tomando como inspiração Bernardino (2001, p. 83), “há uma inversão que é necessário

produzir: um só-depois que tem de estar posto de saída.” Assim, nesta clínica, as

possibilidades de trabalho devem estar postas primeiramente, pelo lado do desejo de quem

trata. Isto é o mesmo que dizer da importância da implicação do analista nesta escolha de

trabalho.

Sobre o trabalho com a psicose infantil, ainda uma palavra: quando recebermos um

paciente com esse diagnóstico, sempre apostaremos que há um sujeito em constituição, por

mais remota que essa hipótese possa parecer. Um segundo ponto a legitimar é a importância

da palavra, produzindo um convite à possibilidade de apropriação da linguagem pelo paciente.

Outro ponto imprescindível nesta clínica refere-se ao brincar: ao instalar um campo lúdico

24

entre nós e a criança, queremos encantá-la com o faz-de-conta que povoa o universo infantil e

que possibilita à criança se reconhecer. A escuta atenta ainda requer nossa disposição para

validar tudo aquilo que a criança conseguir expressar de sua história, seja por uma marca, uma

letra ou um desenho.

CONCLUSÃO

Existe todo um universo organizado em leis, linguagem, cultura, que antecede o

nascimento de um bebê. Para que essa criança tenha acesso a esse novo espaço, que é também

o espaço dos outros, o lugar em que intervêm sons, olhares, sensações táteis, é demandada

uma sustentação a ser cumprida necessariamente por um cuidador – representado,

primeiramente, pelo grande Outro materno. É esse sujeito que precisará dar conta do

desamparo originário desse bebê, qualificando os processos puramente orgânicos. Nesse

momento em que a criança ainda não consegue integrar suas sensações e experiências

corporais, vai sendo tomada pelas redes significantes do desejo do Outro.

No tempo da infância, os momentos-chave no processo de constituição subjetiva

referem-se, primeiramente, à inscrição primordial e ao estabelecimento do narcisismo

primário, fundador do tempo especular. Um segundo momento alude à passagem do Estágio

do Espelho, fundador do sujeito enquanto falasser, compreendendo a constituição do primeiro

esboço do eu. A criança percebe na imagem do semelhante ou na sua própria imagem

especular, uma forma na qual antecipa uma unidade corporal que objetivamente lhe falta e

identifica-se com essa imagem. Com isso, entende-se a experiência de júbilo da criança diante

dessa imagem, pois ela antecipa imaginariamente a forma total de seu corpo.

Para corresponder a essa imagem narcísica, o eu terá de se defender de toda a vivência

de perda. O desejo inconsciente de completude terá de ser recalcado, pois a separação

mãe/bebê é fundamental para a constituição do sujeito. A elaboração do Édipo é a prova de

que o sujeito abdicou do desejo primitivo por meio das identificações.

Neste processo as vivências de perda angustiam, ou seja, para enfrentar o luto da

completude perdida a criança precisa passar por privações, frustrações e castrações. Então, é

lançada na busca de uma nova alternativa: entra no discurso e faz um sintoma de estrutura.

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A entrada da função paterna vai fazer um apagamento da pura marca da linguagem

que advém do desejo materno inconsciente, instituindo o recalque que barra a dualidade

mãe/filho. Resta, então, esta falta, referente ao objeto para sempre perdido, resgatável

somente na fantasia, enquanto representação, determinando uma saída neurótica para o

sujeito.

Essa condição de sujeito não se verifica na psicose. Quando a forclusão se instala o

efeito é de negação da falta mediante a rejeição da castração. Assim sendo, a rede que deveria

amarrar os significantes para a criança encontra-se solta, produzindo como efeito a errância

que caracteriza a psicose. O significante organizador, Nome-do-Pai, que deveria situar um

lugar fálico para o sujeito, fica apagado.

Na leitura psicanalítica, o olhar não é o mesmo que visão. Ele aponta para

investimentos, atenção, cuidados. Exatamente no que ele é contrário à visão, enxerga não o

que está aí, mas um vir-a-ser, ou seja, trata-se do olhar fundador do Outro. Por isso, como na

psicose o sujeito não tem inscrição simbólica devido à ausência do significante Nome-do-Pai,

o olhar dos outros se torna ameaçador.

A partir do caso de Pedro, buscamos refletir sobre sua impossibilidade de nos olhar.

Assim, as concepções teóricas de Estágio do Espelho e forclusão nos possibilitaram algumas

considerações para avançar no estudo da psicose. Um dos pontos importantes assinalou o fato

de que sem a passagem pela experiência estruturante do espelho o paciente psicótico fica

aprisionado na imaginarização do corpo esfacelado. A confrontação com sua própria imagem

representará seu aniquilamento. Com isso, entendemos o quão desestruturante é para Pedro

sustentar o seu olhar. Então, para se defender ele olha para o teto, para o chão, para as coisas...

Neste artigo muito se alcançou, mas muitas questões permanecem. Durante o trajeto

de leituras, descobrimos que o caminho não é único. Procurou-se mostrar que a clínica

psicanalítica tem um corpo conceitual que sustenta uma clínica de crianças psicóticas. Além

disso, a postura ética encontrada na leitura freudo-lacaniana aponta para um profissional que

se interessa, antes de tudo, em despertar o desejo desta criança que está aprisionada no Outro.

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REFERÊNCIAS

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