O Olhapim #2

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O Olhapim #2

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O Olhapim, com os pés ao encontro do chão, dança até o resto da vida.

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O Olhapim#2

prólogo

Produção Editorial

Diego Suriadakis

Pedro Cunha

Produção Gráfica

Projeto GráficoPedro Cunha

FotografiasPedro Cunha

Ilustrações Diego Suriadakis

Tens sob os olhos o mistério de um en-contro.

Dia de Reis. O início de um beijo ao re-vés. Haja de ser todo mês. O asfalto nu e os pés. Enquanto houver o curioso dos olhos, haverá o possível carnaval. É a tal dança existente do fim de expe-diente à troça que a moça faz. É o de-lírio ainda criança, cada qual com seus tais.

Está em você, caro leitor, o caminho da serpentina, do entrudo, do suor, do bloco, de ser.

Diego Suriadakis e Pedro Cunha

ensaio sobre a cidade

Eis o momento em que a cidade recebe o car-naval. Sou capaz de dizer que, essencialmen-te, nada muda. Os postes, as ruas – sobretudo as vielas –, o concreto, a matéria do que é feito o meu ou o seu sorriso, continuam, fundamen-talmente, iguais. Porém, há uma coisa que se distingue. Arrisco em dizer que a proximidade entre os pés e o chão se intensifica de tal for-ma a criar um formigamento que os antigos costumavam chamar de marchinha. Uma osci-lação que começa na boca e percorre o corpo por inteiro, até que chega aos pés e o movi-mento se torna inevitável.

Nesse momento em que a cidade recebe o carnaval e, como consequência, uma intensa adoração dos habitantes que nela vivem, os mitos são convidados à festa que, por medi-das de sensatez, não se prolonga pelo ano inteiro. Falo em medidas de sensatez, pois nesses poucos dias – entre os adjacentes que antecedem e sucedem – uma alegoria paira sobre a cidade, de modo que é possível ver de tudo por aí. Cachorro que dança, gente com pato no lugar do sexo, gueixas e odaliscas, dia-bos completos, aberrações, coisas bonitas... É uma miscelânea, uma soma, que traduz tudo aquilo que todos gostariam de ser ao longo do ano, mas que, por algumas regras de condu-ta, são incapazes ao menos de pensar nessas estripulias.

Há um fato a ser dito: cria-se, entre a cidade e

as pessoas, um fascínio mútuo que ao longo do ano só será visto novamente em alguns momentos da mais extravagante madruga-da.

O chão e os pés, como elementos fundamen-tais a serem observados, merecem um desta-que pelo modo como se namoram, acariciam e se encaixam. Há quem diga que eles até chegam a casar e ter um princípio de núpcias, mas quando, por fim, chega a quarta-feira de cinzas, eles se separam e sobram somen-te flertes. Alguns pés se guardam o ano in-teiro em pomposos mocassins ortopédicos e esperam o carnaval chegar para que, nus, possam novamente desfrutar do êxtase que é se roçar no chão. Esse último, por sua vez, não suporta mais os pneus ou derivados. No carnaval, o chão só se contenta com a palma dos pés que, diferentemente das borrachas dos pneus – isolantes de calor por natureza –, criam um aglomerado de faíscas que podem até ser chamados de tesão.

A cidade, quando se topa com o carnaval, vol-ta a ser menina, fica pequena e se lambuza. Vira a protagonista de uma harmonia, é pre-enchida e amimada pelos pés de todos. Sente na pele o porquê de seu gênero, o feitio de suas curvas, o volume de suas intimidades, o suor em seus córregos. O carnaval é o mo-mento em que a cidade se sente mais próxi-ma da doçura de se saber mulher.

pedro cunha

alma, frevo

Fulana ou sicrana ou beltrana, dormiu tão bem, tão bem, e dançava, e tantas cores e pulava, uma alegria danada, abriu os olhos baiana.

Qual a sua surpresa, ainda na cama, não sabia, fora só sonho ou ja tinha acordado. Toda a gen-te na rua. Uma melodia assolava seus ouvidos, tontura, afagos, gemidos.

Saiu do quarto e pelo corredor restos da noite, garrafas testemunhas, copos, e foi quando viu aqueles tantos outros pela casa. Tudo agora um outro sentido, seria só sono partido.

Na casa o dia clareando, sala, banheiro, área de serviço. E dos quartos, de todos os quadros das paredes transparentes iam saindo. Piratas, malandros, pacíficos políticos, colombinos, ar-lequinos.

O que era aquilo, não sabia o que era. E toda aquela gente, hálito ainda quente, do riso da madrugada, da calçada apinhada, em descul-pas bandidas, de amor à cara lavada.

Era, era isso sim. Na sombra da farra, a luz da noite com o sol de mão dada.

Era isso sim, era. Um sonho correndo avenida, carro algum na rua, só tanta figura, que a uma tal altura, ela descobriu Silvia.

Bainana, e piscava, já era índia. Ainda mais confusa, tateava. Tocando ia, arrastando o pé nu ainda. Guiada pelo cheiro, pairava. Panelas, fogo e fumaça. E na praça, todos os ingredien-tes, decentes, latentes, naquele sonho tran-quilo.

diego suriadakis

papagaio

Há um lugar que na boca dos outros parece ficção. Mas é bem verdade que esse lugar existe, e nele muitas pessoas existem, e são felizes.

Por lá o carnaval nunca termina. Pode você arriscar um sorriso que, certamente, rece-berá três ou quatro. Lá o carnaval se faz no céu, com pipas e papagaios que colorem as nuvens e chegam a se confundir com os que se foram e que agora se encontram em um perfeito estado de equilíbrio sobre o solo onde dançam.

Por lá há um certo Tião pescador. Em alguns momentos é confundido com um porta estandarte, pelo seu modo de caminhar e pela vara de pesca que sempre o acompa-nha. Seu Tião rodeia a barragem, atento, a espera de uma movimentação que o dirá onde tem peixe. Enquanto isso o sol forte faz a água brilhar e aquele espelho imenso se confunde com uma grande reunião de moças bonitas dançando com purpurina na face e balangandas ao longo do corpo.

Lá o carnaval pode ser visto na rua, diaria-mente, sob a luz do dia. Mas, se a caso não se encontrarem passantes pelas praças e

avenidas, suspeite do silêncio, pois em cada casa, por sobre cada cama, há um carnaval acontecendo, fervoroso.

Nos jardins deste lugar, nascem, por conta própria, margaridas, petúnias e girassóis – sobretudo se existir um curioso nos olhos de quem vê. E se há algo mais carnavales-co do que uma feira de bairro – com aquele banquete posto e as barracas com lonas de diferentes cores encobrindo as armações de ferro, ao som dos anúncios incansáveis das bocas dos feirantes – me diga, pois com ab-soluta certeza te afirmo que lá existe.

Tem manhã que uma boneca é o carnaval. Tem tarde que é uma porção de farofa. E sempre haverá algo que será um carnaval, solitário ou conjunto, extravagante ou co-medido, sempre haverá.

Houve um dia em que um menino avistou no céu uma ave voando, tinha cara de Brasil. E o menino, sabiamente, nomeou aquele lugar como Papagaio. Desde então todos que ali moravam descobriram que o vento soprava a favor e que o carnaval daquele lugar seria eterno e ininterrupto, até o fim dos tem-pos.

pedro cunha

o banheiro alheio

Existe uma prática milenar de se conseguir o passe livre para utilizar o banheiro alheio. Quando é carnaval, só os mais sábios ou ca-rismáticos conseguem exercer essa prática. E é no carnaval também que ela se torna ainda mais inalcançável. Isso se dá pelo fato de que existem duas espécies: os que colocam as cue-cas e vão dançar sob o sol e sobre a rua, e os que colocam as cuecas e vão se deitar sob o teto e sobre a cama. O primeiro é aquele que, no carnaval, exerce sobre o segundo uma ri-gorosa coerção para que o segundo levante da cama, atenda a intransigente campainha e ceda com complacência e educação o mais brilhante bidê, com um macio papel higiênico e uma potente mangueirinha.

Cito a seguir alguns dos personagens carna-valescos que foram capazes de me estender a mão, enquanto momentos de dificuldade extrema me aterrorizavam a bexiga.

Um primeiro, que inclusive não se encaixa em nenhuma das espécies citadas, isso pelo seu ca-ráter híbrido – o rapaz era um folião incontes-tável, mas naquele momento estava relaxando em uma soneca –, foi de uma cordialidade indis-cutível. Seu nome: Miguel. Sua casa: um cole-tivo cujo título já adjetiva: “Coletivo 4:25”. Um segundo andar de uma casa antiga no Santa Tereza e um interfone claramente visível. A pri-meira tentativa é ignorada e, felizmente, quan-do aperto pela segunda vez o botão, desce as escadas um rapaz de cabelo black power e uma camisa de bicheiro. Ele cede o seu banheiro como se fossemos conhecidos de longa data.

O segundo, um pouco menos jovem, mas não

menos sagaz, vinha de um lado para o outro levando cervejas Kaiser para a mocidade do balcão. José Roberto mantém um bar de esqui-na cujas paredes são infestadas de fotografias dos Beatles, sobretudo de John. Mas quando consegui com que Seu José abrisse uma fresta no balcão para eu seguir, feliz, até o banheiro, foi uma música brega, daquelas do norte, que tomou conta do lugar. Eu, que não estava ali a passeio, dancei o ritmo enquanto me aliviava no banheiro do Liverpool da Skina Santê.

Dona Diva, um exemplo genuíno da segunda espécie, observava a multidão passar na aveni-da, quando chega perto um rapaz e pede, por caridade, um banheiro. Não foi preciso muita insistência e ele já estava diante do bidê, fazen-do aquilo que cachorro faz em árvore. Dona Diva salvou a vida daquele rapaz.

E, por fim, um senhor bigodudo observava em companhia de sua esposa, uma simpática senhora, o carnaval passar. Creio, pelos olhos do senhor, que sua preocupação maior não era ver folia nem a gente fantasiada, e sim manter a boa convivência de sua rua e residência. Por menos receptivo que aquele senhor parecesse, ele era o único em toda extensão daquela rua que poderia me ceder o banheiro. Sem muita cerimônia e já um pouco descrente, fui até ele perguntar se não tinha, pelo amor de Deus, um banheiro por ali. A sua esposa não hesitou, e pude agradecê-los. Seu Arnaldo era, como ele próprio dizia, o Dono da rua. E a sua esposa a Dona Margarida, uma flor.

Este relato é o meu humilde agradecimento a essas almas caridosas.

pedro cunha

*

*

para receber o carnavaltúlio magno

Um amigo me disse, semanas atrás, que há poucos belo-horizontinos em Belo Horizonte. Segundo ele, meu inflamado e querido poeta Fernando Passos, há uma ingratidão caracte-rística e um discurso externista muito ineren-tes aos habitantes de nosso Curral e é isso, para o Passos, que nos impede de chegar a querer ser algo na vida que faça jus ao nosso gentílico. Fato é que eu tenho receio de me posicionar a respeito de quantidades, dados numéricos. Tampouco me agrada discordar do querido poeta acima referido, mas é que algo no meu tato tem percebido uma outra coisa.

Bem, deixemos o Fernando de lado por um pouco, que eu andei pelas ruas daqui e notei algo. Já existe Belo Horizonte muito além da Contorno, isso é dado simples, fato explícito. Essa cidade ainda é moça e sofre com isso, com esse crescimento, com sua demanda, premeditada em seu nascimento, por moder-nidade; além do contraste entre isso e esse em torno de suas cidades ancestrais, tão barroquinhas, tão quinhentonas. Hoje aqui

há tantas praças, tantas igrejas, tantas na-moradeiras nas janelas altas – e altas porque, entretanto, há tantos prédios, há obras aqui e ali, despejos, mendigos, hotéis, o Estádio... Belo Horizonte é uma cidade em construção.

Hoje fazemos parte de uma terceira geração de belo-horizontinos. Quando nascida, pro-jetada para o limite, cercada pela geografia, contornada pela arquitetura urbana, a cidade ainda era o próprio útero, o próprio choque para os que aqui chegaram, nessa paris mon-tanhosa. Hoje, não bastassem as ladeiras, há também os prédios a nos verticalizar a visão. Mas um batuque se faz bem no meio de tudo e, como onde há um meio há um encontro, esse batuque se faz ali na estação, que nos comunica, como se aqueles trilhos que trans-portaram a cidade que nascia nos trouxes-sem esse ímpeto, essa - não é tão arriscado dizer – força. E tudo reverbera, porque vem desse meio. E eis que as pessoas ocupam as ruas e o Fernando, afinal, pode não estar tão certo assim quanto à ingratidão. São outros os que vivem essa cidade. É outra a natureza

que vem se formando nela. Belo Horizonte é um conceito em construção.

E isso, com alguma ousadia eu digo, é por-que há algo inexplicavelmente comovedor nessa nossa natureza belo-horizontina quan-do chega anualmente esse marinheiro que se atraca, incomoda e engravida nossa cidade, depositando em seu leito esse tal som, que é mais que o batuque, é mais que o grito, é um grunhido, talvez em 140 caracteres, que chama e pede um pouco de companhia e um algo a mais ali na rua. Esse grunhido, que gesta nas cabeças – essas malditas cabeças – acena, gesticula, se verbaliza a quem tiver ouvido; esse grunhido, agora verbo, gesta e gesticula a vós.

E então o verbo se faz carne, e inicia uma ca-minhada lenta por ruas com nomes de tribos e ladeiras com nome de outros estados. E em quatro dias o estado é outro e continua múlti-plo: um avesso à penitência, uma alegria doi-da, um pé no chão cruelíssimo, uma barulhei-ra incrível, aquela mesma reverberação ali no

centro, na estação, as pessoas todas e a voz.

E o rastro fica. O trilho é o que permanece do trem, a euforia é o que sobra da festa e a cidade, grávida, começa a se sustentar pe-los atrevidos frutos do amor carnal passado. E a cada ano, ao que me parece, as ruas têm pertencido às pessoas. Não que as pessoas estejam saindo mais, não que as calçadas es-tejam mais cheias do que nunca; mas é que, ainda esporadicamente, ainda como se fosse um evento, nós temos nos vestido de belo-horizontinos e tomado uma ou outra artéria do coração da cidade para fazê-la pulsar com mais – irônico, mas vou me fazer tão inflama-do quanto o próprio Fernando – poesia. O fato é que depois que o carnaval, esse marinheiro que nunca nos pertenceu direito, vai embora, ficam os confetes, fica a vontade de continuar o bloco e mesmo que sejamos poucos, nós, belo-horizontinos, somos alguma coisa que pulsa, somos apenas uma terceira geração, de uma cidade jovem, tímida, desajeitada em sua urbanidade; essa cidade criada por nossos avós.

amor de carnaval

Beijou o diaOs astrosOs lapsos colidindoVirou a esquinaEsguiaNo descompasso da foliaDesceu a praçaÀs coresÀs lastimas em demasiaPediu um versoQue fosse perversoNa fumaça em rebeldiaEscrevi atentoAo ventoEm euforiaMeu amor, EuCarnavarlaziar-te-iaDe novoDescendo a FlorestaSubindo a Bahia

bernardo biagioni

Beijou o diaOs astrosOs lapsos colidindoVirou a esquinaEsguiaNo descompasso da foliaDesceu a praçaÀs coresÀs lastimas em demasiaPediu um versoQue fosse perversoNa fumaça em rebeldiaEscrevi atentoAo ventoEm euforiaMeu amor, EuCarnavarlaziar-te-iaDe novoDentro desta poesia

(Pra não dizer que não falei da Bahia)

Beijou o diaOs astrosOs lapsos colidindoVirou a esquinaEsguiaNo descompasso da foliaDesceu a praçaÀs coresÀs lastimas em demasiaPediu um versoQue fosse perversoNa fumaça em rebeldiaEscrevi atentoAo ventoEm euforiaMeu amor, EuCarnavarlaziar-te-iaDe novoDescendo a FlorestaSubindo a Bahia

Hoje domingo de páscoa, a senhora ainda vai bem.

Falamo-nos aquela única vez. Última. Ínfi-ma.

Terça-feira gorda, bem lembro.

Um sol, a brasa, e nenhuma dor. O silêncio abafado da rua. Onde estariam as gentes?A senhora caminhava à frente, passo lento, de quem correu já vida inteira.

Rua Passatempo.

E olhava lentamente, através das fachadas dos novos edifícios, por sobre a hora.

Lembranças de jardins que se foram, as con-versas nas varandas, flores passadas.

Teu olhar não tinha espanto. Algum, pela al-tura das construções.

O Sion continua aí, dona, como tal podes ver.

Suas amigas, algumas se foram, outros bai-les, tantas máscaras, imobiliárias e suas fan-tasias de grandeza.

A sala para se estar, essa sala de se fazer, caiu, e caíram com ela tantas receitas do bem estar, docinhos de meio de tarde em xícaras de cafés. Aquela fumaça alegre veja, dona, sai hoje das betoneiras, dos tanques de concreto, só cimento e pó.

Sem falar nos porteiros intransponíveis atrás

de seus painéis de botões surdos. Esses nada sabem da vida alheia como a senhora sabia. Um interesse de amor.

Esquina da rua Pium-í.

Em todas as direções veja, pessoas lá no alto, janelas pouco abertas, encortinadas. Bater palmas já não adianta.

Todo esse sabor que levas a mão, em sua sacola, mistérios, fofocas, bordados, o re-sumo das novelas, eles, abreviados, dona Enoe, consideram isso matéria gelada. Este chapéu à sua cabeça, distinta ferramenta de outrora, o tom calmo de seu assunto, seu jeito de dizer “meu filho”, isso passou.

Por teu caminho de visitações, nos lares de outras visitas, tantos mortos já. Os filhos crescidos, crescendo, em prédios, presos à pressa.

Mas tens um longo caminho ainda, dona, vá, antes que parta o teu último. A senhora, que pediu em oração um cantinho ao chão, e obteve graça.

Aos de agora, ainda o ano, de altos, baixos, feriados e outros dias fúteis.

Vou ao baile, dona Enoe, como me recomen-daste. Visitar os meus. Assim fazes nos dias Santos, não é verdade?

Com carinho, De um seu neto que fui,

...

dona Enoe,diego suriadakis

G.R.E.S. Faxina-Geral

Afonso Pena, 1212. Na terça-feira gorda o Pa-lácio estava amarrado. Cordas grossas o rode-avam. E o guarda do município à serviço disse que a ordem era do alto, uma decisão, que Carnaval é um perigo, danoso esse epilético nacional. Tal de manifestação? pra cá?, pois aqui agora não. A Casa Municipal enrolada, tadinha.

Onde andariam vereadores, quais seus re-sorts. Ah, e os deputados, parados, envidra-çados, frente ao mar. Onde andaria Márcio, onde andaria Cláudio, onde o Ramos, aquele famigerado da repartição. Sem falar no Cou-tinho, o Lacerda, esse ponta direita, o Pereira, todo o time, o bloco todo, onde andariam?

Já os sensatos, com a cara nas ruas, sem pingo de sono, não importam nem exportam com a hora, 4 da tarde. Um olhapim, dois olhapins, a cidade infestada deles. Visíveis, nas calçadas, pelas faixas de pedestres, dignos como se hoje fosse dia do Juizo, afinal.

Só o imundo velho embriagado a carregar o peso-civil da construção. Nunca trabalhou na vida, exceto hoje. Seus dias são noites, suas noites são frias. Seu voto, roto, absorto, ci-dadão morto. Ele desce a rua da Bahia, seu

destino é certo, e em uma caçamba vai depo-sitando uma esperança, outra, uma dança, só uma cachaça a mais não é demais. Ele quer in-gresso, quis mas nunca pediu.

E espera em pé junto à porta.

Meses depois, tantas vozes, coro, tom ape-nas, pela educação infantil, contra o sucatea-mento da vida, contra as portarias fechadas aos contraventores pipoqueiros que querem andar a solta, a favor das massas, contra duras marcas, pelos direitos de esquerdos e destros lavradores.

Hoje o danado resolveu sentar. No degrau da escadaria que suporta o peso das carca-ças sofridas, as mãos encardidas, por faces sulcadas, horas e horas de sol, amargas. Zilah Espósito, mãe Zilah, orai por nós, ze-lai por nós. Pois os insensatos, minha mãe, contratam zelador. Para limpar a sujeira dos que ficam na pipoca, que nunca estão no direito, não têm a verba ou esbanjam crédi-tos ou tantas merdas que valham o ingresso para o Samba que toca limpo só dentro do cordão.

-Levanta daí, Diabo, num vê, eu tô varendo.

diego suriadakis

o homem que perdeu as botas

diego suriadakis

Algumas cinco línguas ele já aprendeu com es-sas botas. Fala, cozinha, fuma, bebe, e discursa principalmente quando não é convidado, tudo em javanês. Pintou nos braços um massacre, nas costas uma rota, no peito uma viagem e não leva colírio no bolso, pra quê. Bailou nes-sa festa de putinha sadomasô, com um gosto doce na boca, apanhou na avenida e gostou, pronto, acabou.

O Olhapim: Excetuando-se as farmácias, qual o local mais indicado para a escolha de uma fantasia?

Bernardo Pacheco: A cabeça. Nem precisa sair de casa. No local que você estiver você pode escolher. Não é um local físico, já que as fan-tasias necessárias para a caminhada rotinei-ra também não são físicas. Os fármacos não vendidos em farmácia deveriam ser vendidos em farmácias. Como aquelas substâncias que derrubam as barreiras, as limitações da cons-ciência.

O Olhapim: O uso das máscaras é uma tradi-ção milenar ou simples costume das políticas de situação?

Bernardo Pacheco: O uso da máscara é fun-damental para a sobrevivência do indivíduo na sociedade. Seja a familiar, a amorosa, etc. É uma projeção do que somos, do que gosta-riam que fôssemos. É uma proteção do indi-víduo inseguro frente a sociedade competiti-va. Neguinho tenta ser várias coisas para se encaixar, para se engajar ou ser cool, e acaba tendo a necessidade da máscara para suprir expectativas sociais. Acaba se transformando em quem não é. A máscara é uma busca pela criação de um eu aceitável socialmente. No dia que pessoas começarem a busca do autoco-nhecimento, as máscaras se acabaram.

O Olhapim: Há no carnaval algo além do delí-rio individual?

Bernardo Pacheco: O carnaval é o delírio indi-vidual e coletivo. Uma sinergia constante das duas coisas. Em quatro dias, tudo aquilo que foi reprimido é liberado, sublimado, extrapo-lado. Vai-se além das barreiras impostas pela sociedade. É uma festa muito bacana e cheia de força. Ocupar a rua, coisa que agora come-çamos a pensar também em outras épocas do ano. O carnaval poderia ser uma arma social

pela sua capacidade mobilizadora. Positivo o sujeito ficar livre, mas triste o fato de ser qua-se como uma autorização oficial para ser feliz. O carnaval e a copa do mundo são as melho-res épocas do ano para sermos roubados já que atenção do folião está na folia.

O Olhapim: Considere o traje passeio com-pleto. É própria dos animais essa necessida-de de tirar a roupa para fazer Amor?

Bernardo Pacheco: Quando nos desnudamos para fazer amor estamos no primitivo, na en-trega. Já o traje a rigor é necessário para se-parar a natureza pura e boa do ser humano, desta roubalheira, desta sujeira. O traje é uma separação. Uma armadura de super poderes. O político, representante do povo, bota um terno de cinco mil reais. Uma vez posto, ele não quer tirá-lo, quer levá-lo para o caixão. O terno e os milhões. O único representante dig-no do povo é ele próprio

O Olhapim: Qual a localização exata da sola da bota que você não tem mais?

Bernardo Pacheco: Ela viu a Ásia inteira e ter-minou no pé de outro. Um mendigo, andari-lho, na Ilha de Maiorca, botou ela nos pés. Ela seguiu seu caminho. No desconhecido nos co-nhecemos. Quanto maior o caminho trilhado pela sola, maior a consciência de que somos todos iguais, independentemente das dife-renças culturais, das origens de cada um.

De uma tragada apenas

Religião. AlienaçãoUm sócio ideal. Eu mesmoUm gay bonito. Todos somosPosição ou sutra. ObservaçãoSonho. RevoluçãoCalopsita. PrisioneiroBanana. Para a Hipocrisia