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Universidade Federal de Juiz de Fora O NOVO OLHAR SOBRE A CIDADE: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DA ANTROPOLOGIA URBANA NO BRASIL Nádia Oliveira Vizotto Ribeiro Juiz de Fora 2013

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  • Universidade Federal de Juiz de Fora

    O NOVO OLHAR SOBRE A CIDADE: UMA PERSPECTIVA HISTRICA DA ANTROPOLOGIA URBANA NO BRASIL

    Ndia Oliveira Vizotto Ribeiro

    Juiz de Fora

    2013

  • Ndia Oliveira Vizotto Ribeiro

    O NOVO OLHAR SOBRE A CIDADE: UMA PERSPECTIVA

    HISTRICA DA ANTROPOLOGIA URBANA NO BRASIL

    Monografia apresentada ao Departamento de Cincias Sociais do Instituto de Cincias Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito final obteno do grau de Bacharel em Cincias Sociais.

    Orientadora: Profa. Dra. Rogria Campos de Almeida Dutra

    Juiz de Fora

    2013

  • Ndia Oliveira Vizotto Ribeiro

    O NOVO OLHAR SOBRE A CIDADE: UMA PERSPECTIVA

    HISTRICA DA ANTROPOLOGIA URBANA NO BRASIL

    Monografia apresentada ao Departamento de Cincias

    Sociais do Instituto de Cincias Humanas da

    Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito

    final obteno do grau de Bacharel em Cincias

    Sociais/ Antropologia e aprovada pela seguinte banca

    examinadora:

    Profa. Dra. Rogria Campos de Almeida Dutra Orientadora

    Universidade Federal de Juiz de Fora

    Profa. Dra. Marcella Beraldo de Oliveira

    Universidade Federal de Juiz de Fora

    Juiz de Fora

    27/04/2013

  • RESUMO

    A Antropologia Urbana se destaca no Brasil e no mundo, como uma linha de pesquisa

    que traz importantes reflexes acerca do urbano, das cidades, e dos sujeitos que compem

    esse cenrio. Apesar da sua legitimidade atual, ela foi por muito tempo coadjuvante dentro

    das pesquisas antropolgicas, visto que esta disciplina tinha como tradio a pesquisa de

    sociedades simples e consideradas exticas. O presente trabalho descreve o momento em

    que a Antropologia Urbana surge como um campo dentro da disciplina antropolgica, bem

    como seu desenvolvimento ao longo dos anos. Alm disso, foram apresentadas suas

    influncias tericas e metodolgicas, os principais pesquisadores da rea, e instituies de

    ensino superior e ps-graduao que se dedicaram ao tema. Em vista da centralidade que o

    contexto urbano e as grandes cidades tm na sociedade em que vivemos, a Antropologia

    Urbana se torna uma linha de pesquisa fundamental na modernidade, e por isso mesmo a

    importncia de trabalhos sobre ela.

    PALAVRAS-CHAVE: Antropologia Urbana, cidade, Escola de Chicago, Escola de

    Manchester.

  • ABSTRACT

    The Urban Anthropology excels in Brazil and all around the world, as a line of

    research that has important reflections about the urban, the cities, and the individuals that

    compose this scenario. Despite its current legitimacy, it was for longtime adjunct (Bem, no

    sei se esse um bom sinnimo para coadjuvante) within anthropological research, as this

    discipline had a tradition the research of simple societies and considered exotic. This paper

    describes the moment when the Urban Anthropology emerges as an anthropological field

    within the discipline as well as its development over the years. Additionally, Its influences

    were presented theoretical and methodological, also the main researchers, and institutions of

    higher education and post-graduate students who are dedicated to the subject. Given the

    centrality of the urban context and the big cities have in the society we live in, the Urban

    Anthropology becomes a line of fundamental research in modernity, and therefore the

    importance of work on it.

    KEY-WORDS: Urban Antropology, city, Chicago School, Manchester School.

  • SUMRIO

    Introduo...................................................................................................................................7

    Captulo 1. A cidade como objeto de pesquisa...........................................................................9

    Captulo 2. Antropologia Brasileira..........................................................................................14

    Captulo 3 Antropologia e as cidades.......................................................................................22

    3.1 Influncias tericas.............................................................................................................22

    3.1.1 Escola de Chicago............................................................................................................22

    3.1.2 Escola de Manchester.......................................................................................................30

    3.2 Reviso histrica da Antropologia Urbana no Brasil..........................................................34

    Consideraes finais.................................................................................................................40

    Referncias bibliogrficas.........................................................................................................42

  • INTRODUO

    Os primeiros estudos antropolgicos, que datam do fim do sculo XIX, procuravam

    entender a diversidade de costumes entre os povos, principalmente entre a sociedade ocidental

    e os considerados primitivos. Partindo do princpio de que todos pertenciam mesma

    espcie, as diferenas entre essas populaes foram vistas pelos pesquisadores como estgios

    de evoluo num processo nico; era a chamada corrente Evolucionista. Ao longo dos anos,

    as perspectivas antropolgicas foram se modificando, assim como novas reas de investigao

    foram abertas. Os povos primitivos deixaram de ser o nico objeto da Antropologia, pois

    passaram a entender que o outro no precisa, necessariamente, estar distante do

    pesquisador.

    O sujeito urbano passa ento a ser visto como um indivduo dotado de diversidade

    cultural, e que por isso mesmo, merecia a ateno da Antropologia. Park j afirmava em 1916

    que o homem civilizado um objeto de investigao igualmente interessante, e ao mesmo

    tempo sua vida mais aberta observao e ao estudo. (PARK in VELHO, 1973, p. 28).

    Pensando nesse sujeito, a cidade tornou-se o lcus das pesquisas antropolgicas dedicadas aos

    grupos urbanos, que concentra e multiplica toda a complexidade existente entre as sociedades

    modernas. Desenvolve-se, a partir disso, uma nova rea dentro da Antropologia, que ficou

    conhecida como Antropologia Urbana, e que teve como maiores influncias a Escola de

    Chicago e a Escola Antropolgica de Manchester.

    As mesmas influncias so sentidas no desenvolvimento da Antropologia Urbana no

    Brasil, que passou a ter maior visibilidade e prestgio a partir dos anos 70. A dcada de 70 tem

    um papel fundamental no trajeto histrico da Antropologia Urbana no Brasil, em que a

    qualidade da produo intelectual foi muito alta, alm da modificao de temas abordados

    pelos pesquisadores. somente a partir dessa data que a pesquisa antropolgica se volta para

    a cidade, de fato. Antes disso, a antropologia no Brasil concentrava-se em trs temticas

    fundamentais: o estudo de culturas indgenas e seus contatos com a civilizao; o estudo das

    culturas caboclas; e o estudo da aculturao de certos grupos tnicos e raciais, como negros,

    japoneses, alemes etc. (MAGNANI, 1996c, p. 8). Contudo, importante salientar que por

    mais que a Antropologia focava-se nessas temticas, j existiam pesquisas que tratavam dos

    processos sociais que ocorriam na cidade. So obras como Sobrados e Mucambos (1951) de

    Gilberto Freyre, A cidade das mulheres (1967) de Ruth Landes e Vozes de Campos de

    7

  • Jordo (1950) de Oracy Nogueira, que tiveram grande influncia pela Antropologia Norte-

    Americana, e que so referncias at hoje dentro da Antropologia Urbana brasileira.

    A partir dessa breve anlise, fica clara a relevncia que as pesquisas no campo urbano

    tm e, consequentemente, que a Antropologia Urbana tem para o desenvolvimento das

    Cincias Sociais no geral. Sua perspectiva inovadora no estudo dos grupos urbanos, com a

    valorizao da pesquisa de campo e a observao participante, faz desta rea um tema

    importante a ser analisado.

    O presente trabalho est dividido em trs captulos: o primeiro se debrua sobre a

    cidade como objeto de pesquisa; o segundo faz uma breve reviso histrica da Antropologia

    no Brasil, com os temas de pesquisa mais recorrentes ao longo dos anos e os autores mais

    influentes; e por fim, trato da Antropologia Urbana em si, com suas influncias tericas e

    metodolgicas bem como seu desenvolvimento ao longo dos anos dentro do Brasil.

    De maneira geral, o trabalho proposto tem por finalidade apresentar a Antropologia

    Urbana no Brasil, justificando a relevncia terica e metodolgica que esta rea da

    Antropologia tem para a discusso acerca do urbano, da cidade, e dos sujeitos que compem

    esse cenrio. Para fazer essa apresentao, usaremos de recursos histricos, buscando o

    surgimento da disciplina e suas principais influncias. Contudo, essa anlise no se basear

    somente em sua institucionalizao, mas tambm no seu desenvolvimento ao longo dos anos.

    Torna-se fundamental demonstrar e entender as modificaes sentidas no campo terico e

    metodolgico da disciplina, e o motivo pelo qual a dcada de 70 tenha dado maior relevncia

    para a pesquisa antropolgica urbana.

    8

  • CAPTULO I A CIDADE COMO OBJETO DE PESQUISA

    A modernidade, tal qual a vivenciamos hoje, est marcada por diversas caractersticas

    importantes, e uma delas o crescimento de grandes cidades derivada fundamentalmente da

    Revoluo Industrial e do desenvolvimento do capitalismo. As transformaes sofridas a

    partir destes eventos foram profundas e modificaram a vida social das cidades e dos

    indivduos que a habitam. A partir disso, um novo cenrio criado - com sujeitos, identidades

    e caractersticas diferentes - tornando-se um grande desafio terico para as Cincias Sociais

    como um todo. Ao afirmarmos que a cidade caracterstica fundamental da modernidade no

    queremos dizer que estas no existiam na poca pr-industrial e pr-capitalista, mas que

    tinham um carter diferente do que tm hoje. Alm disso, importante lembrar que as

    cidades, mesmo as da atualidade, variam de uma para outra, podendo uma ser definida pelo

    seu grau de industrializao e outra pelo seu comrcio, por exemplo.

    As grandes cidades so palco de uma realidade complexa e mltipla em todos os

    sentidos, como culturais e sociais, e esto em constante transformao. Esta multiplicidade

    pode se expressar nos traos pessoais, nas ocupaes, na vida cultural e nas ideias dos

    habitantes da comunidade urbana, podendo resultar em separaes espaciais dos indivduos de

    acordo com essas caractersticas (WIRTH in VELHO 1973, p. 99). Alm disso, elas exercem

    influncia imensa sobre a vida social do homem,

    pois a cidade no somente , em graus sempre crescentes, a moradia e o

    local de trabalho do homem moderno, como o centro iniciador e

    controlador da vida econmica, poltica e cultural que atraiu as localidades

    mais remotas do mundo para dentro de sua rbita e interligou as diversas

    reas, os diversos povos e as diversas atividades num universo. (WIRTH, in

    VELHO 1973, p. 91).

    Ao falar sobre a atrao de localidades distantes para dentro da cidade, Wirth aborda a

    questo da migrao, cada vez mais crescente, do campo para a cidade, sendo esta uma das

    mais significativas transformaes da era moderna. Para aqueles que migram da zona rural

    para a rea urbana, a cidade encarada como um espao de liberdade e possibilidades, na

    medida em que o emprego regular visualizado como uma segurana e independncia,

    inexistentes no campo. (OLIVEN, 2007, p. 36). Quando este autor se refere interligao de

    diversas reas, podemos interpretar que ele est se referindo ao que geralmente se denomina

    9

  • de cidade mundial ou global, que so cidades que ocupam um papel central na economia

    mundial, tornando as cidades ao redor dela altamente independentes.

    Autores clssicos das Cincias Sociais j abordavam a questo da cidade, analisando

    as transformaes da cidade medieval sob as injunes da Revoluo Industrial. So

    exemplos desses autores: Durkhim, Tonnies, Simmel e Weber. bastante comum em alguns

    autores, assim como na mdia em geral, uma viso pessimista em relao s cidades,

    destacando quase sempre os problemas urbanos enfrentados por ela, como a deteriorao dos

    espaos e equipamentos pblicos com a consequente privatizao da vida coletiva,

    segregao, evitao de contatos, confinamento em ambientes e redes sociais restritos,

    situaes de violncia, etc. (MAGNANI, 2002, p. 12).

    Nos famosos textos de Park1 e Wirth2 essas perspectivas negativas sobre a cidade

    ficam bem claras. Park chega inclusive a afirmar que o meio urbano intensifica os efeitos de

    crises, e por crise ele se refere a distrbios de hbitos (PARK in VELHO, 1973, p. 50). A

    caracterstica mais perturbadora do meio urbano para estes autores a substituio das

    relaes primrias pelas secundrias, pois ela afeta princpios fundamentais para se viver em

    sociedade. Com o enfraquecimento dos grupos primrios a ordem moral que repousava sobre

    os indivduos dissolve-se gradativamente, e as instituies responsveis por essa ordem moral

    (como a igreja, a escola, a famlia e a vizinhana) perdem seu valor. Desta forma, a

    solidariedade social fica inexistente dentro desta comunidade, o que muito prejudicial, de

    acordo com eles.

    A escolha da cidade como objeto de pesquisa, no caso da Antropologia, foi algo

    relativamente recente. A Antropologia surge em seus primrdios como uma cincia que busca

    compreender sociedades simples, isto , colnias, grupos indgenas e rurais, minorias sociais e

    etc. No entanto, as transformaes histricas e sociais descritas anteriormente acabam por

    atingir tambm essas sociedades, transformando as colnias em estados-nao, colocando os

    ndios e as populaes rurais em contato com o progresso urbano, e as minorias sociais

    expostas cultura dominante, por exemplo. Esta realidade, ento, fora a Antropologia a se

    renovar e a buscar novos objetos de pesquisa, que seriam as sociedades ditas complexas, visto

    que elas eram no momento foco de transformaes importantes e que seria fundamental

    1 A cidade: sugestes para a investigao do comportamento humano no meio urbano in VELHO, Otvio (org.). O fenmeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1973. 2 O urbanismo como modo de vida in VELHO, Otvio (org.). O fenmeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1973.

    10

  • compreender essa realidade, assim como a das sociedades simples. Muitos antroplogos nessa

    poca, inclusive, chegaram a pensar que a Antropologia estava prxima do fim, visto que o

    seu objeto de pesquisa era cada vez mais escasso.

    Ento, a Antropologia passa a focar e observar os acontecimentos corriqueiros e

    cotidianos, buscando entender como os indivduos vivenciam e reelaboram esses

    acontecimentos, propiciando um entendimento grandioso em relao dinmica das

    sociedades complexas, onde a cidade o lcus fundamental. O antroplogo, neste tipo de

    pesquisa, estar de frente para a sua prpria cultura e seu local de vivncia, mas isso no

    significa que novas questes ou determinadas atitudes exticas a ele no estejam presentes,

    visto que a cidade um territrio, como j foi dito anteriormente, de uma multiplicidade

    enorme. E caso ele se depare com um contexto familiar diverso ao seu, ser importante

    questionar pressupostos e valores que so considerados inquestionveis por ele e por aqueles

    que partilham daquela cultura, visto que algo naturalizado por eles.

    Este ajuste de foco graas ao qual no se necessita ir muito longe para

    encontrar o outro terminou revelando uma realidade que aparentemente

    nada fica a dever ao exotismo que tanto espantava os europeus em contato

    com os povos primitivos: basta uma caminhada pelos grandes centros

    urbanos e logo entra-se em contato com uma imensa diversidade de

    personagens, comportamentos, hbitos, crenas, valores. (MAGNANI,

    1996c, p. 3).

    Apesar de tratar de objetos totalmente diferentes, a Antropologia Urbana tambm

    priorizou por escolher o mesmo mtodo de pesquisa utilizado pelos antroplogos que estudam

    sociedades simples: a observao participante e a etnografia. Esta metodologia torna-se

    fundamental para a linha de pesquisa urbana da Antropologia visto que os aspectos cotidianos

    e micro-sociais do complexo urbano s podero ser apreendidos a partir da relao direta com

    os habitantes e com os fenmenos que compem este cenrio. A estratgia utilizada dar

    ateno a dois aspectos que fazem parte do objeto: de um lado, os prprios atores sociais e

    suas prticas e, de outro, o local em que essas prticas se desenvolvem. Para esta linha de

    pesquisa, a paisagem urbana parte constitutiva da ao dos indivduos, e por este motivo

    deve ser levada em conta.

    Portanto, aqueles dois planos a que se fez aluso anteriormente o da

    cidade em seu conjunto e o de cada prtica cultural assignada a este ou

    quele grupo de atores em particular devem ser considerados como dois

    11

  • polos de uma relao que circunscrevem, determinam e possibilitam a

    dinmica que se est estudando. (MAGNANI, 2002, p. 20).

    O resultado das etnografias urbanas um arranjo de dados e informaes sobre o

    objeto de pesquisa, que foram percebidos dentro do campo, mas que estavam dispersos e

    fragmentados, sendo necessrio a interpretao e os insights advindos do antroplogo para

    que a compreenso dessa sociedade fosse possvel. O que o antroplogo faz apreender os

    significados nativos e descrever a partir dos seus prprios termos. Por este motivo, podemos

    afirmar que a etnografia carrega, ento, a marca tanto dos nativos quanto do pesquisador,

    partindo do primeiro ator (nativo) e concluindo no segundo (antroplogo).

    A maioria das pesquisas sobre a cidade tem um enfoque na questo macroestrutural,

    isto , das instituies e da estrutura que compe a cidade; os indivduos que a habitam so

    interpretados como agentes passivos deste cenrio, que nesta viso um local desprovido de

    atividades, sociabilidades e aes individuais. O que a Antropologia faz dar voz a esses

    moradores e mostrar uma parte da cidade que no visvel para a maioria destes estudos na

    rea das Cincias Sociais e reas afins. No Brasil, essa escolha por um enfoque micro-social

    da questo urbana fez com que os antroplogos do pas definissem a Antropologia que

    praticam como uma Antropologia na cidade e no da cidade. A Antropologia da cidade seria

    mais similar Sociologia Urbana, isto , so estudos que pensam a cidade como uma

    totalidade; j a Antropologia na cidade so pesquisas em pequena escala, mostrando em

    termos gerais a dinmica da vida urbana e da vida cotidiana (MENDOZA, 2000, p.222). Nas

    palavras de Eunice Durham (1986:19 apud MENDOZA, 2000, p. 189),

    E, desde o comeo, trata-se menos de uma antropologia da cidade do que

    uma antropologia na cidade. Isto , no se desenvolveu no Brasil uma

    Antropologia Urbana propriamente, nos moldes em que foi iniciada pela

    Escola de Chicago, uma tentativa de compreender o fenmeno urbano em si

    mesmo. Ao contrrio, trata-se de pesquisas que operam com temas,

    conceitos e mtodos da antropologia. A cidade portanto, antes o lugar da

    investigao do que seu objeto....

    No entanto, ao escolher essa viso micro, os antroplogos urbanos do Brasil no

    deixam de manter um vnculo de seu objeto com as dimenses da dinmica urbana e da

    cidade como um todo, pois estes constituem parte da explicao e do contexto em que o

    objeto de pesquisa est inserido. Magnani (1996c, p. 25) explica muito bem essa relao:

    12

  • O que caracteriza o fazer etnogrfico no contexto da cidade o duplo

    movimento de mergulhar no particular para depois emergir e estabelecer

    comparaes com outras experincias e estilos de vida semelhantes,

    diferentes, complementares, conflitantes no mbito das instituies

    urbanas, marcadas por processos que transcendem os nveis local e

    nacional.

    Conclumos a partir do que foi exposto que a Antropologia Urbana foi fundamental

    dentro da disciplina para dar voz a agentes que estavam esquecidos tanto pela prpria

    Antropologia quanto por aquelas linhas de pesquisa que enfocam o contexto urbano em sua

    viso macro-social. A cidade surge como um local de pesquisa dotado de variadas

    manifestaes culturais to interessantes quanto s das sociedades simples, e que papel dos

    cientistas sociais compreender esta realidade, visto que ela passa cada vez mais a ser o cenrio

    fundamental dos indivduos na modernidade.

    13

  • CAPTULO 2 ANTROPOLOGIA BRASILEIRA

    Para compreender a histria da Antropologia Urbana no Brasil fez-se necessrio uma

    breve reviso histrica da disciplina de Antropologia como um todo no pas, porque desta

    forma possvel perceber a pouca influncia que a Antropologia Urbana teve at os anos 60 e

    como a Etnologia indgena predominou como tema de estudo antropolgico at esta data,

    deixando pouco espao para as pesquisas de contexto urbano. Dividirei a histria da

    Antropologia no Brasil em trs momentos, inspirada no texto de Mellati (1983) intitulado A

    Antropologia no Brasil: um roteiro: at os anos 30, dos anos 30 aos 60 e a partir dos anos 60.

    Antes de comear a tratar destes trs perodos importante salientar o papel que os cronistas

    tiveram dentro da Antropologia brasileira, muito antes desta disciplina se institucionalizar. Os

    cronistas so aqueles autores que no so cientistas sociais, mas que deixaram relatos de suas

    experincias e observaes com a populao de determinados locais ou regies do Brasil. O

    nmero de cronistas comea a aumentar com a chegada da Famlia Real no pas, e a maior

    parte deles eram navegadores, diplomatas, missionrios ou naturalistas.

    Antes dos anos 30 ainda no havia formao acadmica de Antropologia no Brasil, e

    inclusive na Europa esta se definia como um ramo novo das cincias. Ainda assim, alguns

    estudiosos brasileiros, de formao diversa (como mdicos, juristas, engenheiros, militares e

    etc), contriburam sobremaneira para as pesquisas antropolgicas.

    Esses pesquisadores, quase todos autodidatas em Antropologia, a par de

    seus levantamentos a respeito de ndios, negros, sertanejos, mostravam na

    maior parte dos casos um certo interesse no destino das populaes que

    estudavam e seu lugar na formao do povo brasileiro, cujo futuro era objeto

    de suas preocupaes. (MELLATI, 1983, p. 5).

    Entre estes pesquisadores, podemos destacar Slvio Romero, Euclides da Cunha,

    Roquette Pinto e Nina Rodrigues. A maior parte deles utiliza-se de teorias de determinismo

    geogrfico (onde as condies espaciais influenciariam as caractersticas pessoais) e biolgico

    (caractersticas genticas, como a raa, determinando a personalidade), razo pela qual so

    muitas vezes criticados. Acreditam na existncia de sociedades superiores e inferiores e que a

    mestiagem brasileira seria um mal para o pas. No entanto, importante levar em conta o

    perodo em que eles viveram e entender que determinados pensamentos pr-conceituosos

    estavam enraizados na sociedade (brasileira, inclusive) da poca. Roquette Pinto era o nico

    14

  • que no via a miscigenao como uma ameaa, pois tentava encontrar o melhor de cada povo

    para promover o desenvolvimento do Brasil. Para ele, a educao era mais importante do que

    a eliminao de uma raa.

    O segundo perodo da Antropologia no Brasil, dos anos 30 aos 60, ficou marcado

    pelas primeiras iniciativas de profissionalizao dos antroplogos no pas assim como de

    institucionalizao da Antropologia como um ramo importante das Cincias Sociais. Em 1934

    criada na USP (Universidade de So Paulo) a Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras do

    Brasil, com grandes nomes compondo sua grade docente na poca, como Roger Bastide,

    Emlio Willems e Lvi-Strauss. No mesmo ano criada a Escola de Sociologia e Poltica,

    tambm na cidade de So Paulo, tendo Hebert Baldus e Donald Pierson como uns dos

    professores. Mellati (1983, p. 11) afirma que sem dvida foi em So Paulo, pelo nmero de

    professores, pelo nmero de alunos e pelo esprito de renovao, o principal foco de

    irradiao da Etnologia nesse perodo. Fora da Academia tambm foram criados grupos de

    pesquisadores, como por exemplo, a Sociedade de Etnografia e Folclore em 1937 e a

    Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia em 1941.

    Outro fato importante para o desenvolvimento da Antropologia neste perodo foi a

    criao da ABA (Associao Brasileira de Antropologia) em 1955, durante a Segunda

    Reunio Brasileira de Antropologia. Nesta Reunio houve um esforo de colaborao, entre

    os participantes, para o progresso dos estudos antropolgicos e para a criao de uma

    conscincia profissional entre os antropologistas brasileiros. (Anais, 1957 apud CORREA,

    1988a, p. 6). A criao da ABA tinha como objetivo propiciar reunies peridicas dedicadas

    troca de experincias, informaes e o prprio convvio entre os associados. A cidade do Rio

    de Janeiro foi escolhida para sediar a ABA, e sua primeira diretoria foi composta por

    residentes desta cidade. Durante os anos 50 a cidade do Rio de Janeiro passa a ter um papel

    preponderante do desenvolvimento da Antropologia: sediou a Primeira Reunio Brasileira de

    Antropologia, fundou-se o Museu do ndio por Darcy Ribeiro - e a organizao nesse Museu

    do Curso de Aperfeioamento em Antropologia Cultural pelo mesmo Darcy -, e a criao

    de entidades federais de fomento pesquisa e ao ensino, como o CNPQ e a CAPES

    (MELLATI, 1983, p. 132). A partir dos anos 80 a ABA passa a ter uma atuao mais ampla

    na sociedade brasileira, extrapolando os limites da regio sudeste, assim como os limites de

    atuao acadmica, uma vez que utiliza o conhecimento cientfico acerca das comunidades

    indgenas para mobilizar e defender os interesses dos mesmos.

    15

  • A grande mudana ocorre no exerccio da Presidncia, transformando a

    ABA de uma entidade exclusivamente voltada para suas reunies bienais

    (nicos momentos em que efetivamente a ABA atuava) para um rgo de

    intensa participao poltica (ainda que no partidria), devotado

    simultaneamente aos seus compromissos culturais e participao poltica

    na sociedade civil mobilizada em defesa da democracia (OLIVEIRA,

    1988b, p. 136).

    A partir da dcada de 30, a influncia da sociedade norte-americana no Brasil se faz

    presente em diversos aspectos, em virtude da consolidao da hegemonia poltica e

    econmica desta na Amrica Latina. A Antropologia se v beneficiada neste momento pela

    vinda de muitos antroplogos norte-americanos para o pas, como Ruth Landes, Charles

    Wagley e Donald Pierson. A presena deles fez com que a influncia terica e metodolgica

    norte-americana se tornasse dominante na Antropologia at meados da dcada de 60. Em

    relao aos objetos de pesquisa da poca podemos dizer que a Antropologia sempre

    primorou por definir-se em funo de seu objeto, concretamente definido como ndios, negros

    ou brancos, estes ltimos vistos enquanto grupos tnicos minoritrios ou segmentos

    desprivilegiados da sociedade nacional (OLIVEIRA, 1988b, p. 111). No entanto, sabido

    que os assuntos indgenas predominavam a Antropologia na poca, tornando-se a marca

    fundamental da disciplina.

    Entre as dcadas de 30 e 40, autores que j haviam iniciado suas pesquisas em dcadas

    anteriores comeam a se tornar mais influentes, como o caso de Oliveira Viana, Gilberto

    Freyre e Srgio Buarque de Holanda. So autores que se propem interpretao da

    sociedade brasileira em reviso ideia de um pas fadado ao fracasso em virtude de sua

    miscigenao, que tendo j publicado obras substanciais3 a esta respeito, se tornam grandes

    intrpretes do Brasil. Os trs nomes citados tm em comum o fato de se preocuparem com a

    sociedade brasileira como um todo, abordando essa questo a partir de diferentes focos. Em

    suas obras Oliveira Viana questiona o sistema poltico utilizado pelo Brasil e defende sua

    reestruturao, pois estes modelos institucionais foram importados de outros pases e por este

    motivo no condizem com a realidade social e cultural da populao brasileira. J Gilberto

    Freyre e Srgio Buarque de Holanda abordam o processo de formao sociocultural da

    sociedade brasileira. Freyre tem em vista a relao aristocracia/escravos e aborda a

    3 Populaes Meridionais do Brasil (1987c) publicado pela primeira vez em 1920, Razes do Brasil (1969) publicado em 1936 e Sobrados e Mucambos (1951) publicado originalmente em 1936.

    16

  • miscigenao entre brancos, negros e ndios, enquanto Srgio Buarque destaca o legado

    cultural que a colonizao portuguesa deixou no Brasil.

    Os estudos de mudana social, cultural ou aculturao tambm tem incio nos anos 30

    e se prolonga por todo este segundo perodo da Antropologia no Brasil, mas sofrendo

    modificaes ao longo dos anos. Estes estudos tornaram-se a marca fundamental desta poca

    (anos 30) e tiveram por objeto tanto a populao negra, como os grupos indgenas, bem

    como imigrantes europeus e asiticos e seus descendentes e ainda a populao de reas de

    povoamento antigo e economicamente estagnadas (MELLATI, 1983, p. 13). Em relao aos

    estudos da populao negra, estes procuravam estudar os vestgios das culturas africanas que

    continuavam a sobreviver aqui no Brasil, apesar da perda de contato com a origem e do

    conflito com as crenas e valores da classe dominante. Os cientistas que se incluem nessa

    linha de pesquisa so Roger Bastide, Edson Carneiro, Nunes Pereira, Ruth Landes e Artur

    Ramos.

    No que tange aos estudos de aculturao entre ndios e brancos, a dcada de 40

    marcada pelos estudos de Charles Wagley, Eduardo Galvo e Egon Schaden. Apesar destes

    autores e suas investigaes se caracterizarem pela matriz funcionalista de explicao da

    realidade, demorou-se a estabelecer nessas pesquisas o longo e intensivo trabalho de campo

    que posteriormente seria sua marca registrada. A maioria dos pesquisadores costumava fazer

    visitas curtas ao campo de pesquisa ou no se aprofundavam em uma determinada tribo, o que

    deixava os trabalhos um tanto quanto inferiores em termos tericos e metodolgicos. Os

    limites desta postura logo vm tona:

    No final dos anos 50, alguns pesquisadores brasileiros, como Eduardo

    Galvo, Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira, comeam a repensar a

    orientao que vinha sendo tomada nos estudos de aculturao, sem, porm,

    abandonar o use desse termo. o tempo em que Darcy Ribeiro chama a

    ateno para a importncia das frentes de expanso, do carter econmico

    das mesmas e descola o interesse das culturas indgenas para o destino das

    sociedades que as mantm e de seus membros. (MELLATI, 1983, p. 14).

    Sobre os trabalhos de contato intertnico de imigrantes, apesar de j haver vrios deles

    antes de 1940, s depois disso que surgem pesquisas de carter propriamente cientfico.

    Dentre elas podemos destacar as de Emlio Whillems sobre os alemes, Ruth Cardoso sobre

    os japoneses, Thales de Azevedo e Eunice Durham, ambos sobre italianos. Alguns trabalhos

    17

  • sobre aculturao de imigrantes tomaram a forma de estudos de comunidade, que ocuparam

    papel preponderante na produo cientfica nas Cincias Sociais das dcadas de 40 e 50 e que

    se prolongaram at a dcada de 70. Atravs da realizao de pesquisas em pequenas cidades e

    comunidades espalhadas ao longo do territrio nacional, estes estudos se caracterizavam pela

    abordagem qualitativa, utilizando-se da observao direta, tcnica tradicionalmente utilizada

    pelos antroplogos na investigao de sociedades tribais. Com esses estudos de comunidade,

    Pretendia-se chegar a uma viso geral da sociedade brasileira atravs da

    soma de muitos exemplos distribudos pelas diversas regies do Brasil. Alm

    desse objetivo geral, tais estudos estavam quase sempre voltados para

    objetivos especficos, como mudana cultural, persistncia da vida

    tradicional, problemas de imigrantes, educao e vrios outros. (MELLATI,

    1983, p. 18).

    Apesar de ter se tornado uma marca desse perodo e de vrios antroplogos importantes no

    Brasil terem se utilizado desse tipo de pesquisa, como Emlio Willems, Oracy Nogueira,

    Donald Pierson e Antnio Cndido, os estudos de comunidade sofrem grandes crticas por

    parte de pesquisadores, particularmente advindas do campo de reflexo marxista, sob

    influncia de Florestan Fernandes, principalmente por no relaes entre a comunidade

    estudada e a sociedade mais ampla, tornando-o algo isolado, e tambm por no utilizarem de

    documentao histrica para comporem seus trabalhos.

    Outro tema que se destaca no campo das investigaes antropolgicas, entre as

    dcadas de 40 e 50, a relao entre negros e brancos, analisadas sob uma perspectiva diversa

    da ideia de aculturao e a identificao de possveis rastros da cultura africana que ainda

    exerciam influncia sobre o negro no Brasil. O foco das anlises se concentra na interao

    entre estes dois grupos, brancos e negros, na vida cotidiana, na existncia do preconceito

    racial no Brasil e as consequentes barreiras sociais ascenso social entre os negros.

    Exemplos desta linha so as obras Brancos e Pretos na Bahia (1942) de Donald Pierson,

    As elites de cor (1996a) de Thales Azevedo e Relaes raciais entre negros e brancos em

    So Paulo (1955), artigo este escrito em parceria entre Roger Bastide e Florestan Fernandes.

    Posteriormente, j na dcada de 60 e com um vis mais sociolgico, as reflexes sobre os

    negros procuram evidenciar as conexes existentes entre as relaes raciais na sociedade

    brasileira de ento e o sistema escravocrata fundamentado na ideologia racial. Octavio Ianni e

    Fernando Henrique Cardoso foram os mais importantes pesquisadores desta segunda gerao,

    e escreveram diversas obras sobre o assunto. Florestan Fernandes tambm permaneceu como

    18

  • pesquisador influente nesta segunda gerao, escrevendo, por exemplo, o artigo A integrao

    do negro na sociedade de classes (1978a) em 1964.

    Ainda tratando sobre o perodo entre 1930 a 1960, a anlise das produes acadmicas

    da poca demonstra, de acordo com Mellati (1983) mudanas na forma de se pensar as

    manifestaes folclricas, superando-se a abordagem difusionista que na maioria das vezes se

    limitava a localizar a origem de certos costumes, ritos e mitos, para uma anlise funcionalista,

    procurando entender a persistncia e a mudana social dos costumes analisados. Apesar desta

    mudana na perspectiva terica dever-se mais participao dos socilogos do que

    antroplogos, vale destacar a investigao das manifestaes folclricas, pois procuram seguir

    as tcnicas de investigao tradicionais na Antropologia, como o contato com informantes e a

    observao participante.

    Podemos resumir este segundo perodo atravs da fala de Mariza Corra (1988a, p.

    12), que afirma:

    O que parece claro para o perodo dos anos 30 aos anos 60 que, se houve

    uma profissionalizao crescente dos antroplogos no Brasil, ela se

    expressou na sua aglutinao em torno de uma identidade profissional

    comum, definida atravs da ABA e, se houve uma especializao crescente

    da disciplina no mbito das Cincias Sociais, ela se expressou pela nfase

    dada aos assuntos indgenas, na pesquisa tanto quanto na poltica de parte

    dos antroplogos do tema.

    Falaremos agora sobre o terceiro e ltimo perodo da Antropologia brasileira descrito

    por Mellati: os estudos que aconteceram aps a dcada de 60. Nesta poca percebe-se que

    muitas das iniciativas dos anos anteriores amadureceram e a Antropologia conseguiu se firmar

    como uma cincia fundamental no mbito humanstico, crescendo cada vez mais o nmero de

    etnlogos devido criao de importantes cursos de ps-graduao no Brasil, como da

    UNICAMP em 1971 e da UNB em 1972. Vale destacar a criao do Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional em 1968 e de sua posio de destaque

    no fomento e difuso da pesquisa antropolgica neste perodo. De fato, a capital carioca j

    havia comeado a se destacar como novo centro de atividade etnolgica na dcada de 50

    com a criao do Museu do ndio, por exemplo e a criao deste programa representou os

    resultados destes esforos.

    19

  • Sobre as orientaes tericas deste perodo, elas tambm se modificaram em relao

    ao perodo anterior e passaram a priorizar a perspectiva estruturalista em detrimento do

    funcionalismo. Alm disso, certos temas de pesquisa perderam interesse, como os estudos de

    comunidade, sendo substitudos por pesquisas de carter mais regional, dedicados s

    temticas envolvendo o campesinato, os assalariados rurais, as frentes de expanso e os

    trabalhadores urbanos (MELLATI, 1983, p. 22).

    Outra mudana notada neste perodo se deve s pesquisas de aculturao entre brancos

    e ndios, isto , nas modificaes culturais sofridas por este ltimo grupo em contato com a

    sociedade nacional. Nos anos 70, porm, o foco das preocupaes com o contato reside menos

    na questo da perda de traos originais do que na questo do conflito de interesses e valores

    existentes entre essas duas sociedades, ou seja, da perspectiva da aculturao passa-se para a

    noo de frico intertnica. Roberto Cardoso de Oliveira um dos antroplogos que trabalha

    com essa questo, publicando algumas obras sobre o assunto como Identidade, etnia e

    estrutura social (1976b). Surge ento o espao de discusso sobre o papel do antroplogo na

    sociedade brasileira, na medida em que esta nova abordagem, sob forte influncia da

    antropologia francesa marxista inspira nos pesquisadores o sentimento de militncia a favor

    dos ndios. Investidos no dever de defender e colaborar para que os direitos indgenas fossem

    mantidos estes pesquisadores passaram a defender a proposta de uma Antropologia

    denominada Antropologia da Ao. Estes pesquisadores procuraram atender s necessidades

    indgenas e buscar solues para seus principais problemas, como demarcao de terras,

    assistncia mdica, instruo, administrao direta pelos ndios de sua produo para mercado

    e outros. (MELLATI, 1983, p. 24).

    Alm dessa linha de pesquisa indgena, nesse perodo ganhou impulso os estudos

    sobre a estrutura social das sociedades indgenas, em que os pesquisadores buscaram respaldo

    terico no estruturalismo sob influncia de David Melbory-Lewis com o Projeto Harvard-

    Brasil Central que estabelecia parceria entre a Universidade de Harvard e o PPGAS do Museu

    Nacional. Nestes estudos h um esforo no sentido de captar os modelos nativos, a fim de

    tambm submet-los interpretao geral do pesquisador (MELLATI, 1983, p. 26),

    envolvendo pesquisadores como Roque Laraia, Jlio Cesar Mellati e Roberto DaMatta. Os

    mitos e ritos indgenas se destacam como objeto de estudo, e incitam os pesquisadores a

    novos recortes investigativos sobre as sociedades indgenas no Brasil. A abordagem

    estruturalista traz novas inspiraes, ultrapassando o mbito das sociedades tribais, como o

    caso de Roberto da Matta que toma os ritos como uma porta de entrada para o conhecimento

    20

  • da sociedade brasileira na obra Carnavais, malandros e heris (1981) publicada pela

    primeira vez no final da dcada de 70.

    No entanto, muito mais importante para ns do que estes estudos, neste momento, o

    fato de que aps os anos 60 a Antropologia Urbana comea a ganhar espao no Brasil,

    tornando-se hoje uma linha de pesquisa importante, com muitos trabalhos e pesquisadores na

    rea reconhecidos e fundamentais para compor a histria da Antropologia como um todo. A

    linha histrica da Antropologia Urbana, suas influncias tericas e o reconhecimento da

    cidade e dos grupos urbanos como objetos importantes de investigao so temas do prximo

    captulo.

    21

  • CAPTULO 3: ANTROPOLOGIA E AS CIDADES

    Depois de introduzir a questo da cidade como objeto de pesquisa e fazer uma breve

    reviso do desenvolvimento da disciplina antropolgica no Brasil, apresento agora o ltimo e

    o que poderia ser considerado o mais importante captulo desta Monografia, pois trata

    fundamentalmente do objetivo geral desta pesquisa, que fazer uma perspectiva histria da

    Antropologia Urbana no Brasil. Inicio-o com as Escolas que foram grande inspirao para

    esta linha de pesquisa, a Escola de Chicago e a Escola de Manchester. Depois disso, apresento

    a cronologia histrica, por assim dizer, da Antropologia Urbana no Brasil, mostrando como se

    deu seu incio e seu desenvolvimento ao longo dos anos, os principais expoentes no pas e

    algumas pesquisas que se tornaram referncia na rea.

    3.1 INFLUNCIAS TERICAS

    Adiante, apresento as Escolas pioneiras no estudo das cidades e que formam o

    conjunto terico e metodolgico de influncia para o desenvolvimento da Antropologia

    Urbana como um todo, fazendo-se sentir tambm dentro do Brasil.

    3.1.1 ESCOLA DE CHICAGO

    A Escola de Chicago representa um grupo de pesquisadores e professores do

    Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Chicago entre o final do

    sculo XIX e princpio do sculo XX, e se constitui como a principal influncia para os

    posteriores estudos na rea da Antropologia Urbana. Uma das marcas da Escola de Chicago

    a heterogeneidade de influncias tericas, metodolgicas e temas de pesquisa, que a

    diferencia do que se entenderia tradicionalmente como uma escola. Howard Becker (1996b,

    p. 179), usando dos conceitos de Samuel Guillemard, define a Escola de Chicago como uma

    escola de atividade e no de pensamento, pois consiste em um grupo de pessoas que

    trabalham em conjunto, no sendo necessrio que os membros da escola de atividade

    compartilhem a mesma teoria; eles apenas tm de estar dispostos a trabalhar juntos.

    No fim do sculo XIX a cidade de Chicago estava passando por grandes

    transformaes, tornando-se um local cada vez mais urbano e com um nmero vertiginoso de

    habitantes, devido em grande parte vinda de imigrantes dos mais variados locais. Como era

    de se esperar, a estrutura da cidade no deu conta desse crescimento e diversos problemas

    sociais comeam a surgir nesse cenrio, como prostituio, violncia, falta de moradia e etc.

    Os membros da Escola de Chicago resolvem, ento, aprofundar nessas mudanas

    22

  • presenciadas por eles a partir do vis sociolgico/antropolgico visando sua reparao. Alm

    disso, e ainda mais importante, perceberam que esta era uma oportunidade para analisar se

    essa populao to heterognea, sem tradies arraigadas e marcada pela impessoalidade e

    anonimato conseguiria chegar a um consenso social ou se tornaria uma sociedade em total

    estado de anomia.

    a partir desse quadro de grande imigrao que a Escola de Chicago cria o conceito

    de Ecologia Humana, que seria uma de suas teorias fundamentais. Inspirando-se na ecologia

    animal e vegetal ela se interroga sobre as condies e consequncias da coabitao de

    populaes to diferentes em um mesmo territrio. (JOSEPH, in VALLADARES, 2005b, p.

    103). Trata-se de estudar a relao entre populaes heterogneas em um mesmo local, ou

    seja, como eles se relacionam com o espao e competem entre si para obt-lo. Na viso desses

    pesquisadores, a adaptao e a cooperao dos grupos encontra recursos no espao fsico,

    dotando-o de significado, por isso a importncia de estud-los de forma sensvel, para a

    compreenso do sentido e pertinncia do modo como os citadinos vo us-los.

    O espao fsico espelho da estrutura social e assim podemos saber a desigualdade

    existente entre as populaes, retratando a distncia espacial entre elas. Atravs dos tempos,

    todo setor e quarteiro da cidade assume algo do carter e das qualidades de seus habitantes.

    (PARK in VELHO, 1973, p. 30). O modelo dos crculos concntricos, desenvolvido por

    Homer Hoytt sob a influncia dos pesquisadores da Universidade de Chicago, consiste na

    tentativa de diagramao das relaes estabelecidas entre estrutura social e distribuio

    espacial: a diviso da cidade em uma sucesso de zonas espaciais, uma ao redor da outra, em

    que quanto mais longe do centro se encontra, maior seria a posio e o prestgio social

    daqueles que a ocupam. Preocupados com a questo da integrao destes novos atores na

    sociedade norte-americana, no caso em particular, os migrantes que chegavam nesta cidade,

    estes pesquisadores procuravam identificar os dilemas enfrentados pelo homem marginal,

    que de acordo com Park seria aquele indivduo que se instala em uma comunidade mas que

    permanece exterior e margem dela, no conseguindo a integrao completa. Assim, ele se

    tornaria um hbrido cultural, isto , entre duas culturas onde nenhuma delas o aceitaria

    plenamente (VALLADARES, 2010, p. 40).

    Podemos concluir ento que dentro dessa grande variedade de teorias existe um ponto

    em comum entre os pesquisadores e que definiu a marca dos estudos da Escola de Chicago: as

    pesquisas no contexto urbano. justamente a delimitao dessa rea de estudo conjugada

    23

  • com a metodologia utilizada, a observao participante, que fizeram desta Escola uma

    referncia fundamental para a Antropologia Urbana. Fundamentalmente, os pesquisadores de

    Chicago tinham a preocupao de conhecer a realidade urbana na sua essncia, e fizeram da

    observao participante um requisito essencial para um bom trabalho

    sociolgico/antropolgico. Nas palavras de Edgar Mendoza (2000, p. 121),

    Considero que o aspecto mais rico da Escola de Chicago foram as pesquisas

    etnogrficas urbanas feitas com um modelo de pesquisa tanto qualitativa

    quanto quantitativa, com trabalho de campo, observao participante,

    mtodos de histria de vida, documentos pessoais, surveys, mapas e

    estatsticas.

    A existncia de um departamento nico entre Sociologia e Antropologia fez com que

    as pesquisas mesclassem metodologias das duas reas, como ficou bem claro na fala de

    Mendoza. Os estudos relacionavam a ordem microestrutural, que se refere aos estudos de caso

    (de carter mais antropolgico), ordem social (aspectos macroinstitucionais de carter mais

    sociolgico). A Antropologia comea a ganhar destaque como uma disciplina independente a

    partir da grandiosidade que alcana os estudos de Redfield, que desde sua matrcula em

    Chicago em 1924 se define como antroplogo, apesar da grande contribuio intelectual de

    Park em sua formao. No ano acadmico de 1923-1924, havia certamente sinais evidentes

    nos Quadrilteros de que Chicago viria a ser um lugar agitado e oportuno para um tardio, mas

    ambicioso, aspirante ao papel de empresrio antropolgico. (STOCKING JR. in PEIXOTO,

    PONTES & SCHWARCZ, 2004, p. 24), e de fato foi. Juntamente com Columbia, Harvard e

    Berkeley, Chicago se tornou um dos principais centros de ensino de ps-graduao em

    Antropologia, e isso se deve chegada de antroplogos de renome para compor a grade

    docente da Universidade, como o j citado Redfield, Sapir em 1925, Radcliffe-Brown em

    1931, entre outros. Existia uma relao constante e importante (que nem sempre era

    harmoniosa) entre o Departamento de Chicago com a antropologia de Columbia, com Franz

    Boas, Margareth Mead e Ruth Benedict. Contudo, a separao formal entre o Departamento

    de Sociologia e Antropologia s foi acontecer em 1929 (37 anos aps a criao da

    Universidade de Chicago), o que no desfez a ligao entre as duas reas,

    A partir da bibliografia lida, percebe-se entre os autores diferentes divises em relao

    s geraes existentes dentro da Escola de Chicago. No entanto, gostaria de propor - baseada

    nas obras de Valladares (2005b), Becker (1996b) e Mendoza (2000) - trs grupos de

    pesquisadores dentro desta corrente de pensamento, divididos entre autores contemporneos

    24

  • entre si que se tornaram referncia quando se fala em Chicago. O primeiro grupo composto

    por William Thomas, George Herbert Mead, Ernest Burguess e Robert Park, que foram os

    primeiros pesquisadores da Escola de Chicago a alcanarem um reconhecimento maior. O

    Departamento de Sociologia e Antropologia de Chicago cresceu sob a direo de Thomas,

    alm de ser o responsvel por inaugurar o mtodo dos relatos de vida e a anlise de

    documentos pessoais (JOSEPH in VALLADARES, 2005b, p. 115). J Mead teve sua

    influncia dentro da Escola na vertente da psicologia social. Park e Burguess escreveram

    juntos a obra clebre Introduction to the Science of Sociology (1921), e se tornaram dois

    dos mais importantes tericos da Escola de Chicago.

    Park merece destaque ainda maior pela influncia que teve sob quase todos os

    pesquisadores da Escola de Chicago e por ter sido um dos primeiros a pensar a cidade como

    um campo de investigao rico e importante para as Cincias Sociais. Ele acreditava ser

    fundamental dar ateno a esse espao de investigao, pois hoje, o mundo inteiro ou vive na

    cidade ou est a caminho da cidade; ento, se estudarmos as cidades, poderemos compreender

    o que se passa no mundo (PARK apud BECKER, 1996b, p. 180). Park ainda chama os

    antroplogos para esse campo e defende que os mesmos mtodos de observao utilizados no

    estudo da vida e dos costumes dos ndios devem ser empregados na investigao dos

    costumes, crenas e prticas sociais em grupos urbanos.

    Mendoza (2000, p.26) sustenta que de certa forma, enquanto Malinowski estava

    estudando os Trobriandeses, Park estava estudando Chicago: so contemporneos. Tanto que

    o texto de Park intitulado A cidade: sugestes para a investigao do comportamento

    humano no meio urbano data de 1916, enquanto Malinowski escreve Os Argonautas do

    Pacfico Ocidental (1976a) em 1922. Neste artigo Park instiga socilogos e antroplogos a

    estudarem a cidade, e sugere quatro linhas de investigao que compe esse contexto urbano.

    A primeira delas denominada por ele como Planta da cidade e a organizao local e fala

    sobre a relao entre espao fsico e ordem social, segregao espacial, relao entre

    vizinhanas urbanas e etc, que so os temas de investigao da Ecologia Humana. A segunda,

    Organizao industrial e ordem moral, fala sobre como a cidade tornou-se um local

    fundamentalmente organizado pelo comrcio e pela economia, baseada na diviso do

    trabalho. A outra linha das Relaes secundrias e controle e aborda a questo da

    substituio das relaes primrias pelas secundrias pelos indivduos que vivem no contexto

    urbano. No ltimo tema, O Temperamento e o Meio Urbano, desenvolvido o conceito

    criado por ele prprio de regies morais, e que se refere a regies especficas da cidade

    25

  • onde pessoas com gostos determinados, que geralmente sofrem restries por parte da

    sociedade urbana, se encontram.

    A segunda gerao formada pelos alunos desses primeiros pesquisadores, e so eles:

    Herbert Blumer, Everett Hughes, Robert Redfield, William Foote Whyte e Louis Wirth.

    Blumer foi o aluno mais importante de George Herbert Mead4, dando continuidade linha da

    psicologia social, enquanto Hughes desenvolveu as concepes de Park a respeito das

    profisses (BECKER, 1996b, p. 183), que um tema que se torna grandioso dentro do meio

    urbano com a proliferao de diferentes ofcios. Em relao Redfield, Foote White e Wirth,

    os trs alcanaram grande prestgio e renome, sendo lembrados como grandes expoentes e

    pesquisadores da Escola de Chicago. Para Frgoli Jr (2005a, p. 136), por exemplo, a noo de

    cultura urbana formulada pela Escola de Chicago deve ser creditada a Park, Wirth e Redfield,

    principalmente. Park concebeu a cidade como um campo de investigaes da vida social,

    influenciando vrias pesquisas da poca, Wirth criou o conceito de urbanismo como modo

    de vida que se tornaria fundamental na teoria da Escola, e as pesquisas de Redfield originaram

    os estudos de comunidade.

    Foote-White escreveu em 1943 uma das obras mais clebres na rea da sociologia e

    antropologia urbana at hoje, o livro Sociedade de Esquina (2005c), apresentado como tese

    de doutorado pela Universidade de Chicago sob a orientao de Lloyd Warner e com o apoio

    de Everett Hughes. Levou ao extremo a noo de observao participante, vivendo durante

    quatro anos em uma comunidade italiana em Boston, que foi seu objeto de estudo na obra. Em

    1926 Redfield deixa Chicago e parte para Tepoztlan, e como fruto dessa experincia lana o

    livro Tepoztlan, a Mexican Village: A Study of Folk Life (1946) abordando o assunto da

    cultura folk e de sociedades camponesas. Nesse livro ele lana o conceito do continnuum-folk-

    urbano que se refere passagem de uma sociedade no-urbana para uma urbana. Para ele,

    qualquer comunidade poderia ser localizada em um ponto determinado do continuum e,

    dadas certas condies de densificao populacional e aumento de heterogeneidade, qualquer

    grupo de moveria na direo do plo urbano (OLIVEN, 2007, p. 21), e as consequncias

    dessa mudana seriam a desorganizao da cultura, a secularizao e o individualismo. Assim

    como Redfield, autores clssicos das Cincias Sociais tambm j haviam feito verses da

    polaridade tradicional/ moderna, como solidariedade mecnica/orgnica (Durkhim),

    tradicional/racional (Weber) e comunidade/sociedade (Tonnies). Estes autores procuraram,

    4 Filsofo americano pertencente Escola de Chicago, desenvolve suas pesquisas voltadas para a rea da Psicologia Social.

    26

  • cada um por um caminho, a compreenso das especificidades das sociedades modernas, cujo

    pano de fundo privilegiado foram as metrpoles industriais, com intensas mudanas no plano

    urbanstico, populacional [...] (FRGOLI JR., 2005a, p. 136).

    Assim como Redfield, Wirth era bastante pessimista em relao cidade, na verdade,

    essa tambm uma das caractersticas da Escola de Chicago como um todo, que se

    preocupava com a patologia social. Para Wirth a cultura das cidades caracterizada

    por papis sociais altamente fragmentados, predominncia dos contatos

    secundrios sobre os primrios, isolamento, superficialidade, anonimato,

    relaes sociais transitrias e com fins instrumentais, inexistncia de um

    controle social direto, diversidade e fugacidade dos envolvimentos sociais,

    afrouxamento dos laos familiares e competio individualista. (OLIVEN,

    2007, p. 18 e 19).

    A cidade no s uma entidade fsica, ela produz nos indivduos formas de agir e pensar

    que a citao de Oliven exemplifica muito bem - que constituem o que Wirth denominou de

    urbanismo como modo de vida. Esse modo de vida se expressa de forma mais latente nas

    grandes cidades e depende da existncia de trs fatores conjuntos: tamanho do agregado

    populacional, densidade e heterogeneidade. Wirth define a cidade como: [...] um ncleo

    relativamente grande, denso e permanente, de indivduos socialmente heterogneos.

    (WIRTH in VELHO, 1973, p. 96). Alm disso, em O urbanismo como modo de vida este

    autor destaca a relao entre o rural e o urbano: ao contrrio do que a grande maioria pensa,

    so dois mundos que esto em constante interpenetrao visto que a maior parte da populao

    urbana advm da rural, por outro lado Wirth enfatiza a hegemonia da cidade na configurao

    da sociedade moderna onde a influncia do urbano ultrapassa os limites da cidade, chegando

    com facilidade ao campo.

    A distncia temporal entre essas duas primeiras geraes no grande (elas ocorreram

    entre as duas guerras mundiais), e segundo a denominao de Mendoza (2000, p. 121) elas

    compartilham a idade de ouro da Escola de Chicago, onde a pesquisa sistemtica da cidade de

    Chicago comea a ser feita, fazendo dela a cidade mais pesquisada do mundo at hoje.

    A terceira gerao, da ps-guerra, tem como autores mais conhecidos Howard Becker

    e Erving Goffman, que sofreram forte influncia terica da corrente do interacionismo

    simblico. O termo interacionismo simblico foi criado por Blumer, no mbito da Escola

    27

  • de Chicago, e busca compreender a simbologia por trs das interaes entre os indivduos. A

    partir dessa abordagem, verifica-se que os indivduos em uma relao social agem de acordo

    com uma lgica prpria existente neste ato e que conhecida por ambas as partes, ou seja, h

    um sentido por trs de cada ao e que varia de acordo com o tipo de relao que est

    ocorrendo. Nessa perspectiva terica a ordem macro-social fica em segundo plano, pois no

    a estrutura que determina a ao face a face, que s poderia ser captada metodologicamente

    atravs da observao participante, como Becker e Goffman fizeram em suas investigaes.

    Em A Representao do Eu na Vida Cotidiana (1985) Goffman aprofunda as ideias

    do interacionismo simblico e analisa a interao social que ocorre no dia-a-dia. Desenvolveu

    tambm o conceito de instituies totais no livro Manicmios, prises e conventos

    afirmando que essas instituies controlam ou buscam controlar as interaes dos indivduos

    submetidos a ela como forma de manter a estabilidade dentro desses locais. J Becker fez

    grandes contribuies para a rea da sociologia do desvio atravs de seu livro clebre

    Outsiders (2008), onde utiliza do mtodo da observao participante para ouvir os

    desviantes, que so seu objeto de pesquisa.

    Apesar da tardia separao do Departamento de Antropologia e Sociologia, a

    Antropologia teve um papel fundamental dentro da Escola de Chicago, principalmente em

    relao ao uso da metodologia, como observao participante, estudos de caso, entrevistas e

    etc. Muitos alunos de Park passavam um bom tempo fazendo pesquisas de natureza quase

    antropolgica em reas da cidade, abordando certos fenmenos da mesma. (BECKER,

    1996b, p. 182). Verificamos nestas trs geraes nomes que seriam posteriormente

    conhecidos por sua contribuio antropolgica, como Redfield e Goffman.

    Diferentemente do que ocorreu em outros pases, fomos introduzidos na sociologia e

    na antropologia de Chicago por um de seus representantes: Donald Pierson, que veio para o

    Brasil para fazer sua tese sobre as relaes raciais na Bahia. Depois disso, Pierson

    permaneceu no Brasil por anos como professor na Escola de Sociologia e Poltica de So

    Paulo, ensinando-nos Chicago e sua prtica de pesquisa e incentivando a observao

    participante e o trabalho de campo. Sua obra Brancos e pretos na Bahia pode ser

    considerado o primeiro trabalho com uma influncia clara da Escola de Chicago no Brasil,

    apesar de se definir como uma [...] pesquisa de relaes raciais e no da cidade de Salvador,

    a sua importncia deve-se ao fato que inovou os estudos sociolgicos no final da dcada de

    30, principalmente em So Paulo. (MENDOZA, 2000, p. 134).

    28

  • Entre 1940 e 1950 a influncia da Escola de Chicago em So Paulo se deu em trs

    campos: relaes raciais (negros, brancos e imigrantes), estudos de comunidade e estudos na

    cidade, sendo os estudos de comunidade que obtiveram maior influncia. Haviam poucos

    trabalhos realizados nas grandes cidades, inclusive na capital. Dentre esses poucos trabalhos

    Mendoza (2000, p. 160) destaca oito deles que permitem observar a influncia de Chicago

    nessa poca: Grupos sociais de Guaratinguet de Lucila Hermann (1938), Enquistamentos

    tnicos de Oscar Arajo (1940), Contribuio para uma Sociologia da vizinhana de

    Emlio Willems (1941), Habitaes de So Paulo: estudo comparativo de Donald Pierson

    (1942), Histria natural de uma rua suburbana de Frederico Heller (1943), Estudo do

    desenvolvimento de So Paulo atravs de uma radial: a estrada do caf de Lucila Hermann

    (1944), Subrbio de Osvaldo Xidieh (1947) e Distribuio residencial de operrios de um

    estabelecimento industrial de So Paulo de Oracy Nogueira (1949).

    J no Rio de Janeiro, a Escola de Chicago passa a ser uma influncia terica e

    metodolgica somente na dcada de 70, quando os antroplogos do Museu Nacional,

    liderados por Gilberto Velho, comeam a utilizar o interacionismo simblico em suas

    pesquisas. Influenciado principalmente por Becker e Goffman, Velho procurou fazer com que

    seus alunos trabalhassem com universos mais prximos, como a classe mdia. O Museu

    Nacional foi o primeiro programa de ps-graduao em antropologia desenvolvida na cidade,

    inaugurando o que depois viria ser feito pela Unicamp, USP, UnB, a UFRGS e outros que

    passaram a ser tambm importantes centros de pesquisa na rea.

    Falar sobre Sociologia e Antropologia Urbana lembrar da Escola de Chicago, e isso

    torna-se notvel aps essa anlise histrica. O pioneirismo no estudo do contexto urbano e a

    metodologia utilizada fizeram dela uma referncia fundamental, e seus membros tornaram-se

    leitura obrigatria para qualquer interessado na rea. No Brasil, essa influncia tambm se fez

    notar, e pesquisadores importantes como Gilberto Velho e Jos Guilherme Magnani no

    deixam de citar a contribuio de diversos autores da Escola em suas produes

    antropolgicas. Obviamente muito se desenvolveu em termos tericos e metodolgicos desde

    a Escola de Chicago, mas pensar que j em 1916 Park estava alertando os cientistas sociais

    em relao importncia do estudo da cidade nos deixa impressionados pela originalidade do

    pensamento e da previso de que o urbano seria hoje o contexto fundamental da sociedade

    como um todo.

    29

  • 3.1.2 ESCOLA DE MANCHESTER

    Assim como a Escola de Chicago realizou pesquisas de campo em contextos de

    transformaes sociais aceleradas, no caso as crescentes migraes para a cidade, a Escola de

    Manchester tambm o fez e tornou-se outra importante influncia terica e metodolgica para

    a Antropologia Urbana. No entanto, as transformaes sociais estudadas por ela foram outras:

    a emergncia de novas naes na era ps-colonial. Esta escolha de objeto foi inovadora para a

    Antropologia, pois as questes do dia, sobretudo a independncia das antigas colnias

    britnicas era assunto de conversa, mas no de estudo propriamente dito. (FRY, 2011a, p. 2).

    Todos os membros da Escola de Manchester possuam uma posio poltica muito

    clara contra o colonialismo e o racismo, e isso est relacionado ao fato de que a maioria deles

    era de origem sul-africana, e tambm por terem participado do Institute Rhodes Livingstone

    na antiga Rodsia do Norte (agora Zmbia). Gluckman, o maior expoente desta Escola,

    dirigiu este Instituto de 1941 a 1947, quando mudou-se para Oxford para ocupar um cargo

    docente. Dois anos aps sua sada, em 1949, mudou-se de novo para instalar na Universidade

    de Manchester um departamento de Antropologia, o que propiciou o desenvolvimento da

    Escola de Manchester.

    No se pode facilmente separar o desenvolvimento das ideias de Gluckman

    e a obra que ele inspirou no Rhodes Livingstone Institute. Elas fundiram-se

    nas produes da Escola de Manchester, a qual, na dcada de 1950, se

    tornou uma reconhecvel mutao do estruturalismo britnico. (KUPER,

    1978b, p. 182 e 183).

    Em 1934 Gluckman foi para Oxford pela primeira vez como bolsista Rhodes, onde foi

    influenciado pelas perspectivas de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard, tornando-se um

    membro da Antropologia Inglesa e um adepto do estrutural-funcionalismo. Entre 1936 e 1938

    realizou trabalho de campo na Zululndia que resultou em sua obra clebre Anlise de uma

    situao social na Zululndia moderna (1987a). O livro analisa como brancos e negros

    conseguem conviver juntos em um mesmo local, apesar da clara diviso entre os dois grupos,

    diviso esta que se torna um valor dominante para os brancos. Gluckman analisa esta relao

    a partir de uma situao especfica: a inaugurao de uma ponte, onde estavam presentes tanto

    brancos (equipe administrativa, policiais, etc) quanto zulus (chefes locais, trabalhadores que

    construram a ponte, residentes das proximidades e etc). Em relao a esse evento, o ponto

    de vista defendido por Gluckman era que, embora os membros dos diferentes grupos de cor

    30

  • estivessem simblica e concretamente divididos e opostos em todos os aspectos, eles eram

    forados, entretanto, a interatuar em esferas de interesse comum. (KUPER, 1978b, p. 173).

    Gluckman recebeu de Oxford a influncia de anlise do conflito e da oposio,

    acreditando que o equilbrio social no resulta da integrao de grupos ou normas, mas pelo

    contrrio, resulta do equilbrio de oposies num processo dialtico. No caso da Zululndia, a

    hegemonia do grupo branco o fator social principal na manuteno do equilbrio desta

    sociedade. Os rituais so tambm uma forma de afirmar uma possvel unidade entre os

    grupos, apesar dos conflitos existentes.

    Dentre cientistas membros da Escola de Manchester, podemos citar: Bailey, Barnes,

    Colson, Epstein, Mayer, Mitchell, Turner, Van Velsen, Worsley, Cunnison, Marwick e

    Watson. De acordo com Kuper (1978b, p. 178), a obra de todos eles quase sempre

    facilmente identificvel como manchesteriana no tema e na inspirao, e isso se deve ao

    fato deles terem sido discpulos e colaboradores de Gluckman, sofrendo grande influncia do

    pensamento e da pesquisa deste antroplogo. Apesar disso,

    Cada monografia tinha seu foco particular: a fisso na aldeia foi o tema

    escolhido por Turner; a integrao poltica vertical foi o de Mitchell,

    trabalhando numa aldeia Yao; a migrao de mo-de-obra foi o problema

    abordado por Watson; as acusaes de bruxaria serviram pesquisa de

    Marwick, e assim por diante. (KUPER, 1978b, p. 179).

    Outro campo de estudo que os antroplogos da Escola de Manchester se debruaram

    foi sobre as redes sociais - principalmente Barnes em seu artigo Redes sociais e processo

    poltico (1987a) favorecido pelo cenrio de modernizao recente destas tribos africanas. O

    conceito de redes sociais explica o pertencimento do indivduo a vrios grupos (famlia,

    trabalho, faculdade, etc).

    Estes conceitos enfatizam a observao das caractersticas das ligaes

    entre indivduos, uns em relao aos outros, como forma de explicar ao

    social e os motivos pelos quais um indivduo escolhe, em um contexto

    especfico, um curso de ao e no outro. (FELDMAN-BIANCO, 1987a, p.

    27).

    Sobre a forma de apreenso da realidade social utilizada pela Escola de Manchester

    devemos destacar a anlise situacional ou estudo de caso detalhado, que desenvolvida de

    forma mais abrangente por Van Velsen em seu artigo A anlise situacional e o mtodo de

    31

  • estudo de caso detalhado (1987a). muito comum na Antropologia estudar as normas e

    valores de uma determinada sociedade para compreender o que se passa dentro dela. No

    entanto, para a Escola de Manchester e o mtodo de anlise situacional, esses valores so na

    maior parte das vezes contraditrios, e por isso esta no seria a forma adequada. Para eles, a

    anlise deve focar em situaes e comportamentos reais e a partir deles possvel esbarrar em

    inmeras normas sociais, analisando o modo como os indivduos fazem uso delas no seu

    cotidiano, e at mesmo o conflito existente entre normas. Nas palavras de Van Velsen (in

    FELDMAN-BIANCO, 1987a, p. 369)

    Uma das suposies na qual a anlise situacional est baseada a de que as

    normas da sociedade no constituem um todo coerente e consistente. So, ao

    contrario, freqentemente vagas e discrepantes. exatamente este fato que

    permite sua manipulao por parte dos membros da sociedade no sentido de

    favorecer seus prprios objetivos sem necessariamente prejudicar sua

    estrutura aparentemente duradoura de relaes sociais. Por isso a anlise

    situacional privilegia o estudo das normas em conflito.

    O mtodo baseia-se no registro de situaes sociais, isto , no comportamento de

    indivduos em algumas ocasies como membros de uma comunidade, analisado e comparado

    com seu comportamento em outras ocasies. Isto permite entender os seres humanos como

    infinitamente adaptveis s mltiplas situaes onde se encontrassem (FRY, 2011a, p. 5),

    alm dos diversos pontos de vista e modos de agir existentes entre os indivduos. A anlise

    situacional deve ser apreendida atravs de trabalho de campo, analisando cada caso

    detalhadamente. Esses casos no devem ser utilizados como exemplos, tal como comum na

    Antropologia, mas como partes de um processo social onde possvel tirar concluses

    importantes para a pesquisa antropolgica. Sobre a anlise situacional a opinio de Fry

    (2011a, p. 11) a de que,

    O que as pessoas fazem e dizem em situaes sociais que podemos

    observar valem, do meu ponto de vista, muito mais que entrevistas formais,

    que tendem a apanhar posies normativas. Observando vrias situaes,

    como pregava Gluckman, uma maneira interessante de tentar apanhar o

    mximo possvel do processo social e de poder se aproximar a uma anlise

    mais fina da relao entre ao e representao.

    32

  • Como j est subentendido na fala de Fry, Gluckman utilizou o mtodo de anlise situacional para

    compor sua pesquisa na Zululndia, e foi a partir das situaes sociais e de suas inter-relaes

    que ele pde abstrair a estrutura social e as relaes sociais existentes naquela sociedade.

    Ainda em relao questo metodolgica, Malinowski foi uma grande influncia para

    os membros da Escola de Manchester, pois tomaram como certo que a observao

    participante era fundamental para se chegar a um bom resultado cientfico. Gluckman levou

    essa pesquisa de campo ao extremo, desenvolvendo sua insero com os Zulus vestido em

    roupas tradicionais africanas. Para Fry (2011a, p. 6) essa atitude demonstrava a necessidade

    de igualdade para com as pessoas que ele estava pesquisando. Gluckman tambm se

    preocupava com o contexto total da sociedade que estava estudando, visto que esta era uma

    sociedade plural. Assim, era necessrio estudar tanto as reas urbanas como as rurais. Alm

    disso, a Escola de Manchester utilizava-se de dados histricos - e no somente como pano de

    fundo como faziam os antroplogos que estudavam sociedades simples - e estatsticos

    (principalmente Barnes e Mitchell) para compor suas pesquisas.

    Apesar da certa marginalidade da Escola de Manchester em relao Escola de

    Chicago quando se trata das influncias da Antropologia Urbana, esta se tornou uma Escola

    revolucionria principalmente pela posio poltica que tomou em suas pesquisas e pela

    inovao em tratar de cidades ps-coloniais africanas, que estavam passando por processos

    nicos e instigantes para a Antropologia como um todo. As mudanas de vida dos indivduos

    eram muito grandes, com membros que antes compunham grupos tribais tornando-se

    operrios, e mudanas at mesmo identitrias em relao destribalizao ocorrida no

    contexto urbano. Mas no se pode falar em Escola de Manchester sem falar em Max

    Gluckman, pesquisador este que tomou frente da Escola e que fez com que muitos

    pesquisadores da poca tornassem discpulos seus, tericos e metodologicamente falando.

    Concluo este captulo com uma fala de Fry (2011a, p. 12) que resume bem toda essa

    importncia:

    na antropologia nas cidades ento que as lies da Escola de Manchester

    continuam vivas, com a sua nfase na pesquisa de campo baseada na

    participao plena com o intuito de entender melhor a insero social

    complexa dos indivduos de situao em situao.

    33

  • 3.2 REVISO HISTRICA DA ANTROPOLOGIA URBANA NO BRASIL.

    possvel afirmar que a Antropologia brasileira est dividida em torno de duas

    tradies de pesquisa determinadas pela escolha do objeto, sendo uma delas a Etnologia

    Indgena e a outra a Antropologia da Sociedade Nacional5. A primeira delas, como ficou claro

    no segundo captulo, a que aparece com mais vigor dentro da disciplina, e a segunda a

    tradio na qual a Antropologia Urbana se encontra, juntamente com outras linhas de pesquisa

    como a sociedade agrria e campesinato, as minorias sociais e tnicas, a famlia, os

    movimentos sociais, as religies populares e a cultura nacional (OLIVEIRA, 1988b, p. 117).

    Os primeiros estudos no Brasil que comeam a incitar a questo do urbano como

    importante objeto de pesquisa se d na dcada de 40 e continua na dcada seguinte, so os

    denominados estudos de comunidade. Influenciados sumariamente pela Escola de Chicago,

    estas pesquisas, apesar de no focarem especificamente nas sociedades urbano-industriais,

    utilizam a cidade como pano de fundo e cenrio dos fenmenos estudados. Estes estudos

    foram tentativas de aproximao ao estudo da cidade e do sujeito social habitante dela,

    embora esforos isolados no institucionalizados, a cidade no era ainda compreendida como

    objeto de estudo significativo. (MENDOZA, 2000, p. 309 e 310). Eles tornaram-se

    importantes para dar visibilidade a um contexto e um foco de pesquisa que ainda no era

    levado em conta pela Antropologia e at mesmo pelas Cincias Sociais, tornando-se um

    antecedente daquela que hoje seria conhecida como Antropologia Urbana.

    O empurro dado pelos estudos de comunidade foi importante para o incio do

    interesse, de fato, pelos processos econmicos, sociais e culturais da urbanizao e da

    industrializao e seus efeitos no contexto da cidade e de seus habitantes no fim dos anos 50 e

    por toda a dcada de 60. Uma das causas fundamentais dessa transformao na Antropologia

    se d pelo receio que houve na poca de que as tribos indgenas e as minorias sociais, objetos

    clssicos da disciplina, desaparecessem com a modernidade e assim a Antropologia ficaria

    sem objeto de pesquisa. Alm disso, os antroplogos comeam a perceber que a urbanizao

    um sistema irreversvel da modernidade e que traria profundas transformaes para a

    sociedade como um todo, sendo papel de todo cientista compreender essas mudanas.

    Diversos autores importantes das Cincias Sociais e da Antropologia lanam livros e

    pesquisas sobre o tema da cidade e da urbanizao nesta poca, como Florestan Fernandes e

    5 Conceitos retirados da obra de Roberto Cardoso de Oliveira Sobre o pensamento antropolgico (1988b), mais especificamente no captulo V denominado O que isso que chamamos de Antropologia Brasileira?.

    34

  • Otvio Velho, que organiza o livro com textos clssicos a respeito da cidade: O fenmeno

    urbano (1973) em 1967. Os principais temas de pesquisa dos anos 60 eram as consequncias

    e os problemas para as grandes cidades derivados do processo de urbanizao, como as

    migraes da rea rural para a urbana, a grande aglomerao de favelas, marginalidade e etc.

    No entanto, a dcada de 70 que constitui os anos fundamentais para a institucionalizao da

    Antropologia Urbana no Brasil, corrente esta que se tornaria nos anos posteriores to

    importante quanto Etnologia dentro da Antropologia, e que levantaria questes e

    problemticas geniais sobre a questo da cidade.

    Com todos estes aspectos, o interesse nas Cincias Sociais pelo urbano na

    dcada de 60, na minha opinio, estava-se gestando ou fermentando um

    campo de estudos antropolgicos das populaes urbanas que tomaria corpo

    na dcada de 70 e que seria liderada por uma nova gerao, [...]

    (MENDOZA, 2000, p. 175).

    A dcada e 70 foi o momento crucial para o desenvolvimento e o reconhecimento da

    Antropologia Urbana como uma importante linha de pesquisa sobre os grupos urbanos, e isso

    se deu por uma conjuntura poltica, social e acadmica pela qual o Brasil e a Antropologia

    estavam passando. Era uma poca marcada por processos conflituosos como represso,

    ditadura militar, crescimento urbano, pobreza, marginalidade e o chamado milagre

    econmico. Todo este contexto aflora nas Cincias Sociais como um todo um interesse sobre

    os problemas sociais urbanos que estavam acontecendo, tendo em vista o seu entendimento e

    a necessidade de transformao, sendo a Universidade o espao ideal para isso. Alm disso,

    esses cientistas passaram a se engajar politicamente, havendo uma grande preocupao em

    repensar, conhecer e analisar o Brasil, buscando transform-lo numa sociedade melhor.

    O objetivo principal desta gerao de antroplogos emergentes era conhecer o sujeito

    urbano habitante das cidades, mas atravs de uma perspectiva diferente da que comumente se

    fazia nas Cincias Sociais, fundamentalmente a Sociologia e as Cincias Polticas, que

    partiam tradicionalmente da categoria de classe social e do entendimento do sujeito urbano

    como um ator poltico. Para a Antropologia, este sujeito urbano no era s um ator poltico

    que defendia uma ideologia, mas tambm um indivduo que possui um local de moradia, um

    trabalho, uma cultura e uma bagagem cultural especfica, que se torna importante apreender.

    Tratava-se de conhecer como esses grupos urbanos organizam, classificam, representam,

    atuam e constroem o seu espao e modo de vida dentro de um sistema urbano. (MENDOZA,

    2000, p. 191). Para conhecer essa realidade cotidiana dos indivduos era necessrio dar voz a

    35

  • esses sujeitos, que na maior parte das vezes so oprimidos, e a melhor forma de fazer isso era

    a partir da observao participante.

    E a ento, as pessoas tm que ir para a periferia e observar como o modo

    de vida e tentar ento agora incorporar o olhar do outro que a grande

    contribuio que a Antropologia tem frente a outros recortes em Cincias

    Sociais, valorizar o discurso do outro e fazer um contraponto entre um

    discurso daquele que nunca foi ouvido porque parecia que era l no fundo

    escondido, com outros discursos dominantes. (MAGNANI apud

    MENDOZA, 2000, p. 194 e 195).

    Alm do contexto histrico, outro fator contribuiu para a construo do campo

    antropolgico urbano no Brasil na dcada de 70: a expanso do ensino universitrio e da Ps-

    graduao, promovidos pelo prprio regime militar. Os principais Programas e Ps-

    Graduao em Antropologia na poca eram o do Museu Nacional, da USP e da UNICAMP.

    Cada um desses programas se especializaram em determinados temas de pesquisa, mas todos

    eles estavam relacionados ao contexto urbano e cidade. No Museu Nacional podemos

    destacar as camadas mdias, escolas de samba, religio, movimentos sociais, futebol,

    produo cultural, desvio e comportamento, moradia em favelas, parentesco, redes sociais e

    carnaval. Na USP verifica-se a investigao de temas como famlia de operrios, associaes

    de bairros, bairros populares, educao, habitaes na periferia, lazer, movimentos sociais,

    migraes para a cidade, participao popular e poltica, religio. J na UNICAMP os objetos

    de pesquisa mais frequentes eram papis sociais, prostituio, antropologia da mulher, sade,

    migraes, culturas populares, organizao social de bairros, trabalhadores rurais, papis

    sociais e identidade (MENDOZA, 2000, p. 196).

    As pesquisas dedicadas Antropologia Urbana comeam a ganhar fora, e algumas

    delas tm recebido um reconhecimento por sua importncia na pesquisa urbana, por

    construrem e refletirem a sociedade brasileira nos anos 70 (MENDOZA, 2000, p. 269). O

    prprio Mendoza define as cinco pesquisas mais importantes da poca, e so elas: A

    Sociologia do Brasil urbano (1978c) de Anthony Leeds, A Utopia Urbana (2003) de

    Gilberto Velho, A caminho da cidade (1984) de Eunice Durham, Carnavais, malandros e

    36

  • heris (1981) de Roberto Da Matta e Festa no Pedao Cultura Popular e Lazer na Cidade6

    (2003) de Jos Guilherme Magnani.

    Esta escolha de foco sobre o contexto urbano fez com que a Antropologia comeasse a

    ganhar prestgio frente s outras disciplinas. De disciplina marginal, por tratar de temas pouco

    polticos, a Antropologia, com seu novo objeto de estudo, passou a oferecer novas perguntas e

    questes a um campo intelectual maior, no s o antropolgico. Este reconhecimento

    alcanado a partir da dcada de 70 contribuiu de forma intensiva para a construo do campo

    terico da Antropologia Urbana, havendo uma efervescncia e um descobrimento do urbano

    como rea de pesquisa por alguns antroplogos, e que no final dos anos 70 e incio dos 80 iria

    se formar como uma especializao.

    Podemos verificar esse desenvolvimento na passagem das dcadas de 70 e 80 atravs

    do nmero de pesquisas na rea da Antropologia Urbana, que no primeiro momento comea a

    se desenvolver, mas que encontra dificuldades para serem publicadas, como era de se esperar

    nos incios da construo do campo, diferentemente do que acontece nos anos 80. Nesta

    poca, h uma multiplicidade de publicao de pesquisas e consequentemente de temas de

    investigao dentro da rea que estava se consolidando. Para alguns estudiosos, esta

    multiplicidade trazia algumas limitaes disciplina, pois as abordagens diversas no se

    somavam e nem se integravam umas s outras, produzindo resultados soltos e sem

    objetividade. Outro fato que demonstra esse desenvolvimento que somente na XII reunio

    da ABA em 1980 que aparece pela primeira vez um grupo de comunicaes em Antropologia

    Urbana, coordenada por Gilberto Velho.

    nesta poca tambm que novos Programas de Ps-Graduao so criados, em

    Universidades e regies do Brasil onde a Antropologia ainda no era uma disciplina

    consolidada. Em 1985 criado na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) o

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia, na UFRGS (Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul) o Programa de Ps-graduao em Antropologia Social em 1974, entre outros.

    No caso dessas duas Universidades o desenvolvimento da rea da Antropologia Urbana foi

    to significante, que contam hoje com uma linha de pesquisa e um Ncleo de Pesquisa

    relacionados ao tema, respectivamente. Alm disso, ambos os Programas possuem grande

    6 A primeira publicao do livro se deu em 1984, mas Magnani defende a tese de doutoramento em 1982 no Departamento de Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da Universidade de So Paulo, com o ttulo de "Festa no Pedao: O Circo-teatro e outras formas de lazer e cultura popular.

    37

  • nmero de dissertaes e teses publicadas sobre o vis da Antropologia Urbana, fortalecendo

    esta linha de pesquisa dentro da Instituio e contribuindo para compor esta especializao

    que atualmente est bem consolidada.

    O Ncleo de Pesquisa sobre Culturas Contemporneas da UFRGS, NUPECS, foi

    criado em 1996, com o objetivo de reunir pesquisadores interessados na dinmica das culturas

    contemporneas. Os principais professores e pesquisadores deste ncleo so Ruben George

    Oliven, Maria Eunice de Souza Maciel, Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha7. J

    a linha de pesquisa da UFSC denomina-se Antropologia urbana e do patrimnio e tambm

    est relacionada s mudanas espaciais, sociais e culturais na cidade contempornea. De

    acordo com o site do Programa8, esta linha se interessa por temas como migraes, turismo,

    alimentao, consumo e moda, lazer, performances urbanas, sociabilidades, usos e

    apropriaes dos espaos pblicos e privados, urbanismo e habitao popular e de camadas

    mdias.

    Tambm merece destaque como Instituio que promove o desenvolvimento e

    fortalecimento da Antropologia Urbana no Brasil o Ncleo de Antropologia Urbana da USP

    (NAU), liderada pelo professor Jos Guilherme Cantor Magnani. A primeira expedio do

    NAU aconteceu em 1988 e se consolidou hoje como um Grupo que incita os estudantes de

    Antropologia da USP a irem a campo e investigarem a cidade de So Paulo e os fenmenos

    que ocorrem em seu cotidiano. Atualmente, o NAU possui dimenses bem amplas,

    constituindo-se de cinco reas temticas (Surdos, Religio, Corpo e cidade, Migrao, ndios

    urbanos), uma revista eletrnica, alm de um seminrio de mbito nacional sobre o tema,

    denominado Graduao em Campo seminrios de Antropologia Urbana9.

    Outra Universidade de destaque na produo de pesquisas sobre a Antropologia

    Urbana a UnB (Universidade de Braslia), que se encontra atualmente com uma linha de

    pesquisa dentro do Programa de Ps-Graduao (Antropologia Urbana, do Desenvolvimento e

    Globalizao) e um Grupo de pesquisa (Urbanidade e Estilos de Vida), liderado pelas

    professoras Cristina Patriota de Moura e Mariza Veloso Motta Santos. No entanto,

    diferentemente da UFRGS e da UFSC que tiveram seus Programas de Ps-Graduao em

    Antropologia criados somente no fim da dcada de 70 e incio da de 80, a UnB conta com

    7 Informaes retiradas do site do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da UFRGS: . 8 Site: . 9 Informaes retiradas do Ncleo de Antropologia Urbana da USP: .

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  • uma tradio antiga nos estudos antropolgicos, que datam de 1962, quando o Prof. Eduardo

    Galvo fundou o Departamento de Antropologia, e estabeleceu um centro de pesquisas

    etnolgicas e lingsticas.

    Atualmente, a Antropologia Urbana se encontra legitimada e respeitada por todos os

    cantos do pas, competindo por igual com a Etnologia Indgena como uma linha de pesquisa

    importante para a disciplina antropolgica. Os objetos de estudo so to heterogneos que fica

    difcil delimitar uma centralidade desses trabalhos sem correr o risco de cometer um grande

    deslize. Alm disso, muitos antroplogos que trabalham na rea no se definem mais como

    urbanos e isso se deve abertura terica desses pesquisadores, circulando por diferentes

    correntes de pensamento.

    Na atualidade, a Antropologia tem diversas formas e temas de estudo,

    dificilmente se pode hoje fechar em campos especficos, mas naquela poca

    dos anos 70, esses primeiros anos de interesse das pesquisas urbanas na

    cidade definir a Antropologia Urbana era necessrio para legitimar o campo

    frente a outras disciplinas. (MENDOZA, 2000, p. 300).

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  • CONSIDERAES FINAIS

    As transformaes advindas da Revoluo Industrial e do cap