O NOVO ENEM E A PRÁTICA PEDAGÓGICA EM UMA ESCOLA DE...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR
INSTITUTO DE CINCIAS DA EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
MESTRADO ACADMICO EM EDUCAO
ALZYR GONALVES DE MELO
O NOVO ENEM E A PRTICA PEDAGGICA EM UMA ESCOLA DE IGARAP-
MIRI - PA
BELM 2016
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ALZYR GONALVES DE MELO
O NOVO ENEM E A PRTICA PEDAGGICA EM UMA ESCOLA DE IGARAP-
MIRI - PA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Par - UFPA, linha de pesquisa Educao: Currculo, Epistemologia e Histria, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Educao, sob orientao do Prof. Dr. Carlos Jorge Paixo.
BELM 2016
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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) Biblioteca do Instituto de Cincias da Educao (ICED / UFPA)
M528n
Melo, Alzyr Gonalves de.
O novo ENEM e a prtica pedaggica em uma escola de Igarap-Miri - PA / Alzyr Gonalves de Melo ; orientao Carlos Jorge Paixo. Belm, 2016.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Par,
Instituto de Cincias da Educao, Programa de Ps-Graduao em Educao, Belm, 2016.
1. Ensino mdio Currculos Igarap-Miri (PA). 2. Currculos Avaliao Igarap-Miri (PA). 3. Currculos Mudanas Igarap-Miri (PA). 4. Exame Nacional do Ensino Mdio (Brasil). I. Paixo, Carlos Jorge (orient.). II. Ttulo.
CDD 22. ed. 373.981 115
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ALZYR GONALVES DE MELO
O NOVO ENEM E A PRTICA PEDAGGICA EM UMA ESCOLA DE IGARAP-MIRI - PA
Avaliada em: _____ /______ / 2016
Prof Dr. Carlos Jorge Paixo (PPGED-UFPA) - orientador
Prof. Dr. Manoel Ribeiro de Moraes (UEPA) - avaliador externo
Prof. Dr. Damio Bezerra Oliveira (PPGED-UFPA) - avaliador interno
Prof. Dr Snia Arajo (PPGED-UFPA) - suplente
BELM 2016
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AGRADECIMENTOS
A todas as pessoas que contriburam direta ou indiretamente para que este trabalho
fosse concludo.
Agradeo especialmente minha famlia que sempre me incentiva e me apoia a ir
mais adiante. Em especial, agradeo minha me Georgina, patrona de honra de
toda minha formao.
Agradeo tambm ao meu orientador Prof. Dr. Carlos Jorge Paixo pela confiana e
serenidade no trato com as pessoas.
Agradeo aos meus colegas educadores que colaboraram para este trabalho.
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RESUMO
Este estudo discute a relao entre uma poltica oficial que se configura como currculo prescrito e as prticas pedaggicas curriculares na escola. A poltica em questo o Novo ENEM, uma avaliao em larga escala, que tem assumido um papel indutor de mudanas no currculo de nvel mdio. Busca analisar as prticas curriculares de professores de uma escola pblica de Igarap-Miri, procurando compreender as implicaes que o exame traz para a configurao das mesmas. Com base em discusses de autores do campo do currculo, das polticas de currculo e avaliao e da prtica pedaggica (GOODSON 1995, 2013; SACRISTN, 2000; PACHECO, 2003, 2005, 2015; SILVA; LOOPES 2013, 2015; HYPOLITO 2013, 2015; VEIGA 1989), procurou-se entender o ENEM como uma poltica educacional caracterizada por imperativos da globalizao e tambm como aberta a doao de sentidos pelos sujeitos da prtica. Para isso foi feito um estudo qualitativo (LUDKE & ANDR, 1986; FLICK, 1994; CHIZZOTTI, 1991) no ambiente escolar, utilizando-se tcnicas observao e entrevista semiestruturada com um grupo de educadores da escola. Conclui-se que o ENEM est sim trazendo implicaes para a organizao escolar, para o currculo e prticas pedaggicas no ensino mdio, considerando que se constatou que houve mudanas no processo avaliativo, na metodologia e consequentemente instigando uma tendncia (ensino por competncias) no prprio currculo escolar a partir da massificao do exame, entretanto isso tem ocorrido na escola mais como uma exigncia externa, uma vontade de no ficar para trs, por ltimo no ranking, do que uma inciativa consistente de melhorar o padro educativo da escola. Palavras-chave: Poltica de currculo. Avaliao externa. Prtica curricular. Ensino Mdio. Novo ENEM.
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ABSTRACT
This study discusses the relationship between an official policy that is configured as prescribed curriculum and curriculum pedagogical practices at school. The policy in question is the new ENEM, a large-scale assessment, which has taken an inductor role of changes in the secondary curriculum. Seeks to analyze the curriculum practices of teachers of a public school in Igarap-Miri, trying to understand the implications that the examination brings to the configuration of the same. Based on discussions in the field of curriculum authors and curriculum policies and assessment and teaching practice (Goodson 1995 2013; SACRISTN 2000, PACHECO, 2003, 2005, 2015; SILVA; LOOPES 2013 2015; Hyplito 2013 2015 ; VEIGA 1989), he tried to understand the ESMS as an educational policy characterized by the imperatives of globalization and as open to giving directions by the subjects of practice. For this was done a qualitative study (LUDKE & ANDR, 1986; FLICK, 1994; CHIZZOTTI, 1991) in the school environment, using techniques observation and semi-structured interview with a group of school teachers. We conclude that the ESMS is rather bringing implications for school organization, for curriculum and pedagogical practices in high school, whereas it was found that there were changes in the evaluation process, methodology and thus instigating a tendency (teaching competency) in itself school curriculum from the massification of the exam, however this has occurred at school more as an external demand, a desire not to be outdone, last in the ranking, than a consistent initiative to improve the school's educational standard. Keywords: Curriculum policy. External evaluation. Curricular practice. High school. New ENEM. .
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LISTA DE QUADROS E TABELAS QUADRO 1 CARACTERIZAO DOS PROFESSORES PARTICIPANTES DA PESQUISA........................................................... 59 QUADRO 2 DOCUMENTOS PESQUISADOS..................................... 62 TABELA 1 - RESULTADO DA ESCOLA NO ENEM 2011......................
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TABELA 2 - AS 10 MDIAS MAIS BAIXAS DO ENEM 2011 NO PAR.......................................................................................................
78
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BIRD Banco Interamericano de Reconstruo e Desenvolvimento CEPAL Comit de Estado para Amrica Latina e Caribe ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio FMI Fundo Monetrio Internacional MEC Ministrio da Educao PPGED Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Federal do Par PRC Projeto de Redesenho Curricular PROEMI Programa Ensino Inovador SEDUC Secretaria de Estado de Educao do Par UNESCO Organizao das Naes Unidas para Cincia e Cultura URE Unidade Regional de Educao
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SUMRIO
1 INTRODUO.......................................................................................
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A REALIDADE CURRICULAR EM UMA PERSPECTIVA PROCESSUAL......................................................................................
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2.1 O currculo: significados e teorizao na contemporaneidade.............................................................................
20
2.2 Aspectos conceituais das polticas de currculo e avaliao... 35
2.3 Prtica pedaggica e currculo................................................................................................
49
3
O PERCURSO METODOLGICO DA PESQUISA..............................
54
3.1 Abordagem de pesquisa............................................................
54
3.2 Lcus da pesquisa......................................................................
57
3.3 Sujeitos e fontes da pesquisa...............................................................................................
61
3.4 Etapas da pesquisa................................................................................................
62
4
ENEM: IMPLICAES PARA AS PRTICAS PEDAGGICAS NA ESCOLA................................................................................................
67
4.1 Ensino Mdio e reforma curricular...............................................
67
4.2 O ENEM como indutor de reorientao curricular no ensino mdio.....................................................................................................
73
4.3 O Novo ENEM e reorganizao do trabalho pedaggico na escola....................................................................................................
78
4.4 A prtica dos professores a partir do Novo ENEM....................................................................................................
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5 CONSIDERAOES FINAIS..................................................................
87
REFERNCIAS...................................................................................
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APNDICES.........................................................................................
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1 INTRODUO
Este estudo discute a relao entre uma poltica oficial que se configura como
prescrio curricular e as prticas pedaggicas cotidianas, oriundo de interesses e
inquietaes profissionais sobre as interpretaes e implementaes de propostas
curriculares oficiais no contexto escolar, especialmente no ensino mdio. Estes
interesses provm de meu trabalho na rede pblica de educao do Par a partir de
2008, na funo de tcnico em educao em uma escola do municpio de Igarap-
Miri. Ingressei em um momento de discusses sobre o currculo do nvel mdio.
Estava sendo divulgada e discutida, pela SEDUC-PA, a proposta de Ensino Mdio
Integrado (2009), no mesmo ano, o MEC apresentava as Matrizes de Referncias do
Novo ENEM. Com esses acontecimentos, surgiam e eram debatidas, no meio
educacional regional, questes sobre as finalidades do ensino mdio.
Efetivamente surgiu uma iniciativa administrativa de reformulao curricular
na jurisdio (3URE). Procurei ento analisar as orientaes curriculares oficiais
(MEC e SEDUC) e dialogar com a comunidade escolar no sentido de rever a
proposta curricular em vigncia na instituio e contribuir para o processo. Em 2009,
a escola elaborou um relatrio do que vinha sendo discutido em seu ambiente.
Nesse relatrio constavam sugestes que convergiam para as orientaes e
perspectivas que se apresentavam naquele momento para o ensino mdio. A
participao nas discusses suscitou meu interesse pelo campo do currculo escolar.
Desde ento, tenho buscado o envolvimento nos debates sobre a construo do
currculo na escola, e esta tem sido uma preocupao bsica, na minha funo de
coordenador pedaggico. Com a oportunidade de cursar o mestrado em educao,
na linha de pesquisa educao: currculo, epistemologia e histria do PPGED-UFPA,
pude potencializar o interesse e conhecimento pela rea.
Propostas de mudana e reforma na organizao curricular, mesmo que em
alguns aspectos tenham se mostrado incuas, tm servido como pontos de debate e
reflexo sobre a prtica, aparecendo como referenciais de adequao do ensino em
relao a caminhos apontados como soluo para determinadas crises e problemas.
Polticas educacionais direcionadas para o ensino mdio recentemente, de uma
forma ou de outra, visam provocar mudanas curriculares. Novo ENEM (2009),
Ensino Mdio Integrado (2009), Ensino Mdio Inovador (2009), so algumas
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propostas oficiais que buscam induzir novas formas de organizar e fazer o currculo.
Essas polticas ecoam nos contextos escolares e, conforme se percebe no mbito
local, os direcionamentos tm chegado s escolas, provocando movimentos pela
busca de adequao das atividades de ensino ao que se prope. Isso
demonstrado na elaborao dos PRCs do PROEMI, na aplicao de provas
padronizadas (simulado) com base nas provas do ENEM, na frequncia de
intenes de projetos educativos ligados a um ensino contextualizado e trabalho
interdisciplinar, como tem sido preconizado nos documentos oficiais.
Nesses movimentos, a forma como essas polticas so recebidas nas prticas
pedaggicas, seja atravs da aceitao das proposies e normatizaes das
instituies gestoras, seja atravs da assimilao no intencional ou da recusa e
resistncia, tem sido objeto de minhas reflexes. Vi a exigncia de se analisar como
os sujeitos, e especificamente os educadores (professores), se apropriam dessas
polticas atravs da leitura e interpretao de textos e discursos que permeiam os
documentos curriculares oficiais direcionados s escolas. A anlise de como so
operacionalizadas as polticas curriculares, e, de como partindo disso, os sujeitos
pensam e constroem suas noes de currculo, permite compreender melhor os
seus papis e atuao no contexto de expresso prtica do currculo.
Essa relao entre currculo prescrito e prticas curriculares nas escolas tem
sido objeto de diversos estudos no campo do currculo e das polticas educacionais,
principalmente a partir do final do sculo XX, em decorrncia de reformas
educacionais centralizadas no currculo (PAIVA, FRANGELLA & DIAS, 2006). Na
literatura sobre o tema, conforme j foi apontado por vrias anlises, possvel
destacar duas perspectivas que tem sobressado nos estudos. A primeira aborda a
relao poltica/prtica de forma dicotmica e estrutural, centrada nos efeitos das
macroestruturas poltico-econmicas sobre os microcontextos das escolas e
prticas, como o caso de Hypolito (2010); Santos (2011); Ferreira (2011); Porto
(2011); Espndula, Leite e Pereira (2012); Moehlecke (2012); Rodrigues (2013); e
Schneider & Nardi (2015). Pesquisas nesse sentido, conforme indica Lopes (2011),
tem se detido sobre anlises dos impactos das polticas nos sistemas e instituies
educacionais, assim tambm como nas crticas desses efeitos para a educao.
Ressaltam o papel hegemnico dos discursos oficiais, em detrimento de uma anlise
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que d mais nfase ao sujeito enquanto construtor de sentidos para o que
estabelecido como conhecimento.
Em outra perspectiva esto os estudos voltados para a anlise do contexto
da prtica, estes buscam esclarecer a conexo entre as macroestruturas e os
microcontextos, enfatizando as micropolticas na escola e considerando a atuao
individual como parte decisiva no processo. Esta perspectiva tem mais expresso
nas pesquisas de Lopes & Lpez (2010); Reis (2010, 2011); Vargas (2012); Dantas
(2012); Ribeiro (2012). Tais estudos, ainda incipientes, tm maior discusso sobre
as realidades educacionais do sudeste brasileiro.
A prtica pedaggica concernente ao currculo no pode ser entendida por
um vis reducionista, um simples seguir das orientaes oficiais ou ao pura,
deslocada de influncias estruturais. resultado de dinmica complexa, de
hegemonizao, de disputa, traduo, reinterpretao, mediao etc. , de acordo
com Chades (2012, p. 82),
um processo complexo de atuao de sujeitos polticos na interpretao da poltica, ou seja, a prtica constituise de muito mais do que a soma de definies legais, ela expressa um conjunto de expectativas sobre a poltica,
nos quais acordos e ajustes fazemse necessrios.
Nesse sentido, poltica e prtica no se opem ou se apartam, constituem um
processo intricado, relevante do desenvolvimento de currculos.
Com esse entendimento, tenho notado que h poucos estudos que liguem
essas questes realidade do ensino mdio na regio e que busquem explorar mais
a atuao dos sujeitos no contexto de disseminao das atuais polticas de
reorientao curricular no ensino mdio. Com isso sendo debatido no meio
educacional, sua explorao de grande relevncia, na medida em que novas
formas de relao poltica, econmica e social so engendradas na dinmica global
e tem seus pressupostos representados no mbito institucional, em iniciativas de
reestruturao curricular presentes nas polticas educacionais brasileiras.
Procurando acrescentar, este trabalho busca entender no s o engendramento e a
hegemonia do que est presente nas polticas que impactam no currculo, mas como
estas so percebidas, (re) significadas, e recontextualizadas em ltima instncia,
nas prticas pedaggicas singulares dos professores no contexto de ao educativa
na escola.
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Concordo com Lopes (2011, p. 233) que ressalta que com esse enfoque
especfico, as polticas curriculares ainda no tem sido destacadamente
investigadas. O foco no est diretamente na poltica (oficial), embora o
entendimento desta seja impretervel. Busco ampliar esse debate, ressaltando que
no fao especificamente uma anlise de validade de polticas educacionais para o
ensino mdio, nem falo somente sobre seus resultados imediatos na realidade, mas
procuro entender melhor como os sujeitos, para os quais elas so direcionadas, no
caso os professores, interagem com as mesmas nas prticas, mediados por
condies intrnsecas s suas realidades.
Dentre as diversas polticas educacionais direcionadas ao currculo do ensino
mdio, foi escolhido para a anlise dessa relao o Exame Nacional do Ensino
Mdio (ENEM), vislumbrado em decorrncia de sua frequncia no ambiente escolar,
assim como pela sua proximidade temporal de implementao, o que permite
entender melhor sua relao com o currculo. O ENEM tem representado
considervel fora de uma to pretendida reforma do ensino mdio e vem ganhando
notoriedade no ambiente escolar como reorientador de prticas. Assim, tem se
configurado como uma poltica de currculo, na medida em que isso est tambm
expresso nas pretenses oficiais (BRASIL, 2009) e constatado nos movimentos
provocados na organizao curricular das escolas. a expresso dessa poltica nas
prticas que me interessa. Na direo do que se identifica nos estudos de Alves
(2013), Melo (2015), Maceno (2015), o ENEM entendido aqui, como poltica de
currculo com influncia nas prticas escolares. Sem deixar de considerar que este
tambm avaliao, a anlise se d partir dos estudos da dimenso poltico-prtica
do currculo.
Atravs deste trabalho, fomenta-se a discusso sobre a conexo das polticas
de reorientao curricular com a prtica pedaggica/curricular no ensino mdio. Em
um momento que este nvel de ensino se encontra constantemente em foco nas
discusses sobre a educao bsica, no Par e no Brasil, falar sobre essa temtica
sob a perspectiva em questo significa dar importante contribuio para a reflexo e
avaliao das prticas curriculares prementes em nossas escolas. Alm de valorizar
o papel da escola e seus agentes, para que estes possam se perceber como
produtores de sentido para as polticas curriculares. E, efetivamente, permite
entender como acontece a constituio e dinamizao do conhecimento no contexto
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escolar, enfatizando a prtica curricular dos sujeitos desse contexto, tambm como
criao de currculo e de poltica curricular, ampliando a noo de que tambm se
cria currculo na escola.
importante destacar que desde que a educao foi reorganizada para
atender as demandas da complexidade econmica, poltica, social e cultural do
mundo contemporneo, o campo curricular tm merecido progressiva ateno por
parte do Estado. As pretenses oficiais de se estruturar um currculo unitrio a nvel
nacional tm se voltado para a criao mecanismos institucionais que busquem
definir uma organizao curricular padronizada, vlida para determinada conjuntura.
Essas pretenses tm se tornado mais evidentes na atualidade,
impulsionadas por transformaes nas relaes entre Estado e sociedade. O Estado
vai, paulatinamente, deixando o papel de provedor para, atravs de sutis
mecanismos, se tornar regulador (BALL apud HYPOLITO, 2012). O processo de
reordenao de relaes produtivas em escala global, abalizado pela globalizao e
pela disseminao de um modelo poltico-econmico de cunho neoliberal, provocou
mudanas em outras esferas da vida social, impactando nas polticas direcionadas
educao com destaque na rea do currculo. Mesmo com o andamento das
chamadas polticas descentralizadas, o Estado passa a exercer um controle mais
forte sobre o currculo escolar. Chades (2012) ressalta que as novas formas de
conceber e organizar os currculos da educao bsica so influenciadas por esse
movimento global de reordenao de relaes polticas, econmicas e sociais.
Nesse quadro o Estado regulador caracteriza-se por imprimir, na educao, certos
padres estandartizados1 de desempenho, pela parceria pblico-privada, o currculo
padronizado e regulado por mecanismos de avaliao em larga escala, formas de
responsabilizao da escola e dos educadores sobre os resultados e gesto
descentralizada.
Os princpios oriundos dessas transformaes so concebidos em macro
polticas firmadas a partir de arranjos multilaterais, direcionados por demandas
econmicas, sob a influncia de agncias internacionais como a CEPAL, o FMI, o
BIRD, a UNESCO, entre outras (HYPOLITO, 2012; MINHOTO, 2011). A definio do
1 Schneider & Nardi (2014) definem a estandartizao como o estabelecimento de padres a serem
alcanados na educao.
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currculo a partir de exigncias do mundo produtivo provoca um esforo de
legitimao de novos modelos aplicados a rea educacional.
Nesse contexto de difuso das polticas neoliberais, nas duas ltimas
dcadas do sculo XX, o currculo assume destaque nas reformas educacionais
efetivadas em vrios pases que buscaram adaptar a educao s tendncias
mundiais. Esse o caso, por exemplo, da Inglaterra, Espanha, Argentina e Brasil
(LOPES, 2006). Nesse processo so notrias as influncias de discursos e agentes
emblemticos da globalizao econmica e do neoliberalismo. Por consequncia, as
polticas curriculares, tem se apresentado como estratgias de desenvolvimento e
adaptao a paradigmas e contextos especficos (tendncias do mundo globalizado,
reorganizao produtiva global, modelos ps-fordistas de produo, indivduo
polivalente e autnomo etc.).
No Brasil, as polticas curriculares tm assumido destaque nas reformas
educacionais das ltimas dcadas. Nos anos de 1990, houve um recrudescimento
dos movimentos e proposies concernentes ao currculo, tanto por parte dos
governos, quanto por parte de grupos e organismos desvinculados do Estado. No
mbito das polticas pblicas educacionais para a educao bsica, isso se
evidencia, pela elaborao e divulgao de documentos curriculares orientadores:
parmetros curriculares, diretrizes curriculares, matrizes curriculares, um srie de
normatizaes e orientaes sobre programas e propostas curriculares, em
diferentes instncias administrativas. Nesses documentos percebe-se a consonncia
das polticas curriculares brasileiras para com as exigncias de tendncias e
modelos internacionais de organizao curricular guiados pelos imperativos da
globalizao.
No nvel mdio de ensino, as discusses e proposies sobre a reformulao
curricular se exacerbaram a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educao, de
1996 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio, de 1998.
Efetivamente as instncias poltico-governamentais federal e estaduais tm
produzido diversos documentos curriculares com as orientaes a serem seguidas
na prtica. Na esfera federal, alguns so: os Parmetros Curriculares Nacionais do
Ensino Mdio (2000); Orientaes Complementares aos Parmetros Curriculares
Nacionais (2002); Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio (2006); Matriz de
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Referncia do Novo ENEM (2009); Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Mdio (2012); e, Documento Orientador do Programa Ensino Mdio Inovador
(2009/2013). No mbito do estado do Par, so: Proposta Curricular para Contedos
Programticos (2003); Documento Base do Ensino Mdio Integrado no Par (2008);
e, Guia Bsico para Elaborao do Plano de Redesenho Curricular ProEMI-JF
(2014).
Alguns desses documentos so oriundos de conjunturas polticas e momentos
histricos diferentes, assim como sua ressonncia nas realidades educativas no se
equipara, entretanto, apresentam conformidade com os princpios da reformulao
curricular incipiente na LDB/96 e nas DCNEM/98 e seguem o pressuposto de
superar o ensino descontextualizado, compartimentado, e baseado no acmulo de
informaes (BRASIL, 2000, p. 05). Os documentos curriculares oficiais convergem
em relao a alguns princpios orientadores, bem caractersticos do contexto das
reformas. Assim, esses documentos, geralmente tem se apresentado como
instigadores de um ensino mais adequado s demandas contemporneas de
formao humana, em contraposio a um ensino distanciado da realidade e
ultrapassado. Conjuntamente, seus textos so permeados por alguns conceitos
reestruturadores: interdisciplinaridade, contextualizao, flexibilizao, diversidade,
competncias e habilidades.
O modelo de currculo por competncias que marca as polticas curriculares
do fim do sculo XX e incio do XXI centralizado no desenvolvimento de
competncias e habilidades necessrias para viver no mundo globalizado. Procura-
se, formar um sujeito autnomo, com aprendizagem flexvel e adaptvel s
mudanas. Este modelo tem sido apresentado como melhor em relao ao que
vigorava (disciplinar, conteudista), adequado ao mundo contemporneo, por isso as
polticas so representativas de tentativas de reforma curricular no ensino mdio.
Concomitantemente s polticas curriculares, tem sido fomentados sistemas
de avaliao em larga escala (Prova Brasil, SAEB, ENEM). Estas tambm impactam
sobre o currculo, servindo como referencial para se obter determinados resultados.
Avaliaes em larga escala funcionam como mecanismo de regulao e orientao
de currculos, aumentando o direcionamento e controle sobre as prticas.
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A partir de 2009 o Exame Nacional do Ensino Mdio foi reformulado, se
tornando mais complexo e abrangente, passando a ser chamado de Novo ENEM.
Uma das intenes do MEC era fomentar a induo de mudanas curriculares no
ensino mdio (BRASIL, 2009). Atravs de consistentes mecanismos, o ministrio
consolidou as bases para um exame que ultrapassava os limites de uma verificao
de rendimento. ENEM passou a significar prova, acesso, avaliao, mas tambm,
contedo, grade curricular (matriz de referncia). O amplo alcance da poltica e a
veiculao na mdia instigaram um esforo nas escolas e instncias gestoras. Dada
a natureza de organizao de seu contedo e as orientaes posteriores, o ENEM
passou a ser configurar como um elemento de reforma e remodelao do currculo
do ensino mdio.
O ENEM, tem se apresentado recentemente, como um potente indutor da
reformulao curricular do ensino mdio (Lopes 2011, Minhoto 2009). Extrapola seu
carter avaliativo, pois embora seja exame, aplicado em provas, apresenta uma
matriz curricular que tem servido como forte referncia para as escolas organizarem
seus processos de ensino. Criada a possibilidade de servir como meio de ingresso
no nvel superior, provoca a busca por eficincia nos resultados da prova. Por isso
um elemento de reorientao, induo de mudana curricular. Nesse sentido o
ENEM tem indicado o que conta como currculo e como avaliao. Esta avaliao
com foco em competncias definidas em uma matriz curricular, aplicada em provas
que exigem conhecimento contextualizado e interpretao interdisciplinar,
procurando se sobrepor ao currculo de contedos, de carter disciplinar e
descontextualizado. O ENEM, portanto, coaduna os princpios da reformulao de
currculo principiados na LDB/96 e nas DCNEM/98 e detalhados nos PCNEM e
OCNEM, contemplando solidamente os fundamentos do paradigma curricular das
competncias e habilidades.
O ENEM, como expressa a sua matriz, representa de forma mais lapidada a tendncia de substituir alguns conceitos e referncias presentes na escola como os de transmisso de conhecimentos e contedos , se mostra como um instrumento que auxilia a nortear parte do que escola e seus professores e alunos deve fazer para que seja assegurado o desenvolvimento das novas competncias e habilidades requeridas pela sociedade contempornea [...] (MINHOTO, 2009, p.35)
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Desse modo o ENEM visa orientar/direcionar a prtica pedaggica com base
em um projeto educativo. Pressupe-se que pelo fato do exame avaliar
competncias e habilidades que devem ser desenvolvidas no ensino mdio, sua
matriz curricular sirva como documento orientador da prtica pedaggica nas
escolas. Sendo prescrio, tambm modelo idealizado e busca centralizar e
padronizar a estrutura curricular sob a gide governamental de uma instituio
(MEC).
As prescries curriculares so marcadas por influncias e interferncias
poltico-ideolgicas que perpassam as pretenses oficiais. Entretanto, preciso
considerar que a dinmica que permeia a relao entre o currculo prescrito e o
currculo implementado complexa e expressa tanto s determinaes conjunturais
estabelecidas nas macroestruturas polticas e institucionais, quanto a atuao
individual, nos microcontextos. Considerando que essa relao tambm expressa
em prticas que so construdas por educadores e estudantes no ambiente escolar
e no mbito da sala de aula, compreende-se que aquilo que cobrado em um
exame como o ENEM, currculo e est sujeito esta dinmica.
[...] as relaes de poder no currculo ocorrem de forma oblqua e contingente, em que sua poltica se caracteriza por ser uma produo de mltiplos contextos que se interpenetram e nos quais mltiplos sentidos se constituem por hibridizao de discursos e textos. (BOWE et al., 1992; BALL, 1994 apud LOPES, 2010)
o reconhecimento da prtica como espao de criao. Assim, entende-se
que a produo e implementao de polticas curriculares no esto restritas aos
mecanismos do Estado, no so determinaes absolutas de um poder econmico e
politico-ideolgico. Fazem parte de um processo que envolve mltiplas
determinaes de diferentes sujeitos em diversos contextos, entre os quais est a
escola e seus agentes. A modelao curricular no contexto da prtica sofre
influncia de outros fatores alm de elementos estruturais (poltico, ideolgico-
econmico), devem ser, tambm considerados, a influncia de relaes
micropolticas e culturais que perpassam na escola. Portanto, vislumbra-se o poltico
no como algo que est s na relao entre instncias institucionais
(governamentais) e escola (educadores), o poltico tambm est no ambiente
escolar, nas relaes do cotidiano.
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Essa discusso expressa a complexidade da relao
produo/implementao curricular, evidenciando que a interao entre o que se
prope e o que se faz dialtica, pois, se por uma lado, os discursos que compem
as polticas curriculares so hegemnicos e indutores, por suas vezes, os sujeitos
que o concebem na prtica podem reinterpret-los singularmente. A prtica
pedaggica desenvolvida por educadores no dia a dia condicionada diretamente
por essa relao. Com esses esclarecimentos se vem refletir sobre a influncia que
o ENEM est a desempenhar no fazer pedaggico dentro da escola.
O ensino mdio no municpio de Igarap-Miri - Pa tem refletido os
movimentos e mudanas oriundos de polticas educacionais das ltimas dcadas. O
ensino mdio regular da rede estadual pblica de educao em Igarap-Miri foi
reestruturado a partir de 1999-2000 para atender as mudanas determinadas na
legislao. As escolas que ofertavam essa modalidade procuraram se adaptar,
trazendo ao conhecimento de seus profissionais as orientaes de mudanas na
estrutura curricular e nas rotinas de atividades. Passou-se a vislumbrar, a partir
disso, nas prticas educativas, tentativas de emparelhar o os princpios curriculares
com o que se prope nos documentos oficiais, conforme se verifica com as
adequaes avaliativas e curriculares. Os professores tem tomado conhecimento e
participado de debates e discusses sobre o currculo escolar, e com o ENEM
substituindo os vestibulares, so exigidas modificaes nas prticas pedaggicas
seja da escola como um todo, seja individualmente.
essa relao, de contato dos sujeitos com as orientaes curriculares
oficiais, expressas em documentos prescritivos e as prticas resultantes, no atual
momento do ensino mdio, que constitui o objeto de estudo deste trabalho. O
currculo prescrito oficial recontextualizado nas prticas de desenvolvimento
curricular da escola. Em uma escola do ensino mdio de Igarap-Miri, escolhida
para o estudo, o ENEM vem assumindo destaque como elemento de instigao de
mudanas de prticas. Isso levou-me a questionar essa relao no ambiente
escolar. E considerando as movimentaes que o ENEM, principalmente a partir de
2009, provocou na organizao escolar na referida escola, coloco como indagao
central a seguinte questo: quais as implicaes do Novo ENEM, enquanto poltica
de reorientao curricular, para as prticas pedaggicas de professores de uma
escola pblica de Igarap-Miri Pa?
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19
O ENEM entendido alm de sua funo avaliativa, em sua relao direta
com o currculo do nvel mdio, como poltica de induo de reformulao curricular
em mbito nacional, que concebido e aplicado na inteno de estabelecer um
currculo padronizado, assim como bem sendo atingido por sua expresso poltica.
Com base nessa perspectiva defende-se que o ENEM tem repercutido nas prticas
pedaggicas de professores. Parte-se da hiptese que as polticas curriculares
direcionadas escola atravs dos documentos curriculares oficiais so
ressignificadas a partir de diferentes leituras desses documentos, e que os sujeitos
(professores), atravs das ressignificaes, tambm vivenciam e produzem relaes
de poder, tentativas de hegemonizao, disputas em torno dos de construo de
significados sobre o currculo escolar.
O objetivo geral analisar as prticas curriculares de professores de uma
escola pblica de Igarap-Miri, buscando compreender as implicaes do Novo
ENEM, enquanto elemento indutor de mudanas no currculo do Ensino Mdio, para
a configurao das mesmas. Para isso se buscar: identificar os entendimentos e
concepes dos educadores sobre o significado do Novo ENEM para o currculo na
escola; buscar nas prticas pedaggicas dos professores evidncias de articulaes
e utilizaes das orientaes curriculares das Matrizes de Referncia do Novo
ENEM; e determinar os fatores de ordem institucional e pessoal que influenciam na
utilizao das orientaes curriculares oficiais do Novo ENEM pelos professores.
Para analisar as prticas pedaggicas o estudo se guiou por uma abordagem
qualitativa, com base na observao, nos documentos, e na entrevista. Na anlise
documental foram considerados os documentos: documentos oficiais do Novo
ENEM; avaliaes padronizadas da escola; planos de ensino dos professores. O
perodo estudado foi o ano de 2011 a 2015.
O trabalho est estruturado em trs captulos, no primeiro abordada a
teorizao e perspectiva sobre currculo, poltica e prtica. No segundo, a discusso
sobre os resultados procurando se evidenciar os achados atravs de discusso da
pesquisa documental e emprica.
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2 A REALIDADE CURRICULAR EM UMA PERSPECTIVA PROCESSUAL
O currculo enquanto campo especializado e elemento de ateno de
teorizaes, polticas e prticas educacionais, possui mltiplas dimenses e reas
que se tematizam em decorrncia de sua relao com os contextos poltico,
econmico, social, cultural, intelectual, historicamente localizados. A dinmica que
as discusses curriculares vm ganhando nas ltimas dcadas demanda uma
compreenso dos significados do currculo escolar e seus desdobramentos dentro
da histria intelectual do campo. Isto est relacionado ao modo como as polticas
educacionais se conectam com as prticas escolares. Sendo o Novo ENEM
discutido como um elemento de induo de mudanas no currculo escolar,
pretende-se neste captulo apresentar e discutir alguns pressupostos tericos para
compreenso do objeto de anlise deste estudo. Primeiramente feito uma
discusso geral sobre as atuais perspectivas curriculares destacando as bases
tericas em que se pode pensar o currculo enquanto campo terico-prtico
considerando o ecletismo terico. Em seguida, explicitam-se os principais conceitos
e linhas tericas usados na compreenso da relao da dimenso poltica do
currculo e a prtica pedaggica concernente.
2.1 Currculo: significados e teorizao na contemporaneidade
Dada a pluralidade de perspectivas e abordagens, a discusso sobre o
currculo escolar tem se caracterizado pela complexidade terica no mbito dos seus
estudos na atualidade. Nas teorizaes e estudos contemporneos do campo, no
deixam de aparecer questes que provocam debates instigantes sobre a
significao do termo, a sua construo epistemolgica e as finalidades terico-
prticas que este tem assumido desde que se passou a vislumbrar tais questes. A
ideia de currculo, mesmo estando em nossa tradio educacional, relacionada
usualmente a organizao e seleo do conhecimento trabalhado na escola, no
consenso em relao a uma srie de questes tericas e implicaes prticas, para
as mais diversas vertentes de estudo que constituem o campo. crescente o
reconhecimento de que no h uma definio conceitual e, certamente, uma
perspectiva de anlise nica para enquadrar um objeto denominado currculo.
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21
O vocbulo currculo, dentro da rea educacional, tem assumido variadas
conotaes histricas. Goodson (1995), Pacheco (2005), Malta (2013), Silva (2011),
Lopes (2011) constatam que em momentos e contextos diversos o currculo tem sido
definido por vises e compreenses singulares, mas que mesmo enfatizando
aspectos distintos de um objeto e de uma prtica, confirmam a relao entre
conhecimento e formao humana propiciada pelos processos de escolarizao.
Os apontamentos da histria do currculo, conforme evidenciados por
Goodson (1995), indicam que o termo, tal como entendido e utilizado nas polticas
e nas prticas educacionais, recente, pouco mais de um sculo, porm h muito
tempo, na educao, aquilo que designa j est estabelecido. Se pensarmos o
currculo como inteno e corpo de conhecimento, seleo de saberes/contedos e
experincias, ordenamento de tempo e espao, concluiremos que sua presena
mais remota do que se deduz. A compreenso de formao humana da Paidia, na
Grcia Antiga, no se configurava como uma inteno de currculo? O Trivium e o
Quadrivium da Idade Mdia no podem ser definidos como formas de organizao
curricular?
Uma das primeiras menes ao uso de currculo relacionando-o
organizao do conhecimento e ensino institucionalizado ocorre na universidade de
Glasgow (Esccia) no sculo XVII, (HAMILTON apud GOODSON, 1995, p. 32). O
currculo se referia ao curso em toda sua durao pelo qual os estudantes
passariam e o sentido atribudo era o de ordenao e controle do ensino. Ainda de
acordo com Goodson (idem, p. 35), conforme a o Estado assumia a empreitada da
escolarizao e esta se consolidava na sociedade britnica, o currculo passaria ser
sinnimo de disciplina (matria escolar).
Entretanto, o currculo enquanto campo poltico-administrativo e como objeto
de discusso terica especfica tem sua emergncia relacionada
institucionalizao da educao de massas no incio do sculo XX nos Estados
Unidos. Foi no contexto de industrializao, urbanizao e migrao, que
caracterizaram as transformaes da sociedade estadunidense nesse perodo, que
o currculo se corporificou como rea da educao escolar e do pensamento
educacional (SILVA, 2011). A partir da se impulsionaram as teorizaes e estudos
curriculares. Pacheco (2005) diz que os trabalhos de Dewey, Bobbit, Charters,
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Herrick e Tyler, na primeira metade do sculo XX, comearam a dar cidadania
epistemolgica ao currculo, isto , visibilidade e repercusso dentro dos estudos
educacionais, estabelecendo-o como campo especializado.
Neste primeiro momento, como mencionado por Silva (2011), as concepes
dos estadunidenses Franklin Bobbit e Ralph Tyler, expostas em The Curriculum
(1918) e Princpios Bsicos de Ensino e Currculo (1949) respectivamente, embora
no sendo as nicas, sobressaem na rea do currculo e seus princpios se tornam
muito influentes no pensamento curricular e prticas pedaggicas de muitas
instituies educativas, em diversos pases. A tendncia, representada
principalmente por Bobbit e Tyler, resguardada suas diferenas internas, tem sido
caracterizada como uma perspectiva de cunho racionalista-cientfica e tcnica-
burocrtica, com destaque para uma viso eficientista da escola e educao
(LOPES, 2011). A base desse pensamento estava no modelo de administrao
cientfica de Taylor e na psicologia behaviorista, e de uma maneira geral, a nfase
das discusses recaa sobre o planejamento, o alcance de objetivos elaborados
previamente e o controle burocrtico-administrativo do currculo.
Nesse sentido o currculo entendido substancialmente como um plano, um
conjunto de diretrizes e contedos, enfatizando a prescrio e a formalizao,
materializado fundamentalmente no currculo oficial. Como consequncia, marcava-
se assim uma separao entre elaborao e a implementao de planos. A
construo dos modelos curriculares passou a ser encarada como funo dos
tcnicos e especialistas, numa fase de produo, enquanto que aos professores
caberia receber e aplicar os programas.
No contexto da racionalidade cientfica o currculo esteve ligado a uma
concepo tcnica e pretensamente neutra que no atentava para as implicaes
polticas e sociais do conhecimento veiculado na escola. Para essa perspectiva
terica, o currculo significava o conjunto de procedimentos e contedos a serem
ensinados com a finalidade de preparar o aluno para a vida social adulta, buscava-
se organiz-lo da forma mais eficiente possvel, para atingir satisfatoriamente os
objetivos. O conhecimento era tido como uma construo objetiva representada nas
matrias/disciplinas cientficas, e, portanto a preocupao maior estava em definir a
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melhor forma de transmiti-lo. Pressupunha-se que era necessrio ensinar o
professor como fazer.
A tendncia da racionalidade cientfica no perdurou absoluta, Silva (2011)
destaca que a partir dos anos de 1960 essa perspectiva contestada por diversas
abordagens tericas relacionadas diretamente ao campo do currculo, como o
movimento de reconceptualizao (EUA) e a Nova Sociologia da Educao
(Inglaterra), e por outras discusses que acabaram impactando no campo, como a
Pedagogia do Oprimido de Paulo Feire (Brasil), as crticas filosficas e sociolgicas
de Althusser, Bordieu, Passeron, Baudelot e Establet (Frana), Bowles e Gints
(EUA).
O que se seguiu a isso, no que veio a ser conhecido como perspectiva crtica
de currculo, com estudos de base principalmente marxista e fenomenolgicas foi o
deslocamento da questo do como se deve ensinar para o por que se ensinar. O
foco sai dos instrumentais tcnicos de desenvolvimento de currculos eficientes, para
as relaes de poder e controle que o currculo exerce no meio social (SILVA, 2011).
O significado de currculo, portanto, ampliado, indo alm das prescries vistas
como neutras politica e socialmente para ser entendido como mecanismo de
dominao com forte conotao poltico-ideolgica. Procurava-se instigar o
professor a pensar e refletir sobre o currculo sedimentado nas polticas oficiais e
prticas cotidianas.
Assim se torna significativo o entendimento da influncia social na construo
e representao simblica do conceito. O currculo no apenas um instrumento de
eficcia educacional, mas um mecanismo institucional de carter histrico e social,
imbudo de valores e princpios que representam uma determinada conjuntura e a
viso de mundo de determinado (s) grupo (s) social (is).
Nos movimentos mais recentes da teorizao curricular, intensificados a partir
da dcada de 1990 em pases como Inglaterra, EUA e Brasil, ganham destaque
inovadoras compreenses sobre o currculo, com uma crescente uma complexidade
terica (NASCIMENTO et al, 2013). Essas compreenses perscrutam aspectos e
temas at ento no vislumbrados, evidenciam-se questes de gnero, raa,
diferena, entre outros. As perspectivas que se seguiram e, em alguns casos, se
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opuseram aos estudos crticos, tm como bases as teorias que questionam os
pressupostos de razo, da cincia, do saber cientfico-filosfico que tem alicerado
toda teorizao social na contemporaneidade.
Desse modo questionam a prpria compreenso de currculo enquanto
mecanismo de construo social e dominao ressaltada pelos estudos crticos.
Sem negar a existncia de dominao social, se contrapem as grandes narrativas e
a filosofia do sujeito que se encontram presentes nos pressupostos tericos dos
estudos crticos. No fomentam mais discusses centradas nas relaes de poder e
dominao entre classes sociais do capitalismo, mas localizam o currculo dentro de
uma a trama discursiva de representaes sociais, onde so focadas relaes entre
grupos e sujeitos particulares e a construo da subjetividade.
As perspectivas ps no fixam um significado determinante ao currculo, ao
contrrio, atribuem contingencialidade e provisoriedade as mais diversas definies,
entendendo-os como uma representao discursiva, que assim como outros
conceitos, no tm uma correspondncia verdadeira com o real, mas antes, so
uma criao das prprias teorizaes que em determinado contexto, hegemonizam
o discurso curricular, tornando real suas concepes (LOPES, 2011). Assim, a
prpria ideia de busca por um sentido final ao currculo questionada.
Com esta exposio procurou-se demonstrar os significados atribudos ao
currculo escolar por influncia das teorizaes do campo. Considerando a dinmica
caracterstica das discusses sobre o tema, no se pretende dar relevncia a uma
sequncia temporal linear, enfatizando oposies e desacordos desses significados,
mas considera-se preciso pens-los como mltiplas dimenses de um mesmo
objeto. A maneira como se exps visa apenas facilitar a compreenso com base nos
movimentos que a teorizao curricular vem apresentando.
Nota-se que o currculo enquanto objeto de teorizao tem sido marcado por
um conjunto de sentidos e significados que o caracterizam como mltiplo na
abrangncia dos seus estudos. Significados que esto ligados a concepes
filosficas, cientficas, scio-polticas, determinando e sendo determinados por
fatores de ordem econmica, social e cultural, expressos no s em teorizaes,
mas tambm em polticas e prticas que se concretizam em contextos especficos.
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Sendo mltiplo, o currculo se apresenta tambm como elemento processual,
complexo, multifacetado que reflete as transformaes sociais e educacionais.
Pacheco (2005) defende que no h uma definio nica e, talvez nunca haja
para o currculo escolar. O currculo no tem um significado unvoco, que possa ser
definido fora do contexto e da conjuntura social na qual determinada compreenso e
atribuio do conhecimento escolar assume um sentido. Com essa orientao
parece ser uma tarefa extempornea buscar fixar uma definio, um conceito
correto ou mais atual para o currculo escolar, mas fecundo procurar pens-lo
nessa diversidade, resguardando o que cada perspectiva tem de enriquecedor para
a teorizao deste objeto.
Todavia, o que no se pode negar que o currculo est intrinsecamente
relacionado ao conhecimento e as suas finalidades na educao escolar,
configurando-se como inteno, projeto, teoria, reflexo e tambm como prtica,
ao, aplicao, reao. Conforme as demandas educacionais, as aspiraes
intelectuais e as teorizaes vo mudando, o currculo vai sendo definido em funo
destes elementos. Sendo o currculo um campo to contestado, patente que os
estudos que o tem como objeto sigam linhas de pensamento diversificadas.
Como j foi colocado, os estudos curriculares, em sua trajetria, vm
apresentando um ecletismo considervel de perspectivas terico-metodolgicas
(PACHECO, 2011; LOPES, 2011; NASCIMENTO et al, 2013; REZENDE, 2014). So
referenciais que vo desde a psicologia behaviorista, a sociologia crtica, passando
pelos estudos culturais at a filosofia da diferena. As teorizaes sobre o currculo
esto ligadas ao contexto educacional e social e as concepes de educao, a
opes polticas, as prprias disputas entre grupos intelectuais que buscam
hegemonizar sentidos e discursos na rea. As mudanas de perspectivas e a
incorporao de novos enfoques terico-conceituais demonstram o incremento das
discusses e o alargamento do campo. Efetivamente as implicaes prticas de
teorizaes, visvel principalmente nos projetos de polticas e prticas curriculares
nas ltimas dcadas, expe visivelmente esse fenmeno.
Assim como o prprio conceito, no h uma teoria geral aceita para explicar o
currculo, podemos falar em perspectivas, abordagens, tendncias, linhas de
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pensamento etc. Qualquer teorizao no representa mais do que um caminho
(PACHECO 2005, p. 83). A forma e os critrios de como o pensamento curricular
dividido, classificado, categorizado tambm no unnime. Diferentes autores
classificam essas teorias de acordo com critrios estabelecidos a partir dos
pressupostos tericos que os embasam. Por exemplo:
Goodson (1995): perspectiva tecnocrtica e perspectiva libertadora-
estimuladora; Pacheco (2005): perspectiva tcnica/instruo e perspectiva prtico-
emancipatria/crtica; Sacristn (2000): perspectiva ligada s exigncias
acadmicas, quela em que o currculo visto como base de experincias, a
perspectiva eficientista e a do o currculo enquanto configurador de prtica; e Silva
(2011): teoria tradicional, teoria crtica e teoria ps-crtica.
Nesse quadro, a classificao em teorias tradicionais, crticas e ps-crticas,
assim como estabelecido por Silva (2011) tem merecido destaque em grande parte
dos estudos relativos ao tema no Brasil, de acordo com Lopes (2013). Mesmo a
perspectiva tradicional de currculo, marcada pela compreenso racionalista,
estando presente em polticas e prticas escolares, o debate acadmico
preponderante, hoje, se faz entre as perspectivas crticas e ps-crticas. Observa-se
na literatura (PACHECO 2009, 2013; LOPES 2013; NASCIMENTO et al 2015;
REZENDE, SILVA & LLIS 2014) uma plausvel presena das discusses relativas
s perspectivas crticas e ps-crticas, enfatizando suas oposies, discrepncias ou
interaes. Ressalta-se, porm, que tanto as teorias crticas quanto as ps-crticas,
no se constituem em corpo terico nico, so caracterizadas atualmente por
posturas flexveis, tanto de suas bases disciplinares como de seus pressupostos
terico-metodolgicos.
As teorias curriculares crticas, em suas expresses mais conhecidas, tem
sua fundamentao terica nos construtos cientfico-filosficos do marxismo
(materialismo histrico-dialtico) e no pensamento de autores da Escola de Frankfurt
(Teoria Social Crtica). Essas teorias seguem o paradigma estruturalista de pensar a
realidade, pressupem que a sociedade pode ser entendida e explicada a partir da
anlise de suas estruturas econmicas e sociais. Seus pressupostos esto
caracterizados pelas ideias de emancipao do sujeito, libertao da conscincia e
de transformao e igualdade social. Nas perspectivas crticas, o conhecimento
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entendido como elemento oriundo de uma relao dialtica da interao sujeito-
objeto, no se pensa o objeto como elemento separado da conscincia, em uma
dualidade, com existncia independente, mas como construdo tambm por esta
conscincia. As categorias de anlise centram-se basicamente em: classes sociais,
ideologia, luta de classes, poder, conscientizao, emancipao, libertao,
resistncia (SILVA, 2011).
Nas pesquisas orientadas pelas teorias crticas, atribui-se uma relevncia s
manifestaes prticas do currculo. Procura-se entender o currculo em sua
conexo concreta de pensamento e ao, nas aes da realidade. Dentro desses
referenciais podem-se colocar autores como Sacristn (2000); Goodson (1995);
Pacheco (2005; 2009), Apple (2010).
nesta base que as teorias crticas pretendem fomentar a luta contra as
ideologias que camuflam as injustias e desigualdades nas sociedades capitalistas
atravs do currculo escolar tradicional. O currculo crtico conjuga elementos que
buscam construir um ensino emancipador, um conhecimento legitimador de
equidade social e um sujeito participante. Atravs do currculo possvel
conscientizar os estudantes sobre as desigualdades sociais da sociedade e instig-
los a modific-las. Nesse sentido Pacheco (2013) defende que a teoria crtica tem o
papel de transformar a realidade social e de desocultar os mecanismos da sua
reproduo (p. 10).
Assim, julga-se possvel chegar a verdade do conhecimento, a um currculo
livre de dominao do poder exercido pelas camadas dominantes. Portanto, o
currculo crtico o conhecimento verdadeiro, redentor, desejado para uma
sociedade melhor, para a construo de uma identidade social, coletiva, condizente
com os ideais de justia social.
As teorias denominadas ps-crticas abrangem, sobre esse rtulo, uma srie
de tendncias: ps-estruturalismo, ps-modernismo, estudos culturais, estudos
feministas, entre outros, utilizam referenciais terico-analticos que as distinguem
das teorias crticas. So estudos inspirados em referenciais tericos fora das
vertentes marxistas ou fenomenolgicas, com base em novas abordagens sociais do
campo da cultura, da filosofia, da sociologia, da lingustica, como por exemplo, a
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Filosofia da Diferena, o multiculturalismo e as ideias de Foucault, os estudos queer
(SILVA, 2011).
Alguns pressupostos se afastam nitidamente do pensamento crtico, como
Lopes (2002), que aponta algumas rupturas: no caso do ps-estruturalismo, a
anlise no se limita a questes econmicas, amplia o debate para gnero, raa,
poder, e a crtica s ideias de razo, cincia e progresso; no h um fim ou um
projeto de educao libertador e emancipador; a ideologia (na perspectiva marxista)
no considerada, pois no h discursos falsos ou verdadeiros sobre a realidade e
sim diversos discursos constituintes de regimes de verdades (p. 23); o sujeito
centrado e unitrio da razo no existe e no interessa libert-lo, a subjetividade e a
conscincia so fragmentadas, descentradas.
Entretanto, essa mesma autora alerta que:
Ser ps algum movimento ou escola de pensamento (estruturalismo, colonialismo, modernismo, fundacionalismo, marxismo) implica problematizar esse mesmo movimento ou escola de pensamento, questionar as suas bases, as suas condies de possibilidade e de impossibilidade. No um avano linear, no uma evoluo ou uma superao a supor que os traos do movimento ou da escola de pensamento questionados so apagados. (LOPES, 2013, p. 11)
Corazza (2001) ao evidenciar o carter de construo da verdade nas
pesquisas curriculares de orientao ps-crtica, defende que a pesquisa ps-crtica
elabora saberes, que por mais operativo que sejam no deixam de ser criaes,
experimentaes. (p. 18). Assim reconhece o carter instvel do conhecimento que
no se pretende sedimentar como verdadeiro.
Dessa forma, as teorias ps-crticas no apresentam um projeto de currculo,
uma aspirao social universal de formao humana com base em seus princpios.
Centram mais a anlise nos questionamentos de verdades construdas no e pelo
currculo do que em construo de um modelo curricular definitivo.
Para Pacheco (2013) as perspectivas crticas e ps-crticas tem sido
relacionadas nas discusses curriculares prementemente em suas dicotomia e
restrio paradigmtica. Percebe-se que so delimitadas marcaes, estabelecidas
crticas de cunho epistemolgico e poltico entre essas duas correntes de
pensamento. Alm disso, o que se pretende colocar que no se pode fechar a
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compreenso a uma perspectiva e desqualificar a outra, considerando a
complexidade das questes educacionais na atualidade.
A existncia de diversas teorias curriculares inclusive contraditrias no um fato que diminua a importncia dos estudos curriculares, nem tampouco que coloque a necessidade de uma teoria unificada, mas, pelo contrrio, um argumento a favor da diversidade e problemtica do respectivo campo de estudo. (PACHECO 2013, p.80)
Nesse mesmo sentido, Silva (2011) defende uma aproximao entre teoria
crtica e ps-crtica para pensar a construo social e individual exercida pelo
currculo. Isso no significa o abandono das bases terico-epistemolgicas dos
respectivos estudos, mas a procura de pontos de cruzamento, o dilogo terico, a
soma de percepes. Alguns autores como Apple, Lopes, Giroux, segundo Silva
(2001), buscam fazer essa ligao e outros tm estudos e discusses que se
enquadram ora numa, ora noutra perspectiva.
De acordo com Lopes mesmo com a emergncia das teorias ps-crticas,
ainda h uma predominncia de estudos crticos nas pesquisas sobre currculo no
Brasil. Entretanto possvel dizer que h tambm uma tendncia hibridizao de
perspectivas que se tem observado em diversos estudos. Uma das principais
marcas do pensamento curricular brasileiro atual a mescla entre o discurso ps-
moderno e o foco poltico na teorizao crtica. (LOPES, 2002, p. 47).
No obstante, a teoria crtica mesmo estando numa fase de muitos
questionamentos ainda uma forte referncia para os estudos curriculares
(PACHECO, 2013). Se por um lado as teorias ps-crticas trazem novas
preocupaes para as discusses contemporneas do campo, as teorias
curriculares crticas no perdem sua relevncia na medida em que enfatizam a
centralidade da prtica, em que professores a alunos se percebem como
construtores do currculo. Resguardadas as particularidades tericas, no se pode
teorizar o currculo com base em uma diviso excludente entre teorias crticas e ps-
crticas, no se pode admitir a imposio de uma camisa de fora ou de uma
fronteira rgida entre essas formas de teorizar o currculo, tanto que h autores que
mesclam discursos.
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Esse ecletismo terico e at mesmo as divergncias e percursos distintos que
caracterizam os estudos curriculares hoje no constituem obstculos, algo que
enfraquea a teorizao. Concorda-se com Pacheco (2011) em considerar que isso
at pode se ser um ponto positivo para o campo, pois possibilita o aprofundamento e
o aperfeioamento das discusses.
Com essa compreenso, a seguir so expostos alguns apontamentos de
autores contemporneos para se pensar teoricamente o currculo, possvel
perceber como as concepes de currculo j colocadas se fazem presentes. A
inteno menos em procurar por um conceito fixo do que buscar fundamentos que
propiciem uma reflexo satisfatria sobre um objeto de estudo e uma dimenso da
prtica educativa chamada currculo.
Goodson (1995) enfatiza a dimenso histrica e social nos estudos do
currculo, uma histria social do currculo. Para se entender a atual configurao do
currculo, em termos tericos e prticos, necessrio resgatar a dinmica histrica
que o moldou. Ele entende que no existe um currculo puramente inovador,
descolado de suas origens e influncias histricas. Efetivamente o autor destaca a
definio pr-ativa de currculo (o currculo prescrito, as concepes enraizadas),
como elemento de grande relevncia em uma anlise. Na abordagem dos currculos
praticados essencial considerar a definio pr-ativa, formal, escrita que os
influenciam:
[...] a construo pr-ativa pode estabelecer parmetros importantes e significativos para a execuo interativa em sala de aula. Por conseguinte, se no analisarmos a elaborao do currculo, a tentao ser de aceit-lo como um pressuposto e buscar variveis dentro da sala de aula, ou, pelo menos, no ambiente de cada escola particular. Estaramos aceitando como tradicionais e pressupostas, verses de currculo que num exame mais aprofundado podem ser consideradas o clmax de um longo e contnuo conflito. (GOODSON, 1995, p. 24)
Isso implica em pensar que o currculo estabelecido no resultado de um
processo contnuo, puro, neutro, de base totalmente racional e burocrtica. Em uma
pesquisa sobre currculo preciso considerar os parmetros estabelecidos pelo
currculo pr-ativo para o que praticado. O currculo pr-ativo deve ser encarado
tambm como uma construo histrica para no se correr o risco de consider-lo
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como uma tradio, algo dado. uma considerao pelos processos de
configurao nos quais determinadas prticas se tornaram o que so hoje. H
dinmica, conflito, mudanas em torno do conhecimento anterior ao currculo
praticado em sala de aula, isso no pode ser ignorado.
A perspectiva de currculo adotada por Sacristn (2000) est embasada na
compreenso da configurao que este assume no contexto em que se desenvolve,
ou seja, nas prticas escolares, sob as influncias culturais do meio. Ele diz que s
possvel entender, pensar o currculo, considerando a prtica, a qual o caracteriza:
Analisar currculos concretos significa estud-los no contexto em que se configuram
e atravs do qual se expressam em prticas educativas e em resultados (p. 16). No
sentido de que a dinmica curricular tem inextricavelmente uma dimenso prtica,
esse o ponto de partida para qualquer estudo curricular.
O currculo e as prticas curriculares esto inevitavelmente condicionados (e
tambm condicionam) pelo contexto, pelas determinaes histricas, polticas,
culturais e sociais. No possvel definir uma significao totalizante para contextos
distintos. Em cada contexto o currculo assume uma funcionalidade, um papel, uma
finalidade. O currculo modela-se dentro de um sistema escolar concreto, dirige-se a
determinados professores e alunos, serve-se de determinados meios, cristaliza-se,
enfim, num contexto, que o que acaba por lhe dar o significado real (p. 21). Assim
depreende-se que no se pode compreender o currculo com toda sua complexidade
a uma forma nica de anlise e estudo, estabelecida a priori, que se pretenda vlida
para toda a dinmica do objeto. Sendo as condies e meios de transmitir o
conhecimento, distintos e variantes, conforme o tempo e espao, o currculo tambm
se diferencia.
Atravs da anlise de algumas concepes, Sacristn diz que o currculo
pode ser analisado em cinco mbitos: 1. Funo social (relao entre escola e
sociedade); 2. Projeto educativo (as intenes e aplicaes); 3. Expresso formal do
projeto educativo (formato prescrito e diretrizes) ; 4. Campo prtico (as interaes da
prtica); 5. Objeto de teorizao acadmica (discusso terica).
Percebe-se assim que a compreenso dos fenmenos ligados ao currculo
demanda uma anlise contextual, integradora de outros mbitos que no esto
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restritos somente sala de aula e nem escola, mas a um campo maior que inclui
dimenses polticas, acadmicas, sociais, todas postas em uma interrelao
contnua.
Em consonncia com Sacristn, Pacheco (2005) caracteriza o currculo como
um processo interativo de construo cultural e social, sem separao entre
pretenso e realizao. O currculo se estabelece em uma interao recproca entre
elementos sociais e culturais. A escola est imersa em determinada sociedade e
cultura. o currculo uma prtica que resulta da interao e confluncia de vrias
estruturas (polticas/administrativas, econmicas culturais, sociais, escolares...) (p.
37). Dessa forma o currculo apresenta como pressupostos as determinaes scio-
culturais, no h como ser pensado em um nico tempo e espao, margem dessas
influncias. O currculo est em constante transformao como resultado de das
mudanas nas prprias tramas sociais e culturais que o constituem.
Um entendimento de currculo que se aproxima s perspectivas ps-crticas,
defendido por Silva (2011) e tambm por Lopes (2011). [...] aquilo que o currculo
depende precisamente da forma como ele definido pelos diferentes autores e
teorias. (SILVA, 2011, p. 14). Lopes entende que uma teoria curricular produz
apenas uma noo particular de currculo. Portanto, aquilo que o currculo
depende da teoria (discurso) que o define. Isso indica que o currculo escolar acaba
assumindo um significado em determinado contexto, de acordo com a
predominncia de algumas definies e influncia de especialistas ou tericos.
O currculo entendido dessa maneira uma construo discursiva
historicamente situada, percebe-se ento um carter contingencial ao significado do
mesmo. Um significado altervel histrica e socialmente, portanto sem essncia,
sem correspondncia em relao a um objeto ou processo tal como ocorre na
realidade. No havendo uma definio ltima e realista, a investigao sobre o
currculo no pode deixar de considerar primeiro a trama dos discursos e processos
lingusticos que o constituem em um situado contexto.
A partir destas indicaes, pondera-se que o currculo e seus mltiplos
sentidos, podem ser pensados perscrutando suas diversas e complexas relaes
destacadas pelas principais perspectivas, circunstancialmente agrupadas em
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teorias. Valoriza-se aqui esse entendimento como uma forma de atentar para a
multidimensionalidade do objeto em questo, procurando olh-lo, justamente pelo
que tem sido destacado: seu carter processual e dinmico, como elemento
construdo histrica e socialmente.
As teorias curriculares so, portanto, conhecimentos parciais, mas suas
verdades se tornam vlidas para se compreender determinado aspecto do
currculo. Analisar o currculo enclausurando-se em uma perspectiva terica ou
exaltando-a como nico caminho de anlise, significa limitar seu entendimento a
uma conjuntura e um modo de perceb-lo. Cabe absorver, ou pelo menos, se
atentar para outros indcios, outros olhares. No momento em que se opta por
determinada concepo ou significado de currculo, pretere-se outros que podem
resguardar igual importncia e possibilidades. Considerando o percurso dos estudos
curriculares, uma discusso sobre currculo precisa levar em conta esses diferentes
ngulos de viso para um mesmo objeto. Escolhas so necessrias, mas ter uma
base no significa rigidez e fechamento a outros pontos de vista, pois certos temas
assumem relevncia que outrora no tinham.
Isso pertinente para discusso entre estudos crticos e ps-crticos. Assim
h que se avaliar que, o papel que os discursos curriculares exercem na concepo
do objeto, como apontam Silva e Lopes, impreterivelmente relevante nas anlises
curriculares. Hoje, com tantas discusses epistemolgicas, no possvel olhar para
o currculo sem considerar o carter histrico-social e contingencial de seu prprio
significado no mbito de sua teorizao. Por ouro lado, no se pode, perder de vista
que o currculo, hoje mais do que nunca, dominao e que a predominncia da
gide do Estado e de interesses seletivos ocorrem atravs de mecanismos ocultos,
disfarados e que certos discursos podem legitimar essa dominao. Situar-se
nessa perspectiva, de considerao por esses distintos enfoques tericos, entendo-
os como constituintes do campo, no significa cair no relativismo de sentidos ou
numa postura de descrdito. Entende-se que essas so ponderaes necessrias
para a discusso curricular na contemporaneidade.
Se no possvel ou cabvel fixar determinado significado ao currculo, mas
vivel identificar suas relaes e determinaes e procurar um sentido para a prtica
educativa. impretervel um projeto de educao que tenha por base uma
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concepo curricular slida. Em nome de uma indefinio de significado ou de uma
crtica por si s, no se pode deixar de apontar caminhos para o conhecimento
escolar. Segundo Young (2014), se no pudermos nos posicionar sobre o
conhecimento (qual melhor para o contexto que estamos) nossa autoridade com
tericos do currculo estar em xeque (p. 197). O autor prossegue indagando o que
dizer, ento, de uma teoria do currculo que adota um papel crtico sem se sentir
obrigada a desenvolver suas implicaes concretas?
Nesse sentido, cabe corroborar que o currculo, antes de um objeto de
teorizao uma dimenso da prtica educativa, um processo, preciso considerar
sua realizao na prtica. Entender a dimenso prtica do currculo e o
desenvolvimento curricular no cotidiano escolar focalizar as prticas pedaggicas
dos sujeitos que vivem. E por assim se embasa no currculo como uma construo
histrica, social e cultural, tal como defendido por Goodson, Sacristn e Pacheco.
Isso implica em pensa-lo em uma perspectiva processual prtica (SACRISTN
,2000). Sobre as abordagens que o enxergam por essa viso, o autor reitera: no
oferecem tcnicas para gestionar o currculo, mas fornecem conceitos para pensar
toda a prtica que se expressa atravs dele e com ele e tambm para decidir sobre
ela (SACRISTN, 2000, p. 53)
O currculo uma dimenso imediata e inextricvel da prtica educativa e
social. Currculo uma realidade estabelecida poltica, cultural e socialmente, sob
interesses e circunstncias determinados, mas tambm um processo, um fluxo que
se movimenta a partir de conflitos e acordos, de dominao e disputa. ,
evidentemente, padro, contedo programtico, plano de ensino, porm, alm disso,
comporta a interveno dos sujeitos a que direcionado. conhecimento, saber,
tecnologia, mas tambm poder, controle, discurso, subjetivao. O currculo
envolve sujeitos que elaboram, determinam, por outro lado, influencia e moldado
por aqueles que interpretam, traduzem, modificam-no.
E com esses pressupostos, busca-se entender a prtica, considerando a
poltica como uma dimenso inextricvel do currculo, isso implica pensa-la como
parte relevante do processo de escolarizao. Prescrio e prtica, poltica e ao
so dimenses de um mesmo objeto, no h como entend-las polarizadamente,
isoladamente. Currculo prescrito se identifica com a poltica e o currculo em ao
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com a prtica, entretanto esses dois polos esto imbricados, o currculo prescrito
leva em considerao prticas e as prticas tem alguma coisa de prescrio.
2.2 Aspectos conceituais das polticas de currculo e de avaliao
A institucionalizao do currculo d-lhe um carter eminentemente poltico,
pois sua racionalizao implica em complexa organizao, definio e distribuio
entre os contextos, as instncias administrativas/educativas e os sujeitos envolvidos
em sua dinmica. Nas sociedades contemporneas o currculo escolar, por ser
expresso de determinadas demandas e projetos, existe como elemento
interrelacionado a condicionantes polticos, econmicos, sociais e culturais,
assumindo, predominantemente, carter de mecanismo de juno desses
condicionantes em polticas de Estado. O enraizamento e a consolidao do
currculo no mbito poltico-administrativo impactam e influenciam fortemente outras
esferas, pois, a poltica sobre o currculo , de acordo com Sacristn (2000, p. 107),
um condicionamento da realidade da educao que deve ser incorporado ao discurso sobre o currculo; um campo ordenador decisivo, com repercusses muito diretas sobre essa prtica e sobre o papel e margem de atuao que os professores e os alunos tm da mesma.
Ainda de acordo com Sacristn (2000) no se pode considerar o currculo
apenas na dimenso pedaggica, para pens-lo em termos processuais preciso
atentar para outros fatores que contribuem para sua organizao. So mltiplos os
sujeitos, as intenes, as mediaes, os nveis de deciso que constituem o sistema
curricular. A poltica oficial para o currculo, em um sistema educativo, um desses
nveis que busca representar a referncia, o ponto de partida para as demais
instncias mediadoras e implementadoras. O lado poltico do currculo tem uma
relao bem definida com aparatos institucionais, e mesmo no se limitando a isso,
est diretamente relacionado atuao do Estado na elaborao, prescrio e
distribuio do mesmo. Assim, o currculo prescrito oficial assume grande relevncia
na organizao do sistema educativo, e colabora diretamente ao desenvolvimento e
funcionamento de estruturas institucionais no mbito educativo regido pelo Estado.
O Estado necessita regular o currculo, no apenas para dominar e controlar
ideologicamente, atravs da educao, o social, mas porque precisa realizar esse
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encargo de forma sistemtica e tecnificada, porque essa necessidade inerente
funo que a educao assume nas sociedades capitalistas industriais.
A ordenao do currculo faz parte da interveno do Estado na organizao da vida social. Ordenar a distribuio do conhecimento atravs do sistema educativo um modo no s de influir na cultura, mas tambm em toda ordenao social e econmica da sociedade. (SACRISTN, 2000, p. 108)
A regulao curricular atravs das polticas de Estado desenvolvida, ainda
no entendimento de Sacristn (2000), por mltiplos mecanismos que assumem
determinadas funes especficas, como: a organizao do saber considerado
necessrio para a formao dos indivduos; as validaes de conhecimentos e dos
processos de escolarizao (reconhecimento e aval institucional de processos e
etapas de escolarizao); a garantia de um padro mnimo e a igualdade de
oportunidade de acesso na escolarizao obrigatria; o enquadramento dos
profissionais do ensino em normas e meios de distribuio de funes; a orientao
e o controle das prticas escolares, entre outros.
Nessa compreenso as polticas de currculo se configuram como meios de
racionalizao e regulao do conhecimento considerado relevante para
determinada sociedade e, por definir uma base comum para todo o sistema, um
mnimo de contedos para ser seguido pelas instituies educativas, acabam
contribuindo expressivamente para a construo/manuteno de determinados
arranjos sociais.
A base comum, objetivada no projeto de currculo nacional, tem sido
caracterizada, em diversos projetos, por tendncias homogeneizao,
padronizao, ao estabelecimento de certos saberes bsicos universais,
consolidao de uma cultura comum. Essas intenes se conjugam a outras
maneiras do Estado intentar a conexo e a ordenao em seu sistema, intervindo de
forma a efetuar a regulao sobre o currculo. Esse esforo inerente a um projeto
unificado de educao nacional [...], est ligado a pretenso de uma escola tambm
comum. (SACRISTN, 2000, p. 111). Ao longo da histria do currculo, as
finalidades e pretenses desses saberes universais, variam e distinguem-se:
saberes necessrios ao mercado, vida, ao mundo tecnolgico globalizado,
formao de uma elite dirigente, a uma sociedade democrtica, a uma perspectiva
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emancipatria. (LOPES 2006, p. 134). As demandas por um currculo nacional so
parte de contextos mais amplos, no se restringindo idealizao e iniciativa do
campo administrativo-institucional, representam e so parte de movimentos globais
de reformas, de revalorizao e reestruturao de modelos e de demandas
conjunturais. So representaes e exigncias de uma ordem econmica, poltica e
social que se torna dinamizada a ponto de se estruturar em ideologias educativas.
Em alguns casos o que se define como comum uma escolha que exclui outras.
As polticas de regulao do currculo escolar tem seu carter prescritivo
representado em documentos oficiais (leis, diretrizes, parmetros, orientaes
didticas etc.). Estes, objetivam orientar, apontar caminhos para a prtica com base
em um projeto educativo. Buscam institucionalizar alguns princpios com a inteno
de legitimar a cultura selecionada. Nesses documentos, que controlam o currculo,
alguns so mais genricos, direcionados ao sistema como um todo, outros so mais
especficos, direcionados para as prticas. Pacheco (2005), define trs instrumentos
de implementao das polticas curriculares: normativos explcitos e objetivos (leis,
decretos, portarias, despachos); normativos interpretativos e subjetivos (circulares e
ofcios); documentos de orientao e apoio (textos de apoio, documentos internos da
escola).
Se se considerar apenas o carter regulador da poltica sobre as prticas, o
currculo pode ser representado apenas pelos documentos oficiais, e estes
costumam se referenciados quando se pensa o desenvolvimento curricular. Alm
disso, os documentos curriculares elaborados por especialistas e direcionados s
escolas desempenham um carter constitutivo do conhecimento, na medida em que
numa perspectiva discursiva, constituem o que o currculo para as escolas.
Por outro lado, as polticas no se restringem aos documentos, incorporam
outras intervenes, h outros elementos que tm influncia direta nas prticas. De
acordo com Goodson (1995), as prescries presentes nos documentos curriculares
oficiais no so desenvolvidas absolutamente pelos professores e alunos nos
momentos de aulas. Porque as prticas so doadoras de sentidos e no so
determinaes diretas da poltica. Como a construo desses documentos se faz
como um processo, a poltica curricular pode ser pensada em diferentes contextos
de desenvolvimento. Os documentos curriculares refletem (e reproduzem) as
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relaes sociais e polticas existentes em cada contexto, marcados pelo momento
histrico em que se engendram, nesses moldes so negociadas, efetivadas,
construdas e reconstrudas na escola.
notrio que as polticas curriculares, como tm se apresentado na
organizao da educao escolar, principalmente nos nveis elementares, se
constituem diretamente em meios de domnio sobre as prticas de ensino e a
aprendizagem na escola. Entretanto, dada a amplitude do processo de
desenvolvimento curricular, as mudanas nas relaes institucionais e os avanos
em teorizaes e estudos, sabe-se que essas prticas no so apenas reflexos das
polticas oficiais. E assim, nessa discusso, abre-se espao para tratar a poltica
como um territrio no to fechado. A abertura de compreenso da poltica para
alm da atuao reguladora do Estado permite que o espao das prticas tambm
possa ser entendido como espao de criao curricular e no apenas momentos de
aplicao de currculos pr-fabricados (OLIVEIRA, 2010, p. 232). As relaes entre
estado e sociedade mudam, assim como os condicionantes do currculo prescrito
sobre as prticas. Ocorrem aberturas a nvel emprico e terico.
Nessa orientao a prpria noo de Estado se reconfigura, pois em grande
parte do campo terico, o Estado definido como principal agente da autoridade, pelo
monoplio do poder, como aplicador da lei, pela fora de representatividade das
instituies formais. Entretanto, como afirma Pacheco,
O Estado no uma unidade unitria, mas uma estrutura complexa, que existe em funo de processos que legitimam diferenas de opinio e converte a administrao, depois de elaborado o corpus normativo, no seu veculo de regulao da poltica curricular. (PACHECO, 2005, p. 106)
Nesse sentido pode-se afirmar que o Estado no uma instituio
caracterizada apenas pela imposio vertical de projetos, mas pela disseminao de
poderes descentrados (capilarizados, em uma concepo foucaultiana). O poder,
sim apresenta seu espectro visvel nas instituies e autoridades, mas tambm est
diludo entre outras instncias, em espaos perifricos.
O Estado no o nico sujeito das polticas, a poltica no pode esgotar-se
no momento normativo como se o poltico fosse o ator por excelncia na construo
do currculo (PACHECO, 2005, p. 107). Isso implica em pensar e considerar a
atuao de sujeitos e grupos que no esto necessariamente nos rgos e
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instituies administrativas, ou at mesmo daqueles que esto fora do Estado, isto
, desligados de organismos formalmente polticos. Um foco no processo de criao
de polticas pode destacar alguns atores em detrimento de outros, mais discretos
(BURTON, 2014, p. 322). Os outros elementos devem ser considerados, claro que
com distintas maneiras de influncia e atuao. Muitas vezes as aes desses
elementos esto implcitas.
As perspectivas tericas sobre as polticas curriculares, assim como ocorre
com a questo terico-epistemolgica do currculo, de uma maneira geral, so
marcadas pela complexidade e diversidade de abordagens. Mas, possvel discernir
na literatura, movimentos de deslocamento terico que destacam, basicamente, a
dinmica entre uma compreenso relacionada a uma compreenso tcnica e a uma
compreenso processual (PACHECO, 2005).
Assim como o prprio campo curricular tem sido marcado por distintos
ngulos de anlise, as polticas de currculo tambm so teorizadas com mltiplas
perspectivas. Em pesquisa sobre Teses e Dissertaes, no incio da dcada de
2000, Paiva, Frangella e Dias (2006, p. 251) concluem que boa parte das anlises,
tratam a construo curricular como um processo de construo poltica exgeno e
distanciado da atuao de professores. [...] resultantes da esfera oficial. Goodson
(2013) defende que, o processo de mudana (poltica) acontece em trs segmentos:
o interno (escola), o externo (fora da escola) e o pessoal (sujeito/educador). Pensar
o currculo em sua expresso poltica, considerar a integrao entre o institucional
e o pessoal, destacando s narrativas de vida, nos movimentos de mudana que
provocam as reformulaes de polticas educacionais, necessrio considerar as
individualidades, as histrias pessoais dos educadores. Lopes (2011) d relevncia
a duas tendncias nos estudos sobre poltica curricular: tendncia que relaciona o
currculo ao poder, estrutura econmica, ideologia e hegemonia (p. 233);
tendncia que est embasada nos discursos. Pacheco (2005) define em sua anlise,
dois modelos: o das racionalidades tcnicas e o das racionalidades contextuais,
correspondentes a uma concepo com nfase na administrao e outra nas
prticas escolares, respectivamente.
Anlises nessas direes tm se detido, basicamente, em duas perspectivas,
uma com nfase no mbito do Estado enquanto direcionador da poltica e outra na
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prtica, com destaque para os atores/sujeitos e relaes no nvel escolar. Muitas
anlises se concentram na mudana de papel do Estado na era neoliberal, desde a
dcada de 1980. Burton (2014), indaga se esse modelo assim to esttico a ponto
de ainda ser analisado sob a mesma perspectiva, continua, perguntando se o papel
dos professores e alunos to irrelevante a ponto de no ser considerado. No fundo
esto em evidncia duas maneiras de entender a poltica: uma de carter linear,
sistemtico, outra de carter no totalmente previsvel. Superao da relao de
dualidade estrutura/agncia.
As polticas curriculares podem ser pensadas no modelo das racionalidades
tcnicas e das racionalidades contextuais, discutido por Pacheco (2003, 2005). Na
perspectiva da racionalidade tcnica destaca-se o poder de deciso do Estado, sua
regulao e dominao sobre o currculo. Esta perspectiva guiada por uma viso
tecnicista de currculo, (racionalidade de Tyler), com nfase no papel da
administrao educacional. H uma separao entre concepo e execuo da
poltica, ou entre projeto e ao. Pressupe-se que a poltica segue de forma linear,
ou seja, elaborada no bojo legislativo-administrativo e segue para ser
implementada nas prticas sem maiores interferncias. Os professores seguem o
que est prescrito. Currculo pronto, sem interaes e modificaes na prtica, a
nica modificao o no seguimento desse currculo oficial, seja por
incompetncia ou por falta de estrutura das escolas. vislumbrado o controle
vertical por parte do Estado sobre as polticas de currculo.
Considerar o currculo em sua dimenso poltica, porm, no significa trat-lo
como uma construo burocrtica e dominantemente prescritiva. Segundo Pacheco
(2005) quando as polticas oficiais assumem um carter prescritivo, sem considerar
o contexto das prticas o currculo caracteriza-se por uma racionalidade tcnica,
entretanto, sendo a poltica processo e produto, os textos e demais orientaes
curriculares oficiais simbolizam o discurso oficial do Estado nvel da macropoltica
(relaes de poder, ideologias, documentos). Mas isso no quer dizer que no
existam outros autores participantes dos rumos da poltica nvel da micropoltica
(atuao de professores, alunos, o currculo praticado).
Currculo em uma perspectiva contextual est ligado s teorias crtica e ps-
crtica, de carter emancipatrio e concepo processual, que evidencia a
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complexidade da prtica. Nessa concepo, decises sobre o currculo, mesmo
sendo de iniciativa formal preponderante das instncias administrativas, so
fragmentadas e multicentradas, pois o controle no absoluto. As interconexes e
interpretaes da prtica tm papel relevante na configurao do currculo, no
podendo ficar escondidas ou apagadas nas anlises das polticas de currculo,
prementemente em um contexto de exacerbao de discusses e fomento de