O novo conceito de sentença de mérito e os problemas ... · interposição de apelação o...

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www.professordanielneves.com.br O novo conceito de sentença de mérito e os problemas recursais. 1. Introdução; 2 – O novo conceito de sentença; 3. Sistema recursal e o novo conceito de sentença; 4. Fungibilidade; 5. Conclusões. 1. Introdução A Lei 11.232/05, chamada pela doutrina de “Lei do Cumprimento de Sentença”, teve como característica principal a adoção do sincretismo processual entre o conhecimento e a execução para as demandas que tenham como objeto uma obrigação de pagar quantia certa 1 . Não se trata de novidade absoluta, considerando-se que o sistema processual brasileiro iniciou no ano de 1994 (art. 461, CPC – obrigações de fazer e não fazer) uma reformulação da forma de satisfação dos títulos executivos judiciais, passando a adotar como regra a “ação sincrética” e como exceção os processos autônomos; primeiro o de conhecimento e depois o de execução. Passando por 2002 (art. 461-A, CPC – obrigações de entrega de coisa), o movimento pró-sincretismo praticamente se encerra com a Lei 11.232/05, que passa a abranger também nessa nova concepção de processo as obrigações de pagar quantia certa 2 . Percebe-se que, a partir de 1994, o sistema processual começou a se modificar, passando a generalizar a “ação sincrética”, que antes dessa época encontrava-se presente com extrema raridade em nosso sistema processual, sendo exemplos clássicos as ações de despejo e as ações possessórias. Aquilo que era somente a 1 Para comentários a respeito dos benefícios e justificativa da adoção da “ação sincrética”, consultar Humberto Theodoro Jr., Daniel Amorim Assumpção Neves, Reforma do CPC, São Paulo, RT, 2006, pp. 199-206. 2 No sentido do texto, José Carlos Barbosa Moreira, “A nova definição de sentença (Lei 11.232)”, in Revista Dialética de Direito Processual Civil, vol. 39, junho/2006, p. 79 e Marcelo Abelha Rodrigues, A terceira etapa da reforma processual civil, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 106.

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O novo conceito de sentença de mérito e os problemas

recursais.

1. Introdução; 2 – O novo conceito de sentença; 3. Sistema recursal e o novo

conceito de sentença; 4. Fungibilidade; 5. Conclusões.

1. Introdução

A Lei 11.232/05, chamada pela doutrina de “Lei do Cumprimento de Sentença”,

teve como característica principal a adoção do sincretismo processual entre o

conhecimento e a execução para as demandas que tenham como objeto uma

obrigação de pagar quantia certa1. Não se trata de novidade absoluta,

considerando-se que o sistema processual brasileiro iniciou no ano de 1994 (art.

461, CPC – obrigações de fazer e não fazer) uma reformulação da forma de

satisfação dos títulos executivos judiciais, passando a adotar como regra a “ação

sincrética” e como exceção os processos autônomos; primeiro o de conhecimento

e depois o de execução. Passando por 2002 (art. 461-A, CPC – obrigações de

entrega de coisa), o movimento pró-sincretismo praticamente se encerra com a Lei

11.232/05, que passa a abranger também nessa nova concepção de processo as

obrigações de pagar quantia certa2.

Percebe-se que, a partir de 1994, o sistema processual começou a se modificar,

passando a generalizar a “ação sincrética”, que antes dessa época encontrava-se

presente com extrema raridade em nosso sistema processual, sendo exemplos

clássicos as ações de despejo e as ações possessórias. Aquilo que era somente a 1 Para comentários a respeito dos benefícios e justificativa da adoção da “ação sincrética”, consultar Humberto Theodoro Jr., Daniel Amorim Assumpção Neves, Reforma do CPC, São Paulo, RT, 2006, pp. 199-206. 2 No sentido do texto, José Carlos Barbosa Moreira, “A nova definição de sentença (Lei 11.232)”, in Revista Dialética de Direito Processual Civil, vol. 39, junho/2006, p. 79 e Marcelo Abelha Rodrigues, A terceira etapa da reforma processual civil, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 106.

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exceção passou a ser considerado como regra, dependendo da espécie de

obrigação que compunha o objeto do processo, sendo que atualmente, depois da

Lei 11.232/05, a realidade se inverteu, e aquilo que era a exceção – ação sincrética

– virou a regra e aquilo que era a regra – ação autônoma de execução de título

judicial – virou a exceção.

Fala-se em exceção, e não extinção, porque, segundo parcela significativa da

doutrina, a novidade legislativa não afetou as chamadas “execuções especiais”

previstas pelo Código de Processo Civil, limitando suas modificações

procedimentais tão somente à execução tradicional, padrão. Com esse

entendimento, a execução de sentença contra a Fazenda Pública, contra devedor

insolvente e que tenha como objeto crédito alimentar, continuará a exigir para sua

satisfação o processo autônomo de execução. Além disso, segundo previsão do

art. 475-N, parágrafo único, CPC, nas execuções de sentença penal condenatória

transitada em julgado, sentença arbitral e homologação de sentença estrangeira, o

executado será citado, o que permite a conclusão de que também nesses casos

haverá um processo autônomo de execução, não obstante deva se aplicar ao

procedimento as regras do cumprimento de sentença.3

Ainda que sejam essenciais as observações feitas a respeito da amplitude da ação

sincrética no sistema processual atual, parece não haver grande dúvida de que a

principal característica da Lei 11.232/05 foi torná-la regra. Diante da nova

realidade, o legislador sentiu a necessidade da reforma atingir três áreas de

institutos jurídicos diferentes, havendo em regra justificativa para cada um desses

campos de mudanças.

3 Nesse sentido as lições de Alexandre Freitas Câmara, A nova execução de sentença, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, pp. 105-108 e Humberto Theodoro Jr., As novas reformas do Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 2006, pp. 152-153.

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Num primeiro momento, modificou algumas regras referentes a fenômenos

jurídicos pertencentes à teoria geral da execução, que demandavam um novo

tratamento em virtude da adoção do sincretismo “conhecimento-execução”. Assim,

houve alterações na liquidação da sentença, execução provisória, competência, rol

dos títulos executivos, embargos à execução e ação monitória. É bem verdade que

algumas modificações não estavam diretamente ligadas a idéia do sincretismo

processual, mas o legislador nesse caso se aproveitou da oportunidade para

materializar antigos e novos desejos reformistas.

Também teve que criar um novo procedimento para a fase procedimental de

satisfação da sentença condenatória que tenha como objeto uma obrigação de

pagar quantia certa, considerando-se que, pelo menos até a decisão da

impugnação, não mais admite o procedimento do processo autônomo de

execução. Novamente se percebe que a criação de um novo procedimento foi

aproveitada pelo legislador para fazer valer algumas novidades pretendidas há

certo tempo, como, por exemplo, a retirada do efeito suspensivo da defesa típica

do executado, no caso a impugnação, que toma o lugar dos embargos à execução.

Por fim, o legislador sentiu a necessidade de modificar alguns dispositivos legais

espalhados pelo Código de Processo Civil, com o objeto maior de compatibilizá-los

com a nova realidade sincrética das atividades cognitivas e executivas. Nessa

parte das mudanças legislativas tem notável importância o novo conceito atribuído

à sentença, objeto de inúmeros questionamentos da doutrina e certamente gerador

de insegurança jurídica na praxe forense.

O objetivo do presente artigo é justamente enfrentar a questão sobre dois aspectos

principais: (i) qual o real significado do novo conceito de sentença; (ii) como

passará a funcionar o sistema recursal diante do novo conceito de sentença.

2 – O novo conceito de sentença

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A sentença foi conceituada pelo legislador de 1973 como sendo o ato que punha

fim ao processo, incluindo-se nessa conceituação tanto as sentenças que resolvem

o mérito da demanda (definitivas) como aquelas que apenas encerram o processo,

sem manifestação sobre o mérito (terminativas). Ainda que mantida a opção de

conceituação tomando-se por base o efeito do pronunciamento judicial, melhor

teria andado o legislador se tivesse conceituado a sentença como ato que

encerrava o procedimento em primeiro grau de jurisdição, porque havendo a

interposição de apelação o processo não se encerraria 4. Seja como for, a opção

do legislador era clara: o critério adotado era o efeito da decisão com relação ao

procedimento, sendo absolutamente irrelevante seu conteúdo para a configuração

da decisão como sentença5.

O advento generalizado das ações sincréticas, independente da natureza da

obrigação objeto da condenação, levou o legislador a repensar o conceito de

sentença, substituindo o critério utilizado anteriormente. Ao invés do efeito da

decisão, o novo conceito de sentença tem como critério conceitual o conteúdo do

pronunciamento, fazendo expressa remissão aos artigos 267 e 269, CPC,

dispositivos que indicam as causas que geram a resolução ou não do mérito

(sentença definitiva e terminativa, respectivamente)6.

4 Humberto Theodoro Jr., Curso de Direito Processual Civil, vol. I, 34ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 203, afirma: “Por outro lado, embora o Código considere a força de extinguir o processo como o traço caracterizador da sentença, na verdade a relação processual nunca se encerra com a simples prolação de uma sentença (basta lembrar a possibilidade de recurso e a devolução do conhecimento da causa a outro órgão jurisdicional), e, às vezes, com reabertura de oportunidade ao próprio juiz autor da sentença de proferir novo julgamento, como se dá nos embargos declaratórios.” e Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, vol. II, São Paulo, Malheiros, 2001, p. 490: “Melhor, portanto, será definir a sentença como ato cujo efeito processual é a extinção do processo, sabendo-se que esse efeito será ou não produzido efetivamente, na dependência conforme o vencido permita ou impeça que ela passe em julgado.” 5 Para José Carlos Barbosa Moreira, “A nova definição de sentença (Lei 11.232)”, op. cit., p. 78, o conceito baseava-se em critério puramente topológico: “O que interessava não era o conteúdo do ato, mas a pura e simples posição por ele ocupada bi itinerário do feito”. 6 Nesse sentido, José Roberto dos Santos Bedaque, “Algumas considerações sobre o cumprimento da sentença condenatória”, in Revista do Advogado, AASP, ano XXVI, n° 85, maio/2006, pp. 71/72.

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Apesar dessa modificação do critério conceitual da sentença, a doutrina de forma

majoritária apontou para a manutenção do efeito do ato jurisdicional como critério

conceitual, ao menos no tocante às sentenças terminativas, que passariam dessa

forma a serem conceituadas tomando-se por base dois critérios distintos: (i)

conteúdo: uma das matérias dos incisos do art. 267, CPC; e (ii) efeito: a extinção

do procedimento em primeiro grau de jurisdição. A redação do art. 267, caput,

CPC, - “Extingue-se o processo, sem resolução de mérito”, permite ao intérprete

entender que, além do conteúdo de um de seus incisos, a decisão somente poderá

ser considerada sentença se extinguir o processo. Como o art. 162, § 1º do CPC

prevê que a sentença é o ato do juiz que implica um das situações previstas pelo

art. 267 do CPC, será possível se defender que tais situações somente ocorrerão

se respeitado o caput do dispositivo, que exige a extinção do processo7.

Com relação à sentença terminativa, portanto, nenhuma alteração ocorreu em

virtude da modificação do conceito legal de sentença estabelecido pelo artigo 162,

§ 1°, CPC, de forma que também não surgirão quaisquer problemas recursais.

Uma decisão que tenha como conteúdo uma das matérias dos incisos do art. 267 -

como a exclusão de um litisconsorte da demanda por ilegitimidade de parte, ou

ainda a extinção prematura de uma reconvenção por vício processual – mas que

não coloque fim ao procedimento de primeiro grau, será considerada uma decisão

interlocutória e, como tal, será recorrível por meio do recurso de agravo (art. 522,

CPC). Essa regra de recorribilidade, portanto, segue sendo exatamente a mesma

que já existia antes da Lei 11.232/05.

A hibridez de critérios na conceituação da sentença terminativa – conteúdo e efeito

– não se repete na sentença definitiva, considerando-se que o art. 269, caput,

CPC, não faz qualquer menção à necessidade de extinção do processo para que o 7 José Roberto dos Santos Bedaque, “Algumas considerações sobre o cumprimento da sentença condenatória”, op. cit., p. 71; Alexandre Freitas Câmara, A nova execução de sentença, op. cit., p. 20; Luis Guilherme Aidar Bondioli, O novo CPC – a terceira etapa da reforma, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 46.

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ato decisório do juiz seja considerado uma sentença. Com relação à sentença de

mérito pareceu ter o legislador se desprendido de maneira absoluta do efeito como

critério, passando a adotar exclusivamente o conteúdo do pronunciamento judicial.

Dessa forma, a questão de colocar ou não fim ao procedimento em primeiro grau

passa a ser irrelevante na conceituação da sentença de mérito, bastando para que

um pronunciamento seja considerado uma sentença definitiva que tenha como

conteúdo uma das matérias dos incisos do art. 269, CPC.

Ainda que a opção legislativa tenha sido clara, mesmo doutrinadores que

reconhecem a alteração do critério classificatório efetuada pelo legislador,

aparentemente por não concordarem com a mudança (já antevendo os problemas

recursais), concluem, por motivos diferentes - mas semelhantes -, que apesar da

modificação legal, fica tudo como estava antes quanto às decisões de mérito que

não ponham fim ao procedimento de primeiro grau8.

Humberto Theodoro Jr. resiste à modificação alegando que o ato judicial,

independente de seu conteúdo, somente poderá ser considerado sentença quando

colocar fim ao processo ou quando resolver por inteiro o objeto da demanda na

fase cognitiva. Para o processualista mineiro, sempre que o mérito for julgado

parcialmente, não se estará diante de uma sentença, considerando-se que nesse

caso haveria tão somente a solução duma questão incidente, o que é o suficiente

para se conceituar tal pronunciamento como decisão interlocutória9.

8 É interessante a lição de Cássio Scarpinella Bueno, A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 13, que antes de criticar o conceito e propor um novo, afirmar que o conceito que adotou o conteúdo do pronunciamento como critério “passou a ser lei”. 9 As novas reformas do Código de Processo Civil, op. cit., pp. 05-06. Praticamente no mesmo sentido as lições de Alexandre Freitas Câmara, A nova execução de sentença, op. cit., p. 21: “Deve-se, a meu juízo, continuar a considerar que a sentença definitiva é o ato de resolução final do mérito da causa. Resoluções parciais ou provisórias de mérito devem ser consideradas decisões interlocutórias”. Também parece ser esse o entendimento de Clarisse Frechiani Lara Leite, “O conceito de sentença”, in A nova execução civil – Lei 11.232/05, Susana Henriques Costa (coord.), São Paulo, Quartier Latin, 2006, pp. 86-90.

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Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery defendem a conceituação de sentença

com a adoção dos critérios do efeito e conteúdo do ato, afirmando que o art. 162, §

1°, CPC, deve ser interpretado de forma sistêmica com os §§ 2° e 3° desse mesmo

dispositivo legal. Para os doutrinadores, nesses casos o legislador conceitua a

decisão interlocutória e despacho adotando como critério o efeito do ato, devendo

ocorrer o mesmo com a sentença10.

Há também corrente doutrinária que defende o entendimento de que a decisão

somente poderá ser considerada como sentença se colocar fim a uma das fases

procedimentais dentro da nova realidade do sincretismo processual. Dessa forma,

somente o ato decisório que encerra a fase de conhecimento ou a conseqüente

fase de satisfação do direito poderá ser considerado sentença, sendo que, ainda

que um pronunciamento tenha como conteúdo uma das matérias do art. 269, mas

não ponha fim ao processo, deverá ser considerada uma decisão interlocutória11.

Como se pode perceber das lições dos doutrinadores que se colocaram contra o

novo conceito legal de sentença de mérito, a angustia maior reside no aspecto

recursal, em especial na possibilidade de existência de inúmeras sentenças no

mesmo processo, o que geraria em conseqüência inúmeras apelações,

acarretando a eternização do procedimento e depondo claramente contra a

celeridade processual, maior objetivo perseguido pelo legislador nas recentes

alterações do Código de Processo Civil. Apesar de ser compreensível a

preocupação com os problemas recursais, a simples negação da modificação legal

não pode ser admitida, sob pena de evidente insegurança jurídica. A simples não

10 Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, 9ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 372; Eduardo Arruda Alvim, “O perfil da sentença e suas repercussões na Lei 11.232/05”, in A nova reforma processual, Gustavo Santana Nogueira (coord.), Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 51. 11 Cássio Scarpinella Bueno, A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil, op. cit., pp. 15-16; Fredie Didier Jr., A terceira etapa da reforma processual civil, op. cit., pp. 69-71; Leonardo Greco, “Primeiros comentários sobre a reforma da execução oriunda da Lei n° 11.232/05”, in . Revista do Advogado, AASP, ano XXVI, n° 85, maio/2006, p. 99.

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concordância com os termos da lei não pode ser o suficiente para uma

interpretação manifestamente contra legem, simplesmente porque o operador

acredita que a determinação legal não se coaduna com aquilo que tal operador

espera do ordenamento.

É evidente que não se pretende defender – até mesmo por ser indefensável – que

o operador e o estudioso do processo, sejam obrigados a interpretar literalmente os

dispositivos legais. Existem outras formas de interpretação que naturalmente

devem ser consideradas, mas o desprezo total não só pela literalidade da norma,

como também pelo desejo do legislador – certo ou errado – denota um

inconformismo que deverá ser expresso somente como forma de sugestões de

lege ferenda, sob pena de gerar-se uma grave crise de insegurança no sistema,

com cada estudioso ou operador defendendo aquilo que entende como correto, e

não aquilo que está previsto na lei e que foi desejado pelo legislador. Cada qual

terá um Código de Processo Civil próprio, a seu gosto, em nítido desprestígio da

tão necessária segurança jurídica.

É evidente que a mudança de conceito da sentença de mérito foi realizada tendo

como preocupação uma adequação com o sincretismo processual entre a fase

cognitiva e a fase satisfativa do direito, conforme, inclusive, consta da Exposição

de Motivos da Lei 11.232/05. Quanto a isso, parece não haver maiores dúvidas.

Ocorre, entretanto, que o novo conceito gera conseqüências quem sabe não

pretendidas pelo legislador, que devem ser enfrentadas pelo estudioso e operador

do processo, e não simplesmente ignorada, como se nada tivesse ocorrido. A nova

realidade é clara: a sentença de mérito é conceituada pelo conteúdo, de forma que

não mais interessa o efeito que o ato gera no procedimento para determiná-lo

como sentença. Dessa premissa, é incontestável a hipótese de sentenças de

mérito que não ponham fim ao processo, ou como prefere parcela da doutrina, que

não ponham fim à fase cognitiva da ação sincrética.

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3. Sistema recursal e o novo conceito de sentença

Conforme já exposto anteriormente, a maioria dos doutrinadores que defende o

entendimento de que a modificação do conceito de sentença de mérito não permite

a conclusão de que sejam sentenças pronunciamentos decisórios que tenham

como conteúdo uma das matérias do art. 269, CPC, mas que não julguem de forma

exauriente todo o mérito da demanda, ou ainda, que não coloquem fim à fase

cognitiva da “ação sincrética”, afirma que entendimento em sentido contrário seria

extremamente gravoso ao andamento do processo.

O raciocínio desenvolvido é bastante simples: considerando-se sentença um ato

que julgue parcela do mérito, dessa decisão caberia o recurso de apelação, nos

termos do art. 513, CPC. A eventual interposição de apelação nesse caso

carregaria os autos principais ao tribunal competente, não permitindo que a parcela

do mérito não decidida possa ter seguimento. Dessa forma, somente após o

julgamento da apelação, com conseqüente remessa dos autos ao primeiro grau de

jurisdição, poderia o processo continuar com relação à parcela do mérito ainda não

decidida. Esse cenário apavora o operador do direito, levando-o inclusive a rejeitar

o conceito legal, para entender tal pronunciamento como decisão interlocutória e

dessa forma recorrível pelo agravo de instrumento12.

Aponte-se outra corrente doutrinária que, apesar de reconhecer que a sentença de

mérito não precisa mais colocar fim ao processo ou à fase procedimental

determinada, defende que no caso de julgamento parcial do mérito seja cabível o

recurso de agravo de instrumento contra tal sentença. Afirma-se que somente será

admissível a apelação na hipótese de esgotamento da atividade cognitiva, seja

12 Apontando os sérios prejuízos da admissão de apelação nesse caso, as lições de Alexandre Freitas Câmara, A nova execução de sentença, op. cit., pp. 21-22; Fredie Didier Jr., A terceira etapa da reforma processual civil, op. cit., pp. 70-71; Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina, Breves comentários à nova sistemática processual civil 2, São Paulo, RT, 2006, p. 37.

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porque todo o mérito já foi decidido, seja porque tal julgamento se mostrou

impossível no caso concreto. O entendimento tem como proposta principal a

flexibilização dos arts. 513 e 522, CPC, abrindo-se nesse caso uma exceção a

regra de que de sentença cabe apelação e de que de decisão interlocutória cabe

agravo13.

Pelo raciocínio dessa parcela da doutrina, o problema recursal estaria totalmente

resolvido mediante a solução proposta, porque do eventual pronunciamento parcial

de mérito, caberia o agravo de instrumento, o que possibilitaria a manutenção dos

autos principais em primeiro grau de jurisdição, com a conseqüente continuidade

do processo com relação à parcela do mérito ainda não decidida. Ocorre,

entretanto, que esse entendimento certamente suscitará algumas interessantes

questões procedimentais que até o presente momento foram absolutamente

ignoradas pela melhor doutrina.

Primeiramente deve se analisar a proposta de cabimento do agravo de instrumento

à luz da Lei 11.187/05. Sendo o agravo retido a espécie-regra do agravo contra

decisão interlocutória de primeiro grau desde 2001, atualmente não resta qualquer

dúvida dessa realidade em virtude da clara e incontestável redação do art. 522,

dada pela Lei 11.187/05, que afastou qualquer dúvida a respeito do caráter

excepcional do cabimento do agravo de instrumento, reservado a tão somente três

hipóteses legalmente previstas. A questão que deve ser enfrentada é:

considerando-se cabível o recurso de agravo, porque a decisão que julga

parcialmente o mérito será necessariamente recorrível por agravo de instrumento?

Porque não se aplicar a regra de cabimento e defender o agravo retido nesse

caso?

13Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina, Breves comentários à nova sistemática processual civil 2, p. 37. Já tive oportunidade de afirmar que, apesar de entender o pronunciamento parcial de mérito como sentença, acreditava que na prática o recurso cabível viria a ser o agravo de instrumento: Daniel Amorim Assumpção Neves, Reforma do CPC, São Paulo, RT, 2006, pp. 84-85.

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É interessante se notar que, das três hipóteses de cabimento do agravo de

instrumento, duas são objetivamente aferíveis, estando logicamente fora do âmbito

da presente análise; decisão que não conhece a apelação ou que trata dos efeitos

do recebimento de tal recurso logicamente não são pronunciamento parciais de

mérito. Resta a hipótese da aptidão da decisão causar grave dano de difícil

reparação à parte, o que necessariamente demandará a análise casuística para se

determinar a adequação dessa hipótese ao caso concreto. Poder-se-ia concluir

que, nesse caso, algumas hipóteses de pronunciamento parcial do mérito poderiam

ser consideradas como potencialmente danosas e por isso tal decisão seria

recorrível por agravo de instrumento. Por outro lado, concluir-se-ia que outras

situações não gerariam tais condições, sendo o pronunciamento recorrível por

agravo retido.

Acredito que tal discussão não tenha cabimento, partindo-se da premissa - com a

qual não concordo - que o recurso cabível de pronunciamento parcial de mérito é o

agravo, somente seria cabível o agravo de instrumento, sem qualquer necessidade

de se verificar, no caso concreto, se a decisão é apta ou não a causar uma lesão

grave de difícil reparação. Na realidade essa lesão grave seria presumida,

considerando-se que nesse caso uma parcela do mérito teria sido resolvida e,

obrigando-se a parte parcialmente derrotada a ingressar com o agravo retido, seria

impossível evitar que tal decisão passasse a gerar imediatamente seus efeitos.

A adoção pura e simples do cabimento do agravo de instrumento, entretanto,

certamente suscitará questões procedimentais recursais que precisarão de

respostas, já que tais questões refletirão significativamente no plano prático. O que

se pretende demonstrar é a absoluta falta de técnica de se considerar dois

recursos diferentes para decisões de mesmo conteúdo, e pela previsão legal de

mesma natureza.

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Havendo cumulação dos pedidos A e B, considerando o juiz que o pedido A está

prescrito, o decide por decisão parcial de mérito – acredito ser uma sentença

parcial de mérito, continuando o processo com relação ao pedido B. Dessa

decisão, segundo a corrente doutrinária majoritária, caberá agravo de instrumento,

seja porque parcela dela considera tal pronunciamento uma decisão interlocutória,

seja porque considera sentença que excepciona a regra geral de cabimento dos

recursos de apelação e agravo (513 e 522 CPC). Já se o pedido A tivesse sido

feito isoladamente não haveria dúvida doutrinária de que a decisão que decretasse

a prescrição seria uma sentença recorrível por apelação. Ora, mas não é a mesma

decisão? O simples fato de na primeira situação a fase de conhecimento continuar

e na segunda não, torna tais decisões diferentes, quando a opção pelo critério de

conceituação feita pelo legislador foi o conteúdo do pronunciamento? É

cientificamente correta a admissão de recursos de diferentes naturezas nessas

condições?

O que se pretende demonstrar é que a simplista solução de defender o cabimento

do agravo de instrumento diante da decisão parcial de mérito, com os olhos

voltados exclusivamente para a impossibilidade de cabimento de apelação nos

moldes atuais do procedimento desse recurso, desconsidera outros problemas

procedimentais.

Em primeiro lugar, o agravo de instrumento não tem revisor, enquanto na apelação,

a regra é a existência de um revisor. Segundo o art. 551, § 3°, CPC, somente não

haverá juiz revisor em apelação interposta em causas de procedimento sumário,

despejo e nos casos de indeferimento liminar da petição inicial. Fora dessas

hipóteses, o recorrente tem o direito processual de que seu recurso seja, após

análise do relator, enviado para análise do revisor. O cabimento do agravo de

instrumento retiraria tal direito da parte.

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Em segundo lugar, não se admite a sustentação oral em sede de agravo de

instrumento, ao passo que na apelação tal espécie de participação do patrono da

parte é amplamente permitida (art. 554, CPC)14. Tendo sido julgado parcela do

mérito, e tendo sido a parte forçada a ingressar com o agravo de instrumento para

não criar inconveniente recursal ao andamento da demanda caso ingressasse com

apelação, não terá direito a sustentação oral? Caso aquela parcela do mérito

tivesse sido resolvida por decisão recorrida por apelação, teria tal direito?

Em terceiro lugar, segundo o art. 530, CPC, o cabimento dos embargos

infringentes está limitado ao julgamento por maioria de votos na apelação que

reforma a sentença de mérito e que julga procedente a ação rescisória. Pois bem,

considerando-se que a decisão parcial de mérito – para alguns, sentença, para

outros, decisão interlocutória – seja reformada no julgamento do agravo de

instrumento por maioria de votos, caberia embargos infringentes? Seria justo com a

parte impedir o cabimento dos embargos infringentes, apesar do mérito ter sido

decidido por maioria de votos no julgamento do recurso dirigido ao segundo grau

de jurisdição?

Esse problema, inclusive, não é novo. Excepcionando-se o art. 530, CPC, parcela

da doutrina defendia o cabimento dos embargos infringentes em agravo de

instrumento quando no julgamento de tal recurso se verificasse a resolução do

mérito por maioria de votos com a conseqüente extinção do processo. Era a

hipótese clássica de decisão interlocutória que afastava a alegação de prescrição

feita pelo réu, que ingressava com agravo de instrumento e conseguia por maioria

de votos a reforma da decisão, o que gerava uma decisão de mérito e extintiva do

processo em segundo grau de jurisdição15. Estará a jurisprudência preparada para

14 José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 646, é peremptório pelo não cabimento de sustentação oral em agravo de instrumento, em razão da clareza da lei. 15 Manoel Caetano Ferreira Filho, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 7, São Paulo, RT, 2001, p. 263; Luiz Guilherme Marinoni. Em sentido contrário, pelo não cabimento dos embargos

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permitir o agravo de instrumento em qualquer julgamento de agravo de instrumento

que julgue o mérito parcial da demanda por maioria de votos, reformando a decisão

de mérito recorrida?

Em quarto e último lugar, encontra-se a questão dos efeitos do recebimento dos

recursos. Segundo o art. 520, caput, CPC, a apelação é em regra recebida no

duplo efeito, o que significa dizer nos efeitos devolutivo e suspensivo, enquanto o

agravo de instrumento não é recebido no efeito suspensivo, o que somente será

obtido no caso concreto mediante expresso pedido do recorrente e demonstração

do preenchimento dos requisitos exigidos em lei (art. 527, III c/c art. 558, CPC).

Tem algum sentido lógico impedir a geração de efeitos de uma decisão e liberar a

de outra com exatamente o mesmo conteúdo, e ainda pior, com a mesma

natureza? Se a idéia do efeito suspensivo é permitir uma revisão do mérito pelo

tribunal, antes que a decisão passe a gerar efeitos, porque tal condição também

não deve se aplicar quando o mérito é julgado apenas parcialmente?

O que se pretendeu trazer a tona com esses breves comentários são as

dificuldades práticas que são geradas quando se quebra o sistema recursal, como

parece pretender a maioria de nossa doutrina. Afirmar-se pura e simplesmente que

uma decisão parcial de mérito não é uma sentença, mas sim uma decisão

interlocutória, tão somente para que dessa decisão caiba o recurso de agravo de

instrumento, é uma solução simplista do problema, que despreza os pontos

práticos levantados. Tratar diferente o que é substancialmente igual, com a

preocupação imediatista de afastar o cabimento da apelação dessa decisão

judicial, trará ao processo mais problemas do que soluções.

infringentes, Bernardo Pimentel de Souza, Introdução aos recursos cíveis e à ação rescisória, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2004, pp. 525/527. Registre-se que, com relação ao agravo retido, existe entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça: “Súmula 255, STJ: ‘Cabem embargos infringentes contra acórdão, proferido por maioria, em agravo retido, quando se tratar de matéria de mérito’”.

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Interessante nesse tocante a opinião de José Roberto dos Santos Bedaque:

“Se tais atos passam a configurar sentença, o recurso cabível é apelação, cuja

interposição e processamento implicam a remessa dos autos ao tribunal, com a

conseqüente paralisação do processo. Temos, pois, de começar a pensar na

apelação por instrumento, a fim de que, não extinto o processo mediante sentença

de mérito, possa a relação processual desenvolver-se em 1° grau e o recurso

possibilitar a devolução unicamente da questão resolvida. Fica a sugestão para

mais uma reforma do processo civil brasileiro. Enquanto isso não ocorre, cabe à

doutrina e à jurisprudência a solução dessa questão técnica. A única alternativa

possível é admitir-se a extração de cópias das peças essenciais ao exame da

sentença pelo tribunal, possibilitando o prosseguimento do processo em primeiro

grau, para resolução do restante do mérito”16.

Percebe-se da lição do processualista a preocupação já demonstrada pela parcela

da doutrina que defende nesse caso o cabimento do agravo de instrumento. José

Roberto dos Santos Bedaque, entretanto, prefere sugerir uma solução para os

problemas práticos que adviriam da interposição da apelação tradicional, sem

afastar o cabimento desse recurso, mas apenas amoldando-o procedimentalmente

à necessidade dos autos principais continuarem em primeiro grau de jurisdição.

Defende, portanto, o cabimento de uma espécie de “apelação de instrumento”,

apesar de reconhecer que a adoção dessa nova espécie de recurso necessitaria

de mais uma reforma processual...

Apesar de nobre a preocupação do processualista em resolver os problemas

práticos sem desvirtuar a natureza da decisão ou o recurso cabível contra ela, a

solução sugerida, até como, inclusive, mencionado pelo próprio Bedaque, encontra

obstáculo instransponível para sua aplicação no princípio da taxatividade. Somente

16 Cfr. “Algumas considerações sobre o cumprimento da sentença condenatória”, op. cit., p. 72.

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pode ser considerado recurso o instrumento de impugnação que estiver

expressamente previsto em lei federal A conclusão é gerada de uma interpretação

do art. 22, I, da CF, que atribui à União a competência exclusiva para legislar sobre

processo. Entendendo-se que a criação de um recurso é nitidamente legislar sobre

processo e sendo tal tarefa privativa da União, somente a lei federal poderá prever

um recurso, que por essa razão estão previstos no ordenamento processual de

forma exaustiva, em rol legal numerus clausus.

Segundo as corretas lições de Arruda Alvim, “no princípio da taxatividade estão

implicados determinados valores, quais sejam os da suficiência do sistema e o da

inconveniência em se admitir recursos não previstos. Significa-se pelo valor da

suficiência que os recursos satisfazem as hipóteses em que se justificou – aos

olhos do legislador – a previsão de recursos, donde, então, não se poder pretender

existir um recurso não previsto em lei.”17

O princípio da taxatividade impede que as partes, ainda que de comum acordo,

criem recursos não previstos pelo ordenamento jurídico processual. Tampouco

poderão leis estaduais e municipais fazê-lo, também excluídos os regimentos

internos de Tribunal. No que mais interessa ao presente artigo, também a

imaginação do estudioso ou do aplicador do direito não poderá criar novas

modalidades de recurso, de forma que a eventual adoção da “apelação de

instrumento”, passa necessariamente por uma reforma do sistema recursal, só

podendo ser admitida de lege ferenda.

Diante da dificuldade prática de se adotar à luz do ordenamento processual ora

existente a “apelação de instrumento”, existe outra solução, menos traumática,

para que continue sendo cabível a apelação: a formação de autos suplementares

que ficariam em primeiro grau de jurisdição para que se desse andamento à 17 Cf. “Anotações sobre a teoria geral dos recursos”, in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei 9.756/98, São Paulo, RT, 1999, p. 56.

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parcela da pretensão ainda não decidida, enquanto a parcela decidida seria

analisada novamente pelo Tribunal, em sede de apelação18. A instrução desses

autos suplementares ficaria a cargo da parte que tem interesse na continuidade do

processo, em regra o autor, dispensando-se a autenticação das peças, podendo se

aplicar o art. 365, IV, CPC.

Como se nota, tanto a sugestão de autos suplementares, como a de instruir-se o

recurso de apelação para que os autos principais permaneçam no primeiro grau de

jurisdição parte da premissa de que a decisão parcial de mérito é uma sentença.

Diante dessa constatação, apesar do cabimento do agravo de instrumento resolver

o problema referente a continuação imediata da demanda na parcela da pretensão

não decidida, quebra o sistema recursal, o que deve ao máximo ser evitado, até

porque de toda quebra de sistema são geradas conseqüências, conforme já

constatado no presente artigo.

É verdade que o próprio legislador por vezes quebra o sistema recursal projetado

pelos arts. 513 e 522 do CPC, como ocorre no art. 475-H e 475-M, § 3°, nos quais

existe a expressa previsão de cabimento de agravo de instrumento contra decisão

que resolve a liquidação de sentença e que julga a impugnação sem colocar fim ao

processo. Ora, dependendo do conteúdo dessas decisões, é inegável que se

estará diante de uma sentença, não obstante a opção do legislador em prever

expressamente o cabimento do agravo de instrumento19.

18 Essa idéia já havia sido levantada por Clarisse Frechiani Lara Leite, “O conceito de sentença”, op. cit., p. 87, embora a autora tenha se mostrado cética quanto à sua aplicação, bem como à idéia de “apelação por instrumento”: “É inegável, contudo, que tais adaptações não foram cogitadas pela lei, o que significa que também não serão facilmente implementadas pelo judiciário após o fim da vacatio”. 19 No sentido do texto, Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina, Breves comentários à nova sistemática processual civil 2, op. cit., pp. 133-134; Rodrigo Mazzei, Reforma do CPC, op. cit., pp. 190-191; Fredie Didier Jr., A terceira etapa da reforma processual civil, op. cit., p. 85; Ernane Fidélis do Santos, As reformas de 2005 do Código de Processo Civil, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 24.

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É interessante notar que na doutrina que já se manifestou a respeito do tema não

são poucos os processualistas que aparentemente concluem às avessas,

afirmando que diante da expressa previsão de cabimento do recurso de agravo de

instrumento contra a decisão que julga a liquidação, tal pronunciamento teria

natureza de decisão interlocutória20. Tal entendimento, entretanto, mostra-se

equivocado, porque fundado num erro de premissa: o cabimento de determinado

recurso pela lei não desvirtua a natureza do pronunciamento recorrível, que deve

ser determinado à luz de seu conceito legal, previsto no art. 162, CPC. Ou seria

defensável que o pronunciamento que decide a impugnação à concessão dos

benefícios da assistência judiciária é uma sentença, somente porque a Lei

1060/50, em seu artigo 17, prevê o cabimento do recurso de apelação contra tal

decisão?

Há outra parcela da doutrina que defende o entendimento de que tais decisões,

tanto a que julga a liquidação, quanto a que decide a impugnação sem colocar fim

ao processo, são decisões interlocutórias em razão do próprio conceito de

sentença, que teria permanecido inalterado, mesmo com a modificação de redação

do art. 162, § 1°, CPC. Para essa corrente doutrinária, decisões que encerram

meras fases procedimentais, tais com a fase de liquidação e a fase de

impugnação, não podem ser consideradas sentenças, justamente por não terem

como efeito a extinção do processo21. Esse entendimento parte da premissa

criticada durante todo o presente artigo, de que o efeito da decisão continue a ser

levado em conta para a conceituação da sentença de mérito, sendo justamente

essa razão para que entenda não ser o mais correto.

20 Humberto Theodoro Jr., As novas reformas do Código de Processo Civil, op. cit., p. 189; Athos Gusmão Carneiro, Cumprimento da sentença civil, Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 40. 21 Cássio Scarpinella Bueno, A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil, vol.1, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 127 e Alexandre Freitas Câmara, A nova execução de sentença, op. cit., p. 86.

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A opção do legislador, voltada para as dificuldades procedimentais que seriam

geradas pelo cabimento da apelação nesses casos, em nítido prejuízo à celeridade

processual, não deve ser saudada, porque, apesar de afastar discussões a

respeito do recurso cabível, fará com que em segundo grau os mesmos problemas

já apresentados voltem a se repetir: haverá revisor? O agravante terá direito à

sustentação oral? Será cabível o recurso de embargos infringentes? O problema

não se resolve simplesmente com a quebra do sistema recursal, porque sempre

que isso se verifica no caso concreto ocorrerão dificuldades procedimentais no

recurso interposto em comparação com o recurso em tese cabível.

4. Fungibilidade

O princípio da fungibilidade recursal vinha consagrado no art. 810 do Código de

Processo Civil de 1939: “Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não

será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser

enviados à Câmara, ou Turma, a que competir o julgamento”. O legislador no atual

diploma processual abandonou a expressa previsão legal desse princípio, na vã

esperança de que a nova codificação recursal fosse suficiente a dissipar toda e

qualquer dúvida a respeito do cabimento do recurso. Apesar da melhora verificada

nesse tocante, é inegável que em determinadas hipóteses continuou a existir

dúvida a respeito do recurso cabível, mantendo-se a aplicação do princípio da

fungibilidade recursal, o que certamente se intensificará com o advento do novo

conceito de sentença.

Conforme já afirmado no presente artigo, não há convergência na doutrina a

respeito da classificação dos atos do juiz em sentença ou decisão interlocutória,

como também a questão da recorribilidade à luz das regras gerais estabelecidas

pelos arts. 513 e 522 do CPC não é tão absoluta como outrora foi. Chega-se até

mesmo a se falar em “apelação de instrumento”, para se indicar as dúvidas

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geradas pelo cabimento do agravo de instrumento ou da apelação contra

determinadas decisões de mérito que não ponham fim ao processo. Os requisitos

principais da fungibilidade estão mais do que presentes, porque a dúvida fundada

foi gerada pela própria omissão do legislador, não se podendo falar em erro

grosseiro da parte que agravar ou apelar nessa situação. Se a reforma foi omissa,

incompleta, e para alguns ambígua, ao menos num aspecto parece que a doutrina

toda se uniu: a necessidade da aplicação do princípio da fungibilidade22.

Como o próprio nome sugere, fungibilidade significa troca, substituição, e no

âmbito recursal significa receber um recurso pelo outro, mais precisamente receber

o recurso que não se entende como cabível para o caso concreto por aquele que

teria cabimento. Trata-se notoriamente de flexibilização do requisito de

admissibilidade do cabimento, considerando-se que, em regra, recurso que não é

cabível não pode ser conhecido. Na aplicação do princípio da fungibilidade, ainda

que não cabível o recurso no entendimento do julgador, ao invés de deixar de

conhecê-lo, o receberá como o recurso que entender cabível. Diante da confusão

gerada pelo legislador, o agravo de instrumento deverá ser recebido como

apelação e vice-versa quando interposto contra decisão parcial de mérito, que não

extinga processo ou fase procedimental.

5. Conclusão

O novo conceito de sentença de mérito, estabelecido pelos arts. 162, § 1°, CPC,

alterou o critério de conceituação desse pronunciamento processual. Atualmente,

só importa o conteúdo do ato, sendo irrelevante seu efeito. Qualquer interpretação

que pretenda simplesmente ignorar a modificação legal, seja porque entende que

22 Daniel Amorim Assumpção Neves, op. cit., p. 85; Cássio Scarpinella Bueno, A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil, op. cit., pp. 20-21; Eduardo Arruda Alvim, “O perfil da sentença e suas repercussões na Lei 11.232/05”, op. cit., p. 64; Flávio Luiz Yarshell e Marcelo José Magalhães Bonício, Execução civil – novos perfis, São Paulo, RCS, 2006, p. 19.

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não é ela a melhor possível, seja em razão de problemas recursais advindos do

cabimento da apelação, não deve ser admitida, devendo o operador resolver os

problemas práticos gerados pelo novo conceito, sem, entretanto, ignora-lo.

Sendo sentença, quer ou não coloque o fim a fase procedimental, o recurso cabível

deve ser a sentença, única forma de se manter alguma lógica no sistema recursal.

É lamentável do ponto de vista técnico – apesar do legislador imaginar que com

isso evite problemas práticos – a expressa previsão de cabimento de agravo de

instrumento contra sentenças de mérito que decidam a liquidação de sentença

(475-H, CPC) ou a impugnação (475-M, 3°, CPC). Se tais decisões são sentenças,

deverá caber a apelação: sendo necessária a manutenção de autos em primeiro

grau para continuidade de atividades processuais, o recurso de apelação ou

deverá ser instruído com peças ou, melhor, deverá a parte interessada no

prosseguimento da demanda em primeiro grau criar autos suplementares em

primeiro grau.

Registre-se por fim que esse entendimento é o que parece ser o mais adequado do

ponto de vista técnico, mas é preciso se reconhecer, como já fiz anteriormente23,

que tudo leva a crer que na praxe forense se decida pelo cabimento do agravo de

instrumento. Para isso auxiliará a opinião majoritária de nossa doutrina e também a

circunstância de já ser assim anteriormente à reforma, com as chamadas “decisões

interlocutórias de mérito”, de forma que o operador do direito está acostumado para

essas situações com o agravo de instrumento. Caso essa previsão se concretize,

acredito que haverá alguns conflitos nos pontos já levantados, nos quais as regras

procedimentais do agravo de instrumento são diferentes da apelação, cabendo aos

nossos Tribunais fixar o entendimento de aplicação ou não -, por analogia, de

algumas regras da apelação – revisor, sustentação oral, embargos infringentes –

ao agravo de instrumento.

23 Reforma do CPC, op. cit., pp. 84-85.