O Nome e a Coisa o Populismo Na Política Brasileira
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O populismo e sua histria
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COPYRIGHT O 2000 by Joqe Ferreira
Evclyrt Grumach
PROJETO GRFICOEvelyn Grumach e ]
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O nome e a coisa: o populismo
na poltica brasileira
Jorge Ferreira
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"No h povo amorfo. No h massa bruta e indiferente. A
massa formada de homens e a natureza de todos os homens
i a mesma: dela i a paixo, a gratido, a clera, o instinto
luta e o instinto de defesa."
Rachel de Queirs
Herdeiro do clientelismo da Primeira Repblica, o popi-
lismo, aps 1930, teria dado continuidade a uma relao desi
gual entre Estado e sociedade e, em particular, entre Estado c
classe trabalhadora. Sobretudo com a ditadura de Getlio Vargas,
os trabalhadores, com a violncia policial, teriam |ii i ili
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Cooptados, manipulados, iludidos e amedrontados com as
perseguies da Polcia Especial, os assalariados, aps 1945, no
teriam conseguido livrar-se das amarras ideolgicas tecidas na
poca anterior: cerceados em suas lutas pela manuteno da
legislao corporativista e a tutela estatal dos sindicatos, trados
com a atuao dos pelegos sindicais e confundidos politicamen
te com as lideranas populistas, as mais antigas como Vargas, as
mais recicladas como Goulart. Os comunistas, igualmente ilu
didos com o nacionalismo, reforaram os laos, j apertados,
da teia populista.
A histria dos trabalhadores, como contada, no nova e.
independentemente de suas diversas verses, retoma uma longa
tradio intelectual. Liberais e autoritrios, de direita ou esquer
da, diagnosticaram que os males do pas provm de uma rela
o desigual, destituda de reciprocidade e interlocuo: a uma
sociedade civil incapaz de auto-organizao, gelatinosa em
algumas leituras, e a uma classe trabalhadora dbil, impe-se
um Estado que, armado de eficientes mecanismos repressivos e
persuasivos, seria capaz de manipular, cooptar e corromper. A
interpretao ainda foi reforada por um certo tipo de marxis
mo que defendia um modelo de classe trabalhadora, uma deter-
minada conscincia que lhe corresponderia e um caminho, ni
co e portanto verdadeiro^a ser seguido. Nesse caso, se a classe
jio surgiu como se imaginava, se a conscincia no se desen-
volveu como se previa e se os caminhos trilhados foram outros,
a explicao poderia ser encontrada no poder repressivo de
Estado, nos mecanismos sutis de manipulao ideolgica e, ain
da, nas prticas demaggicas dos polticos populistas. A teoria
do desvio", assim, reforou a interpretao que polarizava Es
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categoria
tado e sociedade. Como lembra Jos Murilo de Carvalho, a
postura antiestatal, maniquesta em sua definio, inviabiliza
qualquer noo de cidadania e, na prtica, acaba por revelar
uma atirude paternalista em relao ao povo, ao contiido,
vtima impotente diante das maquinaes do poder do Estado
ou de grupos dominantes. Acaba por bestializar o povo".*
Culpabilizar o Estado e vitimizar a sociedade, eis algun da i
fundamentos da noo de populismo.
No so poucos, verdade, os trabalhos que rompenM^
com esta espcie de relao patolgica entre um Estado <
surge pleno de poderes e uma sociedade incapaz de reagirei
manifestar.2 No entanto, se o populismo, como explicativa da poltica brasileira entre 1930 e 1964, e
uma maneira de enfocar o movimento operrio e sindical, va
desde a dcada de 70, sendo posto em dvida em um ou outro
aspecto, em uma ou outra afirmao, o conjunto da teoria at*^
da continua a dar as cartas para explicar o panado recente dtt|
pah- JNas pginas que se seguem, procuro reconstituir a histnjj
do populismo. No entanto, importante frisar, no i
do a expresso como um fenmeno que tenha regido
es entre Estado e sociedade durante o perodo de 1930 a :
ou como uma caracterstica peculiar da poltica brasileira
quela temporalidade, pois sequer creio que o perodo t
'}ot Munlo de CarraJbo. Os bestwltzda. O fbodt Janem e a t
no foi. S&o Paulo, Companhia d Letra, 1989, pp. 10-11. *eja Angela (te Cattro Gome. Poiuca: hittna, ancia, catl
Ettvdot Hutnco^tf 17. Riodejaneiro, Editora da Fundalo ( 1996.
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populista, mas, sim, como uma categoria que, ao longo do
tempo, foi imaginada, e portanto construda, para explicar essa
mesma poltica.
O POPULISMO DE PRIMEIRA GERAO
Nos anos 50/60, a teoria da modernizao repercutiu nos mei
os acadmicos do pas com grande impacto, sobretudo para a
configurao da noo de populismo. Para Gino Germani,1 o mais conhecido desses tericos, a insero da Amrica Latina
no mundo moderno no seguiu os padres clssicos da demo
cracia liberal europia. A passagem de uma sociedade tradicio
nal para uma moderna ocorreu em um rpido processo de ur
banizao e industrializao, mobilizando, desta maneira, as
massas populares. Impacientes, elas exigiram participao
poltica e social, atropelando, com suas presses, os canais
institucionais clssicos. A resoluo dos problemas ocorreu com
golpes militares ou com revolues nacionais-populares, sen
do que as ltimas, sobretudo seus resultados, foram nomeadas
de populismo. Torcuato di Telia,4 por sua vez, foi alm. A exploso demogrfica e as aspiraes participativas das massas
populares foraram alteraes no sistema poldco. Em certo
ponto, de muita tenso, as massas, com suas expectativas, se
JGino Germani. Poltica e sociedade em uma tpoca de transio: da sociedade
tradicional sociedade de massas. Sio Paulo, Mestre Jou, 1973.
Torcuato di Telia. Para uma poltica latino-amencana. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.
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aliaram s camadas mdias, setores ressentidos por no se tor
narem classes dominantes. Assim, diante de um quadro em que
is classes fundamentais no deram respostas adequadas exigidas
pelo momento histrico as dominantes, por sua
inoperncia, a operria, por sua inexpressividade , surgiram
lderes oriundos das classes mdias prontos para manipularem
as massas.
Desse modo, no contexto da transio de uma economia
tradicional, de participao poltica restrita, para usnt
'economia de mercado, de participao ampliada, a teoria
Ja modernizao elegeu um ator coletivo central para 4
surgimento do populismo na Amrica Latina: os camponeses.^
Mesmo que eles no sejam nomeados com todas as lettMl|H
eixo fundamental dos argumentos de Germani e di Telia gin||
em torno da questo do mundo rural, definido como tradidof|
nal. O populismo surgiu em um momento de transio d o M
sociedade para a moderna, implicando o deslocamento de po- 1 pulaes do campo para a cidade o mundo agrriojnraj||
do o urbano-industrial. Como a mescla de valores tradicionaise 1
modernos, os lderes populistas se projetaram em sociedadera
que no consolidaram instituies e ideologias autnomas, m ata
necessariamente seriam substitudos por outras lideranas por*
tadoras de idias classistas quando o capitalismo alcanasqfl
maturidade na regio.
Os crticos de Germani e di Telia, de variadas maneiras, de- I
nunciaram a suposta vinculao entre camponeses que vieram
para as cidades e lderes populistas. Octavio Ianni, por exem
plo, denunciou a imagem, sugerida pelos tericos da moderni
zao, de docilidade das massas s manipulaes populi:
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demaggicas e carismticas.5 Por um aspecto, diz Ianni, h o surgimento de populaes recm-chegadas do mundo rura! que
no dispem ainda das condies psicossociais, ou horizonte
cultural, para um adequado comportamento urbano e demo
crtico. Por outro, a sociedade carece de instituies polticas
slidas, a exemplo de um sistema partidrio. Da o sucesso da
arregimentao das massas marginais, ou classes populares, pelo
populismo. Trata-se de um descompasso, retrocesso ou desvio
de curso no sentido que se queria ideal: o modelo europeu de
democracia representativa. No mundo urbano-industrial, con
tinua Ianni em sua crtica, onde imperam as relaes de merca
do, sobrevivem ou predominam as massas e o lder, cujos vncu
los so a demagogia e o carisma.
- Com o tempo, as inconsistncias da teoria da modernizao
foram percebidas e as crticas tornaram-se mais agudas. A dis
tino entre pases atrasados e desenvolvidos, indicando,
segundo Maria Helena Capelato, uma relao de exterioridade
entre eles, o mundo capitalista moderno como modelo a ser
seguido, a perspectiva etapista, progressista, que levaria con
solidao do regime democrtico nos pases atrasados con
cepo desmentida pelas ditaduras militares nos anos 60 .
entre outras questes, abalaram a credibilidade do enfoque.*
No entanto, mesmo dcadas depois, quando as crticas tor
naram as idias de Germani e di Telia desacreditadas, as ima
Octavio Ianni. O populismo na Amrica Latina. Rio de Janeiro, Gvilizaio
Brasileira, 1975, pp. 25-28.
Maria Helena Rolim Capelato. Estado Novo; novas histrias1*. In Marcos
Coar de Freitas. Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo, Contex
to, 1998, p. 186.
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gens de atraso, desvio e manipulao perdurariam. As
representaes imaginrias, sabemos, so capazes de resistir a
crticas, mesmo aquelas formais, eruditas e com base na investi
gao emprica. Assim, perdurou, ao longo do tempo, a idia de
que, com o processo de urbanizao, os indivduos recm-che
gados do mundo rural teriam contaminado os antigos opcjf)H
com suas idias tradicionais e individualistas. Sociedade atrasa
da, camponeses que vieram para as cidades, igualmente um atra
so, e, logo, uma poltica novamente atrasada, eis o ambiente etM
que teriam proliferado os lderes populistas.
teoria da m^dTrr>*7a?0 ^ icM para a P*nK;rfl8 frwtj mulaes sobre o populismo no BrasiL Segundo Angela de QM
tro Gomes,7 em meados da dcada de 50 um grupo de interna ruais, sob o patrocnio do Ministrio da Agricultura, passou M
reunir periodicamente com o objetivo de debater os probleo]jg|
polticos do pas. Como uma vanguarda esclarecida, o Grupo
de Itatiaia, como ficou conhecido,1 esforou-se para formul* projetos polticos e estabelecer uma nova viso de mundo. Um
dos problemas identificados foi o surgimento do populisnljgj
na poltica brasileira. Embora se constate ausncia de esforos
para conceituar o fenmeno nas condies do pas, explicava-
Angela de Castro Gomes. O populismo e as nas sociais no Brasil: noa*
sobre a trajetria de um conceito". Nesta coletnea.
'Segundo a autora, o grupo fundou, em 1953, o Instituto Brasileiro de Eco
nomia, Sociologia e Poltica (IBESP) e comeou a publicar os CatUmos d*
nosso tempo. Participaram da revista intelectuais como Alberto Guerreiro
Ramos, Cindido Mendes de Almeida, Hermes Lima, Igncio Rangel, Joio
Paulo de Almeida Magalhes e Hlio Jaguaribe. O ncleo bsico do IBESP,
mais adiante, organizaria o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
tdtm.
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se a expresso por variveis histrico-sociolgicas, influencian
do, mais tarde, as inmeras formulaes que se seguiram.
Para os intelectuais do Grupo, em primeiro lugar, o po
pulismo era uma poltica de massas.9 Trata-se de um fenmeno vinculado modernizao da sociedade, sobretudo no tocante
ao processo de proletarizao de trabalhadores que no adqui
riram conscincia de classe. Interpelados como massa, eles so
mente se libertariam dos lderes populistas quando alcanassem
a verdadeira conscincia de seus interesses. No difcil, por
tanto, perceber as influncias da teoria da modernizao. Mas,
em segundo lugar, o populismo igualmente estava associado a
uma classe dirigente que perdera a sua representatividade, que
carecia de exemplos e valores que orientassem toda a coletivi
dade. Em crise e sem condies de dirigir o Estado, as classes
dominantes necessitariam conquistar o apoio poltico das mas
sas emergentes. Por fim, diante da inconsistncia das classes
fundamentais da sociedade, o terceiro elemento completaria o
fenmeno: o lder populista, homem carregado de carisma, com
capacidade incomum para mobilizar e empolgar as massas.
Nessa linha de abordagem, em 1961, o socilogo Ajberto
_Guerreiro Ramos, integrante do Grupo de Itatiaia, publicou A
crise do poder no Brasil. O livro estabeleceria, de maneira mais
sistematizada, a imagem do populismo na poltica brasileira e
influenciaria estudos acadmicos que, naquela poca, ainda es-
tavam em curso.
Na anlise que segue, Angela de Castro Gome* explora o ensaio Que i o
atnunismof, publicado no primeiro semestre de 1954, sem autor identificado. Liem.
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Tambm em uma perspectiva histrico-sociolgica, Ramos
defende que o estabelecimento do populismo no Brasil ocorreu
sobrerudo a partir de 1945. Com o fim do Estado Novo, o pas
jnheceu, no plano poltico, um mnimo de probidade nas elei
es e, no plano econmico, uma industrializao mais consto*
tente. Assim, em uma conjuntura de expanso industriai, urba
nizao e de participao poltico-eleitoral, que se manifesta]
ram as primeiras geraes de assalariados das cidades. Para o
autor, o populismo, como uma ideologia pequeno-burgueslH
procurou mobilizar politicamente as massas obreiras nos pctt*
odos iniciais da industrializao.10 Contudo, os assalariadtiM^I apresentavam aquela mentalidade dassista que costuma e t fH
terizar as geraes de trabalhadores providos de longas tra jfl
es de lutas", uma vez que as classes sociais ainda no tinhaai
se configurado, despontando no cenrio poltico do pais 4
maneira rudimentar", como um agregado sincrtico. Em um
palavra, a classe trabalhadora se apresentava como
estado embrionrio". Assim, novamente associando os campg|
neses ao populismo, os lderes de massa, diz Ramos, encontra*
ram sustentao em componentes recm-egressos doscmgM
[que] ainda no dominam o idioma ideolgico". So trabalha
dores com escasso treino partidrio e tmida conscincia
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trabalhismo brasileiro, classificando, no sem alguma ironia, as
suas doenas infantis. A primeira o varguismo. Trata-se, em
suas palavras, de um resduo emocional baseado em impres
ses e crenas populares na bondade intrnseca de Vargas". A
segunda o janguismo, definido como uma forma de seguidismo
que se fundamenta no reconhecimento de amplas camadas
populares de que o Sr. Joo Goulart o continuador da obra do
Presidente Getlio Vargas. A terceira, o peleguismo, na verda
de um subproduto do varguismo e irmo siams do janguismo.
Para Ramos, o peleguismo impede a formao de um movi
mento obreiro na exata expresso da fora poltica que tm j
os trabalhadores brasileiros. Por fim, o expertismo, ou seja, a
prtica do partido em recorrer a um doutor, encomendando-
lhe uma teoria sob medida.11 No difcil perceber aue as doenas infantis do trabalhismo, formuladas por Guerreiro Ra
mos. sobretudo as trs primeiras, firmaram-se como imagens
fortemente introjetadas na imaginao poltica das geraes que
o sucederam. Ironias que foram tomadas a srio._____
^ Seja como for, os socilogos do Grupo de Itatiaia, sobretu
do Hlio Jaguaribe e Guerreiro Ramos em particular, influenci
ados pela teoria da modernizao, foram aqueles que formula
ram as primeiras reflexes sobre o populismo na poltica brasi
leira.
Assim, dando continuidade a uma linha interpretativa que
se constitua desde meados dos anos 50, um outro grupo de
ocilogos, agora nas universidades, desenvolveu reflexes so
bre o papel dos camponeses no processo de formao da classe
f "Idem, pp. 90-93.
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operria e do movimento sindical. Nomeada por Luiz Werneck
Vianna de a interpretao sociolgica, o primeiro desses tra
balhos veio ao conhecimento do pblico em 1964, com Juarez
Brando Lopes.u A partir do auxlio de algumas categorias
weberianas, Brando procurou compreender as motivaes de
operrios de uma empresa de porte mdio em um momento de
trnsito de uma economia tradicional para uma economia
de mercado. A concluso, segundo Werneck Vianna, foi a de
terminao estrutural entre a origem social e a conscincia de
classe. Desse modo, os trabalhadores originrios do campo 4*
das pequenas comunidades do interior, quando instalados a a
cidades, no se identificariam completamente como operCM
industriais, tendendo a se comportar de acordo com seus inte
resses pessoais. No conseguiriam, dessa maneira, explicitar a
conscincia de sua identidade coletiva devido falta de expojN
ncias cooperativas, prprias do mundo urbano e industrial. Os
outros operrios, qualificados e mais antigos nas cidades, por
sua vez, demonstrariam satisfao com suas profisses, mas, por
sua situao vantajosa no mercado de trabalho e pela falta de
tradio industrial, tornaram-se pouco sensveis para aes
coletivas atravs do sindicato.13Segundo Luiz Werneck Vianna, os estudos sobre o movi
mento operrio e sindical no Brasil se iniciaram com os traba
lhos de Juarez Brando Lopes e Lencio Martins Rodrigues
uJuarez Brando Lopes. Sociedade industrial no Brasil. So Paulo, Difel, 1964.
MLuiz Werneck Vianna. Estudo* sobre sindicalismo e movimento operrio:
resenha de algumas tendncias'. Rio de Janeiro, Revista Dados, BIB, 1978,
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como tambm com os de Azis Simo e Jos Albertino Rodrigues.M
Embora com suas diferenas e especificidades, a interpretao
sociolgica compartilha perspectivas semelhantes em suas an
lises. Partindo dos gloriosos anos 10, com a atuao dos anar
quistas, a reflexo procura tornar evidente a transio, comple
tada na dcada de 30, para um sindicalismo burocrtico e aco
modado, permitindo o surgimento de uma classe operria que
teria perdido sua autonomia, espontaneidade e mpeto revolu
cionrio. As matrizes tericas da interpretao sociolgica",
diz Wemeck Vianna, provm da hegemonia do pensamento
cepalino nas universidades brasileiras, dos trabalhos de Gino
Germani e da leitura de textos de Weber e Marx. Tais concep
es foram entendidas como convergentes para explicar a reali
dade latino-americana.15 Assim, o enfoque sobre o comportamento operrio, determinado pela origem da fora de traba
lho em um contexto de transio de uma economia tradicio
nal, de participao poltica restrita", para uma economia
de mercado, de participao poltica ampliada", teria resulta
do em uma classe operria que, marcada pelo individualismo,
por suas origens rurais, tradicionais e patrimoniais, se tornou
passiva e dependente do Estado. O resultado, portanto, foi o
surgimento do populismo.
As crticas, na verdade, tardaram a chegar. Para Maria Hele
na Capelato, um dos elementos constitutivos da noo de
Lencio Martins Rodrigues. Conflito industrial e sindicalismo no Brasil.
SSo Paulo, Difel, 1966; Azu Si mio. Sindicato t Estado. So Paulo, tica,
1981; Jo* Albertino Rodrigues. Sindicato e desenvolvimento no Brastl. So
Paulo, Difel, 1966.
uLuiz Wemeck Vianna. Op. cit., p. 71.
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populismo nesse perodo a compreenso dos movimentos so
ciais como reflexos das variveis scio-econmicas. Assim, ex
plica-se o comportamento poltico das classes a partir M
determinantes estruturais (processo de industrializao, origem
rural da classe trabalhadora). A adeso ao populismo entendi*
da ento a partir da estrutura social, sem se levar em conta q tiH
quer elemento de ordem poltica ou cultural.1* O novo prokN
tariado da dcada de 30, muito distante do velho e revolucnj
nrio anarquismo dos anos 10, teria surgido, no dizer de Wernetfl Vianna, com uma concepo individualista que traz do mundo
do tradicionalismo agrrio se tornaria na massa de mafljfljH
do populismo (...) assinalando o toque de recolher para o nuln
xismo no movimento operrio substitudo pelo nacionalismo?
^ No entrecruzamento da teoria da modernizao com atM
certa interpretao do marxismo, eis que surgem os campou
ses no cenrio poltico, representando o ator coletivo chave jmm
a formulao e disseminao da primeira verso do populisffiK
Seria na passagem da sociedade tradicional para a moderna*
que atuariam os camponeses, seres incapazes de aes coletivll
porque imbudos de uma percepo individualista da sociedade
e, exatamente por isso, refratrios s mudanas sociais edfl
particular as revolucionrias.
Portanto, entre meados dos anos 50 e incio dos anos 60,
algumas imagens sobre os desvios" da poltica brasileira e da
prpria classe trabalhadora, determinados pelo papel dissolvecfl
exercido pelos camponeses que vieram para as cidades, come-
Maria Helena Rolim Capelato. Op. cit., pp. 185-186.
Luix Werneck Vianna. Op. cit., p. 78.
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aram a circular em alguns crculos intelectuais no Brasil. Ten
do como matriz a teoria da modernizao, tais idias inicial
mente foram apropriadas pelos socilogos do Grupo de Itatiaia
e, da, comearam a ganhar espaos nas universidades. O golpe
militar, em 1964, no entanto, veio acelerar o processo, permi
tindo que a noo de populismo surgisse como fator explicativo
para a fraqueza do movimento operrio e sindical diante da
investida, verdadeiramente fulminante, da direita civil-militar.
Foi nesse contexto poldeo e intelectual que, em meados
dos anos 60, veio a pblico uma srie de artigos, reunidos, mais
tarde, sob o ttulo de O populismo na poltica brasileira. A cole
tnea resgatou o conjunto de idias que, desde a dcada anteri
or, vinha afirmando a noo de populismo e, sintetizando-o de
maneira original, abriu caminhos para pesquisas e reflexes
posteriores.1 * Embora apresente reflexes avanadas para a primeira metade dos anos 60, o prprio contexto intelectual da
quela poca imps limitaes tericas aos textos. Assim, duas
tradies interpretativas percorrem as pginas do livro. A pri
meira a adoo da tipologia de Gino Germani, que alude
passagem de uma democracia com participao limitada" para
uma ampliada.19 Trata-se de um processo de massificao prematura ou antecipada de massas rurais na vida urbana e
no processo poltico.20 Weffort recupera a tese que afirma o
"Francisco Weffort. O populismo na poltica brasileira. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1980, p. 22. Minha anlise limita-se aos trs primeiros artigos da cole
tnea: Poltica de massas*, escrito originalmente em 1963; Estado e massas
no Brasil", de 1965; e O populismo na polidca brasileira", de 1967.
'*Idem, p. 45.
tem, p. 54.
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sucesso da poltica varguista entre os trabalhadores porque o
xodo rural trouxe para as cidades uma mo-de-obra com tra
dies patrimoniais, individualistas e sem experincias de lutas
sindicais. Desencadearam-se, desse modo, a revoluo indivi
dual dos migrantes oriundos do campo que chegaram ao mun
do urbano e a conseqente presso para o acesso ao consumo e
ao emprego. Portanto, trata-se, sempre, de formas individual
de presso, as quais se apresentavam aos populistas como um
problema a resolver.21 Ou seja, como j afirmara Guerrettjt Ramos, existia a classe, mas faltava a sua conscincia, mMcajg
da ou deformada no processo que transformou camponeses M l
assalariados urbanos, permitindo a Weffort sugerir que a refle
xo sobre o populismo deva basear-se a partir de relaes indi
viduais.22 A teoria da modernizao, portanto, central nas anlises de Weffort.
A segunda tradio intelectual presente na coletnea pro
vm de uma poca em que se acreditava que os atores sodffl|
tinham vontade prpria. Assim, diz o autor: a burguesia 4$
proletariado, em especial este ltimo, tendem a organizar raci
onalmente sua ao poltica e a colocar, de maneira clara, seus
interesses de classe luz do dia do debate poltico.23 Muitas vezes, noes oriundas da ortodoxia aparecem de maneira pe
remptria: Na impotncia histrica da pequena burguesia est
a raiz da demagogia populista (...). Deste modo, por limitar-se
s formas pequeno-burguesas de ao, o populismo traz em si a
O P O P U L I S M O S UA H I S T R I A
"Idm , p. 75. uld*m, p. 72.
p. 28.
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inconsistncia que conduz inevitavelmente traio.2'' Se o
populismo foi traio, a grande pergunta, nunca respondida,
lembra com razo John French, : por que os operrios sucum
biram aos agrados dos lderes populistas, aceitando a domina
o, e, no mesmo movimento, se dispuseram a confiar em trai
dores?25 JPortanto, ler O populismo na poltica brasileira v nhecer um autor afinado com o contexto intelectual de seu tem
po, mas igualmente limitado por ele.
AJgumas vezes, personagens com tradies e prticas polti
cas distintas so tratados de maneira indiferenciada, perdendo-
se, assim, especificidades e a prpria historicidade dos projetos:
entre o populismo dos demagogos e o reformismo nacionalis
ta de 1964 sempre existiram afinidades profundas de conte
do".26 Em um Estado como esse, alega, no h lugar de destaque para as ideologias. Os aspectos decisivos da luta poltica
as formas de aquisio e preservao do poder esto vincula
dos a uma luta entre personalidades.27 Ao mesmo tempo que personaliza o passado histrico da sociedade brasileira, o autor
dilui e, conseqentemente, perde a especificidade dos projetos
polticos em que estes lderes polticos se manifestaram. Assim,
Joo Goulart, Leonel Brizola, Roberto da Silveira, Alberto
Pasqualini, Fernando Ferrari, Lcio Bittencout, entre outros,
todos filiados a um partido poltico, o PTB, bem como a uma
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tradio poltica, o trabalhismo, surgem no mesmo patamar que
Jnio Quadros e Adhemar de Barros, polticos que o prprio
Weffort caracteriza como fenmenos de So Paulo.2* Eles, por
sua vez, so igualados ala direitista-golpista da UDN, como
Carlos Lacerda, ao general Eurico Dutra e a Juscelino Kubitschek.
Todos, segundo indicaes de Weffort, surgem na mesma dP;
menso porque se dirigem ao povo, sem distinguir as contradil
es de classe contidas nesta concepo.
Enfim, vrios so os temas a serem explorados na coledfl
nea. No entanto, vale observar uma certa tenso ao longo dk
argumentos do autor. Em alguns momentos do livro, um grupo
de afirmaes revela uma interlocuo, uma interao, nas rela*
es entre Estado e classe trabalhadora, vistas como um procee-
so legtimo:
o populismo foi, sem dvida, manipulao de massas, mas
manipulao nunca foi absoluta. Se o fosse, estaramos obrigM
dos a aceitar a viso liberal elitista, que, em ltima instncia, W
no populismo uma espcie de aberrao da histria alimentafl
pela emocionalidade das massas e pela falta de princpios dai
lderes. Se o populismo foi manipulao, alega, tambm fot
um modo de expresso de suas insatisfaes.2*
Outra indicao importante, que relativiza o poder de Esta*
do e resgata o papel e a atuao dos prprios trabalhadores nd|
relaes polticas daquela poca, igualmente dada por Weffort:
0 P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A
I ldem, p. 28.I nld*m, p. 62.
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Grupo burgus algum capaz, por si prprio, de inventar um
poltico de massas. As condies de existncia das massas tm
tambm seu papel nesta inveno.30i As afirmaes, importantes, sugerem que o populismo no
foi mera manipulao de massa, de cima para baixo, mas que
houve interlocuo entre Estado e classe trabalhadora. No en
tanto, muitas leituras no observaram com maior cautela uma
linha de reflexo que se abria. Talvez pela prpria ambigidade
das idias contidas em seus textos, as atenes voltaram-se para
outro conjunto de afirmaes. Weffort critica a verso liberal
do populismo, cuja explicao seria a manipulao e a demago
gia dos lderes conjugadas ignorncia e ao arraso das massas.
Contudo, em outros momentos, contrariando suas prprias cr
ticas concepo liberal, o texto permite leituras bem diferen
tes. Assim, para o autor, em 1930 aparece o fantasma do povo
na histria poltica brasileira, que ser manipulado soberana
mente por Gctlio Vargas durante 15 anos.31 Ou ento as massas populares constituram a raiz do poder dos lderes populistas,
mas, nesta mesma condio, no passam de massa de mano
bra.31 Ao dar ao Estado um poder que ele, teoricamente, no alcanou, mesmo nas ditaduras mais intolerantes, surgem afir
maes bastante questionveis: nas formas espontneas do
populismo, a massa v na pessoa do lder o projeto do Estado;
abandona-se a ele, entrega-se sua direo e, em grande medi
da, ao seu arbtrio.33
*Idem, p. 34.
*.Idem, p. 51.
nldem, p. 58.
"Idem, p. 41.
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O P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A
Assim, as anlises das relaes mantidas entre Estado e clas
se trabalhadora so conduzidas sob certa tenso, sob certa am
bigidade: ora interlocuo, ora manipulao. No entanto, esta
ltima maneira, de cima para baixo, foi a que se firmou nos
estudos posteriores, ressaltando-se as passagens em que Weffort
analisa de maneira mais caricatural as relaes entre as mas
sas e os lderes populistas: manipulao, emocionalidade
relaes individuais, traio etc.
Seja como for, com a teoria da modernizao, as idias do
Grupo de Itatiaia, a interpretao sociolgica do movimento
operrio e os trabalhos de Weffort, o populismo, na segunda
metade dos anos 60, comeou a firmar-se nas Cincias Huma*
nas no Brasil. Era necessrio, no entanto, situ-lo em um con
texto histrico internacional para estabelecer a noo com m M
or preciso metodolgica. Assim, nos compndios e manuais
sobre o populismo na Amrica Latina e no Brasil, invariavd^
mente a introduo ou o captulo inicial tratavam dos "a n ttH
dentes histricos: o leitor, desse modo, conhecia o populismo
na Rssia tzarista e nos Estados Unidos no sculo XIX. Novai
mente, portanto, h a presena do mundo rural. Embora 08 contextos econmico, poltico, social, agrrio, cultural, ideol
gico e religioso do Brasil tenham sido diversos da Rssia tzarista!
e, ambos, distintos dos Estados Unidos, o que une histrias to
diferentes o campesinato. E onde ele est, de se prever, tam
bm aparecem os populistas.
Estaria a primeira verso do populismo superada? Creio que
no. No primeiro semestre de 1998, em uma prestigiada escola
catlica na cidade de Niteri, uma aluna da segunda srie do
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0 N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O l l T I C A ( P A S I L E I P A
segundo grau recebeu de seu professor de histria uma apostila
resumindo a trajetria da poltica brasileira aps 194S. Logo
no incio, a menina leu: O perodo que se estende de 1945 a
1964 tradicionalmente conhecido como o perodo do
Populismo. Entre aspas e em negrito, para chamar a ateno
dos jovens leitores, o conceito teria algumas caractersticas
bsicas:
Como j se observou, o populismo na Amrica Latina teve como
caracterstica bsica uma intensa manipulao das massas, num
momento de transio entre a economia agro-exportadora e a
economia mais moderna, que comea a se instalar aps a crise
de 1929. Lideranas mais ou menos carismticas disputaram o
poder junto a essa massa, ora fazendo concesses (as leis traba
lhistas de Vargas so um bom exemplo), ora utilizando o povo
como elemento de ataque s antigas oligarquias.
Os trabalhadores, cuja conscincia social estaria a meio-ter
mo entre os padres rurais e os vigentes na indstria, deixaram-
se envolver por lderes burgueses, que, habilmente, os usaram
como massa de manobra. Aps aprender as dimenses tericas
do conceito, a aluna, um tanto confusa, tambm aprendeu com
o professor o que se seguiu na poltica brasileira: a democrati
zao de 1945, o surgimento dos partidos polticos nacionais e
o governo Dutra. No entanto, em 1950, surpreendentemente,
o populismo teria ressurgido. No sem alguma ironia, os auto
res da apostila escreveram:
Nas eleies de 1950, Vargas voltou ao poder (...). Sua vitria
traduzia claramente o poder de manipulao da poltica
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populista: afinal, Vargas era o pai dos trabalhadores brasi
leiros... |
Mas, entre 1963 e 1964, as lutas sociais se acirraram, conti
nua a apostila. A concluso resume-se a um jargo, comum na
literatura sobre o assunto: com o golpe militar de 1964, dizem
os autores do texto em tom peremptrio, era o colapso da
cpoca populista no Brasil.
Seria uma injustia, grave a meu ver, desmerecer o trabalhtf
desses professores. No esse o meu objetivo. So profissionait
mal pagos, trabalhando muitas vezes em condies difceis, scjj
chances de atualizao ou recursos para comprar livros. Q|jfl
honestidade e seriedade, fazem o melhor que podem, mas isso
o melhor que fazem.
Para os professores que formam os nossos filhos, a poltiqg
brasileira e as relaes entre Estado e classe trabalhadora du
rante o perodo de 1930 a 1964 encerrara um senso comuanj
no sentido gramsciano do termo, nomeado de populismo e
em sua primeira verso, a dos anos 50 e 60. Mas seria correto
afirmar que esse senso comum circula somente entre os pro
fessores de nvel mdio? Estariam eles to desatualizados aaM
Com ressalvas, creio que no.
Os resultados desta primeira verso do populismo so co
nhecidos e aceitos at hoje, tanto nas apostilas de nvel mdio
quanto na bibliografia especializada. No primeiro governo de
Vargas, os trabalhadores tiveram acesso aos direitos sociais, mal
no aos polticos, e, a partir de clculos sobre suas perdas e
ganhos, trocaram os benefcios da legislao por submisso po
ltica. Assim, incapazes de pensar por si mesmos, fracos dMj
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O N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A I R A S I I E I K A
das investidas ideolgicas das classes dominantes, recebendo
passivamente e sem crticas a doutrinao poltica, os trabalha
dores brasileiros oriundos do mundo rural, destitudos de tra
dies de luta, organizao e conscincia, passaram a idolatrar
Vargas e, desde 1945, a eleger outros lderes populistas e a vo
tar no PTB.
O POPULISMO DE SEGUNDA GERAO
Na virada dos anos 70 para a dcada de 80, a primeira verso
do populismo comeou a dar mostra de esgotamento em suas
hipteses centrais. A teoria da modernizao, o papel do Esta
do como elemento que organizaria as classes, o comportamen
to poltico da classe trabalhadora determinado por estruturas
sdo-econmicas como sua origem rural ou devido s pecu
liaridades da industrializao brasileira , entre outros fatores,
no mais satisfaziam os estudiosos. Os grandes ensaios sobre o
populismo na Amrica Latina tornaram-se cada vez mais ra
ros. Socilogos e cientistas polticos, pioneiros nos estudos, pas
saram a debater com historiadores, os quais, com seus mtodos
de pesquisa, enfrentaram a questo.
Assim, os estudos voltaram-se principalmente para as rela
es entre Estado e sociedade na poca do primeiro governo
de Vargas. De alguma maneira, o problema que preocupou a
primeira verso do populismo foi reiterado pelos novos estu
dos: em 1930, instituiu-se no Brasil um Estado de vertente au
toritria que se acentuou em 1935 e se imps como uma dita
dura em 1937, influenciada pela experincia do fascismo euro
8 2
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peu. As liberdades democrticas foram suprimidas, e o movi
mento operrio duramente reprimido. Anarquistas, socialistas,
comunistas e liberais perderam os espaos de atuao poltica, e
muitos deles, a prpria vida. A represso policial, a censura aos
meios de comunicao, entre outros dispositivos arbitrrios e
discricionrios, impediram qualquer movimento para as oposi-
es. No entanto, diante de um contexto poltico to sufocan
te, os trabalhadores apoiaram a ditadura de Vargas. O apoio,
admitem diversas tendncias historiogrficas, no era apenat
formal, mas sincero, e o reconhecimento, a gratido e as D9MIM festaes elogiosas dos assalariados ao ditador dificilmente aft
refutados pelos estudiosos. Esse, portanto, foi o problema qug|
o populismo de segunda gerao herdou da primeira e proettj
rou novamente enfrentar, centrando os estudos nas relaes cntfB
Estado e sociedade/classe trabalhadora entre 1930 e 1945.
Para enfrentar a questo, houve, inicialmente, a recusa, pelo
menos formalmente, das hipteses centrais da primeira vcgjH
do populismo. Contudo, a recusa no foi total, tanto assim qqfl
o texto-sntese daquela primeira verso, O populismo na poltt^
ca brasileira, de Weffort, continuou a ser citado nos textos
algo que no casual.
H uma premissa formulada por Weffort nos anos 60 que
persistiu entre os historiadores da dcada de 80. Interrogando^
ao extremo a coletnea O populismo na poltica brasileira pro
cura das razes que teriam levado os trabalhadores a apoiarea
lderes populistas, encontramos um argumento central: o
populismo imps-se pela conjugao da represso estatal com|
manipulao poltica, embora a chave de seu sucesso tenha sido
a satisfao de algumas demandas dos assalariados. Assim, me*- .
-
mo que a segunda verso tenha rejeitado as premissas anterio
res teoria da modernizao, determinaes scio-estrutur.ii>
nas organizaes da classe trabalhadora, a influncia negativa
dos camponeses no meio operrio, entre outras questes , a
premissa central, sugerida por Weffort, represso, manipulao
c satisfao, continuou presente, embora no exatamente da
mesma maneira. Ela continuou nas anlises, mas enfatizando o
poder repressivo e manipulatrio do governo e, no mesmo
movimento, minimizando os espaos para a atuao e interven
o dos trabalhadores e sua interlocuo com o Estado. A se
gunda verso do fenmeno apropriou-se das idias de Weffort,
ressaltando as variveis represso e manipulao, mas subesti
mando, e muitas vezes desconhecendo, o vis da satisfao. Sur
giu, assim, o populismo na sua interpretao mais repressiva e
demaggica.
Neste aspecto, importante citar uma poderosa tradio
que influenciou, direta ou indiretamente, toda uma gerao de
intelectuais: o marxismo. O marxismo apresentou uma questo
importante ao estudioso: uma ordem social no imutvel, e a
sua prpria reproduo propicia a sua transformao. Para um
historiador, marxista ou no, a assertiva foi muito bem recebi
da. As divergncias, porm, surgiram sobre a maneira e os cami
nhos que permitiriam a transformao, suscitando acalorados
debates entre autores e militantes marxistas. Assim, a verso
mais disseminada defendeu que a possibilidade da mudana pro
vm da capacidade dos trabalhadores de alcanarem a verda
deira conscincia de classe, de desvendarem as contradies
sociais, de perceberem quais seriam os seus reais interesses.
No casual, desse modo, que muitas pesquisas produzidas nos
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O P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A
programas dc ps-graduao cm Histria Social, a partir de fins ^
dos anos 70, discutissem, na parte terica dos trabalhos, a quet*|
to da ideologia. Marx, Lenin, Lukcs, Goldman, Althusser ou
Gramsci, para citar os mais conhecidos, eram convocados em|
busca de uma definio mais apropriada para o fenmeno. Afi
nal, o conceito de ideologia, compreendido na maioria das ve
zes como falsa conscincia, poderia desvendar as razes qati
teriam levado os operrios a no se revoltarem contra ordenfij
sociais opressoras.
No campo do marxismo, um dos clssicos que niarcifj|fl
uma gerao foi Antonio Gramsci. Como um dos mais refinfln
dos pensadores marxistas, em fins dos anos 70 suas idias cutfj
ram nas universidades brasileiras perodo, tambm, em qtfl
os historiadores comearam a estudar a poltica brasileira flfffl
1930, em particular o primeiro governo de Vargas. Foi
posta terica de hegemonia em Gramsci que mais fascinou lfl|
estudiosos na poca. No quero discutir o conceito, sabefflNH
que ele permitiu diversas interpretaes. O que importa, aqrw
a sugesto de que a dominao de uma classe social sobre outftn
no se impe apenas pela fora, pelo poder repressivo de Esta-!
do, como era comum pensar, mas que sua eficcia ocorre aofl|
conjugar com as instncias persuasivas da sociedade. j
Com o pensador italiano, no foi difcil para muitos histori-:
adores reavaliarem a teoria do primeiro populismo. Assim, en
tre a trade represso, manipulao e satisfao em Weffort e a .
dicotomia represso e persuaso em Gramsci, a ltima tornoM
se mais atraente. Com a alterao no enfoque, pode-se dizer ,
mesmo que houve uma regresso na maneira de se pensarem t
relaes entre Estado e classe trabalhadora na poca de Varga*^
8 s
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0 N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A B R A S I L E I R A
Na primeira verso, ainda havia a varivel satisfao, aceitando
que os assalariados se beneficiaram com as polticas pblicas do
Estado varguista, como a legislao social, por exemplo. Na se
gunda verso, no entanto, sequer isto foi considerado. Repres
so e persuaso, ou, como comum dizer, represso policial e
propaganda poltica, tornaram-se os elementos centrais para se
compreender os mistrios do sucesso de Vargas entre os traba
lhadores.
Surgiram, assim, diversos trabalhos a partir do incio dos
anos 80 sobre o Estado Novo, contribuindo, sem dvida, para a
compreenso daquela temporalidade. Muitos textos enfatizaram
a represso policial, outros acentuaram a propaganda poltica
estatal, e alguns, de maior flego, ressaltaram os dois aspectos.
Mas a maioria das interpretaes concordavam que o populismo
floresceria com sucesso em um certo tipo de Estado, autorit
rio, que recorreria a duas prticas distintas, embora comple-
mentares: a primeira, voltada para o movimento operrio e sin
dical, utilizou a represso policial mais truculenta, invadindo os
sindicatos de trabalhadores, prendendo os seus lderes, espan
cando os seus militantes, cerceando as suas prticas de luta e de
organizao, enquadrando os sindicatos por meio de uma legis
lao controladora e restritiva e suprimindo, s vezes fisicamente,
as esquerdas. O aparato repressivo, assim, ter-se-ia dedicado a
eliminar os setores mais combativos da classe, aniquilando as
veleidades autonomistas do movimento operrio e solapando
as bases do sindicalismo mais avanado. A polcia, a legislao
autoritria e os tribunais de exceo teriam impedido que os
trabalhadores mais organizados seguissem os caminhos natu
rais que os conduziriam a uma autntica identidade poltica.
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O P O P U L I S M O SUA H I S T R I A
Assim, derrotando os grupos organizados, o Estado,
concomitantemente, teria recorrido a uma segunda prtica, vol
tando as suas baterias para o povo, ou seja, os assalariados
que no conheciam as experincias do movimento sindical, os
pobres e as pessoas comuns para utilizar a linguagem dos
anos 60 e 70, os novos operrios de origem rural. Para o
melhor sucesso de seus objetivos, o Estado utilizou os recursos
oferecidos pelas modernas tcnicas de propaganda e de doutri-
nao polticas. Com extrema habilidade, o governo de Vargw
teria inculcado nas mentes das pessoas idias, crenas e valo
res baseados na mentira, na iluso e na deformao ou inventa
da realidade. Com o auxlio de seus intelectuais orgnicos, o
Estado teria inundado a sociedade com imagens e smbolos de
exaltao ao governo, utilizando como veculos rdios, cine
mas, livros, jornais, biografias, cartilhas escolares, msicas, ea>
tas, comemoraes cvicas etc. Assim, eliminando os operrio*:
mais combativos, com a polcia, e manipulando o restante da
populao, a partir dos meios de comunicao, o Estado po
pulista teria alcanado amplo sucesso, sendo, dessa maneira,
aceito como legtimo pelos trabalhadores.
No h muitas dvidas sobre a represso policial que se abriu
a partir de 1930, se acentuou em 1935 e tornou, a partir de
1937, invivel qualquer resistncia ao regime. As pesquisas de
monstram, s vezes de maneira irrefutvel, o processo repressi
vo. Igualmente ficou comprovada a montagem de um comple
xo sistema de propaganda poltica estatal coordenado, sistem
tico e, dentro dos recursos da poca, sofisticado. O que se ques
tiona abordar as relaes entre Estado e classe trabalhadora a
partir de paradigmas explicativos, ao mesmo tempo opostos e
S 7
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complementares, centrados na represso e na manipulao,
ambos surgindo como formas de violncia estatal sobre os assa
lariados, fsica em uma dimenso, ideolgica na outra. Como
diz Angela de Castro Gomes, elas so reconhecidas como fun
damentais e como pano de fundo sem o qual uma reflexo mais
refinada sobre seus impactos seria impraticvel. Trata-se, por
tanto, de consider-las terica e empiricamente insuficientes t
equivocadas para dar conta do fenmeno que est sendo exa
minado, considerando-se sobretudo seus desdobramentos atra
vs do tempo.M
Como defendi em trabalho anterior, o mito Vargas no
foi criado simplesmente na esteira da vasta propaganda polti
ca, ideolgica e doutrinria veiculada pelo Estado. No h pro
paganda, por mais elaborada, sofisticada e massificante, que
sustente uma personalidade pblica por tantas dcadas sem re
alizaes que beneficiem, em termos materiais e simblicos, o
cotidiano da sociedade. O mito Vargas expressava um con
junto de experincias que, longe de se basear em promessas
irrealizveis, fundamentadas to-somente em imagens e discur
sos vazios, alterou a vida dos trabalhadores.11As matrizes tericas do segundo populismo, nos anos 80,
portanto, distanciaram-se dos pressupostos defendidos nas d
O N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O l l T I C A ( R A S I I E I P A
* Angela de Castro Gomes. Apresentao''. In Jorge Ferreira. Trabalhadores
do Brasil. O imaginrio popular. Rio de Janeiro, Fundao Getlto Vargas,
1997, p. 10.
uJorge Ferreira. Idem. Alis, vale repetir uma taio do prprio Weffort,
que, dcadas atrs, j observara que grupo burgus algum capaz, por si
prprio, de inventar um poltico de massas. As condies de existncia das
massas tm seu papel nesta invenio". Op. c., p. 34.
a >
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0 P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A
cadas dc 60 c 70 em diversos aspectos, mas, igualmente, resga
taram muitos de seus elementos. A noo permaneceu, contudo
recebeu um tratamento mais sofisticado, atualizando-se com as
tendncias historiogrficas do momento.
No entanto, ainda na dcada de 80, houve tentativas de se,
abandonar a noo de populismo. Diversos autores, evitando
utilizar a expresso, passaram a ressaltar as polticas pblicas de
controle social implementadas pelo Estado varguista, sobretu
do no tocante ao controle operrio. Diante do avano da
mobilizao dos trabalhadores desde a dcada de 1910, emfjjjfl
ticular do movimento anarquista, e do conseqente perigo w
revolues anticapitalistas, novas formas de dominao polftH
foram implementadas. O poder, interpretado em um sendfl
mais amplo, certamente sob a influncia das leituras de Micb|fl
Foucault, no se limitou a agir pelas instncias repressivas
Estado e por seus aparelhos ideolgicos". Imiscuindo-se d lj
diversos campos do social, surgiram especialistas que formtilfl
ram discursos racionais, no sentido sugerido pela chamadfj
Escola de Frankfurt, Habermas em particular, sobre sade, ca B
cao, sexualidade, habitao, pedagogia, educao fsica, oflj|
dicina, direito, entre diversos outros. O objetivo dos espedH
tas era conhecer o operrio. E, conhecendo-o, control-lo".
Desqualificados em seu prprio saber, destitudos de legrtflfl
dade para falarem por si mesmos e pela sociedade, os trabalhai
dores deixar-se-iam dominar por um saber racional, porque dfl
entfico, e, logo, apresentado como verdadeiro. A ordem social
assim, no ficaria mais sob os auspcios da poltica, pois um
saber tcnico e cientfico, portanto neutro, deveria tomar o sea
lugar. Os discursos racionais e cientficos, revestidos de tod)|
e 9
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N O M t ( A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O L T I C A R A S I K I R A
uma eficcia tcnica, teriam elaborado variadas formas de co
nhecimento especializado. Fundamentados na competncia tc
nica, eles comearam a tomar corpo e forma nos anos 20 para
invadirem todas as dimenses da sociedade nos anos 30.
O enfoque do controle operrio surgiu como alternativa
ao binmio represso-propaganda, centrando a anlise na efi
ccia do poder baseado no argumento da racionalidade e da
tcnica. Contudo, a abordagem, sabemos hoje, no foi to al
ternativa como se pensava. Afinal, a represso policial e a pro
paganda poltica tinham por objetivo a adeso dos trabalhado
res e, portanto, o prprio controle. Sobretudo com a recepo
da Histria Cultural no Brasil, percebeu-se que no h por que
acreditar em uma relao sem mediaes entre as idias erudi
tas e populares, que h um lapso entre a inteno de controlar e
o efetivo controle, que o poder dos poderosos no to pode
roso assim. Sem negar os recursos utilizados pelo Estado aps
1930, ou ainda nos anos 20, para controlar a classe trabalhado
ra e racionalizar a sua prpria existncia a partir de critrios
tcnicos e cientficos, tornou-se necessrio relativizar o
enfoque a fim de se evitar uma abordagem totalizadora, suge
rindo estruturas capazes de diluir a existncia de sujeitos polti
cos e sociais incapazes de super-las. Os mecanismos de con
trole operrio" foram implementados, mas sua atuao e efic
cia eram limitadas pela prpria cultura da classe trabalhadora.
Seja como for, as insatisfaes permaneceram. Os enfoques
no binmio represso-propaganda ou no controle, que
~amente no se opunham, pareciam insuficientes. Era
explicar, de maneira mais incisiva e contundente, o su-
de Getlio Vargas entre os trabalhadores. Para alguns au-
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0 P O P U L I S M O t S U A H I S T R I A
torcs, poucos na verdade, as explicaes que ressaltavam a pro
paganda poltica, a represso policial e o controle sodal no
estariam necessariamente equivocadas, apenas no foram s il-
timas conseqncias. A represso estatal e a propaganda polti
ca no governo Vargas, portanto, sofreram uma leitura radicaLt
Assim, ainda nos anos 80, e mesmo no incio da dcada se-
guinte, as alternativas ao populismo no tardaram a chegar. Afi
nados com os esquemas sociolgicos dos tericos do totalitaris
mo, historiadores aproximaram o governo Vargas dos rqpmi
de Hitler e Stalin. Multiplicando em muitas vezes a capacdMi
da represso policial, at elev-la categoria de terror generaK
zado, e ampliando ao mximo a eficcia da propaganda polfti
ca, comparando-a s prticas nazistas e stalinistas, Vargas pas
sou a ser definido como um lder totalitrio. A inovao apa
rente e equivocada: novamente a represso e a propaganda,/
como pressupostos centrais da anlise, permanecem inalteradas.*
curioso observar, neste aspecto, como a teoria
do totalitarismo seduziu muitos historiadores brasileiros. Em
bora os especialistas da histria do socialismo, no Brasil e
exterior, recusem a expresso,57 os debates sobre o carter totth
Jorge Ferreira. Op. cit., p. 15.
'*Na coleo Histria do marxismo, organizada por Eric Hobsbawm, bem
como na coletnea Histria do marxismo no Brasil, no h um nico especi
alista que adote a teoria do totalitarismo. Na avaliao de Martin Malia, a
teoria do totalitarismo baseia-se em classificaes estticas, com forte ten
dncia a abstraes atemporais. La tragdie sovtitique. Histont du socialiamt
en Russie. 1917-1991. Paris, ditions du Seuil, 1995, p. 24. Ao dar excessivo
poder s tcnicas de propaganda e ao terror poltico, a teoria do totalitarismo
desvia a ateno do estudioso para a colaborao da prpria sodedad
regime, da cumplicidade que se estabeleceu entre Estado e sodedade.
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O N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A M A i l l l l H A
litrio ou no do Estado Novo, como lembra Maria Helena
Capelato, geraram algumas polmicas.11Para Marc Ferro,1 inquietante, na verdade, o processo de
banalizao do nazismo com a vulgarizao da teoria do totali
tarismo, particularmente se considerarmos a contribuio dos
prprios estudiosos do assunto. Se antes da Segunda Guerra
somente os regimes de Hitler e Mussolini se definiam dessa
maneira, aps 1945 o conceito se estendeu tambm para a Unio
Sovitica.40 Com Carl Friedrich, Zbigniew Brzezinski e, sobre
tudo, Erns Noite,41 diz Ferro, a equiparao dos campos de extermnio nazistas com os gulags soviticos encobriu o racismo,
um dos pontos bsicos da poltica hitlerista. Em vrios estudos,
a concluso, surpreendente, a de que o nazismo, como uma
Veja Maria Helena Rolim Capelato. Op. cit., pp. 197 e seguinte.
Marc Ferro. Histria da Segunda Guerra Mundial. So Paulo, tica, 1995.
"No caio sovitico na poca de Stalin, diz Eric Hobsbawm, apesar de brutal,
burocrtico e terrorista, o sistema sovitico no foi totalitrio. O romance
1984, de George Orwell, sugeriu a imagem de uma sociedade totalitria,
vfma de lavagens cerebrais, onde ningum escapava do olho vigilante do
poder. Isso sem dvida o que Stalin teria querido alcanar", diz o autor. A
maioria dos soviticos, continua o autor, no sc importava com as declara
es sobre polftica e ideologia marxista-leninista vindas do lder e do parti
do, desde que elas no atingissem seu cotidiano e sua vida comum. Somente
os intelectuais e, certamente, os militantes filiados ao PCUS levavam a srio a
teoria cientifica' do socialismo sovinco. O sistema, afirma Hobsbawm,
no exercia efetivo controle da mente, e muito menos conseguia conver-
so do pensamento (...), embora despolitizasse e aterrorizasse a sociedade.
Era dos extremos. O breve sculo XX. 1914-1991. So Paulo, Companhia das
Letras, 1995, pp. 383-384.
4,Carl Friedrich e Zbigniew Brzezinski. Totalitarian dictatorship andautocracy.
Cambridge, Harvard University Press, 1956; Emst Noite. Nazionalismo e e
bolscevismo: Ia guerra civile europea 1917-194S. Florena, Sansoni Editora,
1988.
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O P O P U L I S M O i S UA H I S T R I A
forma extremada do fascismo, surgiu em reao ao totalitaris-
mo sovitico e, para se defender, foi obrigado a imit-lo nos
genocdios. Contradio flagrante, diz Ferro. Na impossibtlidKfi
de de negar a existncia das cmaras de gs, embora tivessem a
ousadia, as interpretaes revisionistas e negadonistas" do
nazismo responsabilizaram a URSS pelos grandes massacres
por essa brecha, desculpabilizaram a poltica nazi, apresentan
do exemplos variados de genocdios: nas colnias europia ^
faroeste norte-americano ou nas ditaduras dos pases pofara^J
entre outros exemplos, os extermnios de populaes int
tambm aconteceram. Chega-se, portanto, ao estgio i
de normalizao do nazismo no Brasil, por exemplo, tem
sido o caso do Estado Novo, um regime supostamente "totalit
rio. Para o autor, definir o III Reich como fascista" on
generalizaes como totalitrio encobrir a caracterfea
central do regime: o dio racial e o projeto de dizimao i
massa no somente de judeus, mas tambm de eslavos, cigano^
deficientes fsicos, cardacos, entre outros.42 Assim, insiste cc razo o autor, identificar o terror hiderista ao terror da URSS
corresponde a fazer tbula rasa da especificidade do
que constituiu um dos pontos bsicos da poltica nazista de <
mnio. Tal equiparao, segundo Ferro, contribui para o pr
so de banalizao do nazismo no mundo atual.43 A excessiva1 garizao do termo, portanto, minimiza o nazismo e, no mesmo
movimento, dilui os horrores perpetrados pelo III Reich.4Trata-se, portanto, de uma falsa questo discutir se o gover-
Marc Ferro. Op. cit.
uMarc Ferro. Idtm., p. 175.
**Marc Ferro. ldem.
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no Vargas foi, ou no, totalitrio*. O que deve ser questiona
do, como vem ocorrendo entre os especialistas da histria do
socialismo, a prpria teoria sociolgica do totalitarismo.
As vertentes do populismo de segunda gerao a aborda
gem que privilegia o binmio represso-propaganda, a teoria
do controle social e o enfoque totalitrio tm em comum
uma maneira de abordar as relaes entre Estado e sociedade/
classe trabalhadora. Como em uma via de mo nica, de cima
para baixo, luz do enfoque opressor e oprimido, o Estado,
todo-poderoso, pela violncia fsica e ideolgica, domina e sub
juga a sociedade, os trabalhadores em particular, surgindo, des
se modo, uma relao destituda de interao e interlocuo
entre as partes. O Estado, com um poder desmedido, total
em algumas verses, transforma a sociedade em elemento passi
vo, inerte e vitimizado. Assim, no Brasil, em 1930, 1935 ou
certamente em 1937, os governantes, armados com variados
dispositivos simblicos de dominao ideolgica, em alguns
casos psicolgica, teriam tido a capacidade de manipular, por
meio de imagens e representaes, as emoes e a sensibilidade
das pessoas, dominando, inclusive, as suas mentes.
As delaes que ocorreram na poca do Estado Novo, por
exemplo, comprovariam a capacidade do poder estatal de pressi
onar os indivduos, deixando-os tensos, apreensivos e inseguros.
Muitos teriam escrito cartas a Vargas, ao Dops ou polcia de
nunciando os opositores do regime porque se encontravam ate
morizados, ou aterrorizados, com as supostas ameaas dos inimi
gos, reais ou fictcios, ao governo e, portanto, ordem social.
Na poca do primeiro governo Vargas, muitas foram as
denncias deste tipo, e, hoje, facilmente as encontramos no
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Arquivo Nacional ou nos arquivos do Dops. So delaes de
que o vizinho era integralista ou comunista; as famlias alems
no falavam portugus; o comerciante da esquina estocava ali
mentos; o fulano era um conhecido agiota. Todas as denncias
eram seguidas de nomes e endereos. Supor que as pessoas de
latavam as outras por presses simblicas do Estado ter como
premissa que a sociedade, em seu estado normal, seria
mas, ao ser corrompida moralmente pelos governantes do Esta
do Novo, ter-se-ia transformado em um bando de delatores.
Mais difcil, repito, compreender que a sociedade, em si mee*
ma, no era to boa e isenta de culpas, e que nela circulavaMC
preconceitos contra judeus; manifestavam-se rancores coam
alemes e japoneses, sobretudo durante a Segunda Guerra Mun
dial; existiam pessoas com horror dos comunistas ou doa
integralistas; encontravam-se alguns que queriam punir o COH
merciante da esquina desmedido em seus lucros; havia outras
que desejavam livrar-se das dvidas com o agiota e, em algmMj
casos, mais raros, do prprio marido. Se havia uma d itadu^
que se mostrava disposta a ajud-las, o caminho ficava mais f
cil. Em outras palavras, as relaes entre Estado e sociedade
no eram de mo nica, de cima para baixo, mas, sim, de
mterlocuo, de cumplicidade.
Sobre as vertentes que insistem em virimizar a sociedade,
retomo, aqui, as idias de Jos Murilo de Carvalho, que notf
adverte sobre os perigos de se tratar uma relao de manein.'
maniquesta, segundo a qual o Estado apresentado como vi
lo e a sociedade como vtima indefesa e que, portanto, a
inexistncia da cidadania simplesmente atribuda ao Estado^
Insatisfatria, como todas as que trabalham com dicotomias
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0 N O M E I A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A M A S 11 f I ft A
explicar fenmenos sociais, essa perspectiva, em termos teri
cos, separa partes de um mesmo todo. Mais ainda, diz o autor,
o maniquesmo inviabiliza mesmo qualquer noo de cidada
nia, pois, ou se aceita o Estado como um mal necessrio, ma
neira agostiniana, ou se o nega totalmente, moda anarquista.
Na prtica, ele acaba por revelar uma atitude paternalista em
relao ao povo, ao consider-lo vtima impotente diante das
maquinaes do poder do Estado ou de grupos dominantes.
Acaba por bestializar o povo. Para o autor, mais fecundo ver
as relaes entre o cidado e o Estado como uma via de mo
dupla, embora no necessariamente equilibrada.45As abordagens que privilegiam o poder estatal nas relaes
entre Estado e classe trabalhadora a partir de 1930 no se afas
taram, no fundamental, das mesmas preocupaes polticas que
intrigaram lderes, tericos e militantes de esquerda desde o
sculo XIX: se a classe operria tem um caminho a seguir e um
destino a cumprir, se sua vocao 6 elaborar uma identidade
poltica autnoma, como, ento, ela se submete politicamente e
segue lderes populistas ou totalitrios? A resposta, garan
tia o marxismo mais vulgarizado, no era difcil: por meio da
represso aberta e dos efeitos mistificadorcs da ideologia, as
classes dominantes garantiam e reproduziam o seu poder. Algu
mas, mais tarde, levando ao extremo o conceito gramsciano de
hegemonia, acreditaram mesmo que somente os intelectuais
marxistas teriam a capacidade de superar as iluses fabricadas
pela ideologia burguesa.4*
^Jo Murilo de Carvalho. Op. cit., pp. 10-11.
Jorge Ferreira. Op. cit., p. 15.
9 6
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A histria da classe trabalhadora no Brasil, sobretudo com t
ascenso de Vargas ao poder, reduz-se, assim, a uma espcie de
conspirao das classes dominantes, sempre criadoras de dis
positivos ideolgicos, mecanismos eficientes de controle social,
meios habilssimos de propaganda poltica, instrumentos sutis
de doutrinao das mentes, entre outros meios para manipular,
dominar e desvirtuar os assalariados de seus reais e verda
deiros" interesses. Estranha classe operria, no Brasil e nos pa
ses de capitalismo avanado. Forte o suficiente para revolucio
nar o planeta, mas enganada por qualquer lder populista",
totalitrio ou traidor que aparea no seu caminho. Como
diz Barrington Moore Jr., no importa de onde venham as U9
terpretaes, moderadas ou revolucionrias, a histria da h a
dos trabalhadores por suas conquistas confunde-se com a his-
tria da domesticao do proletariado.47
DE GRAMSCI A GINZBURG, DE FOUCAULT A THOMPSON
Em meados dos anos 80, muitos historiadores brasileiros adota
ram, em ritmos e graus variados, a literatura de autores identiK
cados com a histria cultural. Muito resumidamente, as anlise#
negam que as classes dominantes tenham o monoplio exclusi
vo da produo de idias. Os trabalhadores, os camponeses e a i
pessoas comuns tambm produzem suas prprias crenas, valo
res e cdigos comportamentais, o que, no conjunto, convendo-
TJarrington Moore Jr. Injustia. As bases sociais da obedincia e da revolteu
Sio Paulo, Brasiliense, 1987, p. 245.
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O N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O l l T I C A I R A S I L d f t A
nou-se chamar de cultura popular. Cario Ginzburg, por exem
plo, sugeriu o conceito de circularidade cultural e demonstrou,
em um estudo de caso, que as idias no so produzidas apenas
pelas classes dominantes e impostas, sem mediaes, de cima
para baixo.4* As pesquisas em histria cultural concordam que
as idias, longe de serem institudas por um grupo e dissemina
das por toda a sociedade, circulam e, como defende Roger
Chartier, as camadas populares se apropriam das mensagens
dominantes, dando-lhes novos e diferentes significados.49 Peter Burke, por sua vez, critica o que chama de teoria do rebaixa
mento, qualificada por ele de tosca e mecnica. Para o autor,
as imagens e as histrias no so passivamente aceitas pelos
expectadores e ouvintes: as mentes das pessoas comuns no
so como uma folha de papel em branco, mas esto abastecidas
de idias e imagens; as novas idias, se forem incompatveis com
as antigas, sero rejeitadas.50 A noo de resistncia cultural, assim, tornou-se parte integrante de muitos estudos. Enfim, di
versos outros autores, a exemplo de Robert Darnton, Natalie
Zemon Davis, Giovani Levi, para citar os conhecidos, afirmam
que a ideologia dominante de uma sociedade no to domi
nante quanto se pensava.
No Brasil, muitos historiadores, sem abandonarem seus pr
prios mtodos de trabalho, passaram a utilizar o conceito de
Cario Ginzburg. O queijo e os vermes. O cotidiano e a* idia* d* um moleiro
perseguido pela Inquisio. Sio Paulo, Companhia das Letra*, 1987.
'Roger Chartier. A histria cultural-, entre prticas e representaes. Lisboa,
Difel, 1990, pp. 136-137.
"Peter Burke. A cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. Sio
Paulo, Companhia dai Letras, 1989, p. 86.
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O P O P U L I S M O t SUA H I S T R I A
cultura categoria at ento restrita s anlises antropolgi
cas. Atravs de uma narrativa densa, os pesquisadores pas
saram a reconstituir aspectos do passado colonial brasileiro, a
sociedade escravista e, na Primeira Repblica, a vida social e
os movimentos populares. Em suas pesquisas, eles avaliaram
que estas pessoas comuns, embora oprimidas por um poder
que, muitas vezes, escapava sua compreenso, necessaria
mente no se deixaram iludir ou manipular. Particularmente
na Primeira Repblica, seja em Canudos, nas reformas de B&-
reira Passos, na Revolta da Vacina ou com os anarquistas, o h
bora haja um Estado repressivo e exdudente, ele no surge
como todo-poderoso a ponto de moldar as mentes e os com
portamentos de trabalhadores e populares. Estes, de mane$||
diversa, so tratados como pessoas portadoras de idias, crcal
as e tradies que atuaram e, muitas vezes, se revoltaram core
tra a ordem vigente. Assim, os pesquisadores que voltam suas
preocupaes para perodos anteriores a 1930 no encontnH
ram tantas dificuldades para interpretar as prticas e repre
sentaes de trabalhadores e populares, bem como as suas re
laes com o poder estatal o que no casual. Afinal, nos
perodos colonial, imperial e na Primeira Repblica, os pe**
quisadores no transformaram as classes dominadas em obje
tos de regulamentao e manipulao do Estado, e nem re-
ponsabilizaram escravos, brancos pobres, camponeses ou as
salariados urbanos por se iludirem com as ideologias donr^j
nantes.
No entanto, ainda so poucos aqueles que incorporaram o
enfoque cultural nas suas reflexes sobre a histria poltica bra
sileira aps 1930, particularmente nas relaes entre Estado e
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0 N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L T I C A B R A S I L E I R A
classe trabalhadora. Parece-me que as indicaes tericas da
Histria Cultural perdem a validade especialmente quando se
trata de estudar trabalhadores e populares aps aquela data,
particularmente durante o primeiro governo" de Getlio
Vargas, e mesmo aps 1945. Poucos so os historiadores que
aplicam os conceitos de cultura, tradio, circularidade, apro
priao, resistncia, entre diversos outros, para o tratamento
do tema.
As dificuldades existem, por mais que os historiadores
etnogrficos h bastante tempo nos ensinem que, se a cultura
erudita tem o objetivo de subjugar os povos, no h por que
acreditar, como afirma Roger Chartier, que estes foram real,
total e universalmente submetidos. Para o autor, preciso, ao
contrrio, postular que existe um espao entre a norma e o vivi
do, entre a injuno e a prtica, entre o sentido visado e o sen
tido produzido, um espao onde podem insinuar-se refor
mulaes e deturpaes.51 Contudo, a impresso que tais indicaes so levadas a srio para antes de 1930. Para depois,
no. A histria da classe trabalhadora a partir de 1930, assim,
torna-se um grande ardil das classes dominantes, que, pela pro
paganda poltica e a doutrinao das mentes, entre outros dis
positivos ideolgicos, desviam os trabalhadores de seus verda
deiros objetivos.
Se a Histria Cultural no foi suficiente para a superao
das dificuldades, tambm parece ser o caso de um autor que h
"Roger Chartier. Cultura popular': revuitando um conceito hUtoriogrico".
In Estudos Histricos, n 16. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1995,
p. 182.
1 0 0
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O P O P U L I S M O E SUA H I S T R I A
mais de uma dcada vem influenciando a produo historio-
grfica brasileira: E.P. Thompson. Suas idias e sugestes
metodolgicas tm sido apropriadas no Brasil nos mais diverso*
e studos, dos motins populares s festas, das organizaes culttl*
rais dos operrios aos rituais, entre outras temticas. No entan
to, a questo central de sua obra, o processo de formao da
llasse trabalhadora, surge prioritariamente nos estudos sobre
-
jtc
Don
p- x
itsfo
jw
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0 F O F u i i S M O e s u a h i s t r i a
tado exige. Como ele diz em seu estilo irnico, tais concepes
surgem como um roteiro comovente, prprio de filmes infan
tis: (...) a malvada bruxa do Estado aparece! A varinha mgica
da ideologia i agitada! E, pronto. Surge, assim, o movimento
sindical reformista. Embora o ato de chamar ocorra em qual
quer sociedade, alega o autor, no h por que acreditar que os
trabalhadores necessariamente atendam, exceto se eles forem
transformados em seres passivos e sem iniciativa prpria.
Houve, decerto, a interveno estatal, insisto. Sobretudo td
partir de 1942, a formulao do projeto trabalhista pelo EsttdflJ
contribuiu, de maneira decisiva, para configurar uma identid*
de coletiva da classe trabalhadora. Mas, em qualquer experin-*
cia histrica, os assalariados sofrem influncias dos contextc
sociais, polticos e ideolgicos em que vivem. No caso brasilei
ro, como em outros, tratou-se de uma relao, em que as partes,
Estado e classe trabalhadora, identificaram interesses comiiiMM
No trabalhismo, estavam presentes idias, crenas, valores e
cdigos comportamentais que circulavam entre os prprio* tra-
balhadores muito antes de 1930. Compreendido como um <
iunto de experincias polticas, econmicas, sociais, i
e culturais, o trabalhismo expressou uma conscincia de classe,
legtima porque histrica.
Por este enfoque, os trabalhadores, ao viverem sua |
histria, deixam de ser considerados simples objeto de i
mentao estatal. O prprio projeto trabalhista, para i
preendido e aceito, no pode ignorar o patrimnio ;
presente na cultura poluca popular. O sucesso do {
portanto, no foi arbitrrio, e muito menos imposto pela j
paganda poltica e pela mquina poiiaL Igualmente,
-
0 N O M E I A C O I S A O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A I R A S I L E I R A
casual que o PTB, a institucionalizao do projeto, tenha sido a
organizao mais popular durante a experincia democrtica
ps-45, tornando-se, em 1964, a maior agremiao no espectro
poltico do pas.
Por fim, uma advertncia bastante contundente do histo
riador ingls. Trata-se dos perigos de enfocar as relaes en
tre Estado e classe trabalhadora a partir de cima, dando ao
aparato estatal, ou s classes dominantes, um poder desme
dido. Trata-se, para o autor, de uma maneira elitista de tratar
uma relao:
Mais uma vez os intelectuais um grupo escolhido entre
eles receberam a tarefa de iluminar o povo. No h rrao
mais caracterstico dos marxismos ocidentais, nem mais
revelador de suas premissas profundamente antidemocrticas.
Seja a Escola de Frankfurt ou Althusser, esto marcados pela
sua acentuada nfase no peso inelutvel dos modos ideolgi
cos de dominao dominao que destri qualquer espao
para a iniciativa ou criatividade da massa do povo , uma
dominao da qual s uma minoria esclarecida de intelectuais
pode se libertar. Sem dvida, essa predisposio ideolgica
foi alimentada pelas experincias terrveis do fascismo, da
doutrinao da massa pelos meios de comunicao e do pr
prio stalinismo. , porm, uma triste premissa para a teoria
socialista (todos os homens e mulheres, exceto ns, so origi
nalmente estpidos) e destinada a levar a concluses pessi
mistas ou autoritrias.11
-
O "COLAPSO" DO POPULISMO
Como poltica de massas, estilo dc governo e tendo por idias j
bsicas o controle, a manipulao e a tutela do Estado, a noo J
dc populismo, no dizer de Angela de Castro Gomes, tomou-se, ;
em fins dos anos 70, quase uma imposio, pelo compar- ,
tilhamento j alcanado e pela falta de verses de maior trosNl
to".56 No entanto, no eram incomuns, mesmo no incio dessa i
dcada, insatisfaes e inconformismos com a expresso.
trabalho ainda muito atual, Celso Frederico, j em 1970,
tionava: |||
Seja nessas interpretaes convencionais [teorias da modei|9
nizao], seja em ensaios mais refinados como os de F. C.
Weffort, o populismo sempre visto como um desvio, uridHj
simples deformao ideolgica, uma falsificao da coiwd^H
ncia de classe.57 5
Embora com as limitaes impostas pelas teorias vigen||H
naquela poca, o autor expressou suas dvidas certamente poftj
entrevistar operrios de carne e osso, conhecendo-os de perto.
Frederico no encontrou, e demonstrou isso com muito taleM
to, trabalhadores manipulados, iludidos e desviados dos seus
reais interesses.
Somente em fins daquela dcada, surgiram as primeiras veM
O P O P U L I S M O E S UA H I S T R I A
Angela de Castro Gomes. Op. cit., p. 50.
Celso Frederico. Conscincia operria no Brasil. So Paulo, tica, 1979, p
121.
1 0 s
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0 N O M E E A C O I S A O P O P U L I S M O NA R O l l T I C A B R A S I L E I R A
ses alternativas, sobretudo anlises que apontavam para as
interaes entre o projeto varguista e as demandas dos prprios
trabalhadores antes de 1930. Recusando as concepes que su
geriam os desvios ideolgicos da classe trabalhadora, catego
ria que implicitamente apontava para um caminho verdadei
ro, um grupo de cientistas polticos interpretou a conscincia
de classe como algo que se define por uma complexa interao
com o Estado e os empresrios. Maria Hermnia Tavares de
Almeida, Luiz Werneck Vianna e Wanderley Guilherme dos San
tos ofereceram, assim, importantes contribuies.51Em compasso com o ambiente intelectual propcio para ver
ses alternativas, outros pesquisadores, em diferentes regies
do pas, e no apenas no eixo Rio-So Paulo, passaram a criticar
o populismo na poltica brasileira alguns deles sob a influ
ncia das interpretaes gramscianas de Ernesto Laclau sobre o
fenmeno na Argentina. Flvio Henrique Albert Brayner,60 por exemplo, criticou os que, tomando como texto-base o discurso
de posse de Miguel Arraes no governo de Pernambuco, no in
cio dos anos 60, classificaram sua proposta poltica como
populismo de esquerda fenmeno que se caracterizaria pela
mistificao das relaes de classe, pela presena da mstica Povo-
Maria Hermnia Tavares de Almeida. Estado e classe trabalhadora no Brasil
(1930-1945). Tese de doutoramento. Sio Paulo, USP, 1978 (mimeo); Luiz
Werneck Vianna. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1978; Wanderley Guilherme do* Santos. Cidadania * justia: a poltica
social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
"Ernesto Laclau. M tica t ideologia na teoria marxista. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1979.
**FI4vjo Henrique A. Brayner. Partido Comunista em Pernambuco. Recife,
Massangana, 1989.
1 0 6
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Comunidade. Questionando a indefinio conceituai de po-
pulismo de esquerda", o que implicaria um de centro e outro
de direita", Brayner afirma que os autores gostariam de ver
um discurso que trouxesse um corte de classe preciso, um
pertencimento de classe facilmente observvel a olho nu. fta*-
sam as classes, e suas ideologias, sob a forma da reduo. Vem
a utilizao da categoria POVO no discurso de Arraes como a
prpria negao do conflito de classes.41
Miguel Bodea, por sua vez, com base em extensa pesquisa,
questionou em Weffort a tipologia da relao lder populista-
massas populares e a idia de que o populismo teria sido na*
pouco mais que uma forma pequeno-burguesa de consaMH
o do Estado,u uma vez que desestimularia a organizao
partidria. Bodea, igualmente influenciado pelas reflexes de
Laclau, demonstrou como Getlio Vargas, Alberto Pasqualiny
Joo Goulart e Leonel Brizola primeiro firmaram suas lide*;
ranas em uma estrutura partidria regional e somente depo^
se projetaram na poltica nacional. A ascenso ocorreu dentro
do partido poltico, e no, como muitos parecem supor, a
partir de uma relao carismtica direta entre o lder e as mas
sas populares. Para o autor, o carisma, quando houve, de
senvolveu-se a posteriori. Assim, a liderana de Pasqualini
impensvel fora do PTB gacho. Sem a organizao partid
ria, certamente ele seria um personagem desconhecido. Goulart
I 'Uem, p. 114
I HFranaco Weffort. Op. cit., p. 73.
-
e Brizola, por sua vez, no alcanariam a projeo nacional
sem um PTB forte a nvel regional. Mesmo Vargas, at chegar
categoria de mito poltico, lutou por quase trs dcadas para
se impor no Partido Republicano Rio-Grandense. Com base
em farta documentao, o autor rejeita as indicaes sugeridas
por Weffort de que o lder ser sempre algum que j se en
contra no controle de alguma funo pblica um presiden
te, um governador, um deputado etc."63 Em sua pesquisa, contrape Bodea:
Na avaliao de todas estas carreiras polticas (...) torna-se pa
tente que nenhum destes lderes teria desenvolvido seu prest
gio junto s massas ao menos no mbito regional sem
passar pelo crivo do partido, com suas disputas internas e a
luta constante pelo voto dos delegados s convenes partid
rias. Evidentemente, depois de verem sacramentadas suas lideranas e candidaturas no nvel partidrio, todos estes lderes criaram uma projeo prpria de liderana de massa para fora e at acima do partido.64
nesse contexto de insatisfaes e de procura de alterna
tivas que vem a pblico, em 1988, A in v e n o d o tra b a lh ism o , de Angela de Castro Gomes. Inicialmente, importante res
saltar, o trabalho foi recebido com certa inquietao. Afinal,
no se rompe com todas as premissas da noo de populismo
e, portanto, com uma tradio longamente aceita e compar
O N O M I E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O l l T I C A I f t A S I l E I R A
*Idem. Miguel Bodea. Trabalhismo t populismo no Rio Grande do Sul. Porto Ale
gre, Editora da UFRGS, 1992, p. 197.
1 0 8
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tilhada sem custos. Assim, foi preciso esperar que uma gera
o de historiadores, influenciados pelas abordagens cultu-
rais, pelas leituras antropolgicas, pela recepo da assim
chamada Histria Poltica renovada e, particularmente, pe
las idias de Thompson, estivesse receptiva para compreen
der a poltica brasileira entre 1930 e 1964 sob novos enfoques.
Dez anos aps sua primeira edio, A in ven o d o trabalhismo passou a sofrer uma nova leitura, menos inquietante e mais
reflexiva.
Seja como for, em fins dos anos 90, aqueles que recusaram
as abordagens que privilegiam a manipulao e a tutela estatal
dos trabalhadores aps 1930 deixaram de ser vozes isoladas.
Diversos autores vm contribuindo para desacreditar, uma a
uma, as premissas do populismo na poltica brasileira. As
sim, Lucflia de Almeida Neves e Maria Celina DArajo, cada.
uma sua maneira, demonstraram que o trabalhismo no se
reduziu mera manipulao poltica, e que o PTB, igualmen
te, no se resumiu a um partido de pelegos.45 Argelina Cheibub Figueiredo, em trabalho inovador, comprovou a
insustentabilidade da tese clssica que explicaria o colapso
do populismo pelas mudanas nos padres de acumulao
capitalista vale dizer, pelo determinismo econmico.64 Maria Helena Rolim Capelato, em sua pesquisa comparativa so-
"Luclia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964).
Sio Paulo, Marco Zero, 1989 veja tambm artigo da mesma autora neta
coletnea; Maria Celina DArajo. Sindicatos, carisma e poder. O PTB de
1945-65. Rio de Janeiro, Ed. da Fundao Getlio Vargas, 1996.
Argelina Cheibub Figueiredo. Democracia ou reformas? Alternativas
crdticas i crise poltica: 1961-1964. Sio Paulo, Paz e Terra, 1993.
-
bre o Estado Novo e o peronismo, relativiza o poder da pro
paganda poltica de massas. Para a autora, a eficcia das men
sagens depende dos cdigos de afetividade, costumes e ele
mentos histrico-culturais dos receptores. Sem a presena
desses elementos, uma mquina propagandstica, mesmo po
derosa e sofisticada, cai no vazio. Em teses e dissertaes que
orientou, surgem contrariedades com as premissas que insis
tem na capacidade de manipulao estatal das conscincias
pelos meios de comunicao.47 No meu prprio livro, Trabalhadores do Brasil. O imaginrio popular, procurei reconstituir,
ainda que parcialmente, idias, experincias e estratgias pol
ticas de trabalhadores e populares, demonstrando que eles no
estavam manipulados ou iludidos na poca do primeiro go
verno de Vargas."
Mais ainda, em programas de ps-graduao em Histria,
grupos de pesquisadores, instituindo escolas historiogrficas,
atualmente formam jovens historiadores crticos da noo de
populismo.
O populismo, portanto, parece entrar em colapso. Eviden
temente que no no sentido dado por Octavio Ianni, mas, sim,
em sua prpria lgica explicativa. Embora, por uma questo de
cautela, no se deva subestimar a fora das tradies.
0 N O M E E A C O I S A : O P O P U L I S M O NA P O L l T I C A I f t A S t l E I R A
7Maria Helena Rolim Capelato. Op. cit., pp. 203 e 205. Veja, da mesma
autora. Multides em cena. Propaganda poltica no varguismo e no peronismo.
Campinas, Papirut, 1998.
Jorge Ferreira. Op. cit.
t 1 0
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A INVENO" DO POPULISMO
As palavras populismo" c populista no estavam disponveis
no vocabulrio poltico e na linguagem cotidiana do pas na
poca do primeiro governo de Vargas. No existiam, simples
mente. Ento, afinal, quem inventou o populismo?
No Brasil, o primeiro historiador a defender que a propa
ganda poltica estatal se mostrou eficaz na manipulao dos tra
balhadores, e da o apoio deles a Vargas, foi Karl Loewenstein,
em livro publicado ainda em 1942. A interpretao liberal da
quele fenmeno percorre a sua anlise.49No entanto, o ano de 1945 foi crucial para a formulao e
o estabelecimento da crena de que o prestgio do ditador en
tre os assalariados urbanos constituiu obra da mquina propa-
gandstica do DIP. Nesse ano, em pleno processo de demo
cratizao, o pas conheceu uma grande mobilizao em favor
da continuidade de Vargas no poder. O queremismo, movi*
mento de propores grandiosas, somente comparado AH*
ana Nacional Libertadora e campanha das Diretas J, irri
tou profundamente os grupos liberais de oposio ao Estado
Novo. Para as foras liberais e antigetulistas, havia uma gran*
de dificuldade para compreender e assimilar manifestaes po
pulares de defesa do ditador. Nos jornais, os violentos ataques
a Vargas tornavam-se, ao mesmo tempo, argumento*
**Karl Locwenstein. Brazil undrr Vargas. Nova York, Macmillan Company,
1944 (1* ediio de 1942). Agrad