O Modalismo Na Musica Popular Urbana Do Brasil Vicente Samy Ribeiro

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O MODALISMO NA MÚSICA POPULAR URBANA DO BRASIL Autor: Vicente Samy Ribeiro , Faculdade de Artes do Paraná, Curitiba-PR Resumo Este trabalho pretende abordar os procedimentos modais adotados em composições pertencentes ao universo da música popular urbana do Brasil. Esta abordagem se dará através da análise de obras registradas em partituras e gravações, buscando localizar padrões recorrentes característicos do modalismo.. Se na primeira metade do século XX a música popular urbana é essencialmente tonal – o samba e o choro, mais impor- tantes gêneros deste período, a despeito das suas raízes rítmicas africanas, possuem uma estrutura harmônico-melódica tonal, de filiação européia – na virada para a segun- da metade do século a influência do modalismo (que sempre estivera presente na mú- sica de tradição oral) faz-se sentir, sobretudo a partir do surgimento da emblemática fi- gura de Luiz Gonzaga, introdutor dos gêneros musicais nordestinos no universo da mú- sica popular urbana, a partir dos anos 40. O modalismo renovará sua presença na obra de toda uma linhagem de sucessores de Luiz Gonzaga, influenciando ainda uma série de compositores não necessariamente ligados ao universo da música nordestina. No presente trabalho pretendemos realizar um mapeamento do modalismo na música po- pular urbana do Brasil, analisando os procedimentos harmônicos e melódicos modais adotados na composição de canções deste universo, em seus diversos períodos e gê- neros. Pretendemos ainda, a partir deste mapeamento, formular bases para a organi- zação e sistematização do repertório de música modal dentro da música popular urba- na, fornecendo subsídios para pesquisas futuras e contribuindo para a aceitação desta música no meio musical acadêmico, como gênero autêntico e de caráter artístico. palavras-chaves música popular urbana / modalismo / análise musical / harmonia

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O MODALISMO NA MÚSICA POPULAR URBANA DO BRASIL

Autor: Vicente Samy Ribeiro, Faculdade de Artes do Paraná, Curitiba-PR

Resumo

Este trabalho pretende abordar os procedimentos modais adotados em composições

pertencentes ao universo da música popular urbana do Brasil. Esta abordagem se dará

através da análise de obras registradas em partituras e gravações, buscando localizar

padrões recorrentes característicos do modalismo.. Se na primeira metade do século

XX a música popular urbana é essencialmente tonal – o samba e o choro, mais impor-

tantes gêneros deste período, a despeito das suas raízes rítmicas africanas, possuem

uma estrutura harmônico-melódica tonal, de filiação européia – na virada para a segun-

da metade do século a influência do modalismo (que sempre estivera presente na mú-

sica de tradição oral) faz-se sentir, sobretudo a partir do surgimento da emblemática fi-

gura de Luiz Gonzaga, introdutor dos gêneros musicais nordestinos no universo da mú-

sica popular urbana, a partir dos anos 40. O modalismo renovará sua presença na obra

de toda uma linhagem de sucessores de Luiz Gonzaga, influenciando ainda uma série

de compositores não necessariamente ligados ao universo da música nordestina. No

presente trabalho pretendemos realizar um mapeamento do modalismo na música po-

pular urbana do Brasil, analisando os procedimentos harmônicos e melódicos modais

adotados na composição de canções deste universo, em seus diversos períodos e gê-

neros. Pretendemos ainda, a partir deste mapeamento, formular bases para a organi-

zação e sistematização do repertório de música modal dentro da música popular urba-

na, fornecendo subsídios para pesquisas futuras e contribuindo para a aceitação desta

música no meio musical acadêmico, como gênero autêntico e de caráter artístico.

palavras-chaves

música popular urbana / modalismo / análise musical / harmonia

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Problematização

A simples observação prática de nossa música nos remete de imediato a algumas

questões. Quais as reais afinidades entre a música popular urbana e a música de tradi-

ção oral? Em que medida o modalismo pode ser entendido como um elemento agrega-

dor e unificador destes dois universos? E ainda, como se dá o aproveitamento dos ele-

mentos musicais de tradição oral por parte dos compositores da música popular urbana

e em que medida seus procedimentos diferem daqueles adotados pelos compositores

ditos “eruditos”?

Estas perguntas podem nos trazer respostas, no mínimo, reveladoras. Lamentavelmen-

te, os meios musicais acadêmicos ainda se encontram presos a categorias que organi-

zam a música em compartimentos estanques, que nem sempre fazem jus à rica e di-

versificada realidade que se afigura; música “erudita”, música “popular” e música “fol-

clórica” são conceitos cada vez mais permeáveis e imprecisos. O que faz de Camargo

Guarnieri um compositor “erudito” e Edu Lobo um compositor “popular”, se ambos do-

minam a escrita musical, a harmonia, o contraponto, a orquestração e técnicas de com-

posição como a variação e o desenvolvimento? O que torna uma canção de autor des-

conhecido mais “folclórica” que uma canção de Luiz Gonzaga? Algumas intuições, re-

sultantes de uma longa e ininterrupta prática musical, levam este autor a acreditar que

a música brasileira não cabe nas referidas categorias.

E um dos elementos reveladores desta permeabilidade de universos musicais – no en-

tender deste autor, enriquecedora – seria justamente o modalismo, elemento caracte-

rístico da tradição oral presente em parte significativa da produção da música popular

urbana. O estudo sistemático dos procedimentos modais adotados na música popular

urbana pode nos ajudar a responder algumas de nossas perguntas.

Justificativa

A música popular urbana raramente desperta o interesse dos estudiosos de música –

os trabalhos sobre MPB, em geral, são escritos por jornalistas, historiadores, “audiófi-

los”, ou ainda, curiosos, profissionais que na maior parte dos casos desconhecem os

aspectos técnicos e formais da criação musical. Este fenômeno se dá, em nosso enten-

der, devido à forte presença no meio acadêmico, ainda nos dias de hoje, do pensamen-

to de Mário de Andrade. O escritor e musicólogo paulista, que estabeleceu a distinção

entre as músicas erudita, folclórica e popular, foi em parte responsável pela estigmati-

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zação – pelo menos no meio acadêmico – da música popular urbana, supostamente

um gênero “menor”. Em seu Ensaio sobre a música Brasileira (1928) ele se refere a

uma suposta “influência deletéria do urbanismo” e sugere que o estudioso da música

do povo esforce-se para discernir “o que é virtualmente autóctone, o que é tradicional-

mente nacional, o que é essencialmente popular, enfim, do que é popularesco, feito a

feição do popular, ou influenciado pelas modas internacionais”.1 Em Música, doce

música, mais especificamente no artigo Música Popular, publicado originalmente em

1939, Andrade distila seus preconceitos ao discorrer sobre um concurso de música po-

pular realizado no Rio de Janeiro:

Nos primeiros dias deste mês deu-se enfim o grande concurso de lançamento das músicas para o

próximo carnaval. (…) Embora se trate de um gênero musical que, tal como foi apresentado, é

uma espécie de submúsica2, a festa atraiu nada menos que 300 mil pessoas.3

No geral os compositores atuais de sambas, marchinhas e frevos são indivíduos que, sem serem

nitidamente populares, já desprovidos de qualquer validade propriamente apelidável de folclórica,

sofrem todas as instâncias e aparências culturais da cidade, sem terem a menor educação musi-

cal ou poética.4

O pensamento de Mário de Andrade serviu de fundamentação para o chamado movi-

mento nacionalista, cujos compositores, em sua maioria, utilizaram-se somente da “boa

música rural”5 como fonte de inspiração para sua música de concerto.6 Um dos resulta-

dos desta estigmatização é que pouco se pesquisou, pouco se escreveu, pouco se

pensou a respeito da música popular urbana, pelo menos no que se refere aos seus

aspectos estéticos, técnicos e formais. O espaço deixado pelos musicólogos acabou

1 Andrade, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. p. 167-168 apud Wisnik, José Miguel. O Nacional e o

popular na Cultura Brasileira.

2 o grifo é meu.

3 Andrade, Mário. Música, doce música. p. 278

4 Idem. p. 279

5 Expressão utilizada por José Miguel Wisnik em O Nacional e o popular na Cultura Brasileira, não sem um

toque de fina ironia.

6 Este preconceito é reforçado ainda pelo pensamento de Theodor Adorno, que associava necessariamente a

música popular à indústria cultural, atribuindo-lhe tão somente um papel diluidor e causador de uma suposta

“regressão da escuta”. Julio Medaglia, em artigo intitulado Balanço da Bossa Nova, publicado originalmente

no Suplemento literário de O Estado de São Paulo, em 1966 defende uma posição mais flexível, distinguindo

duas categorias dentro do universo da chamada música popular: “o primeiro tem suas raízes na imaginação

popular e é aproveitado e divulgado pelo rádio, pela TV, pelo filme e pela gravação; o outro é a espécie de

música popular que é fruto da própria indústria de telecomunicação” (Campos, Augusto de [org.]. Balanço da

bossa e outras bossas. p. 68)

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sendo ocupado por respeitabilíssimos pensadores de outras áreas, como José Ramos

Tinhorão e José Miguel Wisnik, que produziram excelentes estudos sobre o assunto,

mas sempre sob uma olhar que não o musicológico, mas um olhar histórico, sociológi-

co, antropológico ou semiótico. Cabe a nós, músicos, resgatar a imensa lacuna que se

criou, e começar a emprestar o nosso conhecimento ao estudo sistemático da música

popular urbana, entendida pelo senso comum como uma expressão autêntica da cultu-

ra brasileira, mas ainda sem o correspondente reconhecimento por parte dos meios

musicais acadêmicos. Um estudo sobre o modalismo na música popular pode ser uma

pequena contribuição neste processo.

Objetivos da investigação

O objetivo central deste trabalho é mapear a produção de música modal dentro do uni-

verso da música popular urbana do Brasil, observando em que medida existe um diálo-

go entre este universo e o da música de tradição oral. Dentre os objetivos específicos,

podemos enumerar os seguintes:

• Analisar e sistematizar os procedimentos harmônicos e melódicos de caráter

modal adotados na composição de canções no universo da música popular

urbana do Brasil;

• Formular bases para a organização e sistematização do repertório de música

modal dentro da música popular urbana do Brasil;

• Contribuir para a aceitação da música popular urbana do Brasil como gênero

autêntico e de caráter artístico.

Pressupostos Teóricos

José Siqueira, em seu O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil, organiza as es-

calas presentes na música brasileira em um sistema trimodal, composto por 3 modos

denominados “reais” – modo mixolídio, modo lídio e um terceiro modo que se forma

como híbrido dos dois anteriores, com a estrutura de um modo maior com 4a aumenta-

da e 7a menor – e 3 modos “derivados”, formados a partir do 6o grau dos modos reais

(em uma relação análoga a que existe entre os modos maior e relativo menor) – modo

frígio, modo dórico, e um terceiro modo formado como híbrido dos dois anteriores, com

a estrutura de um modo menor com 2a menor e 6a maior.

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Cabe aqui acrescentar aos modos sistematizados por Siqueira o modo eólio (ou menor

natural), que na música tonal nunca aparece como modo puro, sendo freqüentemente

modificado pela alteração ascendente do 7o grau, tornando-se modo menor harmônico.

Verificaremos, em contrapartida, a sua frequente utilização – neste caso como modo

puro, sem alteração – na música modal brasileira.

José Miguel Wisnik, em seu O Som e o Sentido, ressalta o sentido de ethos desempe-

nhado pelos modos:

Nas sociedade pré-modernas, um modo não é apenas um conjunto de notas mas uma estrutura

de recorrência sonora ritualizada por um uso [. . .] As notas reunidas na escala são fetichizadas

como talismãs dotados de certos poderes psicossomáticos, ou, em outros termos, como manifes-

tação de uma eficácia simbólica (dada pela possibilidade de detonarem diferentes disposições

afetivas: sensuais, bélicas, contemplativas, eufóricas ou outras). Esse direcionamento pragmático

do modo (que se consuma no seu uso sacrificial ou solenizador), já está geralmente codificado

pela cultura, onde o seu poder de atuação sobre o corpo e a mente é compreendido por uma rede

metafórica maior, fazendo parte de uma escala geral de correspondências, onde o modo pode

estar relacionado, por exemplo com um Deus, uma estação do ano, uma cor, um animal, um astro.

Neste trabalho, iremos abordar o modalismo na música popular urbana brasileira sob

dois olhares: o olhar técnico, analítico, que identificará e sistematizará procedimentos

modais na música de compositores como Luiz Gonzaga, Baden Powell, Edu Lobo e

Guinga; e o olhar estético, que buscará identificar os efeitos simbólicos, as correspon-

dências sonoras, os sentidos que se ocultam por trás da utilização de cada uma das

estruturas modais, ou seja, dos modos enquanto ethos.

Procedimentos metodológicos utilizados para a realização da pesquisa

1. pesquisa de repertório:

Levantamento do repertório de música modal na obra de compositores que se utiliza-

ram frequentemente do modalismo em suas canções: Luiz Gonzaga, João do Vale, Do-

rival Caymmi, Baden Powell, Antônio Carlos Jobim, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré,

Sidney Miller, Edu Lobo, Guinga, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Dominguinhos, Le-

nine, Milton Nascimento, Tavinho Moura e Lô Borges. Levantamento do repertório de

música modal na obra de outros compositores da música popular urbana, que empre-

garam o modalismo como uma ferramenta eventual: Ary Barroso, Caetano Veloso, Chi-

co Buarque, Djavan, Gilberto Gil. A pesquisa se dará a partir do repertório registrado

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em partituras e, na ausência destes registros, a partir de gravações fonográficas, que

serão devidamente transcritas.

2. transcrição de partituras

Todas as canções pesquisadas serão devidamente transcritas – mesmo as que já es-

tão registradas em forma de partitura – para obter-se uma padronização de formato

gráfico. O software empregado será o Finale 2005, programa utilizado largamente na

editoração profissional de música.

3. Análise harmônica e melódica

As canções levantadas serão analisadas em sua estrutura harmônica e linha melódica.

No que se refere a linha melódica, serão observados os modos empregados e ainda,

os padrões melódicos recorrentes e sua relação com a música de tradição oral; no que

se refere à harmonia, observaremos a relação entre o material harmônico empregado e

o modo sobre o qual a linha melódica é construída, buscando também as recorrências

de padrões harmônicos. Tomaremos como ponto de partida os padrões de análise da

literatura musical; sabemos de antemão, contudo, que algumas especificidades da mú-

sica popular urbana podem criar a necessidade de se estabelecer novos critérios.

4. classificação do repertório

A partir da análise das canções, criaremos padrões para classificar o repertório, não

somente a partir dos modos empregados, mas sobretudo com base nas distintas abor-

dagens do material harmônico e melódico.

5. Relatório final

O texto final a ser produzido apresentará análises detalhadas de algumas das obras

pesquisadas, procurando contemplar toda a gama de procedimentos modais emprega-

dos na música popular urbana. Apresentaremos também análises comparativas, procu-

rando demonstrar de que maneira um mesmo material sonoro pode receber tratamen-

tos distintos. Encerrando o texto, exporemos as conclusões decorrentes da análise do

material pesquisado. Como anexo ao trabalho, apresentaremos uma listagem de todas

as obras pesquisadas, devidamente classificadas.

Contribuições que a pesquisa pretende oferecer à área de estudo

Este trabalho pretende realizar um mapeamento do modalismo na música popular ur-

bana do Brasil, analisando os procedimentos harmônicos e melódicos modais adotados

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na composição de canções deste universo, em seus diversos períodos e gêneros.

Pretende ainda, a partir deste mapeamento, formular bases para a organização e

sistematização do repertório de música modal dentro da música popular urbana,

fornecendo subsídios para pesquisas futuras e contribuindo para a aceitação desta

música no meio musical acadêmico, como gênero autêntico e de caráter artístico.

Referências Bibliográficas

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1982.

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music.com/artigos/braga

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Música. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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