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7 O mistério de Listerdale “O mistério de Listerdale” foi publicado originalmente como “The Benevolent Butler”, na Grand Magazine, em dezembro de 1925. A sra. St. Vincent fazia as contas. De vez em quando, suspirava e passava a mão pela testa dolorida. Jamais gostara de aritmética. Infelizmente, nos últimos tempos, sua vida parecia se resumir a um único tipo de opera- ção: a soma incessante de pequenos itens necessários de despesa, perfazendo um total que nunca deixava de surpreendê-la e alarmá-la. Não podia ser tanto! Refez os cálculos. Havia co- metido um erro insignificante de centavos, mas o resto estava tudo certo. A sra. St. Vincent suspirou de novo. A dor de ca- beça, a essa altura, já era quase insuportável. Ergueu os olhos quando a porta se abriu, e a filha, Barbara, entrou na sala. Barbara St. Vincent era uma menina muito bonita. Tinha os traços delicados da mãe e o mesmo formato de cabeça, mas os olhos eram pretos em vez de azuis, e a boca também era diferente, uma boca séria e vermelha, não destituída de beleza. – Mãe! – exclamou. – Ainda às voltas com essas contas horrendas? Jogue tudo no fogo. – Precisamos saber em que pé estamos – disse a sra. St. Vincent, insegura. A menina encolheu os ombros. – Estamos sempre na mesma – retrucou friamente. – No aperto. Sem um tostão, para variar.

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O mistério de Listerdale

“O mistério de Listerdale” foi publicado originalmente como “The Benevolent Butler”, na Grand Magazine,

em dezembro de 1925.

A sra. St. Vincent fazia as contas. De vez em quando, suspirava e passava a mão pela testa dolorida. Jamais gostara de aritmética. Infelizmente, nos últimos tempos, sua vida parecia se resumir a um único tipo de opera-ção: a soma incessante de pequenos itens necessários de despesa, perfazendo um total que nunca deixava de surpreendê-la e alarmá-la.

Não podia ser tanto! Refez os cálculos. Havia co-metido um erro insignificante de centavos, mas o resto estava tudo certo.

A sra. St. Vincent suspirou de novo. A dor de ca-beça, a essa altura, já era quase insuportável. Ergueu os olhos quando a porta se abriu, e a filha, Barbara, entrou na sala. Barbara St. Vincent era uma menina muito bonita. Tinha os traços delicados da mãe e o mesmo formato de cabeça, mas os olhos eram pretos em vez de azuis, e a boca também era diferente, uma boca séria e vermelha, não destituída de beleza.

– Mãe! – exclamou. – Ainda às voltas com essas contas horrendas? Jogue tudo no fogo.

– Precisamos saber em que pé estamos – disse a sra. St. Vincent, insegura.

A menina encolheu os ombros.– Estamos sempre na mesma – retrucou friamente.

– No aperto. Sem um tostão, para variar.

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A sra. St. Vincent suspirou.– Eu gostaria... – começou, mas logo parou.– Preciso encontrar alguma coisa para fazer – disse

Barbara, com voz decidida. – E encontrar logo. Afinal, fiz aquele curso de taquigrafia e datilografia. Como quase um milhão de outras meninas, por sinal! “Tem experiência?” “Não, mas...” “Ah, obrigado. Bom dia. Qualquer coisa, entramos em contato.” Só que isso nun-ca acontece! Preciso encontrar outro tipo de trabalho. Qualquer trabalho.

– Ainda não, querida – suplicou a mãe. – Espere mais um pouco.

Barbara foi até a janela e ficou olhando para fora, distraída, sem reparar na fileira de casas lúgubres do outro lado.

– Às vezes – disse hesitante – me arrependo de ter ido para o Egito com a prima Amy no inverno passado. Sei que me diverti e que talvez essa tenha sido a única diversão que já tive ou terei na vida. Aproveitei bastante. Aproveitei ao máximo. Mas fiquei muito abalada. De precisar voltar para isto, quero dizer.

Fez um gesto largo que abarcava toda a sala. A sra. St. Vincent acompanhou-o com os olhos e estremeceu. A sala era uma dessas peças mobiliadas de aluguel ba-rato. Uma aspidistra empoeirada, móveis de mau gosto, papel de parede espalhafatoso com partes desbotadas. Havia indícios de que a personalidade dos inquilinos contrastara com a da proprietária: um ou dois objetos de porcelana de boa qualidade, mas tão rachados e remendados que seu valor de venda era nulo, um bor-dado cobrindo o encosto do sofá e uma aquarela de uma moça vestida à moda de vinte anos antes, retrato fiel o suficiente, porém, para se reconhecer a sra. St. Vincent no quadro.

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– Não teria importância – continuou Barbara – se nunca tivéssemos morado em outro lugar. Mas quando me lembro de Ansteys...

Interrompeu a frase. Não desejava entregar-se às lembranças daquela casa amada, que durante séculos pertencera à família St. Vincent e agora estava nas mãos de estranhos.

– Se o papai não tivesse especulado... e feito em-préstimos...

– Minha querida – cortou a sra. St. Vincent –, seu pai nunca foi um homem de negócios.

Disse isso de modo categórico, mas não sem afeição. Barbara aproximou-se e deu-lhe um beijo meio vago.

– Pobre mãezinha – murmurou. – Não vou dizer mais nada.

A sra. St. Vincent pegou a caneta de novo e curvou--se sobre a escrivaninha. Barbara voltou à janela.

– Mãe – disse a garota, pouco tempo depois –, tive notícias de Jim Masterton hoje de manhã. Ele quer vir me visitar.

A sra. St. Vincent largou a caneta e levantou os olhos.– Aqui? – exclamou.– Bem, podemos convidá-lo para jantar no Ritz, se

quiser – ironizou Barbara.A mãe demonstrou desagrado. Olhou novamente

em torno, com profunda aversão.– Tem razão – disse Barbara. – É um lugar detestá-

vel. Pobreza refinada! Parece ótimo: uma casinha branca no campo, toda enfeitada de chitão velho de boa padro-nagem, vasos de rosas, serviço de chá de certa qualidade, que nós mesmas podemos lavar. Nos livros é assim. Na vida real, com um filho começando a trabalhar no cargo mais desprezível de um escritório, significa Londres. Senhorias desarrumadas, crianças sujas nas escadas,

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outros inquilinos que sempre parecem mestiços, peixes duvidosos no café da manhã... e por aí vai.

– Se ao menos... – ia dizer a sra. St. Vincent. – Na verdade, estou começando a ficar com medo de que não possamos mais pagar nem este lugar.

– Meu Deus! Isso significa um único ambiente para nós duas – exclamou Barbara. – Com um armário servindo de biombo para Rupert. Quando Jim vier me visitar, terei de recebê-lo naquela sala horrível lá de bai-xo, cheia de solteironas bisbilhoteiras tricotando pelos cantos, espiando a vida alheia e tossindo daquele modo pavoroso delas.

Fez-se uma pausa.– Barbara – disse a sra. St. Vincent, por fim –, você

está pensando em... quer dizer, você pretende...?Parou, corando um pouco.– Não precisa ser delicada, mãe – disse Barbara. –

Hoje em dia ninguém mais é. Se eu pretendo me casar com Jim, é isso? Eu me casaria na hora se ele me pedisse. Mas temo que isso não vá acontecer.

– Ah, minha querida...– Uma coisa é ele me ver lá, com a prima Amy, fre-

quentando (como se diz nos romances sentimentais) os salões da alta sociedade, onde ele realmente se interessou por mim. Outra é vir aqui e me encontrar nisto! Depois, ele é um sujeito engraçado, todo cheio de manias e ideias antiquadas. Eu... eu até gosto disso nele. Me faz lembrar Ansteys e o vilarejo... tudo com cem anos de atraso, mas tão... tão... ah, sei lá! Tão perfumado! Como alfazema.

Riu, um pouco envergonhada pelo próprio entu-siasmo.

– Eu faria gosto de que você se casasse com Jim Masterton – disse a sra. St. Vincent, sem rodeios. – Ele

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é um dos nossos. Também tem muito dinheiro, mas isso não faz muita diferença para mim.

– Pois para mim faz – disse Barbara. – Estou can-sada de ser pobre.

– Mas, Barbara, não é só por...– Só por isso? Não. Mas acho que faz diferença.

Eu... Ah, mãe, você não entende?A sra. St. Vincent fez uma expressão de profunda

tristeza.– Queria que ele a visse num ambiente mais ade-

quado, querida – disse com melancolia.– Paciência – retorquiu Barbara. – De que adianta

se preocupar? Devemos nos esforçar para ser mais oti-mistas. Desculpe o mau humor. Alegria.

Curvou-se para a mãe, beijou-lhe a testa de leve e saiu. A sra. St. Vincent, desistindo dos cálculos, sentou--se no sofá incômodo. Seus pensamentos giravam em círculos, como esquilos numa jaula.

“Podem dizer o que quiserem, mas as aparências realmente fazem um homem perder o interesse. Se fosse mais tarde, quando já estivessem noivos, tudo bem. Ele já saberia que ela é doce e carinhosa. Mas os jovens têm tanta facilidade de se adaptar ao meio em que vivem... Rupert, por exemplo, não é mais o mesmo. Não que eu queira que meus filhos sejam arrogantes. De jeito nenhum. Mas odiaria que o Rupert se casasse com aquela moça horrível da tabacaria. Ela é até simpática, admito. Mas não é do nosso meio. Coitada da Babs. Se eu pudesse fazer alguma coisa... qualquer coisa. Vendemos tudo para ajudar o Rupert. Na verdade, nem temos como manter isto aqui.”

Para se distrair, a sra. St. Vincent pegou o Morning Post e deu uma olhada nos anúncios da primeira pá-gina. A maioria já conhecia de cor. Pessoas à procura de dinheiro, pessoas que dispunham de capital e estavam

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ansiosas para transformá-lo em notas promissórias, pessoas que queriam comprar dentes (por que seria?), pessoas que queriam vender peles e vestidos, otimistas em relação ao preço.

De repente, um anúncio lhe chamou atenção. Leu e releu as palavras impressas.

“Apenas para pessoas de fino trato – Pequena casa em Westminster, muito bem mobiliada, para quem for cuidá-la direito. Aluguel irrisório. Tratar diretamente com o proprietário.”

Um anúncio comum. Já tinha visto muitos iguais. Ou mais ou menos iguais. Aluguel irrisório: eis a armadi lha.

Como estava inquieta e ansiosa para se ver livre de seus pensamentos, colocou um chapéu e pegou um ôni-bus que a deixasse no endereço mencionado no anúncio.

Deparou-se com uma antiga imobiliária, que nada tinha de nova ou movimentada. O lugar era, na verdade, bastante antiquado e velho. Mostrou o anúncio, com certa timidez, e pediu mais detalhes.

O senhor de cabelo branco que a atendeu coçou o queixo, pensativo.

– Perfeitamente. Sim, perfeitamente, madame. Essa casa, a casa mencionada no anúncio, fica na Cheviot Place no 7. Gostaria de fazer uma visita?

– Primeiro gostaria de saber quanto é o aluguel – disse a sra. St. Vincent.

– Ah, o aluguel! O valor exato ainda não foi esti-pulado, mas garanto que é uma ninharia.

– A ideia de ninharia varia muito – argumentou a sra. St. Vincent.

O velho deu uma risadinha.– Sim, esse truque é velho. Muito velho. Mas lhe

dou minha palavra de que desta vez não é truque. Dois ou três guinéus por semana, talvez, não mais do que isso.

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A sra. St. Vincent decidiu fazer uma visita. Não que houvesse qualquer possibilidade de que viesse alu-gar a casa, claro, mas estava curiosa para vê-la. Devia apresentar alguma desvantagem muito grande para ser anunciada por aquele preço.

Ao olhar a fachada da Cheviot Place no 7, porém, a sra. St. Vincent vibrou. A casa era magnífica. Estilo rainha Ana e em perfeito estado de conservação! Um mordomo abriu a porta. Tinha cabelo grisalho, costeletas pequenas e a calma pausada de um arcebispo. De um arcebispo muito gentil, pensou a sra. St. Vincent.

Recebeu o papel de autorização da imobiliária com ar benévolo.

– Pois não, madame. Pode entrar. A casa está pronta para ser ocupada.

Foi na frente, abrindo portas, indicando as depen-dências.

– Esta é a sala de estar, aqui é o estúdio branco, temos um banheiro social neste canto...

Era perfeita. Um sonho. Móveis todos de época, com sinas de uso, mas envernizados com muito carinho. Os tapetes do assoalho eram de cores bonitas e discretas, antigas. Em todos os ambientes havia vasos com flores novas. Os fundos da casa davam para o Green Park. O lugar tinha o encanto do passado.

Os olhos da sra. St. Vincent marejaram, e ela se esforçou para não chorar. Ansteys também tinha sido assim. Ansteys...

Será que o mordomo notara sua emoção? Se sim, era treinado demais para demonstrar. Ela gostava desses velhos criados. Dava para se sentir seguro com eles, à vontade. Como se fossem amigos.

– Linda casa – murmurou. – Muito linda. Que bom que vim vê-la.

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– É só para a senhora, madame?– Para mim, meu filho e minha filha. Mas receio

que...Não terminou a frase. Ela queria muito aquela casa.

Desesperadamente.Sentiu que o mordomo compreendera. Não olhou

para ela ao declarar de maneira desinteressada e impessoal:– Ao que me consta, madame, o proprietário exige,

acima de tudo, inquilinos adequados. O aluguel não importa para ele. Ele só quer que a casa seja ocupada por alguém que realmente goste e cuide dela.

– É o meu caso – disse a sra. St. Vincent, em voz baixa.

Virou-se para ir embora.– Obrigada por ter me ciceroneado – agradeceu

cortesmente.– Não há de quê, madame.Ficou parado à porta, muito correto e empertigado,

enquanto ela se afastava pela rua.“Ele percebeu”, pensava a sra. St. Vincent. “Sentiu

pena de mim. Também é da minha época. Bem que ele gostaria que eu a alugasse, e não algum sindicalista ou fabricante de botões! Nossa classe pode estar morrendo, mas continuamos unidos.”

No final, resolveu não voltar à imobiliária. Para quê? Podia pagar o aluguel, mas e os empregados? Uma casa daquelas precisaria de empregados.

Na manhã seguinte, encontrou uma carta na bandeja. Era da imobiliária. Oferecia-lhe a locação da Cheviot Place no 7 durante seis meses por dois guinéus semanais e continuava: “A senhora deve ter levado em consideração o fato de que os empregados permanece-rão às custas do proprietário. É uma oferta realmente excepcional”.

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Era mesmo. A sra. St. Vincent ficou tão espantada que leu a carta em voz alta. Seguiu-se um bombardeio de perguntas, e ela relatou a visita do dia anterior.

– Mãezinha dissimulada! – exclamou Barbara. – A casa é tão bonita assim?

Rupert pigarreou e deu início a um interrogatório judicial.

– Há algo por trás disso. Para mim, parece muito suspeito. Totalmente suspeito.

– Igual a este ovo – disse Barbara, torcendo o nariz. – Por que tanta desconfiança? Isso é típico seu, Rupert. Mania de ver mistério em tudo. São esses pavorosos romances policiais que você vive lendo.

– O aluguel é uma piada – disse Rupert. – Quando trabalhamos na cidade grande – acrescentou com ares de importância – ficamos sabendo de um monte de bizarrices. Estou dizendo: aí tem coisa.

– Besteira – retrucou Barbara. – A casa pertence a um homem com muito dinheiro, que gosta muito dela e quer que seja habitada por pessoas decentes enquanto ele estiver fora. Algo assim. Dinheiro provavelmente não é problema para ele.

– Qual é o endereço mesmo? – perguntou Rupert à mãe.

– Cheviot Place no 7.– Ahá! – fez, afastando-se da mesa. – Não falei? Foi

lá que lorde Listerdale desapareceu.– Tem certeza? – perguntou a sra. St. Vincent em

dúvida.– Absoluta. Ele tem um monte de casas em Londres,

mas era nessa que ele morava. Uma noite, saiu dizendo que ia ao clube e nunca mais foi visto. Disseram que fugiu para a África Oriental ou algo assim, embora

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ninguém soubesse explicar por quê. Vão por mim: ele foi assassinado nessa casa. Disse que os ambientes são todos revestidos de madeira, não?

– Sim – respondeu a sra. St. Vincent gaguejando. – Mas...

Rupert não lhe deu tempo de continuar. Começou a falar com grande entusiasmo.

– Viram? Com certeza existe alguma câmara se-creta em algum lugar. O corpo foi escondido lá, onde permanece até hoje. Talvez tenha sido embalsamado primeiro.

– Rupert, querido, não fale besteira – ralhou a mãe.– Não seja bobo – disse Barbara. – Você tem ido

demais ao cinema com aquela loura oxigenada.Rupert levantou-se, com o máximo de dignidade

que o corpo desengonçado da fase crítica da adolescência permitia, e fez um ultimato:

– Pode alugar a casa, mãe. Eu resolvo o mistério. Vocês vão ver.

Saiu apressadamente, com medo de chegar tarde ao escritório.

As duas mulheres se entreolharam.– Podemos, mãe? – murmurou Barbara com a voz

trêmula. – Ah, se pudéssemos...– Os criados – lembrou a sra. St. Vincent, de modo

patético – precisam comer. Ninguém está dizendo que não comam, claro. Mas existe esse inconveniente. Quan-do somos só nós, é mais fácil privar-se de certas coisas.

Lançou um olhar comovente para Barbara, que concordou com a cabeça.

– Precisamos pensar bem – disse a mãe.Mas, na realidade, já tinha decidido. Havia visto

o brilho nos olhos da filha. E pensou: “Jim Masterton

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precisa vê-la num ambiente adequado. Esta é a oportu-nidade. Não posso perdê-la”.

Sentou-se e escreveu à imobiliária aceitando a oferta.

– Quentin, de onde vieram esses lírios? Não posso comprar flores caras.

– De King’s Cheviot, madame. É um antigo cos-tume da casa.

O mordomo retirou-se. A sra. St. Vincent deu um suspiro de alívio. O que faria sem Quentin? Ele tornava tudo tão fácil. Pensou consigo mesma: “Isto é bom de-mais para ser verdade. Daqui a pouco sei que vou acordar e descobrir que foi só um sonho. Estou tão feliz aqui... Já se passaram dois meses. O tempo voou”.

A vida, de fato, vinha sendo surpreendentemente agradável. Quentin, o mordomo, revelara-se o autocrata da Cheviot Place no 7.

– Deixe tudo comigo, madame – dissera com res-peito. – A senhora verá que é a melhor maneira.

Toda semana, apresentava-lhe as contas da casa, com montantes incrivelmente baixos. Havia apenas duas outras criadas: uma cozinheira e uma arrumadeira, ambas muito simpáticas e eficientes, mas era Quentin quem administrava tudo. De vez em quando apareciam na mesa pratos de carne de caça e de aves domésticas, causando preocupação à sra. St. Vincent. Quentin a tranquilizava. Vinham de King’s Cheviot, a casa de campo de lorde Listerdale, ou de seu sítio em Yorkshire.

– É um antigo costume da casa, madame.No íntimo, a sra. St. Vincent duvidava de que lorde

Listerdale, se não estivesse ausente, fosse concordar com aquelas palavras. Sentia-se inclinada a desconfiar de que Quentin andava usurpando a autoridade do

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patrão. Era evidente que havia se encantado por eles e que, a seu ver, não existia nada que fosse bom demais para os três.

Com a curiosidade despertada pela declaração de Rupert, a sra. St. Vincent tentou fazer uma referência a lorde Listerdale na segunda visita à imobiliária. O velho de cabelo branco respondeu sem pestanejar.

Sim, lorde Listerdale estava na África Oriental há um ano e meio.

– Nosso cliente é um homem muito excêntrico – disse com um sorriso largo. – Saiu de Londres de uma maneira bastante insólita, não sei se a senhora lembra. Não avisou ninguém. Os jornais fizeram um grande alvo-roço. A Scotland Yard chegou a investigar. Felizmente, chegaram notícias do próprio lorde Listerdale, lá da África Oriental. Ele nomeou um primo, o coronel Carfax, como procurador. É ele quem se encarrega atualmente de todos os negócios de lorde Listerdale. Sim, bastante excêntrico, concordo. Sempre gostou muito de explorar terras desconhecidas. É quase certo que levará anos para voltar à Inglaterra, embora esteja envelhecendo.

– Não deve ser tão velho assim – disse a sra. St. Vin-cent, lembrando-se de repente de um rosto impassível, com barba, como o de um navegante elisabetano, que vira certa vez numa revista.

– Está na meia-idade – disse o velho de cabelo branco. – Tem cinquenta e três anos, segundo Debrett.

A sra. St. Vincent repetiu essa conversa para Rupert, com o intuito de repreender o rapaz.

Rupert, contudo, não se deixou impressionar.– Para mim, isso está ficando cada vez mais suspeito

– declarou. – Quem é esse coronel Carfax? Provavel-mente herdará o título se alguma coisa acontecer com lorde Listerdale. A carta da África Oriental deve ter sido

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forjada. Daqui a três anos, ou o tempo que for necessá-rio, esse Carfax alega que o outro homem morreu e se apossa do título, assumindo controle de todos os bens nesse ínterim. Muito suspeito.

Condescendeu em aprovar a casa. Nos momentos de folga, batia de leve no forro de madeira e fazia cálculos elaborados para descobrir a possível localização de um compartimento secreto, mas, com o tempo, foi perdendo interesse no mistério de lorde Listerdale. Também ficou menos entusiasmado em relação à filha do dono da tabacaria. O meio realmente influi.

Para Barbara, a casa trouxe enorme satisfação. Jim Masterton voltara para a Inglaterra e fazia-lhe visitas frequentes. Ele e a sra. St. Vincent se davam maravilho-samente bem, e um dia ele disse a Barbara uma coisa que a surpreendeu.

– Esta casa é o lugar perfeito para a sua mãe.– Para a minha mãe?– Sim. A casa foi feita para ela! Ela pertence a este

lugar de uma maneira extraordinária. Agora, tem alguma coisa estranha aqui. Algo sobrenatural.

– Não vá dar uma de Rupert – implorou Barbara. – Ele está convencido de que o malvado coronel Carfax assassinou lorde Listerdale e escondeu o cadáver debaixo do assoalho.

Masterton riu.– Admiro o espírito investigador de Rupert, mas

não foi isso o que eu quis dizer. Existe alguma coisa no ar, uma atmosfera que não dá para entender direito.

Eles já estavam há três meses na Cheviot Place quando Barbara apareceu diante da mãe com o rosto radiante.

– Jim e eu... ficamos noivos. Sim, ontem à noite. Ah, mãe. Parece um sonho se realizando!