O Metal em Porto Alegre na Década de 1980

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O Metal em Porto Alegre na Década de 1980

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    Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH)

    Departamento de Histria

    Mateus Felipe Weber

    O Metal em Porto Alegre na Dcada de 1980: identidade, tribo e

    atuao espetacular

    Monografia apresentada Faculdade de Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial obteno do ttulo de bacharel em Histria.

    Orientadora: Prof. Dra. Regina Weber

    Porto Alegre, Junho de 2012

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    Sumrio

    INTRODUO ................................................................................................................ 3 1- Juventude e Rockn roll ............................................................................................ 3 2 Tribo, estilo, identidade ........................................................................................... 8 3 - Objetivos deste estudo e os meios de pesquisa ..................................................... 11

    1 METAL E ATUAO ESPETACULAR ............................................................... 17 1 Origens do gnero musical ................................................................................... 17 2 O Metal vai s ruas: atuao espetacular .............................................................. 21

    2 A TRIBO EM PORTO ALEGRE ............................................................................. 31 1 Os Primeiros contatos e a Megaforce ................................................................... 31 2 Atuao espetacular e represso: a Osvaldo Aranha e imediaes ...................... 38 3 A consolidao do estilo e da identidade: a estratgia do segredo ....................... 44

    Concluso ....................................................................................................................... 49 Referncias Bibliogrficas .............................................................................................. 53 Fontes ............................................................................................................................. 56

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    INTRODUO

    Ao andarmos pelas ruas, praas, espaos de circulao de pedestres pela cidade, identificamos um sem-nmero de grupos, que se diferenciam pelas vestimentas, posturas, cabelos, acessrios e imagens que estampam em camisetas, bottons, bons. Grupos que se espalham internacionalmente, e que apesar de diferenas regionais, possuem um corpo de elementos que se repetem em Tquio, Londres, Nova York, So Paulo ou Porto Alegre, e na maioria dos centros urbanos mdios e grandes do mundo. So os punks, os rappers, os rastafris. Em comum, a preferncia por um determinado tipo de msica e o investimento de tempo e recursos para explicitar esse gosto de acordo com padres pr-determinados. H uma escolha consciente por um visual, posturas e atividades que lhes conferem um reconhecimento perante os seus e tambm perante o outro. Com esta monografia, pretendo trabalhar, basicamente, com um desses grupos, que no incio da dcada de 80 em Porto Alegre constituiu-se em torno de um interesse musical em comum: o Metal1. Este objetivo ser melhor explicitado abaixo, aps uma reviso de alguns referenciais tericos importantes para este estudo: as que tratam de juventude, ou, mais explicitamente, cultura juvenil, com nfase nos estudos sobre grupos juvenis vinculados ao rockn roll, e as discusses sobre noes como estilo, tribo, identidade e outras.

    1- Juventude e Rockn roll

    Considero importante, para uma melhor elucidao do tema, algumas reflexes preliminares de carter terico sobre juventude e sobre o universo cultural do rockn roll, do qual a tribo em questo herdeira direta.

    Um importante centro de referncia para quem estuda um assunto como o que est aqui proposto foi o Centre for Contemporany Cultural Studies (CCCS) de Birmingham, na Inglaterra, especialmente com a obra Resistance Through Rituals:

    1 Apesar de ser conhecido comumente pelo termo Heavy Metal, para os apreciadores esse termo refere-se

    um gnero especfico dentro do universo musical mais amplo. Por esse motivo, nesse trabalho utilizarei Metal, com letra maiscula, para referir-me ao todo musical que abrange todos os inmeros diferentes sub-gneros, por levar em conta que todos os sub-gneros terminam com a palavra Metal (Heavy Metal, Death Metal, Black Metal, Melodic Metal, Thrash Metal, entre outros).

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    Youth Subcultures in Post-war Britain2. Editado por Stuart Hall e Tony Jefferson, durante muito tempo essa obra foi referncia bsica adotada por estudiosos do tema3. O trabalho dos autores debrua-se vez sobre as subculturas juvenis, termo adotado e defendido por esses estudiosos. Tornam-se objetos da academia alguns grupos que surgiram na Inglaterra no ps-guerra, como os mods, teds e rude boys4, e mais tarde os punks.

    A partir da dcada de 90, esses estudos foram alvos de crticas por parte de inmeros autores de diversas partes do mundo. Essas crticas foram esmiuadas atravs da obra After Subcultures: critical studies in Contemporany Youth Culture organizada por de Andy Bennett e Kahn-Harris5. As principais crticas apontadas contra as obras do grupo ligado ao CCCS, conforme Joo Freire Filho e Fernanda Fernandes6 so: o elitismo cultural, ao distinguir as apropriaes criativas das subculturas do consumo passivo da maioria dos jovens; posicionamentos tericos genricos, sem se deter detalhadamente em cada um desses grupos; a definio de classe como fator central para a elaborao desses estilos; e a celebrao romntica e ingnua da autenticidade e do poder de resistncia desses grupos. Entre os autores da coletnea, alguns trabalharam especificamente com o Metal, como o caso de Keith Kahn-Harris7, Harris M. Berger8, entre outros9. Embora sejam inmeros trabalhos, a maioria deles segue sem traduo no Brasil e disponveis somente via importao, no tendo sido possvel examin-los neste Trabalho de Concluso de Curso, pois isto demandaria tempo e recursos que esto aqum dos objetivos e expectativas deste trabalho.

    H dois aspectos recorrentes na bibliografia consultada sobre o assunto e que pretendo analisar com mais apuro: em primeiro lugar, a afirmao de que esses grupos

    2 HALL, Stuart, JEFFERSON, Tony. Resistance Through Rituals: Youth subcultures in post-war

    Britain. Birminghan, Hiper Collins Academic, 1976. 3 Como por exemplo WILLIS, Paul E. Profane Culture. Londres, Routledge, 1978. HEBDIGE, Dick.

    Subculture: The Meaning of Style. Londres, Routledge, 1979. 4 Grupos esses formados por jovens proletrios ingleses, que muito influenciaram o punk que surgiria

    mais tarde. 5 BENNETH, Andy & KAHN-HARRIS, Keith (editores). After Subcultures: critical studies in

    Contemporany Youth Culture. New York, Pallgrave Macmillan, 2004. 6 FILHO, Joo Freire; FERNANDES, Fernanda. Jovens, Espao Urbano e Identidade: Reflexes sobre o

    Conceito de Cena Musical. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CINCIAS DA COMUNICAO, 28, 2005. So Paulo: Intercom, 2005. Disponvel em: www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R1261-1.pdf. Acessado em 25/06/2012. 7 KAHN-HARRIS, Keith. Extreme Metal: Music and Culture on the Edge. Oxford: Berg Publishers,

    2007. 8 BERGER, Harris. Metal, Rock and Jazz: Perception and the Phenomenology of Musical

    Experience. Wesleyan University Press: Hanover, 1999. 9 H uma lista de trabalhos elaborada por Keith Kahn-Harris disponvel online em

    http://www.keithkahnharris.pwp.blueyonder.co.uk/metalstudies.htm. Acessado em 25/06/2012.

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    seriam constitudos em sua maioria por jovens; e, em segundo lugar, que a sua preferncia musical seria o elemento central e constituinte de toda uma formulao de identidade. Aplicando esse raciocnio ao objeto aqui estudado, essa preferncia musical no caso deste Trabalho de Concluso de Curso o Metal. Portanto, pretendo fazer algumas consideraes sobre a discusso da noo de juventude e sobre o quadro de gneros musicais juvenis.

    preciso ressaltar que a infncia e a juventude devem ser entendidas como categorias sociais historicamente construdas e socialmente variveis, tanto de sociedade para sociedade quanto dentro de uma mesma sociedade, atravs do tempo e de suas divises internas. Seguindo o quadro proposto por Aris10, na sociedade europeia, a partir do sc. XVII, a famlia volta-se para a esfera do privado, transformando-se e polarizando a vida social. Juntamente com o aparecimento das escolas, a criana deixa de conviver com os adultos e o aprendizado informal e dirio substitudo por uma educao institucionalizada e formal. Assim, a infncia, pela primeira vez, aparece como uma categoria social destacada, e a condio juvenil est intimamente ligada separao social criada pela escola. Portanto, com o prolongamento do tempo escolar e de preparao para a vida produtiva nos sculos XVIII e XIX, gradativamente surge a noo de um perodo intermedirio entre a infncia e a vida adulta: a juventude. Ao longo do tempo, a instruo escolar deixa de ser apenas privilgio da burguesia e da aristocracia para ir gradualmente se estendendo ao conjunto mais amplo da sociedade, culminando com o ensino universal e obrigatrio no sc. XX. A juventude passa a abarcar outros setores sociais e se diversifica, e nas primeiras dcadas do sc. XX pode-se dizer que a juventude nasce como um amplo contingente populacional ao redor de quase todas as sociedades do mundo, sendo cada vez mais reconhecida como um sujeito social especfico, com questes, experincias e formulaes prprias.

    Segundo Abramo11, aps a 2 Guerra Mundial surge um novo ciclo de desenvolvimento industrial, aumentando a renda das famlias e as possibilidades de emprego para os jovens recm sados da escola. H tambm uma maior valorizao do tempo do lazer, vinculado reduo da jornada de trabalho, gerando um aumento da oferta dos bens de consumo, que ocorre concomitantemente com o aumento de importncia e de difuso dos meios de comunicao, que criam cada vez mais uma

    10 Para um maior detalhamento, sugiro a leitura de ARIS, Philippe. Histria Social da Criana e da

    Famlia. Rio de Janeiro: LTC, 1978. 11

    ABRAMO, Helena W. Cenas Juvenis: punks e darks no espetculo urbano. So Paulo: Pgina Aberta, 1994.

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    cultura de massas. Os salrios recebidos pelos jovens acabam, mesmo que reduzidos a uma pequena quantia, por representar dinheiro para ser gasto de forma autnoma, transformando-os em consumidores. Esse dinheiro empregado especialmente no lazer e no tempo livre, e essa demanda rapidamente atendida por parte da indstria, comrcio e publicidade, que passam a produzir bens especficos para esse pblico. Ainda segundo Abramo, est montado assim o cenrio para o surgimento de uma cultura juvenil ampla e internacional, ligada ao tempo livre e ao lazer, que abarca novas atividades e espaos de diverso e novos padres de comportamento, especificamente juvenis, que produzem uma srie de atritos e conflitos com as normas e as instituies e seus representantes12. Essa nova cultura juvenil se propaga velozmente ao redor de todo o mundo atravs dos meios de comunicao: o rdio e a recm surgida televiso, e se espalha por diversos setores sociais.

    Parafraseando Abramo, o maior smbolo dessa nova cultura juvenil o rockn roll, que aparece como uma msica delimitada etariamente, especificamente juvenil, como uma linguagem internacional da juventude, que acompanha e expressa todas essas novas atividades de lazer13. Surgido alguns anos antes, o rockn roll aparece como um blues acelerado e eletrificado, e que no se limita apenas esfera musical, mas que pode ser visto como uma sntese dessa emergente condio juvenil. Assim, o rock melhor compreendido, segundo Silva, como uma formao cultural que est sempre em relao com outras prticas sociais e culturais, se configurando como um espao de negociao da juventude com as possibilidades oferecidas pelas sociedades contemporneas14.

    Se no incio o rockn roll est ligado a uma nova condio de independncia e autonomia juvenil, nos anos 1960 ele adquire uma postura explicitamente politizada, tornando-se veculo de protesto contra a guerra do Vietn, acompanhando a revoluo dos costumes e a utopia hippie de mudana do status quo, alm de servir de trilha sonora para as diversas manifestaes estudantis ao redor do mundo. O rockn roll acompanha toda uma mudana da condio juvenil, no contexto de uma gerao, conforme Abramo, menos disposta a adaptar-se servido da civilizao ocidental tecnocrtica e burocrtica, uma vez que os novos hbitos de consumo e liberdade

    12 ABRAMO, Op. Cit., p. 28.

    13 ABRAMO, Op. Cit., p. 30.

    14 SILVA, Jaime Luis da. O Heavy Metal na Revista Rock Brigade: Aproximaes entre Jornalismo

    Musical e Identidade Juvenil. 2008. Dissertao de Mestrado em Jornalismo, Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Informao. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. P. 52.

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    favorecem uma atitude de crtica disciplina produtiva15, e que busca novas maneiras de interpretar e se posicionar no mundo. Assim, a juventude para a autora aparece como um foco de contestao radical da ordem poltica, cultural e moral, empenhada numa luta contra o establishment, reivindicando uma inteira reverso do modo de ser da sociedade16. Nesse perodo, o rockn roll aparece como um interlocutor privilegiado, e no contexto dos megafestivais de msica que essas experincias de transformao e novas maneiras de se posicionar e interpretar o mundo vo ser testadas e explicitadas pelos meios de comunicao.

    Na dcada de 1970, o rockn roll perde seu papel de grande unificador dessa cultura juvenil, e passa por um perodo de fragmentao, onde a unio hippie substituda, segundo Silva, por uma mirade de sub-gneros, cada um refletindo tenses de segmentos mais ou menos especficos dentro do pblico, com seus prprios valores e leituras de mundo, mas sempre buscando ser um espao de diferenciao17. Portanto, vive-se uma diluio dessas experincias revolucionrias e uma desiluso com os ideais utpicos da dcada anterior. Esse novo quadro acaba por no suprir as necessidades simblicas de toda uma nova gerao de jovens que esto ingressando no mercado de trabalho e no consumo de bens culturais. Segundo Abramo,

    as novas geraes (...) so as primeiras a incorporar as mudanas em seu sistema de comportamento. A juventude tem maiores possibilidades de desenvolver contatos originais com a cultura. As pessoas mais velhas, que vivem dentro de um quadro de referncias j consolidadas, adquiridas pessoalmente em experincias passadas, vivem as novas experincias de forma j em grande parte determinada por esse molde anterior.18

    Portanto, estes jovens buscam novas formas de experimentar e de dialogar com a realidade atravs de sua produo cultural, seus gostos e padres de consumo. Assim, criam-se inmeros gneros diferenciados, marcados por uma nova forma de socialidade: as tribos, conceito criado por Maffesoli19 que pretendo utilizar neste trabalho.

    15 ABRAMO, Op. Cit., p. 39.

    16 ABRAMO, Op. Cit., p. 39.

    17 SILVA, Op. Cit., p. 53.

    18 ABRAMO, Op. Cit., p. 49.

    19 MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: O declnio do individualismo nas sociedades de

    massa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1998.

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    2 Tribo, estilo, identidade

    Com esse novo contexto cultural juvenil, marcado pela valorizao do tempo livre e do lazer, e com a ausncia de um grande denominador agregador de ordem poltica, econmica e/ou social, ou seja, sem projetos especficos para defender, faz sentido pensar nas formas de agregao que se seguiram, e nos discursos e prticas que se construram, atravs de um fenmeno chamado por Maffesoli de neotribalismo. O conceito de neotribalismo diz respeito a uma forma de socialidade inerente ps-modernidade, onde o pertencimento grupal no est mais amarrado a aspectos tnicos, territoriais ou de classe, mas sim aos gostos em comum, as atividades conjuntas no tempo do lazer e aos ritos compartilhados. As formaes criadas no mbito do neotribalismo so chamadas de tribos. com este referencial terico, tribos e neotribalismo, que pretendo trabalhar neste estudo.

    O termo tribo deve ser entendido como uma metfora, e, segundo Pais, o que a metfora tribo sugere a emergncia de novas formaes sociais que decorrem de algum tipo de reagrupamento entre quem, no obstante as suas diferenas, procura uma proximidade com outros que, de alguma forma, lhe so semelhantes... (...) , pois, em formas de socialidade que devemos pensar quando falamos de tribos urbanas, socialidades que se orientam por normas auto-referenciais de natureza esttica e tica e que assentam na produo de vnculos identitrios.20

    Portanto, as tribos possuem duas dimenses: uma dimenso tica e uma esttica. Para Feixa21, essas duas dimenses constituem um estilo, termo com o qual pretendo trabalhar no presente texto22. Segundo Feixa, estilo

    la manifestacin simblica de las culturas juveniles, expresada em un conjunto ms o menos coherente de elementos materiales (esttico) e inmateriales (tico), que los jvenes consideran representativos de su identidad como grupo (...). Lo que hace un estilo es la organizacin activa de objetos (esttico) con actividades y valores (tico) que producen y organizan una identidad de grupo. 23

    Assim, o termo estilo possui dois aspectos: o primeiro deles esttico (roupas, cabelos, acessrios, formas de atuao) e o segundo deles tico (valores,

    20 PAIS, Jos Machado. Tribos Urbanas. Produo Artstica e Identidades. Lisboa: Imprensa de

    Cincias Sociais, 2004. P. 18. 21

    FEIXA, Carles. De Jvenes, bandas e tribus. Barcelona: Ariel, 1999. 22

    Neste texto, estilo quando estiver grafado entre aspas refere-se ao conceito especfico aqui explicitado. Quando grafado normalmente ou nas citaes, pode referir-se ao estilo musical enquanto sinnimo de gnero musical. 23

    FEIXA, Op. Cit., p. 97. Parnteses meus.

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    smbolos, ritos), e na relao entre esses dois aspectos que se constitui um estilo: pois o aspecto tico sem o elemento esttico no constitui um estilo visto que no

    funciona como elemento identitrio por no permitir um reconhecimento perante os iguais nem perante o outro; e o aspecto somente esttico sem o elemento tico no

    gerador de identidade por no possuir essa inteno. Alis, esse um medo constante dessas tribos: o esvaziamento de sentido pela indstria de consumo (a moda).

    A criao de um estilo possibilita o surgimento de uma tribo, pois, segundo Maffesoli, o neotribalismo uma forma especfica assumida pela socialidade em nossos dias: o vaivm massas-tribos. (...) De fato, ao contrrio da estabilidade induzida pelo tribalismo clssico, o neotribalismo caracterizado pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela disperso. E assim que podemos descrever o espetculo da rua nas megalpoles modernas24. Assim, na espontaneidade e no fugaz do estar junto que reside o potencial criativo de uma tribo. Ainda segundo Maffesoli,

    o estar-junto um dado fundamental. Antes de qualquer outra determinao ou qualificao ele consiste nessa espontaneidade vital que assegura a uma cultura sua fora e sua solidez especficas. Em seguida, essa espontaneidade pode se artificializar, quer dizer, se civilizar e produzir obras (polticas, econmicas, artsticas) notveis.25

    Ou seja, a socialidade neotribal que se desenvolve no lazer e no consumo possui caractersticas que, aps incorporadas, so, segundo Brandini, perpetuadas, ultrapassando a vida de seus fundadores e vivendo atravs das geraes, atraindo novos adeptos26. Dessa maneira, a criao de um estilo que assegura a perpetuao da tribo. Ou, segundo Maffesoli, referindo-se ao punk, a esttica um meio de experimentar, de sentir em comum e , tambm, um meio de reconhecer-se. (...) os matizes da vestimenta, os cabelos multicoloridos e outras manifestaes punk, servem de cimento. A teatralidade instaura e reafirma a comunidade27. Ou, ainda segundo Maffesoli: a sensibilidade coletiva, originria da forma esttica acaba por constituir uma relao tica28.

    O estilo , antes de tudo, uma atividade criativa. Numa relao complexa com a indstria do consumo, ela se define com a seleo consciente e intencional de determinados objetos providos por essa indstria e sua reorganizao baseada em

    24 MAFFESOLI, Op. Cit., p. 107.

    25 MAFFESOLI, Op. Cit., p. 115.

    26 BRANDINI, Valria. Cenrios do Rock: mercado, produo e tendncia no Brasil. So Paulo: Olho

    Dgua, 2004. Apud SILVA. Op. Cit. P. 57. 27

    MAFFESOLI, Op. Cit., p. 107. 28

    MAFFESOLI, Op. Cit., p. 27.

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    cdigos simblicos prprios. Assim, ao criar um estilo baseado nessa opo por um determinado gnero musical, segundo Abramo, o grupo passa a ser simbolizado pelas peas que usa, e o estilo torna-se uma significativa manifestao da identidade do grupo e das questes por ele formuladas29. O estilo aparece, ainda segundo Abramo, no cruzamento dos campos do lazer, do consumo, da mdia, da criao cultural e lidam com uma srie de questes relativas s necessidades juvenis desse momento. Entre elas, a necessidade de construir uma identidade em meio intensa complexidade e fragmentao do meio urbano30.

    O conceito de identidade que utilizarei tambm est presente em Maffesoli, para quem a identidade diz respeito tanto ao indivduo quanto ao grupamento no qual este se situa. (...) De fato, a identidade em suas diversas modulaes consiste, antes de tudo, na aceitao de ser alguma coisa determinada31. Participar neste ser alguma coisa determinada exige um investimento de tempo e esforo. Nesse contexto, a participao no rito adquire extrema importncia, pois como afirma Maffesoli, o projeto de futuro, o ideal, j no servem mais de cimento para a sociedade, o ritual, confirmando o sentimento de pertena (identidade), pode representar esse papel e, assim, permitir que os grupos existam32. Assim, segundo Maffesoli,

    a confiana que se estabelece entre os membros do grupo se exprime atravs de rituais, de signos de reconhecimento especficos, que no tm outro fim seno o de fortalecer o pequeno grupo contra o grande grupo. A partilha secreta do afeto, ao mesmo tempo em que confirma os laos prximos, permite resistir s tentativas de uniformizao.33

    Dessa forma, se explicita o conceito de identidade que utilizarei nesse trabalho: o sentimento de pertena que se manifesta atravs da adoo de determinado estilo, para assim delimitar espaos e marcar a diferena dos outros estilos, e como forma de resistncia incorporao e assimilao pelo todo social. Vale lembrar que essa identidade no totalitria, mas uma das muitas que podem ser assumidas na sociedade ps-moderna: nesse trabalho, a identidade que me refiro sempre a identidade tribal.

    O conceito de neotribalismo de Maffesoli nos permite pensar os grupos que se criam atravs dessa socialidade, as chamadas tribos; como o desenvolvimento de

    29 ABRAMO, Op. Cit., p. 88.

    30 ABRAMO, Op. Cit., p. 82.

    31 MAFFESOLI, Op. Cit., p. 92.

    32 MAFFESOLI, Op. Cit., p. 196. Parnteses meus.

    33 MAFFESOLI, Op. Cit., p. 131.

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    um estilo prprio ao redor de um gnero musical especfico garante a continuidade da tribo; e como esse estilo constituinte de identidade.

    3 - Objetivos deste estudo e os meios de pesquisa

    Tendo em vista as discusses tericas explicitadas at este momento, coloco como objetivo central do trabalho: em primeiro lugar, a tentativa de apreender como se construiu esta tribo urbana na cidade de Porto Alegre na dcada de 1980; em segundo lugar, os elementos mais importantes na elaborao do seu estilo e que possibilitaram a formao de uma identidade especfica; e por ltimo, os modos atravs dos quais ocorria sua atuao.

    Salvo engano, no localizei estudos acadmicos sobre o Metal em Porto Alegre e a atuao dessa tribo, salvo de forma tangencial, como, por exemplo, no trabalho de Regina Weber, Os Rapazes da RS 030: Jovens Metropolitanos nos anos 80, e no livro Gauleses Irredutveis: Causos e Atitudes do Rock Gacho34. H, sem dvida, estudos sobre grupos juvenis, identificados ou no com um gnero musical, sejam do Brasil ou de outros lugares do mundo, como por exemplo o trabalho organizado por Jos Machado Pais intitulado Tribos Urbanas: reflexes sobre o conceito de cena musical35, e o trabalho organizado por Keith Kahn-Harris e Andy Benneth intitulado Subcultures: critical studies in Contemporany Youth Culture36, e tambm o trabalho de Helena Abramo, que me foi muito esclarecedor na escrita deste trabalho de concluso de curso, denominado Cenas Juvenis: punks e darks no espetculo urbano 37, entre outros38.

    H muitos trabalhos sobre o movimento punk, como o j citado de Helena Abramo, o trabalho de Janice Caiafa intitulado Movimento Punk na Cidade: A invaso dos bandos sub39, o livro de Helenrose Aparecida da Silva Pedroso, intitulado Absurdo da Realidade: o Movimento Punk40, o trabalho de Antnio Bivar denominado O que

    34 WEBER, Regina. Os Rapazes da RS-030: jovens metropolitanos nos anos 80. Porto Alegre: Editora

    UFRGS, 2004; e VILA, Alisson; BASTOS, Cristiano; MLLER, Eduardo. Gauleses Irredutveis: Causos e Atitudes do Rock Gacho. Porto Alegre: Editora Sagra-Luzzatto, 2002. 35

    PAIS, Op. Cit. 36

    BENNETH, Andy & KAHN-HARRIS, Keith (editores). Op. Cit. 37

    ABRAMO, Op. Cit. 38

    Como por exemplo FEIXA, Op. Cit.; e FILHO, Joo Freire; FERNANDES, Fernanda, Op. Cit. 39

    CAIAFA, Janice. Movimento Punk na Cidade: A invaso dos bandos sub. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 40

    PEDROSO, Helenrose Aparecida da Silva. Absurdo da Realidade: o movimento punk. Campinas: Editora Hucitec, 1983.

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    Punk41, alm da dissertao de mestrado de Marina Arajo denominado Os Novos Homens e a Adorao do Presente - A cena punk/new wave em Nova York - 1967-197742.

    Entretanto, especificamente sobre Metal, pode-se dizer que no h estudo especfico para o caso de Porto Alegre, e, dessa forma, este estudo pode preencher uma lacuna, e trazer alguma luz sobre a atuao desta tribo em Porto Alegre, que at agora me parece no teve sua atuao como objeto de anlise pela academia. Por isso, acredito que esse trabalho se justifica por seu ineditismo, e vem a somar-se ao trabalho de outros pesquisadores que se debruam sobre o universo cultural do Heavy Metal no Brasil, autores que sero analisados no prximo captulo.

    Alm deste captulo introdutrio, esta monografia ter dois captulos e uma concluso. No primeiro captulo, denominado Metal e Atuao Espetacular, fao uma breve descrio do gnero, atravs de sua cronologia e da anlise bibliogrfica, e tambm descrevo o conceito de atuao espetacular, que considero importante para entender a tribo. Para isso, a fonte utilizada foi a bibliografia consultada43.

    O segundo captulo, denominado A Tribo em Porto Alegre, que o captulo essencial deste trabalho de concluso de curso, e, justamente por isso, mais longo que os anteriores, ir tratar especificamente de como se deram os primeiros contatos dos envolvidos com esse gnero musical, como se articulou uma tribo em torno desse gosto musical em comum, quais os elementos valorizados enquanto formadores de identidade pelos envolvidos, e algumas caractersticas dessa atuao espetacular na cidade de Porto Alegre.

    Por fim, na concluso, pretendo colocar alguns motivos que me levaram escrita deste trabalho, e o que pretendi com a realizao do mesmo.

    Reconheo que muitas das informaes contidas no segundo captulo no partiram de uma exaustiva leitura da bibliografia ou de uma minuciosa anlise das fontes, mas sim de uma vivncia enquanto headbanger44 de uma maneira no

    41 BIVAR, Antnio. O que punk. So Paulo: Brasiliense, 1982.

    42 ARAJO, Marina Corra da Silva de. Os Novos Homens e a Adorao do Presente - A cena punk/new

    wave em Nova York - 1967-1977. Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-Graduao em Histria. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. 43

    Meu domnio da lngua inglesa, mesmo que com limitaes, foi fundamental para a realizao deste trabalho de concluso de curso, devido utilizao de bibliografia escrita nesta lngua. 44

    Pretendo trabalhar com este termo para me referir aos fs de Metal. Escolho esse termo por ser o preferido pelos prprios integrantes da tribo para se autodenominarem. Significa, numa traduo livre, batedores de cabea, numa referncia dana tpica da tribo executada durante as apresentaes das

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    acadmica e a partir do ponto de vista do f. Porm, acredito que isso no diminua ou invalide este trabalho do ponto de vista cientfico. Muito pelo contrrio, pois percebi que muito do que pude acessar atravs das entrevistas era fruto de um reconhecimento e de uma confiana pr-estabelecida. Campoy identifica o mesmo fenmeno, quando diz que

    Percebi que haviam duas formas distintas de abord-los e a cada uma correspondiam respostas diferentes. Se eu me apresentasse como um antroplogo interessado em pesquisar o underground geralmente recebia olhares desconfiados, respostas evasivas e recusas para entrevistas e conversas. Uma descrena, uma suspeita se expressava quando deixava claro, no primeiro contato, que meu interesse era obter dados para minha dissertao. Por outro lado, quando me apresentava como um praticante de metal extremo, um ouvinte, ex-integrante de banda e conhecedor das bandas e das gravaes underground a recepo era outra. Eu era aceito, simplesmente aceito como mais um deles, um insider.45

    Dessa maneira, muitas das informaes desta dissertao foram recolhidos em conversas informais, muitas vezes, andando por ruas, ouvindo discos, por contatos que, genericamente, podem ser denominados pesquisa de campo, embora sem a rigidez terica que esse termo suscite, pois a pesquisa de campo uma metodologia amplamente empregada por antroplogos e que possui um corpo vastssimo de bibliografia e discusso terica, qual me considero despreparado para realizar visto que a formao de um historiador no contempla essa metodologia. Alm disso, h diferenas significativas no uso dos depoimentos: para Micaela Di Leonardo, nas palavras de Regina Weber, a nfase dos primeiros (antroplogos) intercultural e no presente, enquanto os segundos (historiadores) trabalham numa perspectiva intracultural e relativa ao passado46.

    Portanto, para atingir os objetivos deste trabalho, e especialmente do captulo 2, vali-me de fontes orais, atravs de entrevistas com pessoas que tiveram, ao meu ver, uma importncia e uma atuao significativas durante o perodo analisado. As entrevistas foram realizadas com trs pessoas: Flvio, baixista e vocalista da banda Leviaethan, banda esta com 2 lbuns lanados e uma das precursoras do gnero no Rio Grande do Sul; Andr, vocalista da banda Distraught, banda esta que conta com 5

    bandas, ou at mesmo no ato de ouvir uma msica, sozinho ou em grupo. Evito o termo metaleiro, que rejeitado pelos integrantes da tribo, por motivos que sero explicitados. 45

    CAMPOY, Leonardo Carbonieri. Trevas Na Cidade: O underground do metal extremo no Brasil. Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-Graduao em Antropologia e Sociologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. P. 32. 46

    DI LEONARDO, Micaela, apud WEBER, Regina. Relatos de Quem Colhe Relatos: pesquisas em histria oral e cincias sociais. Dados. Rio de Janeiro, v. 39, n. 1, 1996. P. 65.

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    lbuns lanados, e membro reconhecido da tribo na dcada de 1980, participando da tribo desde os 13 anos de idade; e Mrcio, proprietrio da loja especializada A Place, que, ingressou na tribo num momento um pouco posterior, em torno de 1985, mas justamente por isso foi de extrema importncia para analisar a atuao da tribo ao longo da dcada.

    Optei por utilizar somente o primeiro nome dos entrevistados, que autorizaram a utilizao de suas entrevistas para este trabalho assim como de seus nomes47. Regina Weber problematiza essa questo, ao indagar: a obteno da autorizao no se constitui em mais um elemento constrangedor em uma relao j to marcada pelas diferenas entre dois mundos, o do pesquisador e o do pesquisado?48 No caso especfico deste trabalho de concluso, acredito que no, pois como j explicitei, pretendi deixar claro que era um integrante da tribo para obter acesso informaes que, acredito, dificilmente seriam obtidas por um no-integrante da tribo, por medo de incompreenso. Alm disso, percebi um sentimento de orgulho ao relatar sua trajetria e atuao dentro do Metal.

    Tambm optei por utilizar um pequeno nmero de entrevistas: foram realizadas duas entrevistas com Flvio (em 30/04/2009 e 12/05/2012), uma entrevista com Mrcio (em 08/05/2009) e uma entrevista com Andr (em 18/11/2009), cada uma com aproximadamente uma hora e meia de durao. No utilizei um questionrio pr-elaborado, mas sim um roteiro com assuntos a serem esgotados sem uma ordem pr-definida. Essa metodologia me parece mais apropriada, deixando o entrevistado livre para contar histrias sobre acontecimentos especficos que lhe parecem importantes ou significativas, sem induzi-lo a elaborar respostas s minhas perguntas. Assim, o entrevistado elabora sua prpria narrativa acerca de seu passado, pois, segundo Freitas, como discurso que a memria evidencia todo um sistema de smbolos e convenes produzidos e utilizados socialmente49.

    Importante para pensarmos a utilizao da fonte oral a memria. Memria que pode ser, segundo Freitas, entendida como propriedade de conservar certas informaes, atravs de um conjunto de funes psquicas e cerebrais50. A memria, portanto, constituda de lembranas, mas tambm de esquecimentos. Acredito que

    47 Esta autorizao foi concedida durante as entrevistas em questo, e est devidamente registrada na

    gravao de udio. 48

    WEBER, R. Op. Cit., p. 82. 49

    FREITAS, Snia Maria de. Histria Oral: Procedimentos E Possibilidades. So Paulo: Editora Humanitas, 2006. P. 27. 50

    FREITAS, Op. Cit., p. 37.

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    justamente nessa elaborao, na escolha daquilo que digno de ser lembrado e daquilo que no mencionado, conscientemente ou no, que se situa a especificidade e a riqueza da fonte oral. Nas palavras de Freitas,

    importante resgatar sua viso acerca de sua prpria experincia e dos acontecimentos sociais dos quais participou. Por outro lado, a subjetividade est presente em todas as fontes histricas, sejam elas orais, escritas ou visuais. O que interessa em Histria Oral saber por que o entrevistado foi seletivo ou omisso, pois esta seletividade tem o seu significado.51

    Freitas comenta que os depoimentos resultam em fontes histricas que so, por excelncia, qualitativas52. Por esse motivo, priorizei a anlise exaustiva de um nmero limitado de entrevistas, com agentes que, na minha avaliao, tiveram um papel ativo durante a poca analisado, e que mantiveram essa atuao dentro da tribo desde a dcada de 1980 at o presente. Considero esse aspecto tambm bastante importante para a anlise, pois, ainda segundo Freitas, indispensvel que haja entre o grupo e o memorialista uma identidade, atravs da qual se evidencie uma memria coletiva. Conseqentemente, o isolamento ou a falta de contato com o grupo significar a perda do passado53.

    O perodo analisado para a constituio e atuao da tribo difcil de ser delimitado, por no possuir nenhum tipo de marco histrico fundador ou significativo. Por isso, nesse trabalho de concluso, ser analisado um perodo que tambm bastante cara aos headbangers: a dcada de 1980, que tida como a golden age do Metal, e reverenciada com saudosismo por todos os entrevistados. Muitas vezes nas entrevistas pude perceber que h uma depreciao pela dcada de 1990 frente uma valorizao da dcada de 1980. Por exemplo, Andr fala que eu acho que os caras respiravam aquilo... no era uma coisa descartvel, e que quando mais difcil de conseguir as coisas tu d um valor muito maior sabe (...) essa magia da coisa, infelizmente perdeu. Flvio comenta que tudo era conquistado com suor assim, tu tinha que ir atrs mesmo... e hoje muito fcil. Portanto, justifico a escolha dessa delimitao por perceber que essa a delimitao empregada pelos prprios integrantes da tribo, que construram essa delimitao temporal como um tempo idlico do Metal.

    Foi no incio dessa dcada que se pode falar no surgimento da tribo no Brasil e tambm em Porto Alegre, pois o Metal passa a existir de fato no Brasil como

    51 FREITAS, Op. Cit., p. 44.

    52 FREITAS, Op. Cit., p. 54.

    53 FREITAS, Op. Cit., ps. 42-43.

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    um gnero musical diferenciado e possibilitando a propagao da tribo atravs da adoo do estilo por dois motivos apontados por Janotti:

    primeiro porque ainda no podemos comparar os fs da dcada de setenta com o tribalismo que permeia as metrpoles nos dias de hoje (inexistncia da tribo) e segundo, porque devido ao reduzido nmero de bandas que atingiam um espao mnimo para sua sobrevivncia, era mais fcil a convivncia em estilos diferentes do que a fragmentao.54

    Mais difcil ainda traar um limite final para a anlise. Neste estudo, ser a passagem da dcada de 1980 para a dcada de 1990. Apesar de escolhida arbitrariamente, considero essa data vlida como delimitao temporal, pois a tribo e o seu gnero musical agregador j estavam consideravelmente diferentes em relao ao incio da dcada. Os inmeros sub-gneros j estavam constitudos e cristalizados, o Heavy Metal j tornara-se uma fora da indstria cultural, pois se, no incio da dcada, os lbuns eram escassos e importados, e a produo artstica nacional era praticamente inexistente, ao final da dcada j existiam inmeras gravadoras especializadas, inclusive no Brasil, e os shows internacionais e nacionais j movimentavam grandes quantidades de dinheiro e de fs.

    Houve inicialmente a inteno de analisar tambm as capas e as letras das msicas em um captulo especfico, mas isso mostrou-se invivel pois acabaria alongando demais este trabalho de concluso de curso, sobrecarregando-o com objetivos demais, e acabei por excluir essa possibilidade temendo que faltaria tempo para tratar todos os assuntos com a profundidade necessria.

    54 JANOTTI JUNIOR, Jeder. Heavy Metal: universo tribal e espao dos sonhos. Dissertao de Mestrado,

    Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994.

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    1 METAL E ATUAO ESPETACULAR

    1 Origens do gnero musical

    Provavelmente, um dos primeiros trabalhos acadmicos voltado especificamente ao gnero musical ou gneros musicais neste texto denominados Metal foi o artigo do socilogo Will Straw55. Neste artigo, ele mostra como o Metal surgiu durante uma transformao da indstria fonogrfica, onde pequenos selos foram sendo comprados por grandes selos internacionais, e nesse contexto as primeiras gravaes do Metal na dcada de 1970 foram feitas, por msicos e produtores profissionais e experientes.

    Outro trabalho importante sobre o assunto o da sociloga Deena Weinstein56, que identifica uma diferenciao de estilos e temticas dentro do Metal: um Metal mais brando, com temticas dionisacas, e um Metal mais agressivo, com temticas caticas. Assim, o dionisaco e o catico seriam as duas temticas principais do Metal segundo a autora. O musiclogo Robert Walser57 tambm possui um livro clssico sobre o assunto, onde, analisando partituras, ele disserta sobre a importncia de compositores clssicos na composio da msica Metal. Seguindo a mesma linha, o tambm musiclogo Harris Berger58 disserta sobre a msica e a temtica das bandas de um sub-gnero especfico, o Death Metal, na cidade de Akon, nos Estados Unidos.

    Especificamente sobre Metal, editados no Brasil, h alguns trabalhos elaborados por jornalistas, de carter bastante genrico e universal. Embora sem nenhuma pretenso cientfica, esses trabalhos so excelentes ao traar uma genealogia cronolgica das diferentes bandas e sub-gneros que compem o Metal. o caso de trabalhos como Heavy Metal: a Histria Completa, do norte-americano Ian Christie59, e do brasileiro Guitarras em Fria, do jornalista Tom Leo60. O trabalho de Leo tem o

    55 STRAW, Will. Characterizing Rock Music Culture: the Case of Heavy Metal. Canadian University

    Music Review, 1984. In: The Cultural Studies Reader. London: Routledge, 1993. 56

    WEINSTEIN, Deena. Heavy Metal: the Music and its Culture. Cambridge: Da Capo Press, 2000. 57

    WALSER, Robert. Running with the Devil: Power, Gender, and Madness in Heavy Metal Music. Hanover: University Press of New England, 1993. 58

    BERGER, Harris. Death Metal and the Act of Listening. Popular Music, vol. 18, no. 2, pp. 161-179, 1999. 59

    CHRISTIE, Ian. Heavy Metal: A Histria Completa. So Paulo: Arx, 2010. 60

    LEO, Tom. Heavy Metal: Guitarras em Fria. Rio de Janeiro, Editora 34, 1997.

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    mrito de abordar tambm as bandas nacionais, embora sem falar especificamente de Porto Alegre.

    Sobre o Metal no Brasil, h a tese de doutoramento do antroplogo Pedro Alvim Leite Lopes denominada Heavy Metal no Rio de Janeiro e Dessacralizao de Smbolos Religiosos: A Msica do Demnio na Cidade de So Sebastio das Terras de Vera Cruz61, que me ser bastante til, ao tratar da apropriao de smbolos satnicos e ligados ao mal pelo Heavy Metal e de como esses smbolos so esvaziados de seu sentido original e apropriados com um outro significado pelos headbangers. Na mesma linha h o trabalho de Jeder Janotti Jnior denominado Heavy Metal: o Universo Tribal e o Espao dos Sonhos62, onde o autor analisa letras e imagens de bandas nacionais e internacionais. H ainda o trabalho de Idelber Avelar denominado Heavy Metal Music in Postdictatorial Brazil: Sepultura and the Coding of Nationality in Sound 63, que trata da banda mineira Sepultura e os elementos de identidade nacional presentes em sua msica.

    Outro trabalho que me foi bastante til nessa pesquisa foi a tese de mestrado de Leonardo Carbonieri Campoy, denominada Trevas na Cidade: O Underground do Metal Extremo no Brasil64. O autor aponta uma diferenciao entre o Metal visto como mainstream e o Metal visto como underground, ou Metal extremo. Trabalho que me ajudou muito a pensar o Metal menos como um bloco monoltico e mais como um espao de disputas entre seus integrantes.

    Para entendermos essas divises e disputas que foram se desenhando ao longo da dcada de 1980, considero necessrio traarmos uma breve cronologia do surgimento dos diferentes subgneros do Metal a nvel mundial, embora, como bem apontado por Campoy, a regra que cada um tenha a sua verso das continuidades e rupturas que teriam dado forma ao estilo, verses essas que esto em constante embate, seja nas pginas de uma revista especializada, em livros e mesmo em uma roda de conversa entre fs65. Ou seja, segundo Avelar, no to importante uma busca por critrios objetivos que nos permitiriam definir onde o gnero comea e termina, mas ao

    61 LOPES, Pedro Alvim Leite. Heavy Metal no Rio de Janeiro e Dessacralizao de Smbolos Religiosos:

    A Msica do Demnio na Cidade de So Sebastio das Terras de Vera Cruz. Tese de Doutorado, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social Museu Nacional. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. 62

    JANOTTI JUNIOR, Op. Cit. 63

    AVELAR, Idelber. Heavy Metal Music in Postdictatorial Brazil: Sepultura and the Coding of Nationality in Sound. In: Journal of Latin American Cultural Studies, Vol. 12, No. 3, 2003. 64

    CAMPOY, Op. Cit. 65

    CAMPOY, Op. Cit., p. 18.

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    invs disso tentar compreender a linguagem do gnero, com suas batalhas discursivas atravs das quais ele se constitui66. Essas batalhas discursivas, segundo Campoy, constroem uma representao da realidade que ser, ela mesma, construtora da realidade67.

    Apesar disso, h consensos, e existem verses e leituras desta cronologia hoje j cristalizadas e aceitas por praticamente todos os headbangers. Portanto, considero importante, para o esclarecimento de muitas anlises e apontamentos que sero apresentadas neste texto, traar, de maneira sucinta, uma breve cronologia deste gnero musical. Muito dessa cronologia que ser apresentada no possui nenhum embasamento bibliogrfico ou advindo das fontes, mas sim da minha prpria experincia e conhecimento adquirido pelo interesse e esforo dedicado ao Metal. Mas, como foi percebido durante as entrevistas, essa verso, por ser bastante genrica e resumida, sem tocar em nenhum ponto de polmica, pode ser considerada a oficial, ou pelo menos a aceita em ampla maioria pelos entrevistados e pelos headbangers de maneira em geral, advinda de um conhecimento de senso comum dentro do universo conceitual da tribo.

    Desde a dcada de 1960 j existiam bandas que eram consideradas mais pesadas, que se utilizavam mais de distores e efeitos de guitarra, tocando mais rpido e com maior intensidade. Na virada para a dcada de 1970, muitas dessas bandas intensificaram ainda mais esse peso e a velocidade, mas cabe a uma delas em especial, e isso consenso entre os autores, o ttulo de pai do gnero em formao, aquele que serviria de exemplo a ser seguido e apontou uma possibilidade infinita de caminhos a serem explorados dentro do rockn roll: o Black Sabbath, banda inglesa da cidade de Birmingham. Em termos musicais, a sua msica era mais grave, com notas longas e

    distorcidas, utilizando geralmente uma escala menor de blues. Mas, principalmente, no contedo letrstico e imagtico h uma inovao: falava-se em demnios, bruxaria, morte, trevas, podrido, fim do mundo. Essa temtica j havia sido explorada por bandas contemporneas e na dcada anterior, mas atrelada ao misticismo oriental ou ao satanismo de Aleister Crowley68, que o valorizou positivamente ao incorporar o

    66 AVELAR, Op. Cit., p. 3. Traduo minha. No original: a search for objective criteria that would

    allow us to define where the genre starts and ends but rather to approach the genres language within the discursive battles through which it is constituted. 67

    CAMPOY, Op. Cit., p. 102. 68

    Segundo o site http://pt.wikipedia.org/wiki/Aleister_Crowley, acessado em 25/06/2012, o britnico Edward Alexander Crowley (12 de Outubro de 1875 1 de Dezembro de 1947) foi um influente ocultista, mago, hedonista, poeta, dramaturgo e crtico social. Conhecido por seus escritos sobre magia,

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    conceito de liberdade. No Black Sabbath, essa imagem assustadora era, na definio um tanto quanto potica de Ian Christie,

    como um eco ressoando tempos longnquos, (...), era irredutvel como o mar abissal, o cu infinito e a alma mortal. Para sua fora no havia precedentes e nem eram necessrias explicaes literais. Suas notas sombrias eram to cativantes como o canto das sereias para o vazio profundo e descontente da conscincia moderna.69

    Assim, a msica do Black Sabbath, segundo Christie dramatizava conflitos humanos sobre a Terra na forma de combates mitolgicos e no como notcia de fatos correntes70. O mal, o sombrio e o negro nunca antes foram expressos musicalmente de uma maneira to criativa e potente.

    O Black Sabbath enterra de vez a ideologia da paz e amor presente na dcada de 1960: enquanto a dcada anterior buscava subir ao cu, o Black Sabbath prope uma descida ao inferno. Para Janotti,

    a descida ao inferno, retratada em mitos como o de Orfeu, presente no universo metlico, e em particular no som do Sabbath, revela o processo de introverso da mente, a passagem do consciente profundidade inconsciente, de onde afloram os contedos mitolgicos presente no inconsciente coletivo.71

    Dessa maneira, o Black Sabbath inaugura e se torna pea central para a definio do gnero que alguns anos depois seria conhecido como Heavy Metal. A origem do termo tema de amplo debate por vrios autores72. Se h uma origem especfica, ou mais de uma, o que me parece mais provvel, a partir de 1973, e cada vez com maior freqncia, o termo passa a ser utilizado para referir-se a um novo gnero musical que est em desenvolvimento, baseado nos princpios apontados pelo Black Sabbath.

    especialmente o Livro da Lei. Combatia os valores morais e religiosos do seu tempo, defendendo o libertarianismo baseado em sua regra faz o que tu queres, pois tudo da lei. Por causa disso, ele ganhou larga notoriedade em sua vida, e foi declarado pela imprensa do tempo como "o homem mais perverso do mundo. Em 2002, uma enquete da BBC descrevia Crowley como sendo o septuagsimo terceiro maior britnico de todos os tempos, por influenciar e ser referenciado por numerosos escritores, msicos e cineastas, incluindo Jimmy Page, Alan Moore, Bruce Dickinson, Ozzy Osbourne, Raul Seixas, Marilyn Manson e Kenneth Anger. Ele tambm foi citado como influncia principal de muitos grupos esotricos na posterioridade. 69

    CHRISTIE, Op. Cit., p. 18. 70

    CHRISTIE, Op. Cit., p. 18. 71

    JANOTTI, Op. Cit., p. 21. 72

    Ver: JANOTTI, WEINSTEIN, LEO, CHRISTIE, AVELAR.

  • 21

    Ao longo dos anos 1970, essa definio passa a ser utilizada pela crtica especializada e pelos fs, tanto para referir-se a bandas j existentes como para definir as que passam a surgir j sob a gide dessa nomenclatura. Assim, segundo Campoy,

    diferentemente do punk, por exemplo, o heavy metal no emana das ruas de metrpoles inglesas e norte-americanas e da vai para o estdio. Cronologicamente falando, ele se realiza primeiramente como uma gravao distribuda por muitos pases, em milhes de cpias, basicamente com o intuito de render dividendos.73

    As primeiras gravaes do ento Heavy Metal foram realizadas por profissionais, em grandes gravadoras internacionais, que, segundo Straw, eram constitudas por elites do rock, por pessoas j estabelecidas e com capacidade de criao dentro da indstria. O fenmeno dos supergrupos desse perodo (Led Zeppelin, Deep Purple) sintomtico disso, assim como o fato de que as principais bandas de Heavy Metal (...) so formadas por reminiscentes de bandas populares nos anos 6074. Straw, num ps-escrito da edio de 1993, lembra que essa definio vale apenas para o Metal feito na dcada de 1970.

    2 O Metal vai s ruas: atuao espetacular

    Sendo assim, torna-se necessrio perceber como esse gnero musical torna-se elemento central na constituio do estilo de uma tribo, como esse determinado gnero musical passa a ser fator de identidade para um determinado grupo de pessoas, que passam a investir tempo e recursos com essa finalidade. Esse processo ocorreu a partir de 1979, com um movimento denominado New Wave of British Heavy Metal75, e com uma categoria social especfica: filhos de trabalhadores das reas perifricas de Londres, que deram o pontap inicial na criao de um universo simblico com valores ticos e estticos definidos, ou seja, na criao de um estilo. Mas, para entendermos esse processo, devemos nos reportar a outro fenmeno, surgido alguns anos antes, e tendo como protagonistas a mesma categoria social: o punk.

    73 CAMPOY, Op. Cit., p. 14.

    74 STRAW, Op. Cit., p. 453. Traduo e parnteses meus. No original: rock elites, by people already

    established in creative capacities within the industry. The supergroup phenomenon of this period is symptomatic of this, as is the fact that most of the leading heavy metal bands () were formed by remnants of groups popular in the 1960s. 75

    Para abreviar, a partir de agora, NWOBHM. Refere-se a uma exploso de interesse e popularidade pelo Heavy Metal na Inglaterra, responsvel pelo surgimento de inmeras bandas, pelo aparecimento das grandes revistas internacionais ligadas ao tema, e por uma vendagem de discos indita em termos de quantidade.

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    Segundo Abramo, foram os punks que lanaram a pista, introduzindo um novo modo de manifestao e atuao, estimulando assim outros grupos juvenis a assumirem e expressarem suas identidades distintivas76. Ainda segundo Abramo, o Punk aparece como uma msica gil e "autntica", ligada s experincias dos jovens no cotidiano das ruas: uma msica que faz sentido de novo para os jovens e suas experincias reais. O resultado um retorno estrutura bsica do rock, um som seco, mais percussivo, sem solos, gritado mais que cantado77. Logo, os trabalhadores das periferias londrinas se identificaram com esse novo som, e passaram a articular seus gostos, seus valores, ritos, sua esttica e sua tica em torno desse novo gnero musical, e a lhe dedicarem tempo e esforo. Vivendo num momento de crise econmica, onde o desemprego atingia nveis altssimos, juntamente com a poltica de desestatizao de Margaret Thatcher que encerrou diversos benefcios sociais e servios pblicos, esses jovens no viam no futuro uma esperana de dias melhores como a gerao anterior. O punk aparece como um porta-voz privilegiado para esses jovens, que criam um estilo ligado esse gnero musical. Logo, jovens de todo o planeta se identificam com esse estilo especfico criado nas periferias londrinas, e assim a tribo punk se reproduz e se perpetua no tempo e no espao.

    Os punks criam seu estilo baseados, segundo Abramo, em atitudes como a rejeio de aparatos grandiosos e de conhecimento acumulado, em troca da utilizao da misria e aspereza como elementos bsicos de criao, o uso da dissonncia e da estranheza para causar choque, o rompimento com os parmetros de beleza e virtuosismo, a valorizao do caos, a cacofonia de referncias e signos para produzir confuso, a inteno de provocar, de produzir interferncias perturbadoras da ordem78.

    Articula-se toda uma esttica baseada nos mesmos princpios, com a utilizao de materiais rudimentares, desvalorizados, provenientes do lixo urbano e industrial: tecidos de plstico, calas rasgadas, meias furadas, camisetas semidestrudas. Os smbolos escolhidos compartilham desse mesmo sentimento de causar choque: caveiras, o A da anarquia, susticas, lixo. No corpo, pregos, alfinetes, colares de cadeado, cabelos sujos e espetados, cabeas raspadas. Uma imagem obviamente fabricada para causar estranhamento, para ser vista, para chamar a ateno. Mais do que isso, sua apario e circulao no espao pblico so tambm construdas: sua maneira de andar, sentar, conversar, enfim, suas posturas e trejeitos criam um espetculo.

    76 ABRAMO, Op. Cit., p. 83.

    77 ABRAMO, Op. Cit., p. 44.

    78 ABRAMO, Op. Cit., p. 43-44.

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    Depois do punk, segundo Abramo, surgem outras tribos marcadas pela agressividade real e simblica do seu comportamento, pela negatividade de suas representaes de presente e do futuro, pelo investimento na prpria imagem e pelo privilegiamento do lazer e dos produtos da indstria cultural como elementos articuladores de suas atividades79. O Metal ligado ao movimento da NWOBHM certamente uma dessas tribos. Esse Metal era mais rpido, agressivo e cru que seus predecessores, compartilhando de muitos aspectos musicais que eram centrais aos punks80. Foi por exemplo do punk que esses mesmos jovens passaram a empreender tempo e esforo na elaborao de um estilo que proporcionasse a perpetuao e a cristalizao dessa tribo. Para Campoy, a partir desse momento que

    o heavy metal foi s ruas e se tornou, tambm, um fator de agregao social. Ao f no basta ter o disco, ouvi-lo e, esporadicamente, comparecer a algum show de suas bandas favoritas. Ele deixa seu cabelo crescer, veste-se de couro negro e sai procura de outros apreciadores do estilo. Pontos de referncia se estabelecem em vrias cidades. Lojas de discos, bares e casas de shows onde os apreciadores se encontram para vivenciar o heavy metal. O f quer experimentar o heavy metal no s como um consumidor. O estilo musical no mais se resume a um produto a ser adquirido, uma gravao a ser escutada nas horas de lazer ou nas andanas pela cidade, tornando-se, para alm disso, uma atividade que motiva o envolvimento prtico dos fs. Uma prtica social no-profissional, mas, no obstante,(...) dotada de forte relevncia identitria para quem a exerce. 81

    Abramo refere-se a esses grupos como tribos espetaculares, conceito com o qual trabalharei neste texto. Esses grupos so marcados por uma atuao espetacular, que, segundo Abramo, consiste em

    arrancar ateno, fora, sobre suas figuras. Atravs das imagens, retratada toda uma condio que emerge como protesto. Ao causar estranheza, ao provocar choque, induzem interrogao sobre sua presena, suas questes e intenes. Afirmando sua presena, sua identidade punk, na cidade, obriga a sociedade a v-los e ouvi-los. 82

    Janotti fala que existe uma ligao entre o territrio fsico e o inconsciente

    coletivo no Rock Pesado, tanto que as bandas geralmente ensaiam em garagens e pores, as boates evocam espaos escuros. (...). Esses locais so metforas do inconsciente e, portanto, demarcao de um territrio simblico, construindo um

    79 ABRAMO, Op. Cit., p. XI.

    80 E justamente esse tipo especfico de Metal, feito na dcada de 70 e na Inglaterra durante o

    NWOBHM, e tambm num perodo posterior por bandas que se utilizavam das mesmas caractersticas sonoras, que o termo Heavy Metal denomina. 81

    CAMPOY, Op. Cit., p. 15-16. 82

    ABRAMO, Op. Cit., p. 106.

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    imaginrio calcado em sonhos e locais fsicos83. Dessa maneira, a criao de um estilo tambm consiste em buscar territrios que estejam de acordo com os seus valores ticos, e para isso, segundo Maffesoli a tribo

    d forma a seu meio ambiente natural e social, e, ao mesmo tempo fora, de facto, outros grupos a se constiturem como tais. Nesse sentido a delimitao territorial (quero lembrar que territrio fsico e territrio simblico) estruturalmente fundadora de mltiplas socialidades. Ao lado da reproduo direta, existe uma reproduo indireta que no depende da vontade dos protagonistas sociais, mas deste efeito de estrutura que o par atrao-repulsa. A existncia de um grupo fundamentado num forte sentimento de pertena necessita, para a sobrevivncia de cada um, que outros grupos se criem a partir de uma exigncia da mesma natureza. 84

    Assim, quando falamos de identidade, especialmente da identidade tribal formada nesse novo modelo de socialidade que o neotribalismo, falamos necessariamente tambm da demarcao de diferena. Com a aceitao em ser alguma coisa determinada como forma de resistncia incorporao e assimilao pelo todo social, constri-se uma identidade baseada nos valores ticos e estticos do estilo. Mas, nessa construo da identidade, to importante quanto a partilha desses valores pelos semelhantes a delimitao de espaos e a marcao da diferena para com o todo social e com os outros grupos, especialmente aqueles que se constituram dentro do mesmo panorama do neotribalismo, e que adotam uma mesma estratgia de atuao espetacular como forma de comunicao e expresso.

    No caso do Metal, o outro por excelncia o punk. Janotti nos fala que muitos Punks acusam o Heavy de sublimar os instintos agressivos sufocados pelo cotidiano. Talvez seja essa diferena que faz do Punk um movimento ligado ao anarquismo e bastante politizado, enquanto o Metal lida com elementos de todas as classes sociais, sem exigir um posicionamento mais crtico diante da sociedade85. O estilo de ambos apresenta muito em comum, embora possuindo frentes de atuao diferentes: enquanto o Punk busca o choque e a exposio espetacular em praa pblica lanando suas questes e suas crticas num terreno imagtico marcado pelo poltico/social (susticas, o A da anarquia, crticas ao Estado e desigualdade social), o Metal o faz num terreno imagtico religioso (demnios, caveiras, cruzes invertidas, a

    83 JANOTTI JUNIOR, Op. Cit., p. 100.

    84 MAFFESOLI, Op. Cit., p. 194.

    85 JANOTTI JUNIOR, Op. Cit., p. 30.

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    adoo do negro86). Os dois grupos, ao adotarem a mesma forma de atuao espetacular em praa pblica tendo a msica como elemento centralizador das atividades afetivas e criadoras do estilo, precisam afirmar sua alteridade de uma maneira bastante acentuada, ainda mais quando muitas vezes convivem nos mesmo espaos, como o caso da Avenida Osvaldo Aranha em Porto Alegre, que ser analisada no captulo 2.2. Por isso, a adoo do estilo pela tribo, alm de marcar a identidade, funciona como uma demarcao territorial, que tanto simblica quanto espacial, o que acaba gerando tenses e conflitos que muitas vezes resultam em brigas e numa hostilidade explcita por parte de ambos os lados.

    Dessa maneira, atravs da criao de um espetculo, essas tribos aparecem na cidade e expem suas questes e valores atravs de sua atuao em praa pblica. Visto sob esse paradigma, a criao desses estilos no gratuita nem aleatria, mas, segundo Abramo87, tem a ver com

    formas de elaborao e expresso de questes relativas vivncia da condio juvenil na atual conjuntura, como formas de negociar espaos de vivncia nesse novo meio urbano, de processar a elaborao de identidades coletivas, de forjar respostas que os posicionem frente aos valores correntes na sociedade e de prover uma interveno no espao social.

    Esses estilos assumem uma forma expressiva, mas o que eles expressam? primeira vista, aparecem, segundo Abramo, marcados pela negatividade, pela ausncia de capacidade de reflexo crtica da ordem social, pela passividade em relao aos valores e prticas sociais inscritas nas tendncias sociais da poca, pela falta de empenho transformador ou de imaginao utpica88. Assim, aparentemente, esses jovens teriam optado pela passividade, pela indiferena, pelo niilismo, pela simples negao de qualquer projeto utpico e transformador, pela total falta de interesse por questes pblicas e coletivas. Seus ideais teriam sido substitudos por um pragmatismo e por um hedonismo que caracterizariam uma gerao incapaz de formular qualquer projeto transformador da sociedade, qualquer alternativa vlida de transformao social. Mas essa interpretao s faz sentido na comparao com uma gerao de jovens tida como ideal, a dos anos 1960, empenhada em projetos utpicos embalados pela contracultura e pelo idealismo pacifista anti-guerra do Vietn. importante ressaltar

    86 Isso no significa que no Metal tambm no haja uma forte crtica de carter social, muito pelo

    contrrio. Mas, a adoo dessa imagtica de cunho religioso a principal caracterstica distintiva do Metal para com os outros grupos, uma caracterstica que intrnseca e exclusiva dessa tribo, a base para toda a construo estilstica. 87

    ABRAMO, Op. Cit., p. 84. 88

    ABRAMO, Op. Cit., p. XIII.

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    que a fora transformadora dessas tribos reside na sua atuao espetacular. com a exposio da tribo na esfera pblica que eles lanam sua crtica, usando seu estilo como forma de comunicao, para falar de si e das questes que tem a colocar ao mundo. Assim, ao utilizar elementos vistos como negativos para a elaborao de seu estilo e como elemento para a afirmao de sua identidade, esse grupo causa o choque e o estranhamento, pois o elemento esttico desse estilo adquire significados ticos para o grupo que so diferentes dos significados que possuem a priori para os que no fazem parte do grupo. Nessa dicotomia est o poder crtico dessas tribos e de seu estilo: ao transformar smbolos associados ao mal e misria, smbolos negativos e que devem ser evitados, muitas vezes vistos como tabu, em smbolos constituintes de identidade dentro do grupo, h um questionamento e uma complexificao dessa dualidade, pois so retirados do domnio da religio e da moral e trazidos para o domnio da arte, do domnio do dado para o do construdo, esses grupos geram desconforto, e, quando no uma total incompreenso oriunda do preconceito, ao menos uma tentativa de entendimento para aqueles que os assistem.

    Essas tribos se produzem intencionalmente como emblema, ao investir de forma explcita sobre sua prpria imagem. Segundo Lopes, que referia-se especificamente ao Metal.

    ao tematizar, questionar, e muitas vezes positivar em convenes estticas, smbolos sagrados dos domnios ontolgicos do bem e do mal, tidos como dados em diversas religiosidades (e mesmo em diversas vises de mundo tidas como laicas como determinadas correntes de pensamento e polticas), e ao faz-lo, sugerir seu carter construdo, mesmo que nem sempre intencionalmente, e mesmo que nem sempre questionando essa dicotomia bem versus mal, apenas ilustrando-a na sua arte89.

    Isso pode ser visto na criao artstica especfica da tribo em Porto Alegre. Por exemplo, abaixo segue o nome estilizado empregado pela Leviaethan, banda gacha da qual Flvio, um dos entrevistados, integrante fundador:

    Percebe-se, de maneira escancarada, a utilizao da cruz invertida, smbolo

    89 LOPES, Op. Cit., p. 23-24.

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    associado ao anti-cristo e ao satanismo. Embora a anlise da produo artstica da tribo extrapole os objetivos deste trabalho, considerei importante este exemplo apenas para ilustrar como a utilizao desses smbolo tambm era partilhada por bandas de Metal do Rio Grande do Sul.

    atravs do esforo de expresso dessas elaboraes que eles demonstram sua vontade de intervir, utilizando o choque e a exposio do absurdo e do contraditrio como uma inteno de participar nos acontecimentos, provocando o estranhamento e, conseqentemente, a reflexo. Ao levantar questes, eles procuram provocar respostas.

    Entendido dessa maneira, segundo Abramo, a postura apocalptica, as imagens infernais, destroadas e exangues que esses grupos exibem, no representam uma patologia mrbida, um desejo de morte ou uma exaltao do horror. uma representao crnica, espetacular, da viso que eles tm da realidade, para critic-la, denunci-la90.

    Ao lanarem tais imagens sobre si mesmos, ao trazerem tais elementos vistos como negativos a tona na construo de seu estilo, existe tambm uma denncia. H a, conforme Abramo, uma estratgia de espelhamento91, onde aquilo que visto como condenvel, como um mal que precisa ser combatido, explicitado na prpria imagem. A viso de si se torna a viso do outro, a imagem de si se torna a imagem do outro. Assim, este uso consciente e eletivo de determinados temas e smbolos se torna uma espcie de diagnstico: ao falar do fim do mundo, da morte, da destruio, da misria, explicita-se a uma desconfiana nas medidas que esto sendo tomadas e uma descrena no futuro, uma falta de otimismo gerada pela percepo de que algo est errado, e que precisa mudar. As abordagens de Abramo e Lopes podem ser vistas de modo complementar: ao utilizar smbolos tidos como dados para denunciar e criticar, esses grupos explicitam seu carter construdo, o que no significa que esses smbolos percam o seu valor enquanto portadores de uma crtica ao todo social e realidade que os cerca.

    A utilizao desses temas e imagens, essa dimenso esttica do estilo assume ainda uma outra funo: impedir o esvaziamento de sentido dessas tribos pela indstria cultural, pela moda. Este um medo constante dessas tribos espetaculares, e se baseia num aspecto que causa uma tenso permanente entre os membros e a indstria cultural, pois, segundo Abramo, esses grupos juvenis esto permanentemente sob o

    90 ABRAMO, Op. Cit., p. 153.

    91 ABRAMO, Op. Cit., p. 101.

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    perigo de se verem novamente apropriados pela indstria cultural e padronizados, devolvidos normalidade como produtos da moda e tendo assim seus significados originais diludos e esvaziados92. Por isso tambm a escolha desses smbolos que no podem ser assimilados. Para exemplificar, vejamos o que Caiafa fala sobre o uso da sustica pelos punks:

    A sustica inassimilvel. A moda pode adotar o negro, o cabelo arrepiado enquanto corte extico, o couro e mesmo as correntes enquanto adorno. As butiques podem redesenhar as estamparias suburbanas, como a cobra e a ona que o punk usa. Mas inimaginvel a situao da multiplicao da sustica em broches ou collants numa vitrine. A sustica preserva sua apario nica e irrepetvel porque sua propagao temida e evitada. Ela anti-moda por excelncia. 93

    Importante tambm pensarmos como a criao desse estilo um fenmeno que ocorre em propores mundiais. Embora tenha iniciado em solo ingls, logo essa elaborao adquire propores globais. Isso se deve ao surgimento de inmeras fanzines (revistas escritas por fs e destinadas aos fs, contendo resenhas de lanamentos e entrevistas com as bandas), muitas das quais tornaram-se revistas especializadas, que eram enviadas por carta para todo o mundo. Segundo Weinstein, citado em Silva, as

    publicaes especializadas em heavy metal exercem papel importante, porque so meio para circulao e partilha de relatos, comentrios, fotos e imagens que compem os mitos e estruturam o universo do gnero. Assim, de acordo com Weinstein, as revistas "congelam o significado" dos valores e aspectos importantes relativos ao gnero, permitindo que eles sejam aprendidos e absorvidos pelos fs.94

    Ou seja, elas tm um papel importante no apenas na proliferao do Metal, mas tambm na sua criao. Por isso, pode-se dizer que o estilo da tribo construdo mundialmente, atravs do pontap inicial dado pelos jovens britnicos envolvidos com a NWOBHM. A troca de fitas-cassete atravs do correio tambm tem um aspecto fundamental nesse processo. a tribo que cresce num nvel mundial. Esse processo est bastante documentado no livro de Ian Christie, especialmente no captulo 15, denominado Metal Mundial: a globalizao do peso95. Nesse captulo, ele nos mostra como, em suas prprias palavras, ao longo da dispora metal, os postos avanados do heavy metal permaneciam em constante contato graas aos canais

    92 ABRAMO, Op. Cit., p. 90.

    93 CAIAFA, Op. Cit., p. 83-84.

    94 WEINSTEIN apud SILVA, Op. Cit., p. 27.

    95 CHRISTIE, Op. Cit., ps. 329-341.

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    internacionais sempre dinmicos. Metaleiros de todos os tipos martelavam suas guitarras, escreviam fanzines e se comunicavam em todos os cantos da Terra96. Ele cita exemplos do surgimento do estilo na Polnia e na Rssia comunistas, Japo, Indonsia, Austrlia, Israel, Nigria, Brasil, Colmbia, Mxico, entre outros. Assim, a criao desse estilo, iniciado por jovens das periferias londrinas atravs do movimento da NWOBHM se espalha mundialmente e passa a servir como elemento de identidade para jovens de diferentes camadas sociais ao redor do mundo.

    Com a expanso da tribo mundialmente, logo o gnero se complexifica e se desenvolvem inmeros sub-gneros a nvel mundial. Esse um tema bastante controverso na bibliografia consultada. Nas palavras de Campoy, possvel abordar o heavy metal univocamente, enquanto um estilo musical, ou, reconhecendo que as diferenas entre os estilos de metal so por demais agudas, necessrio se reportar, na anlise, somente a um desses estilos? De outro modo, o heavy metal um s ou mltiplo? 97 Trato esta questo da mesma maneira como fez Weinstein98, ao dizer que, a partir do NWOBHM e durante a dcada de 1980, de maneira geral, o Metal marcado por uma busca constante por mais velocidade e mais peso, tornando-se cada vez mais radical, ou, num termo apreciado pelos fs, mais extremo. Assim, surgiriam duas vertentes: Weinstein as denominou lite metal, acentuando a melodia e a temtica dionisaca, e speed/thrash metal, acentuando o ritmo, o peso e a temtica catica. Campoy99 prefere os termos underground e mainstream. Acredito que neste texto, especialmente para o perodo analisado, onde essa diferenciao ainda estava em curso e no completamente cristalizada, posso utilizar o termo Metal para abarcar todas os seus diversos sub-gneros. Para exemplificar melhor, utilizarei a metfora de Campoy, ao dizer que como se o heavy metal fosse um ncleo musical do qual emanam mltiplos feixes, porm, que se propagam em apenas duas direes100. Me utilizando da mesma metfora, arrisco dizer que, no perodo analisado, estes feixes estavam comeando sua separao do ncleo, e que foram se distanciando ao longo da dcada de 1980.

    Os sub-gneros mais representativos dentro dessa cronologia metlica so: Hard Rock, Heavy Metal, Thrash Metal, Death Metal, Black Metal, Grindcore.

    96 CHRISTIE, Op. Cit., ps. 329-330.

    97 CAMPOY, Op. Cit., p. 97.

    98 WEINSTEIN, apud SILVA, Op. Cit.

    99 CAMPOY, Op. Cit.

    100 CAMPOY, Op. Cit., p. 23.

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    Para tentar dar conta de seu surgimento de maneira resumida, essa descrio propositadamente genrica e no especfica, pois fruto mais de um conhecimento de senso comum dentro do universo do Metal do que de uma bibliografia acadmica ou de uma pesquisa exaustiva. Vale dizer que Heavy Metal reporta-se produo musical da dcada de 1970 e do incio da dcada de 1980 na Inglaterra (NWOBHM). Essa produo musical menos distante do rockn roll era denominada Hard Rock. Poucos anos depois, nos Estados Unidos, influenciado pelo recm surgido Punk Hardcore, a partir de 1982 desenvolve-se a partir do Heavy Metal o Thrash Metal, com bandas como o Metallica, Slayer, Exodus, Anthrax, entre outras. O Thrash Metal marcado por uma velocidade acentuada e indita. Alguns anos mais tarde, a partir de 1985, tambm nos Estados Unidos, surge o Death Metal com bandas como o Possessed, o Death e o Obituary. O Death Metal marcado pela velocidade do Thrash Metal, aliado uma riqueza de composio e um peso inditos. Em 1987, com o Napalm Death, surge o Grindcore, que pode ser definido como o extremo da velocidade e do peso, influenciado pelo Death Metal e pelo Punk Hardcore. marcado por msicas curtssimas, muitas com apenas alguns segundos de durao, e uma execuo ultra-rpida, beirando o caos. A partir do incio da dcada de 1990, na Noruega surge o termo Black Metal, usado para descrever bandas que valorizam mais do que quaisquer outras os aspectos ligados ao satanismo e ao mal dentro do Metal, como o Mayhem, Burzum, Emperor, Darkthrone, Immortal, entre outras. O termo logo passa a ser utilizado para descrever bandas pr-existentes, como os brasileiros do Sarcfago, que tambm valorizavam esses aspectos mais ligados figura do mal e do diabo.

    Com este quadro de pano de fundo, principalmente considerando este aspecto internacionalizado do Metal, a anlise da atuao desta tribo em Porto Alegre pode ficar mais compreensvel. Vale dizer que com este trabalho no pretendo me dedicar exaustivamente ao surgimento ou a atuao especfico dentro de cada um destes sub-gneros, mas sim dar uma idia ao leitos da complexidade que o Metal vai assumindo ao longo da dcada.

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    2 A TRIBO EM PORTO ALEGRE

    1 Os Primeiros contatos e a Megaforce

    Vi aquela capa e putz, isso aqui deve ser barulhento, t tri... (Mrcio)

    Nos anos iniciais da dcada de 1980, os primeiros contatos de Flvio e de Andr, dois dos entrevistados pela pesquisa realizada para este trabalho de concluso de curso, foram com bandas como Deep Purple, Black Sabbath, AC\DC, Jethro Tull, consideradas mais pesadas, os primeiro artistas do Heavy Metal em formao na dcada de 1970, ainda com as fronteiras no completamente definidas em relao ao rockn roll. Flvio por influncia familiar: a irm, com quem morava, era f de rockn roll, enquanto ele gostava de um som que tinha um lance assim mais pesado. Andr, juntamente com os colegas de escola, foi gostando dos escassos e recm-surgidos vdeo clipes, que raramente passavam na TV aberta. J Mrcio, que comeou a participar da tribo j no meio da dcada de 1980 (1985), teve seus primeiros contatos com o Iron Maiden, num perodo em que o estilo da tribo j estava mais consolidado. Os relatos tm em comum a procura por um som mais agressivo, mais rpido, mais pesado. Nas entrevistas fica claro que em algum momento houve uma deciso, uma escolha por um som com determinadas caractersticas. Nas palavras de Mrcio, decidi que queria ouvir um negcio mais barulhento.

    As narrativas dos entrevistados sobre como surgiu o interesse pelo gnero musical seguem um padro j identificado por Campoy, que, em seu trabalho, escreve: Descrevem-nas como conseqncias do arroubo que os primeiros contatos com o metal extremo produziu na pessoa. O impacto que esse tipo de msica teve foi de tal modo, de tal fora, que seria insuficiente relacionar-se com ela apenas enquanto um objeto de apreciao esttica101.

    Esse contato transformador levou a uma busca por informaes sobre as bandas preferidas. As informaes foram encontradas, com maior sucesso, em dois locais: a mdia impressa especfica (revistas sobre rockn roll e cultura pop em geral, que aos poucos foram se especializando, e tambm as primeiras fanzines que surgiam) e

    101 CAMPOY, Op. Cit., pg. 26.

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    as lojas de discos. Considero ambos os locais centrais para a constituio da tribo em Porto Alegre, e explicitarei o porqu.

    Em primeiro lugar, a mdia impressa. Nenhum dos entrevistados, para esse perodo inicial, se recorda de alguma reportagem na grande mdia (jornais, televiso). Esse reconhecimento e interesse da grande mdia, segundo os entrevistados e autores consultados, se deu somente a partir do Rock in Rio I, em 1985. Desconheo alguma reportagem anterior esta data, fora vdeo clipes ocasionais (como os citados por Andr). Esta afirmao que vem ao encontro do constatado pelas pesquisas de Lopes102. As informaes vinham atravs de revistas especializadas. Flvio se recorda das revistas Pop e Metal, a primeira dedicada ao rockn roll, com algumas reportagens tratando sobre o Heavy Metal, e a segunda j mais especfica. Tambm comeam a surgir os primeiros fanzines103, revistas escritas, xerocadas e distribudas gratuitamente ou vendidas atravs do correio pelos fs. Essas fanzines circulavam no somente pelo Brasil, mas tambm internacionalmente. A informao contida nessas publicaes crucial para a formao da tribo no somente pelo contedo textual, mas tambm pelas fotos das bandas. Foram essas imagens, as camisetas pretas, os cabelos compridos, que serviram de exemplo a ser seguido, um visual a ser adotado pelos fs que se identificavam com esse gnero musical. Segundo Andr, eu fui me identificando com os caras, com as roupas, fui deixando o cabelo crescer e p, e a querendo ser como se fosse um integrante daquela banda. Assim, toda uma esttica associada ao gnero musical incorporada por seus fs.

    Numa poca anterior Internet e a informatizao, onde a msica ainda precisava de um suporte fsico para ser executada, o disco de vinil e a fita cassete assumem papel central enquanto objeto de consumo, e, portanto, a loja de discos assume um papel central na tribo. Eram nas lojas que se ficava a par dos lanamentos, eram nas lojas que se conheciam novas bandas, eram nas lojas que se conheciam pessoas com gostos em comum, foi numa loja que Flvio conheceu os integrantes da primeira formao de sua banda, e muitos dos primeiros headbangers da cidade trabalhavam em lojas104. na loja que os fs tm acesso msica, que , no fim das

    102 LOPES, Op. Cit. P. 149.

    103 A Revista Rock Brigade, hoje a maior revista nacional sobre o Heavy Metal, comeou como uma

    fanzine em 1982. Para mais detalhes, ver a obra de SILVA. 104

    Um dos entrevistados, Mrcio, proprietrio de uma loja especializada em Metal, e um dos integrantes da formao da banda de Flvio trabalhava em uma loja.

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    contas, o grande agregador desta tribo. Por esse motivo era bastante comum a reunio, na casa de determinado membro do grupo, para a audio de um disco.

    Boa parte do dinheiro adquirido era empregado em comprar discos de vinil. No incio, esses discos eram importados e, portanto, bastante caros. Por esse motivo, uma prtica bastante comum era a compra do disco e sua gravao em fita-cassete para distribuio entre os fs, como relatam Flvio e Andr. Logo, surge uma rede, que vai aos poucos se mundializando, de troca de fitas cassete, que eram gravadas de discos de vinil de grandes bandas inglesas e norte-americanas. Com o tempo, surgem inmeras bandas em diversos pases, e elas tambm comeam a gravar sua produo em fitas-cassete, um processo que era consideravelmente mais barato do que a gravao de um disco de vinil, com o propsito de integrar esses lanamentos essa rede mundial de trocas. Dessa maneira, ou seja, por uma prtica que conecta fs, uma prtica de coletivizao, o Metal se expande mundialmente.

    Com essas trocas tanto materiais (os discos, as fitas cassetes) quanto imateriais (a informao), que se estabelecia a partilha do afeto que d o cimento do grupo, o estar junto com potencial criativo de que fala Maffesoli105. A adoo intencional dessas normas estticas e ticas, ou seja, desse estilo, manifesta um sentimento de pertena, uma identidade em comum, e possibilita a perpetuao da tribo, surgida alguns anos antes num contexto social bastante especfico, na Inglaterra, e que agora se espalha mundialmente, atravs da mdia especializada e dos bens de consumo. Esse fenmeno ocorreu mundialmente, e, como demonstrarei, tambm em Porto Alegre. Segundo Abramo, a identificao de grupos juvenis de um pas, com as criaes produzidas por grupos de outros pases no precisa ser entendida como imitao: pode ser vista como fruto do reconhecimento de experincias similares. que resultam na adoo das mesmas referncias106.

    Nessa poca, as lojas existentes em Porto Alegre, que foram citadas pelos entrevistados foram a Pop Som (citada por Flvio e Mrcio) e a Free Discos (citada por Flvio). Essas lojas estavam localizadas no centro da cidade, em pontos de grande circulao, e, embora no sendo especficas, j serviam ocasionalmente de ponto de encontro para os fs de Metal, embora no de maneira regular e especfica, pois reuniam fs de diversos gneros musicais. Por isso, obter os objetos de consumo que identificavam a tribo, constituintes de seu estilo, era bastante difcil. Segundo

    105 MAFFESOLI, Op. Cit., pg. 115.

    106 ABRAMO, Op. Cit., p. 97.

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    Flvio, ou se pintava uma camiseta da banda preferida, ou, segundo Mrcio, se comprava de fora do estado. Com o tempo, esses itens foram se tornando cada vez mais acessveis, at que, no ano de 1984, surgiu a primeira loja especializada em Porto Alegre, como ser analisado mais abaixo.

    As grandes gravadoras brasileiras passaram a lanar os lbuns das principais bandas internacionais, como o Iron Maiden, o Judas Priest e o Motrhead em territrio nacional. Isso gerou um barateamento no preo desses produtos, o que possibilitou o surgimento de inmeras lojas especializadas em todas as principais cidades do Brasil. Segundo Lopes, essas primeiras

    lojas de vinis especializadas em heavy metal se tornaram pontos de encontro, peregrinao e divulgao de eventos da cena em gestao. Era comum a exibio de vdeos de shows de bandas nessas lojas, devido dificuldade de acesso ao aparelho de videocassete. Algumas casas de shows comearam como cineclubes de vdeos de heavy metal.107

    Alm de vinis, essas lojas supriam a demanda pelos produtos necessrios adoo do estilo. Como nesse processo os bens fornecidos pela indstria cultural tm um papel central, a demanda por esses produtos rapidamente suprida. Como aponta Lopes,

    nas cidades de todo o mundo onde h uma importante cena metal existe uma estrutura de locais especializados em atividades relativas a esse mundo artstico, composta geralmente de lojas de CDS, DVDs e camisetas, estdios de ensaio e gravao e casas de show especializadas ou no, onde ocorrem as apresentaes musicais, atividade principal desse mundo artstico centrado na msica, botequins freqentados por fs de metal (muitas vezes pela proximidade de lojas especializadas e casas de shows), bares temticos (alguns ligados a motoclubes ou com decorao no estilo motociclista - muitos com apresentao de vdeos e bandas de metal. 108

    nesses espaos que a tribo se rene para passar o tempo do lazer, a que se conhecem os integrantes das bandas, enfim, esses espaos so fundamentais tanto para a criao da tribo num nvel local como para a sua reproduo e atuao espetacular no espao pblico. Atravs desse processo a tribo adquire propores nacionais e tambm mundiais.

    Em 1984109, surge a primeira loja especializada em Heavy Metal em Porto Alegre: a Megaforce. A loja funcionava em uma galeria de uma rua movimentada e

    107 LOPES, Op. Cit., p. 146.

    108 LOPES, Op. Cit., p. 159.

    109 No consegui determinar a data exata de fundao da loja. Nenhum dos entrevistados soube precisar a

    data exata, e no consegui contato com o proprietrio da loja. Mas, trocando informaes com Luis

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    localizada na rea central da cidade, a Galeria Independncia, na Avenida Independncia nmero 30, em frente Santa Casa. Logo a loja comeou a atrair os diversos headbangers, primeiramente de Porto Alegre, e depois de cidades vizinhas: Mrcio morava em Esteio, e Andr morava em Guaba, e todos os entrevistados recordam-se de encontrarem pessoas de todas as cidades prximas a Porto Alegre na loja. Rapidamente, a Megaforce se tornou ponto de encontro para a tribo, e possibilitou mesmo a sua reproduo, permitindo aos seus membros o acesso aos bens de consumo e informao necessria na elaborao e adoo do estilo.

    Na loja, encontravam-se tanto os bens materiais quanto os bens simblicos que eram centrais para a constituio da tribo. Em primeiro lugar, os bens materiais que possibilitavam o acesso ao gnero musical que adquire papel fundador dentro do grupo. A loja vendia tudo que era relacionado ao Heavy Metal: alm de, obviamente, os discos de vinil e as fitas cassete, tambm vendia revistas, fanzines, fitas VHS, camisetas, bottons, patches110. Dessa maneira, o headbanger podia, literalmente, incorporar a tribo, tornando-se assim um emblema daquilo que gostava, daquilo que acreditava, daquilo que queria expressar, da comunidade afetiva do qual fazia parte, assumindo na postura e no visual sua identidade tribal. Em segundo lugar, eram atravs de conversas na loja que se estabeleciam os laos afetivos dentro da tribo, se tinha acesso informao, se conheciam e escutavam os ltimos lanamentos, se

    assistia aos dolos em vdeo (a loja possua, no segundo andar, um telo onde eram exibidos gravaes de shows de diversos artistas). Num momento onde o acesso informao era escasso e difcil, o conhecimento sobre a banda X ou Y gerava grande status dentro da tribo.

    Eram nos sbados pela manh que se concentrava o maior nmero de pessoas na loja, em torno de 30 ou 40, segundo Andr e Flvio. Mrcio fala em 200, 300 ou at 400 pessoas, o que me parece ser um exagero, mas demonstra como essa quantidade de pessoas era considerada grande pelo entrevistado. Nesse mesmo momento, se davam as trocas, tanto simblicas quanto materiais. Trocava-se de tudo: era comum, segundo

    Augusto Aguiar, que est organizando um livro de entrevistas sobre a histria do som pesado gacho, com ttulo e data de lanamento ainda indefinidos, chegamos concluso de que foi possivelmente nesse ano. Inclusive, para esta obra citada, est sendo empregada uma equipe de entrevistadores, e que portanto possui um nmero muito maior de pessoas entrevistadas. Infelizmente, na poca em que tive conhecimento dessa empreitada, este trabalho de concluso j estava em fase final de produo, o que impossibilitou uma troca de informaes que certamente resultaria bastante frutfera. 110

    Um patch um pedao de tecido, de tamanho varivel, contendo o nome estilizado de alguma banda, ou alguma imagem importante para o estilo do grupo, como caveiras, cobras, a morte, crucifixos invertidos ou pentagramas. Esses patches eram costurados em camisetas, jaquetas, calas, mochilas, etc.

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    Flvio e Andr, a coleo de recortes de revistas com fotos dos integrantes das bandas, e as que no eram da preferncia do f eram trocadas por outras com outros headbangers. Os discos eram gravados em fitas cassete e trocados por outras fitas cassete. Essa rede de trocas, que ocorria em nvel local e pessoal na Megaforce, tambm ocorria em nvel nacional e internacional atravs dos correios111. Pude perceber, atravs das entrevistas, que havia uma reciprocidade implcita nessas trocas: a informao no era simplesmente compartilhada, esperava-se uma contrapartida. Se algum era f da banda X, poderia conseguir atravs da troca uma fita cassete com uma gravao da banda X, mas somente se possusse uma gravao da banda Y que interessava outra parte. E, mais importante, essa pessoa deveria ser considerada digna de ter acesso a essa informao, um integrante realmente dedicado e de acordo com o estilo do grupo: era o medo do esvaziamento grupal, a tica do segredo do grupo, que ser analisada mais profundamente no sub-captulo 2.5.

    As lojas funcionavam como verdadeiros plos de disseminao da tribo e tambm do gnero musical no Brasil e no mundo. Em muitos lugares, como diz Lopes, parte das lojas terminou por se transformar em gravadoras, lanando vinis de bandas de Metal nacionais, como a Cogumelo de Belo Horizonte, famosa por ter lanado o Sepultura, a Baratos Afins de So Paulo, e a extinta Heavy do Rio de Janeiro112. Essas primeiras gravadoras impulsionaram a expanso do Metal no Brasil, pr