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Aqueles que não deixammarcas na neveAguinaldo Peres 06

A roseira de IsabelAna Cristina Rodrigues 12

Estranhos acontecimentos nacasa 22Carlos Relva 16

O caminho para o inferno estápavimentado com boasintençõesCharles Dias 22

Corações de ferroErnesto Nakamura 26

Esperando o cavaleiro negrono cavalo brancoFernando Trevisan 36

A Relatividade e o EngenheiroJoshua Falken 40

Jesus, aprendendo a pedirLeo Carrion 44

Sonho ruimMarcelo Galvão 50

Olhos azuis, manto rubroRenato Arfelli 58

AmarguraRoderico Reis 62

O sonhoRose Santos 64

Idéias de dragãoUbiratan Peleteiro 66

EditorJOSHUA [email protected]

CoordenadorCHARLES [email protected]

RevisãoBIA NUNES DE SOUSA

[email protected]

EditoraçãoCARLOS RELVA

[email protected]

Para contatar os autoresAguinaldo Peres

[email protected]

Ana Cristina [email protected]

Carlos [email protected]

Charles [email protected]

Ernesto [email protected]

Fernando [email protected]

Joshua [email protected]

Leonardo [email protected]

Marcelo Galvã[email protected]

Renato [email protected]

Roderico [email protected]

Rose [email protected]

Ubiratan [email protected]

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EDITORIAIS

Finalmente, aqui está o PDF do Projeto Amigo Secreto da Fábricados Sonhos, com os contos escritos pelos participantes do projeto!

O projeto começou no ultimo trimestre de 2007, quando cada par-ticipante enviou uma imagem para servir de inspiração para umconto. As imagens foram sorteadas entre os participantes, que te-riam que escrever um conto de pelo menos 1000 palavras paraquem indicou a imagem. Depois, esses contos seriam reunidosnum PDF a ser postado para a lista. Embora o prazo de entregafosse no final de 2007, uma série de imprevistos forçou o adiamen-to... isto é, até agora!

Espero que os membros da lista se divirtam e que os participantesdo projeto gostem de seus presentes!

Joshua [email protected]

Diretor do Projeto Amigo SecretoLiterário de Natal

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Escrever por encomenda é uma das tarefas mais difíceis paraum escritor em início de carreira. E ter que fazê-lo a pedido deoutros escritores só faz com que o trabalho se torne trabalho dignode um Hércules, já que esse tipo de leitor costuma ser muito exi-gente – e bem mais crítico.

Os operários da Fábrica dos Sonhos mostraram ser corajosos etoparam esse desafio: a partir de imagens escolhidas por seuscompanheiros, tinham que escrever um conto com até mil palavrassobre o que viam em cada figura. Depois que as imagens foramsorteadas e distribuídas, cada autor recebeu a incumbência de es-crever um conto para outro escritor, como um ‘amigo oculto’ literá-rio, pois só agora descobriremos quem escreveu o que e para quem.O resultado está aqui: um apanhado da diversidade das pessoasenvolvidas nesse processo, que é também um interessante pano-rama da produção da própria Fábrica e, porque não, da ficçãoespeculativa brasileira que atualmente se renova.

A Fábrica dos Sonhos é um coletivo de autores brasileiros de Fic-ção Científica e Fantasia que, cansados de remar contra a maré dodesinteresse das editoras e de escritores sisudos demais, decidi-ram unir forças e distribuir apoio mútuo entre si. Na Fábrica, a pro-dução e o debate de textos cria amizades, acende discussões e, omais importante, alimenta a imaginação e a criatividade dos envol-vidos. Os inúmeros projetos agradam desde os fãs de microcontosaté quem adoraria escrever um romance em um grande universoficcional. Na rede desde 2004, a Fábrica tem-se tornado aos pou-cos um dos mais importantes pólos produtores da ficçãoespeculativa independente no Brasil, lançado novos nomes e agi-tando discussões no fandom.

Ana Cristina [email protected]

Diretora da Fábrica dos Sonho(http://br.groups.yahoo.com/group/fabrica_dos_sonhos/)

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7AQUELES QUE NÃO DEIXAM MARCAS NA NEVE

Extasiada, apreciei pela escotilha o turbilhão de neve gerado pela passagem dotransporte orbital. Após um mês de viagem, observando as estáticas e longínquas es-trelas, a dança caótica dos cristais de gelo era uma fascinante visão. Como seria agra-dável estar novamente ao ar livre, e não enclausurada em paredes de aço; poder sentiro vento e o sol; ouvir a música de um planeta vivo, mesmo que o planeta em questãovivesse sob um eterno inverno.

Afastei os olhos da neve e examinei meus companheiros de jornada: o jovemcasal de engenheiros trocando carícias no banco mais distante, os quatro operáriosenvolvidos em algum tipo de jogo de cartas estranho e barulhento, o geólogo perdidonum torpor químico para suportar o medo de voar, e o misterioso senhor X, na verdadeo empresário Elieser G. Siva, que nunca se separava de sua mochila em forma de umlongo cilindro. As mesmas faces, os mesmos gestos, os mesmos pensamentos: a piorparte de qualquer jornada espacial sempre é o tédio.

Uma breve sacudida, quando os amortecedores inerciais foram desligados, deu-me uma nova esperança: havíamos aterrissado. Meu ouvido estalou com a mudança depressão e apressei-me para ser a primeira a atravessar a escotilha aberta por um dostripulantes. Que decepção! Haviam estendido um túnel de polititânio entre a nave e omonotrilho que nos levaria à cúpula da mineradora. Um homem alto, vestindo um sobre-tudo com o logotipo do IIMPD, estendeu-me outro igual:

– Bem-vinda a Becrux-7, doutora Rachelle Haney. Sou o supervisor Todoske, doInstituto Imperial de Mineração. Uma pediatra com o seu currículo é uma antiga reivin-dicação nossa. Por favor, vista esse casaco, a temperatura fora do domo está abaixodos dez graus centígrados.

Enquanto agradecia as boas-vindas e vestia o casacão, pensei em esclarecer aosupervisor que minha formação era em clínica geral, mas desisti. Afinal, tinha sidoexatamente esse pequeno conhecimento de pediatria, que constava do currículo, queme garantiu a residência. E eu precisava do salário, que viria acrescido do adicional porplaneta não colonizado. De qualquer forma, havia aproximadamente trinta crianças eadolescentes, entre os quinhentos seres humanos vivendo no domo, portanto não es-

AQUELES QUE NÃODEIXAM MARCASNA NEVE

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perava grandes dificuldades. Não pensei mais no assunto, atravessei o túnel e sentei-me perto da janela no monotrilho. A neve continuava caindo suavemente de um céucinza claro sobre uma paisagem imaculadamente branca.

Com a passagem dos dias, percebi que não seria tão fácil deixar o domo. Porcausa da temperatura externa, que variavam entre os -15ºC e 10ºC durante o dia, assaídas eram evitadas por todos. O máximo que consegui foi ser conduzida até um dospontos de observação, uma grande sala com a parede externa de vidro blindado. Apaisagem era grandiosa e, devo confessar, monótona: campos cobertos por neve egrandes florestas de árvores finas como flechas, aos pés de montanhas brancas. Essaera a paisagem padrão nos 573 dias que o gelado planeta Becrux-7 demorava para daruma volta em torno de Mimosa, seu sol.

Outro fato importante: Becrux-7 era uma reserva ecológica possuidora de um com-plexo ecossistema formado por vida animal e vegetal bem evoluída. Sua colonizaçãoera proibida e as saídas, controladas. Por isso, a única instalação permitida pelo Impé-rio Solariano no planeta era o domo Robert Peary, do Instituto Imperial de Mineraçãoem Planetas Distantes, responsável pela extração e pelo refino automatizados de qui-nhentas milhões de toneladas, por ano solar, de minério de ferro, bauxita e níquel.

Felizmente, o IIMPD mantém um grupo de pesquisadores - geólogos, biólogos,meteorologistas, entre outros; a maioria, homens.

Escolhemos um dia sem nuvens. Uma área de alta pressão atmosférica mantinhanos céus um azul esbranquiçado. Éramos seis no grande veículo movido a células dehidrogênio que funcionava como estação cientifica autônoma. Suas lagartas amassa-vam a neve enquanto se movia silenciosamente em direção à floresta mais próxima.Era um dia quente e ensolarado para os padrões de Becrux-7. Vestíamos macacõestérmicos com capuz e usávamos óculos escuros, luvas e botas de cano alto. Nemmesmo a presença do carrancudo senhor X e de dois oficiais de segurança me pertur-bava. Sentia-me feliz por estar novamente ao ar livre depois de tanto tempo.

Paramos à borda da floresta, e ajudei a descarregar os equipamentos de pesquisapela grande porta dupla traseira do veículo. No ar frio, nossa respiração se condensava empequenas nuvens diante do rosto, enquanto as pernas afundavam até as canelas na neveacumulada. Parei um momento para observar as grandes árvores semelhantes a pinheiros.

– A flora e fauna daqui são um bom exemplo de convergência biológica – explicoua botânica Izabela, a outra mulher do grupo. – A neve e o frio forçaram as árvores a sedesenvolver de forma similar ao pinheiro terrestre: casca grossa, folhas em forma deagulha, poucos galhos com pequenas ramificações. Mas a semelhança termina na apa-rência; biologicamente, elas são bem diferentes. Por exemplo, elas produzem uma subs-tância anticongelante que impede que se congelem à noite, quando a temperatura cai,

AGUINALDO PERES

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em casos extremos, a menos 20 ou 25 graus centígrados.

Roger, que gentilmente havia me convidado para participar daquela breve expedi-ção científica, me passou o binóculo: – Essa substancia é absorvida pelos animais, queassim adquirem mais resistência contra o frio. – Após algumas tentativas, seguindo aorientação do biólogo, consegui ver um pequeno animal de pelagem marrom, correndopelo tronco escamoso de uma árvore. – É a versão local dos esquilos. Cuidado porqueeles são ariscos.

Estava tão absorvida, tentando acompanhar a movimentação do 'esquilo', quetomei um susto ao ouvir a voz forte de Elieser:

– Eles chegaram, vamos! – Elieser seguiu para a floresta acompanhado pelosdois brutamontes da segurança. Ainda demorei alguns instantes para identificar o es-tranho objeto que ele retirava de sua mochila cilíndrica: um rifle.

Eu e Izabela olhamos interrogativamente para Roger que meio sem jeito tentouexplicar:

– O Instituto Solariano de Preservação nos autorizou a capturar um lupus betacrusise nos enviou um caçador profissional.

– Um caçador!? Aquilo não me pareceu um rifle tranqüilizante; afinal, vocês que-rem um espécime vivo ou empalhado? – Izabela estava possessa.

– O rifle é apenas para proteção – gaguejou o biólogo. – Ele instalou armadilhashá uma semana e vai acioná-las agora.

A botânica pareceu se acalmar um pouco, mas então colocou o dedo sob o narizde Roger. – Isso não acaba aqui; irei enviar um relatório para o Conselho Imperial deCiências. – Disse isso e partiu atrás do caçador. Eu a segui, ainda confusa com asituação, mas disposta a apoiar a botânica contra o senhor X.

Encontramos Elieser e seus companheiros ocultos atrás de um tronco caído. Da-quele local, podíamos avistar um lago parcialmente congelado, de onde um grupo deaproximadamente trinta animais, adultos e filhotes, se preparava para beber. Eram ani-mais enormes, com pelagem branca acinzentada, semelhantes a lobos.

Tudo parecia calmo, até que um dos lobos, que vigiava da margem do lago aalcatéia, foi envolvido numa nuvem de neve e ficou imobilizado por uma corda vermelhaque se enroscou nele. No mesmo instante, os demais se agacharam, invisíveis na neve,e assim permaneceram até se ouvir um latido baixo. Então, os animais fugiram para afloresta em pequenos grupos enquanto outros dois se aproximaram do lobo caído.

– Ok, é hora da diversão. – Elieser armou o rifle com um estalo.

Izabela avançou contra o caçador e iniciou-se uma discussão. Roger procurou acalmara botânica, porém ambos acabaram no chão após um safanão. Tentei segurar a armade Elieser. Foi tudo tão rápido; levei uma coronhada e desmaiei.

AQUELES QUE NÃO DEIXAM MARCAS NA NEVE

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Minha cabeça latejava. Abri lentamente os olhos. Deitada na neve, o céu azul pare-cia tão alto... Toquei suavemente a testa; estava inchada e dolorida, mas não havia san-gue. Maldito senhor X, ele iria me pagar. Com algum esforço, sentei-me e usei a mão paraproteger os olhos da luz refletida no gelo. Estava à beira do lago, cercada pelos lobos.

Meu coração vacilou e um rosnado o pôs a palpitar rapidamente. Virei o rosto parao animal que rosnara. Grande como um cavalo, o focinho e o peito empapados desangue, lábios recolhidos, deixando à mostra presas e gengivas num esgar feroz.

Cobri a boca para abafar o grito. Olhei em torno, desesperada, procurando pelosmeus companheiros. Havia apenas lobos e neve branca. Teriam fugido? Não, bastavaolhar para a fera coberta de sangue para compreender o destino dos outros e o meu.Não queria morrer!

Fechei os olhos e comecei a engatinhar pela neve. Não me importava em qual direção,somente queria me distanciar daquele monstro, queria viver. Mal me afastei e minha cabe-ça foi pressionada contra a neve. Comecei a chorar, as lágrimas quentes se misturavam àneve, balbuciava palavras desconexas enquanto rezava, suplicando por ajuda e perdão.

Quando finalmente as lágrimas pararam de escorrer, levando consigo o desespe-ro e trazendo uma calma desesperançada, percebi que ainda estava viva, que haviaesperança. Ergui o rosto. Apenas quatro lobos permaneciam comigo à beira do lago. Omais próximo, que me vigiava com a cabeça meio tombada para o lado, se aproximou.Encolhi-me, preparando-me para o pior, porém o lobo abocanhou somente a parte detrás do meu capuz e me arrastou até o lobo que permanecia no chão, preso pela corda.

Fiquei lá, de joelhos, olhando para o lobo encolhido em posição fetal, até compreen-der o motivo de estar viva. Por mais incrível que parecesse, naquele momento, eles que-riam que eu soltasse o companheiro. Minhas mãos seguraram a corda e puxaram-na,sem sucesso. A corda possuía propriedades elásticas, dava varias voltas em seu corpo.Estava tão apertada que era impossível soltá-la. Lembrei-me de uma brincadeira estúpi-da dos meninos da escola: eles enrolavam um elástico até não poder mais e então osoltavam no cabelo de alguma garota; quando o elástico tentava voltar ao estado natural,enrolava-se de tal forma nos cabelos que era necessário uma tesoura para tirá-lo.

Precisava fazer algo, era minha última esperança. Com o coração batendo acele-rado, me pus de pé. - Preciso de uma faca. – Falei para o vazio, escolhi uma direçãoaleatória e comecei a caminhar, o corpo rígido. As botas afundavam na neve fofa quan-do um enorme corpo peludo bloqueou meu caminho. Meu Deus! Como eles eram enor-mes. Fiquei parada, tremendo. Houve uma troca de latidos entre eles, e então o lobomais próximo começou a me empurrar com o focinho em direção à floresta.

À frente, reconheci o tronco caído que usáramos como local de observação. Ace-lerei o passo num misto de esperança e receio pelo que encontraria. Para a minhasurpresa, contrariando meus devaneios e, quem sabe por isso mesmo, foi mais surpre-endente, a neve estava imaculada. Procurei avidamente por pegadas, objetos ou qual-quer outro sinal que indicasse que eu e meus companheiros lá estivéramos, sem nadaencontrar. Cheguei mesmo a pensar que errara de local, porém as manchas de sangueainda frescas nas árvores próximas não deixavam dúvidas. Minha imaginação cobriuas lacunas do período que passara inconsciente. A discussão acalorada deve ter conti-

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nuado; provavelmente Izabela amparara meu corpo inconsciente, Roger protestara eameaçara; e então o ataque dos lobos, rápido, silencioso e mortal, suas mandíbulas epresas partindo a carne e esmagando os ossos.

Teria ficado lá, paralisada, se não fosse pelo focinho duro me impelindo a continu-ar. Atravessei a floresta meio entorpecida. A visão do veículo de neve foi um raio deesperança, breve, porém, pois um lobo deitado sobre o teto espreitava, como umasentinela de posto avançado. Abri as portas duplas e entrei, seguida pela minha som-bra de quatro patas. Procurei na caixa de ferramentas por uma faca e achei algo me-lhor, um alicate de corte para cabos de aço. Ergui a ferramenta como um troféu, e o lobome olhou com a cabeça meio de lado.

Pela primeira vez, pensei no absurdo da minha situação. Meus companheiros mortospor lobos, e eu estava sendo manipulada por um deles. Seriam eles tão inteligentes aponto de relacionarem o destino do companheiro com a nossa presença no local? Dereconhecer a minha inteligência e pensar em utilizá-la para seu próprio benefício? Seesse fosse o caso, não precisávamos de biólogos, e sim de antropólogos. Segurei aferramenta de encontro ao peito e me encolhi para passar entre as poltronas e o lobo.Seu pêlo era macio, lanoso e quente.

Do lado de fora, senti-me um pouco perdida. Não havia marcas de meus passosna neve. Olhei, sem compreender, para o céu que permanecia límpido. O lobo me em-purrou com o focinho e segui na direção indicada. Observei meus pés afundarem naneve; em seguida, vinham as marcas das patas largas, e então tudo desaparecia quan-do a grande cauda felpuda espalhava neve sobre as pegadas. Com um calafrio, percebique, se uma equipe de resgate viesse, nunca me encontraria.

Rapidamente, atravessamos a floresta e descemos para o lago. Ajoelhei-me aolado do lobo preso. – Calma. Calma. Não vou machucá-lo! – Tentava acalmar a mimmesma. Não conseguia evitar pensar em meu destino. Até o momento, estava vivagraças à boa vontade do meu guardião, como um rato sendo bolinado pelo gato. E oque faria meu 'gato' quando a 'brincadeira' acabasse? Deixar-me-ia livre ou eu mejuntaria aos colegas mortos?

Posicionei a corda dentro do bico do alicate e pressionei os cabos. A corda separtiu e saltou com um estalo. O lobo se pôs em pé com um ganido dolorido e foicercado pelos três companheiros, que latiam e o lambiam.

Fiquei olhando para aqueles alvos monstros agindo como cãezinhos. Era minhaúltima chance, deixei o alicate na neve e corri. Corri por uns trinta metros até ser derru-bada por uma patada, cai de bruços com a cara na neve úmida. Zangada e frustrada,sentei-me e atirei neve no focinho da fera, o mesmo que eu libertara. O lobo saltousobre mim, sua pata pesada pressionando meu peito no chão. Gritei, esmurrei, xingueie chutei. Sua cabeçorra se aproximou. Um rosnado me fez ficar quieta. Fechei os olhose senti no rosto seu bafo quente e a língua molhada.

Quando abri os olhos, estava sozinha, deitada na neve fria, o céu de um azulesbranquiçado, longínquo. Cambaleei de volta para o veículo e entre soluços pedi ajudapelo rádio. Sentei-me, encolhida num canto do veículo e esperei. Esperava retornarpara o domo e para a segurança de suas paredes de aço.

PS: Nenhum animal natural de Becrux-7 foi molestado durante a produção deste conto.AQUELES QUE NÃO DEIXAM MARCAS NA NEVE

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13A ROSEIRA DE ISABEL

Todos ignoravam Isabel. Não quero dizer com isso que fosse proposital ou pormaldade. Só que, às vezes, o mundo anda depressa demais e pequenos detalhesacabam sendo deixados de lado ou esquecidos.

E na vida das pessoas ao seu redor, Isabel era um pequeno detalhe. Os paistinham se separado quando a menina mal sabia falar. O resultado fora que a mãe traba-lhava demais para manter a casa e o pai, mal e mal, a via nos fins de semana em queestivesse na cidade, já que trabalhava como piloto de avião. A empregada cuidava dacasa, e Isabel entrava nesse ‘da casa’, como se fosse uma das mobílias. Os avósmoravam longe, na cidade onde seus pais nasceram e na qual seus tios e tias aindaviviam. No Natal, mandavam um presente para a menina, mas, na amargura dos seusoito anos, desconfiava de que não se lembrassem do seu nome.

Mesmo na escola, chamava pouca atenção. Não era extremamente inteligente,porém também não tinha problemas de aprendizado. Pouco falava com os demais alu-nos, não procurava os professores que, atarefados com crianças hiperativas e paisneuróticos, nem se lembravam da existência da menina.

Isabel se importava com isso, claro, no entanto de algum jeito sabia que só lherestava viver da melhor forma possível. Ficava no quintal, sem fazer barulho, com seusbrinquedos e a gatinha siamesa – talvez a única criatura que realmente se desse contada existência física e real da menina. Também não era criativa em excesso, então re-produzia com suas bonecas o cotidiano que a cercava.

Se isso fosse tudo o que tivéssemos a dizer sobre Isabel e sua vida, poderíamosparar por aqui. Afinal, nos quintais de muitas casas e nos pátios de muitos prédios,existem muitas crianças como Isabel, que passam em branco. Talvez, na adolescência,com a perturbação que é costumeira nessa fase, consigam chamar atenção para si – egeralmente de maneira errada.

Porém, algo extraordinário aconteceu na vida da pequena Isabel.

No último pacote de Natal que chegara de seus avós, Isabel notara um embrulhoestranho. Era um pote plástico com um anel para fazer bolhas de sabão. O presentesimplesmente provava para Isabel que a família distante não lembrava sua idade, se-quer se era uma menina ou um menino.

O pote ficara jogado de lado durante meses. Isabel preferira brincar com suasbonecas no quintal, até que em um dia de primavera, uma brisa fresca soprava, levando

A ROSEIRADE ISABEL

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as roupinhas para longe. Decidida a brincar com algo novo, Isabel se lembrou do pre-sente guardado há tanto tempo e foi buscá-lo.

Passou um tempo soprando e olhando as bolhas subirem. Nenhuma ia muito alto,estouravam antes de atingirem sequer o beiral da casa. Para a menina, não havia pro-blema. Gostava da sensação de criar algo novo, mesmo que tão breve. A brisa trouxerapequenas nuvens ao céu, o sol parecia brincar de se esconder, revelando-se em ummomento e sumindo em outro. Os raios faziam efeitos curiosos nas bolhas, como arco-íris condensados.

Em um momento, pensou ter visto algo diferente dentro de uma das bolhas. Umrosto vago, muito espantado, olhando-a. Mas piscou os olhos e a impressão passou.Continuou a soprar as bolhas, ressabiada, tentando perceber algo mais.

Nada mais de anormal aconteceu e Isabel voltou a se distrair com as bolhas. Elassubiam sem pressa, agora que a brisa amainara. Foi quando Isabel notou que as bo-lhas seguiam um padrão e estavam todas indo para o mesmo lugar, como se seguis-sem um caminho. Podiam rodopiar, girar, desviar-se um pouco, mas estouravam naponta de uma roseira bem grande.

Claro que a menina ficou curiosa e se dirigiu até aquele canteiro, com cuidado. Àprimeira vista, nada de anormal. As folhas balançavam de leve no vento fraco que corriae as duas flores que já despontavam em botão acompanhavam o ritmo. Estava pensan-do se não teria sido apenas impressão quando dois olhinhos piscaram, observando-adetrás de uma rosa.

Isabel pulou, bastante espantada.

– Olá, menina Isabel. Não queria assustá-la.

– Quem é você?

O homenzinho saiu devagar de onde estava e se inclinou para cumprimentá-la:

– Meu nome é Joaquim e sou a fada responsável por esta roseira.

– Como você pode ser uma fada? Você é...

Ela não terminou a frase, pois Joaquim a interrompeu:

– Além de homem, sou negro, né? Se eu dissesse que sou um saci, você entende-ria melhor?

Isabel assentiu com a cabeça. Afinal, fadas eram moças ruivas, pequeninas e comasas que moravam em lugares frios, não homenzinhos negros, de boina vermelha e umcharuto no canto da boca.

– Mas você tem as duas pernas...

– É porque eu não sou um saci, menina, foi só um exemplo. Digamos assim: eusou uma fada porque sou parente das que aparecem nos livros e nos desenhos anima-dos. Somos todos fadas, só que a nossa aparência depende do lugar onde moramos.Não é assim como as pessoas também?

Lembrando-se do que via nos filmes e na TV, Isabel concordou. Ela, mesmo, nãoera ruiva, tinha cabelos pretos escorridos que a mãe dizia vir de uma avó índia muitodistante no tempo.

ANA CRISTINA RODRIGUES

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– Mas o que você está fazendo aqui, no meu quintal?

– Já não falei, menina Isabel? Cuidando da roseira. Ela estava muito triste e solitá-ria, eu estava passando e ouviu seu choro. Como não tinha mesmo um lugar certo parair, resolvi ficar aqui por uns tempos até que ela pudesse se recuperar.

Isabel não sabia que flores podiam ficar tristes ou mesmo sentir solidão. Ficoumuito admirada com isso.

– E você vai ficar muito tempo por aqui?

Joaquim balançou a cabeça, parecendo triste.

– Na verdade, menina Isabel, vou ter que ir embora logo, logo, pois me chamaramem outro lugar... Foi por isso que pedi ao vento para trazer as suas bolhas de sabão atéaqui. Precisava pedir um grande favor a alguém de bom coração.

Isabel não entendeu que ele se referia a ela e esperou que o homem-fada continu-asse. O vento continuava a soprar e a roseira prosseguia na sua dança.

– A roseira ainda está triste... precisa de companhia para se fortalecer e continuarviva. Você não quer fazer isto no meu lugar, menina Isabel?

O vento parou de repente e ela reparou que o dia estava muito quente. A roseira,coitada, ao contrário de Isabel, não estava incluída na noção de ‘da casa’ que a empre-gada tinha e estava descuidada, entregue ao abandono. Formigas cortavam suas fo-lhas, a terra estava seca, alguns galhos estavam quebrados...

Isabel aceitou a missão e Joaquim desapareceu no mesmo instante. Por anos afio, a menina cuidou da roseira. Fez mais, até: plantou todo um jardim naquele canto doquintal e nunca mais a planta ficou sozinha. Quando Isabel cresceu, continuou a morarali, naquela mesma casa, cuidando da roseira e do jardim, quando não estava traba-lhando nos jardins da cidade.

E num dia de primavera, a filhinha de Isabel, Beatriz, soprou bolhas de sabão.Sorrindo, a jardineira percebeu que o vento ainda as levava para o mesmo lugar, pertoda velha roseira.

A ROSEIRA DE ISABEL

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17ESTRANHOS ACONTECIMENTOS NA CASA 22

Era mesmo o espírito de Natal que impregnara a casa dos Grenier...

Afinal, Juliet desejava intensamente se apaixonar, esse era seu desejo natalino. Agarota – se é que podemos definir assim o que ela realmente era – confabulara durantedias sobre uma forma de tornar o espírito de Natal significativo também para a suafamília. E a solução – infelizmente parcial por enquanto, pois não dizia respeito aosseus pais – era conhecer o amor e todos os significados que isso representava.

E por que esse era um pedido tão difícil para Juliet? Ora, ela era a primeira de suaespécie, assim como seus pais também o foram em uma outra ocasião... Aliás, essanão seria uma definição precisa do que Juliet e seus pais representavam. Mas dizerque eram a evolução da humanidade também não seria o correto. Eles eram outracoisa, algo além...

Juliet nascera da união de seus pais, mas não de uma união amorosa. Amor, osdois tiveram quando se conheceram, há muitos anos. Quando ainda eram humanos, enão os “marcianos” de hoje. Marcianos, que fique bem claro, nascidos na Terra e aindavivendo aqui. Marcianos por sua estranheza.

Foi difícil para Juliet entender essa idéia. Assim como foi difícil compreender ohumor por trás de tal definição. Até hoje, tem dúvidas se entendeu corretamente apiada criada por seus pais.

O que tinha certeza é de que queria se apaixonar.

Seus pais não gostaram da idéia, isso já havia sido tentado e sem êxito. Mas elessentiam que a necessidade de Juliet era autêntica desta vez, e não induzida, como daoutra. Uma necessidade intensa e radiante! E radiante não é uma forma figurativa dedizer, a garota realmente brilhava! Como uma jovem estrela! Pelo menos resplandeciacom tamanha intensidade que poderia ser captada no “plano” em que viviam seus pais.O brilho chegava a ofuscar a visão. Ela brilhava de amor! Brilhava como uma natalinaestrela de Belém!

O amor que Juliet buscava era uma cura para a sua solidão. Esse sim, um senti-mento humano que ela podia entender muito bem! A solidão era um espaço escuro,mais denso que o abismo que separa estrelas ou galáxias. Um assustador fosso, ondeficavam escondidos os irmãos que nunca tivera e que, maldosamente, brincavam detrancá-la no grande guarda roupa do quarto inexistente de seus pais. Um fosso escuro,longe de seu alcance, de onde roubava as flores que nunca nasceram nos jardins dos

ESTRANHOSACONTECIMENTOSNA CASA 22

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vizinhos que nunca conhecera. Uma solidão que se misturava com promessas quenunca se cumpririam, de uma vida que nunca seria sua.

Essa era sua solidão.

Era a mesma solidão que Sebastian sentira por toda a vida.

No modesto hotel onde estava hospedado, ele podia ouvir os sinos que tocavamna igreja a algumas quadras dali. Era o templo chamando seus fiéis. Era o som dacomunhão.

Nesta época do ano, o espírito de união era mais vívido. Sebastian sabia bemdisso. Entretanto, não podia vivenciá-lo ou compreendê-lo verdadeiramente. A confra-ternização que as pessoas buscavam, nas festas e nas reuniões familiares de fim deano, era algo estranho para ele.

Seus poucos amigos, alguns de forma mais direta que outros, diziam que suaalma era fria. Fria como a noite de inverno em que ele veio ao mundo, há pouco mais deduas décadas. Aliás, sua sórdida mãe sempre fez questão de lembrá-lo disso. De lembrá-lo de que não tinha coração.

Mas Sebastian tinha, sim, um coração apesar de tudo. Só não sabia dividi-lo commais ninguém. Isso lhe trazia tristeza e outros sentimentos que comprovavam que,afinal, era um ser humano. Mas sentia que sua vida não era a vida que merecia, quenão fazia parte deste mundo. Essa sensação de ser tão diferente trazia dor e solidão aele.

Para ocupar seus dias em um mundo que não parecia seu, Sebastian dedicava-secom grande afinco aos estudos, sempre tentando ignorar o que essa ávida busca deconhecimentos significava na verdade. Ele agora se dedicava à fotografia.

Enquanto guardava sua máquina digital e apetrechos na mochila, preparando-separa uma visita às instalações reais da “Stahl house” de Julius Shulman, Sebastian,deu uma olhada pela janela para ver como estava o tempo. Um sol tímido tentava ven-cer o frio inverno, e pessoas bem agasalhadas caminhavam de um lado para o outro,apressadas. Ele sentia falta da neve. De uma neve sobre Los Angeles.

Enquanto trancava o apartamento, já com a mochila às costas, deu uma rápidaolhada no número 22 em metal, pregado na porta de madeira.

Era o mesmo número do “case study house 22”, o icônico projeto do arquitetoPierre Koenig. A residência do famoso ensaio fotográfico de Julius Shulman.

Romeo sorvia lentamente o chá, enquanto observava a cidade através de um dosinúmeros painéis de vidro de sua residência. Essa época do ano era como qualqueroutra para ele. Como não tinha família, não sentia a obrigação de comemorar o Natal.

CARLOS RELVA

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Ele aguardava a chegada de um estudante de fotografia, que faria um ensaio emsua casa, ao estilo Shulman. Não seria o primeiro. Aliás, não era nada original a idéia dereproduzir o trabalho do famoso fotógrafo. Mas o velho, um solteirão endinheirado, quecostumava cobrar pelas fotografias realizadas em sua casa, aceitou deixar desta vezum fotógrafo fazer seus cliques de graça. E o engraçado é que o garoto nem teve queinsistir muito!

Na verdade, Romeo não sabia dizer se foi o tom monótono, frio e um pouco arro-gante da voz do jovem fotógrafo, que lembrava muito a sua própria voz há anos, que oconvencera a abrir seu lar para as fotografias, ou se fôra o inusitado pedido de fotogra-far sua residência na véspera de Natal.

“Será que ele não tem mais nada para fazer neste dia?”, pensou. “Será que essagenerosidade é um sentimento natalino que se apossou deste velho rabugento?”

E enquanto apreciava o restante do chá, a idéia o fez rir. Mas, em seguida, o pensa-mento divertido foi tomado por outro e sua fisionomia ficou contemplativa, soturna.

“Será que é ele, afinal?” O pensamento lhe deu um leve calafrio.

O mesmo calafrio sentiu Sebastian ao sair do táxi, em frente à casa 22. Afinal, anoite prometia ser muito fria.

Frio também foi o cumprimento entre Sebastian e Romeo. O anfitrião achou ofotografo tão antipático que quase mudou de idéia e cobrou pela seção de fotos.

“Esse pobre rapaz não imagina o que essa casa representa de verdade”, pensouRomeo. “Claro que não, ao olhar estas estruturas deve só ver chapas de aço e painéisde vidro que substituem paredes. E a composição fotográfica de Shulman, apenas umícone da modernidade!”

Romeo tinha certeza de que Sebastian não tinha a mínima noção das sutis infor-mações que se escondiam por trás da estrutura arquitetônica da “Stahl house”. Não viaa real grandiosidade do projeto desenvolvido nos anos 60. A casa era só a ponta de umgrande iceberg! Um detalhe de um trabalho científico experimental que aguardava serretomado. Aguardava a chegada de um elemento fundamental.

Um dia, Romeo achou que era esse “elemento”. Mas estava errado. E sabia queSebastian também não estava apto para preencher a vaga.

Após ouvir enfadonhas reclamações do jovem sobre as dificuldades para conse-guir investimentos para projetos fotográficos “mais ousados”, Romeo deixou-o próximoa piscina. Bem em cima do marco comemorativo que indicava o ponto exato ondeShulman havia colocado o tripé de sua máquina e tirado a tão famosa foto.

Romeo então voltou aos seus afazeres rotineiros e comuns.

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Mas não eram comuns os sentimentos que Sebastian experimentara algum tempodepois de Romeo o deixar...

Sensações estranhas tomaram conta de seu ser. Ele sentia como se estivessesendo observado e chamado. Mas para onde? Quem? Entretanto, Sebastian não esta-va assustado. A sensação era de um doce e leve delírio.

A câmara digital estava a postos, o cenário montado há muito tempo. Mas o jovemfotógrafo não conseguia tirar uma única foto. Turbilhões de emoções novas tomavamconta de sua mente. Agora, ele sabia o que seus amigos queriam dizer sobre sua frieza.Agora entendia sua mãe.

Sebastian era uma nova pessoa. E nunca mais as coisas seriam como antes!

Mas, algo mais estava por vir.

Quando Romeo voltou à sala principal, encontrou Sebastian completamente nu eperplexo. Seu corpo era etéreo e emanava uma sutil luminosidade. Romeo poderiaconfundi-lo com um fantasma, se acreditasse em um.

– Ela me ama, Romeo. Juliet me ama! – disse a nova forma existencial de Sebastian.– E eu a amo também!

E então Sebastian desapareceu completamente.

Lágrimas correram dos olhos de Romeo e uma grande alegria se apossou de seuser. Ele esperava ver Juliet uma última vez, mas ela não apareceu. Sentiria saudade dabela e especial jovem. Sentiria saudade de seus corajosos e obstinados pais, os cien-tistas envolvidos em um projeto extraordinário e que se tornaram seus grandes amigos.

Agora, Romeo se encontrava no mesmo lugar de uma das modelos na foto ines-quecível de Julius Shulman. Os móveis eram outros, mas a vista noturna de Los Angeles,um tapete de estrelas sob um céu escuro, possuía agradável semelhança.

E a construção de Pierre Koenig parecia avançar para a cidade e para a eternida-de como nunca. O projeto reiniciara e as esperanças da humanidade se renovavam.

“Feliz Natal, Sebastian e Juliet!”, pensou Romeo, esperando que o casal pudesseouvi-lo.

E para o velho proprietário da casa 22, os maravilhosos acontecimentos daquelanoite representavam o mais belo espírito de Natal que já havia presenciado.

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23O CAMINHO PARA O INFERNO É PAVIMENTADO COM BOAS INTENÇÕES

Muitas pessoas gostam de colecionar coisas, das mais comuns às mais exóticas.Eu gosto de colecionar ditos populares. Por muitos anos, anotei-os em diários de capade couro, que guardava com cuidado em uma estante na biblioteca. O advento dainformática facilitou minha vida e hoje os armazeno virtualmente. Há também pessoasque gostam de colecionar artefatos malditos. São poucos os que se dedicam a essetipo de coleção, gente discreta que não hesitaria em assassinar uma criancinha com aspróprias mãos para se apossar de um deles.

Sou um caçador de artefatos malditos a serviço da santa madre Igreja CatólicaApostólica Romana. Meu trabalho é rastrear artefatos que estejam prestes a trocar demãos e tomar posse deles, usando qualquer meio que julgar necessário. Alguns achamque um trabalho assim é emocionante, como um filme de Hollywood. Não vou dizer ocontrário; é realmente emocionante, mas também é muito perigoso. Já testemunheicoisas arrepiantes e fiz coisas que poucas pessoas teriam estômago de fazer. Se nãotrabalhasse sob as ordens da Igreja, diriam que sou um monstro assassino; como tra-balho, sou então um anjo vingador.

Uma vez perguntaram-me o que havia me marcado mais nesse trabalho. Por umsegundo, pensei em dar uma resposta qualquer, mas decidi que, somente encarandomeus fantasmas, poderia dominá-los e não deixar que fossem usados contra mim, oque poderia ser fatal.

Há muitos anos, apaixonei-me por uma jovem rastreadora que eu treinava. Ela eralinda, tinha cabelos pretos compridos que sempre usava num rabo de cavalo, tinhapersonalidade e bom humor. Um dia, durante um trabalho especialmente perigoso, eladesapareceu. Quem não pensaria que ela havia sido levada à força pelos seguidoresdo mal? Uma consulta rápida a uma bruxa – sim, elas existem e cobram muito caro porseus serviços – e fiquei sabendo que ela estava viva, imersa em sombras malignas.

Por muitos anos não soube dela. Tentei em vão descobrir seu paradeiro, o que serevelou muito mais difícil do que rastrear os mais poderosos artefatos malditos. O tem-po passou. Finalmente, um dia, recebi o telefonema por que esperara por muitos anos.

– Tenho algo que você perdeu há muito tempo. Você tem interesse em fazeruma troca?

– Se você realmente a tiver, poderemos conversar.

– Não esperava que fosse diferente. Você terá um minuto para matar a saudade.

Então ouvi sua voz, doce como me lembrava que era. Para ela o tempo parecia

O CAMINHO PARA O INFERNOÉ PAVIMENTADO COM BOASINTENÇÕES

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não ter passado e somente naquele momento soube que havia sido tomada comorefém. Desculpou-se e pediu para não abandoná-la.

– Está satisfeito?

– O que você quer para libertá-la?

– Algo que será mais fácil para você conseguir do que encontrá-la por conta própria.

Artefatos malditos são cercados por uma aura de mistério para a maioria daspessoas. Esse mistério nasce da falta de conhecimento sobre sua natureza. Pratica-mente qualquer coisa inanimada pode se tornar ou ser transformado em um artefatomaldito. Isso pode acontecer de três formas. O mais comum é os objetos serem amaldi-çoados por gente conhecedora, ou não, das artes das trevas. Há também os objetosque são amaldiçoados por terem feito parte de algum acontecimento maligno. Os maisperigosos, porém, são aqueles tocados pelo próprio Satanás.

Era, exatamente, com um desses objetos, que se tornaram malignos com o toquedo anjo caído, que pagaria a libertação daquela por quem um dia me apaixonei. Umartefato que eu vinha rastreando por longos anos e que, finalmente, estava próximo deinterceptar.

Alguns dias depois, quando cheguei ao quarto do hotel onde estava hospedado,encontrei um envelope que havia sido jogado por sob a porta. Dentro, uma foto mos-trando a rua lateral de uma igreja numa tarde de sol e junto da calçada, de costas,estava ela. No verso da foto havia um impresso. “Igreja de S. Gerônimo. Viseu. 24/12.15:05hrs”.

Durante os três meses que me separavam daquela data, dediquei-me como nuncaa rastrear aquele artefato. Por se tratar de algo realmente valioso e disputado, não foinada fácil chegar até ele. É incrível o que alguns colecionadores são capazes de fazerpara não perder artefatos como aquele.

Artefatos malditos requerem cuidado, muito cuidado no seu manuseio. Por falta decuidado, muitos colecionadores, rastreadores e desavisados sentiram na carne seu po-der maldito. Por isso mesmo, assim que retomava um artefato, devia fazer imediatamentemeu caminho para Roma e entregá-lo aos cuidados dos santos padres que tinham aresponsabilidade de fazer com que nunca mais tivessem seu destino conhecido por ouvi-dos humanos ou demoníacos. Daquela vez não fui para Roma, mas para Viseu.

Quando almoçava em um restaurante simpático não muito longe da igreja da foto,meu telefone celular tocou e soube imediatamente quem ligava.

– Vejo que está mesmo disposto a fazer a troca.

– Você duvidava da minha disposição?

– Para ser sincero, duvidava, sim. Mas o que importa é que você está aqui, acredi-to que com o artefato do meu interesse, e que logo mais faremos a troca.

Hordas de turistas vagueavam pela cidade mesmo sob o sol quente de verão,apontando suas câmeras fotográficas para todos os lados. Eu caminhava incógnitoentre eles, sem prestar atenção às belezas arquitetônicas da cidade antiga enfeitadapara o natal. Assim que entrei na ruazinha ao lado da igreja, senti um silêncio opressorque não era natural. Então a vi, exatamente como na foto, só que dessa vez olhava em

CHARLES DIAS

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minha direção com um sorriso nos lábios.

– Não consigo evitar o sentimento de remorso pelo que fiz, santo padre.

– Isso é natural, meu filho.

– Ela confiava em mim.

– Certas coisas são mais importantes que outras, essa é a triste verdade. Quandoela se tornou uma rastreadora, o fez sabendo dos riscos que corria. Algumas vezes avontade fazer o bem pode ser um atalho para fazer o mal. É como diz um dos ditos quevocê tanto gosta. O caminho do inferno está pavimentado com boas intenções.

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27CORAÇÕES DE FERRO

Agosto, 1947.

Seis máquinas de guerra, de forma vagamente humanóide, com cinco metros dealtura, caminham em direção à cidade de Mar del Plata.

– Ogum Primo! Responda!

– Ok, Changô, Miro Montenegro respondendo.

– Miro, Mechs inimigos não identificados avistados em 27.32.45.

– Ok, Changô, vou investigar.

– Lembrem-se: identifiquem, mas não se envolvam!

– Entendido, Changô. Oxossi, siga-me 100 metros na retaguarda.

– Ok, Ogum. Boa sorte, Miro!

Os mech brasileiros avançavam com cautela, até avistarem as máquinas inimigas.

– Changô! Reconhecemos os modelos! São oito Gundam, repito, oito Gundam eseis Panzer. Pelotão! Recuar! Recuar!

– Mas...

– Eu mandei recuar, Grig!

O mech de artilharia, Oxossi, não se mexeu. Parecia estar se preparando para atirar.

– Grigory Zacharov! – gritou Montenegro – Eu sei que podemos acertá-los daqui,mas hoje não. Eles não podem saber do que somos capazes, não ainda! Você aindaterá sua vingança, eu prometo! Espere por um peixe maior!

– Sim... senhor. Eu entendo. Recuar! Vamos fugir como somente nós, brasileiros,sabemos fugir!

Guernica, Espanha, 1937.

Capitão Montenegro, veterano da Revolução Tenentista de 1930, agora voluntárioe observador militar brasileiro na Guerra Civil Espanhola, subia as colinas que rodea-vam Guernica, onde os republicanos espanhois se refugiavam dos nacionalistas.

– Doutor Touring! Como vai?

– Eu vou bem, Capitão, mas não é por meu belo corpo que o senhor veio aqui,suponho.

– Não, quero saber de seus aparelhos.

– Todos tinindo, diriam vocês. Asseguro que pelo céu, os boches não nos atacam.

CORAÇÕESDE FERRO

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Contemplavam o sistema de artilharia automática com mira de computador, de-senvolvida pelo cientista inglês Doutor Touring, que tornavam os famigerados bombar-deiros alemães bem menos eficientes. Era tarde demais para os republicanos espanhois,mas Adolf teria que repensar sua estratégia, pois não poderia contar mais com seusqueridos “stuka”.

– O senhor parece preocupado, Doutor.

– Miro, que sabe sobre os Mech?

– Ah, a lendária Infantaria Mecânica dos alemães. Homens mecânicos gigantes,tirados diretamente daquelas revistas pulp. A turma da propaganda nazista definitiva-mente está delirando.

– Miro, você é engenheiro, e admiro sua capacidade de inovação. Escute, quaissão os impedimentos tecnológicos para a fabricação de tais Mech?

– Preço, complexidade; seriam pouco práticos e, principalmente, necessitariam desistemas de computação extremamente rápidos e robustos, como... Meu Deus!

– Como os sistemas de computação que desenvolvi. Sim, Miro, se eu posso, osalemães também podem, pois possuem muitos cientistas, tão competentes ou melho-res do que eu. E um governo, que à diferença do meu, aceita investir em tecnologiasinovadoras. Bolas, vocês brasileiros é que pagaram por minha tecnologia!

– Ainda assim, isso nos levaria a sistemas de computação, controle e criptografiamelhores, mas não necessariamente a “homens de aço”. Afinal, eles seriam poucopráticos em combate. Um grupo de soldados seria mais barato e mais flexível.

– E o aspecto psicológico? Os nazi são muito bons em propaganda. Estas máqui-nas, saídas dos pulp, teriam um apelo enorme entre os sugestionáveis. Além disso,estas máquinas causariam terror nos inimigos por serem exatamente os “gigantes” e“ogros” de seus contos de fantasia. Garanto que se um grupo de Mech avançassesobre os republicanos, por exemplo, eles fugiriam em pânico.

– Acho que o senhor exagera. Soldados treinados, veteranos, não entram empânico tão fácil.

– Quer apostar, capitão? Que tal um beijo na boca? – Touring piscou paraMontenegro.

– Até dois, doutor.

– Se o capitão não ficasse preocupado em dar as costas para mim, teria reparadoque eu já ganhei...

– Como? – Miro virou-se para olhar em direção à ponte que conduzia à vila. Umgrupo de oito soldados avançava... Olhando melhor, corrigindo o senso de perspectiva,Miro compreendeu que seriam coisas humanóides, com seis metros de altura, ameaça-dores, como gigantes... E os soldados republicanos abandonavam seus postos, e fugi-am em pânico.

– Mech!

– Impressionantes, não?

– Vamos sair daqui, imediatamente!

ERNESTO NAKAMURA

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– Ora, o senhor também?

– Não, o doutor não entendeu? Eles caminham para cá, para destruirem os anti-aéreos, e depois, bombardearão a cidade!

– Ah, compreendo. Vamos fugir, então...

Anos depois, o massacre de Guernica seria imortalizado por um artista espanholexilado. O horror de ser esmagado por uma imensa bota de aço tornou-se o símbolo daopressão nazista, para o mundo livre.

Após algumas semanas, Miro Montenegro e Touring chegaram ao Brasil, relativa-mente sãos e salvos, após várias peripécias. Miro foi chamado para uma reunião com osecretário especial Brigadeiro Eduardo Gomes.

– Então, Miro, como foram tuas férias na Espanha?

– Ah, sol, praia, mulheres bonitas, boa comida e bebida... Ah, chefe, foi um horror!Aqueles alemães...

– Fale-me mais sobre os Mech.

– Não tenho muito mais a dizer, pois agora todos os países estão desenvolvendoMechs.

– E nós também deveríamos.

– Tá brincando, Dudu? Nós nem conseguimos fabricar aviões. Aliás, não produzi-mos nem um fuzil de assalto decente. Em termos militares e materiais, estamos em1910, ou menos.

– E por isso, pergunto: Miro, se hoje resolvermos construir Mech, quando elesestariam prontos?

– Entre 1945 e 1947, Dudu. Estamos atrasados, mesmo.

– Tudo isso? Mas eu quero um!

– Calma, chefe! Acho que todos querem, agora... Se quer tanto um Mech, porquenão nos aliamos aos nazi?

– Nem brinque com isso! E aquele seu amigo inglês de gosto exótico? Converseicom ele, e me assegurou que, se lhe dermos verbas, pessoal e tempo, ele nos dará astecnologias básicas para fabricarmos nossos próprios Mech.

– Ele não mente, Dudu; ele pode nos fazer um ou dois, mas o fato é que precisa-mos de muito mais doutores, engenheiros e técnicos para termos montes deles. E baseindustrial, infraestrutura. Basicamente, precisaríamos transformar o Brasil um país in-dustrial, não somente exportador de café e carne seca.

– Ai, acho que isso demora uns... 30 anos, não é mesmo?

– Não necessariamente, chefe; pelo que percebi na Europa, se nossas embaixa-das anunciassem que aceitamos imigrantes, sem questionar religião, raça ou ideologia,teríamos milhares de pessoas qualificadas imigrando para cá. Isso adiantaria muitonosso desenvolvimento.

– Misturadas em milhões de desqualificados, retirantes e exilados, não é mesmo?

– Sim, este seria o preço.

CORAÇÕES DE FERRO

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– Vou conversar com Vargas...

Agosto, 1938

“Senhores ouvintes da Radio Nacional, é com imenso pesar que comunicamos ofalecimento de nosso presidente, Getúlio Vargas, assassinado covardemente por agita-dores fascistas. O grupo denominado “integralistas” foi preso, aparentemente agindocom apoio alemão e italiano, numa tentativa de golpe de estado, que fracassou graçasà presteza e união de nosso exército (...) mas nada disso diminui nosso ultraje nacionaldiante de tamanha atrocidade (...) Eleições gerais marcadas para ...”

Janeiro, 1939.

Presidente Eduardo Gomes, recém eleito, em sua primeira reunião ministerial.

– Primeira decisão: assinaremos acordos de proteção mútua, troca tecnológica ealiança militar com a Inglaterra e França, os chamados “Aliados”.

– Será sábio, senhor presidente? – argumentou Dutra, ministro da defesa. – Até osEstados Unidos declararam-se neutros e querem evitar envolvimento com a diplomaciaeuropéia.

– Mas esta é nossa oportunidade. Sem apoio norte-americano, os aliados preci-sam de todos os amigos que puderem contra o valentão da Alemanha. Vejam o caso daVenezuela; por apoio militar, ganharam as Guianas Inglesas.

– Em troca de petróleo – completou Dutra. – E o que nós temos a oferecer aosAliados?

– “Terra, Paz e Liberdade”. – Os ministros se calaram, para não contrariar o chefe.

– Sério, pessoal. Segundo nossos diplomatas, milhares de pessoas estão fazendofilas por toda a Europa, implorando para imigrarem para cá, pois calculam que Inglater-ra e França estão perto demais dos “Ogros Germanos”.

– E este pessoal pode contribuir para o nosso esforço de industrialização. – com-pletou Miro Montenegro, secretário especial do presidente.

– E quanto a um envolvimento militar sério? – questionou Dutra.

– Sejamos realistas, senhores. Não temos base industrial para sustentar milhõesde soldados ou milhares de tanques e aviões, por enquanto. O que temos é café, açú-car, carne seca e tabaco para os soldados, e, segundo os ingleses, eles aceitariam aténossa farinha de mandioca socada com peixe e banana secos, como rações de emer-gência.

– Como alguém pode gostar disso? – comentou Miro.

– Alguns brasileiros gostam – cortou Dutra.

– Opa, desculpa, General...

Nos anos seguintes, o mundo ardeu. Em 1939, a Alemanha invadiu a Polônia,Holanda, Belgica, Escandinávia e França, e venceu todos. Graças à força aérea e aossistemas de radar e artilharia antiaérea, a Inglaterra sobreviveu, no limite de seus re-

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cursos. Em 1941, a Alemanha atacou a União Soviética, aliada do Japão, o que envol-veu finalmente os EUA no confronto, que estava focado na defesa do Pacífico, ou seja,em bater primeiro o Japão. A Inglaterra conseguiu manter o Atlântico Norte relativa-mente seguro, e recebeu suprimentos de seus aliados do outro lado do mar. Por trêsNatais, a ceia britânica foi colorida com parcas frutas tropicais secas e rapadura doBrasil. A última coisa doce que lhes restava.

Março, 1944.

– Boa tarde, senhor presidente

– Oi, Miro. Então, conseguimos?

– Sim, conseguimos. – Entraram em um galpão, nos arredores de São José dosCampos, onde Miro Montenegro construíra fábricas de artilharia, armamentos, máqui-nas e ferramentas; resumindo, um parque industrial militar. E também centros de pes-quisa e desenvolvimento, onde se falava quase todas as línguas, até português. Oscientistas, engenheiros e pilotos estavam perfilados, esperando o presidente e sua co-mitiva.

– Estes são os doutores Touring, Merkatz e Radaticz, que o senhor já conhece.Aquele ao fundo é o pessoal da Holanda e da Bélgica, recém-chegados. Depois, nosapresentaremos formalmente. E adiante, o que o senhor quer ver mesmo, não é? Nos-sos Mech.

Ao fundo, cinco máquinas humanóides idênticas, robustas e obviamente construídaspara combate, se revelaram.

– Propomos chamar de Ogum, o guerreiro. Mechs de linha de frente, altamenteblindados, com armamento pesado. E aquele atrás é Changô, o rei.

– Desculpe?

– Abriga os sistemas de comando, controle e comunicação. Possui radar, artilhariaantiaérea e os computadores mais avançados.

– Ah, entendo. É um “rei” da guerra.

– Exatamente. Mas temos mais um. Este ainda é protótipo, portanto está naquelegalpão separado. É segredo absoluto.

– Vejamos.

Entraram em outra divisão do galpão. Viram um Mech menos humanóide, poispossuia canhões mais longos, artilharia antiaérea e, principalmente, casulos de fogue-te, para centenas de tiros. E um homem barbudo, com aspecto de mecânico de trato-res, suado e sujo. Estava tão ocupado que nem percebeu a chegada dos visitantes.

– E este é nosso herói, engenheiro Grigory Zacharov.

– Russo? – perguntou Gomes.

– Ucraniano – respondeu, num português bem eslavônico, ao notar o presidente.

– Bem, perdão. O que está construindo, senhor Zacharov?

– Matador de Mech, senhor.

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– Foguetes especiais antiblindagem– completou Miro. – Propomos chamá-losOxossi, o caçador.

Foi então que Gomes percebeu o motivo do segredo abosluto. Esta arma nãoexistia no arsenal alemão. Um veículo específico para anular Mechs.

– Entendo. Continue seu trabalho, com nosso apoio, Zacharov. Vamos precisardestas unidades.

– Vão mesmo, senhores. E muito.

Após três anos de carnificina, a União Soviética se rendeu. Logo depois, Espanhae Portugal embarcaram no trem vitorioso do nazifascismo. Em março de 1946, a Argen-tina sofreu um golpe de Estado e o novo governo declarou-se aliado do Eixo, atacou eanexou Paraguai e Uruguai. Não invadiram o Brasil por pouco, graças à resistênciainesperada das tropas estacionadas no sul do país e no Mato Grosso. Em abril, ocorreuum golpe fascista na Bolívia, que, com o apoio argentino e do Eixo, avançou sobre oterritório brasileiro pelo Norte. Tropas alemãs, tanques e Mech, italianos e espanhóis, edepois japoneses desembarcaram na Argentina para apoiar seu novo aliado. A guerrachegara ao território americano.

A Bolivia, com o reforço das tropas recém-chegadas, marchou sobre as áreas quereclamava como suas, e avançou pelo Amazonas, até que venezuelanos os detiveramem Manaus. Os soldados da Venezuela, armados com equipamento superior fornecidopelas indústrias brasileiras, surpreenderam os argentinos e bolivianos, e ainda mais ositalianos e germanos. Em quatro meses de guerra em florestas e montanhas, a Boliviacaiu, quando Mechs brasileiros marcharam sobre La Paz. A partir do Norte, iniciou-se ainvasão da Argentina, lenta, dramática e metódica.

Novembro, 1947. Após a queda de de Buenos Aires.

John Ford, documentarista, conversava com Capitão Heinlein.

– Saudações, Capitão! O que o trouxe aqui?

– O mesmo que o senhor,diretor!

– Mechs!

– Sim, Mechs. Testemunhamos um confronto histórico: pela primeira vez, Mechaliados enfrentam seus equivalentes alemães e japoneses, numa batalha que entrarápara a história. Garanto que será um dos melhores filmes de todos os tempos! E aoportunidade! Nós vencemos! Derrotamos os nazi em seu próprio jogo!

– Nós, não exatamente; os brasileiros é que os venceram.

– Mas não somos todos americanos? E nós americanos, vencemos!

– Ai, isso doeu, diretor!

– Sei que é hipócrita, mas o povo, os povos das nações aliadas, precisa de ima-gens de vitória, ainda mais agora que o resto da guerra parece estar empatado. E,garanto, estas imagens trarão muita esperança e aumentarão a moral de nossos paí-ses. Se até brasileiros podem vencer os nazi, que se dirá de nós, americanos? E issonão é hipocrisia.

ERNESTO NAKAMURA

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– Propaganda, mas concordo. Está mais do que na hora de termos vergonha nacara e lutarmos para salvar o mundo.

– Antes que os brasileiros o façam.

Capitão Heinlein foi conduzido por oficiais brasileiros, até um depósito no porto deBahia Blanca.

Era um submarino de transporte alemão, pego de surpresa pelo batalhão de artilhariade Grigory Zacharov, quando desembarcavam secretamente sua carga.

Capitão Heinlein foi convidado a inspecionar o material apreendido.

– Saudações, Capitão Montenegro. Saudações, senhor... Presidente ComandanteGomes.

– Saudações, Capitão Heinlein. O senhor é da Inteligência americana, não?

– Bem... sou, sim, mas isso é segredo.

– Certo. E convidamos o senhor a testemunhar o que encontramos. Seus superio-res precisam saber imediatamente.

– O que é que temos?

– Veja por si mesmo, e confirmaremos as conclusões.

– Então vejamos a carga. – Entraram num galpão improvisado.

Heinlein declarou para um público imaginário:

– Cinco Mech alemães, nomeados “Valkrye” no casco. Material: alumínio e aço.Sem blindagem. Armamentos: canhão de 80 mm e baterias de mísseis.

– Observe os motores, por favor.

– Turbina a jato, um em cada “perna” e um principal, no tronco. Vários exaustores e...

Heinlein parou para realizar alguns cálculos. Finalmente compreendeu.

– Isto... esta máquina...

– Ela voa, capitão Heinlein. Os nazi desenvolveram um Mech voador.

– Mas para quê?

– Propaganda. “A prova da superioridade da tecnologia alemã”. Para neutralizarnossos Mech de artilharia. Por isso, chamamos os senhores. Seu departamento decontrainformação precisa saber e se preparar.

– Podemos levar um deles conosco?

– Levem dois, mas ficaremos com o resto, para análise e engenharia reversa.

– Claro, claro. Partiremos imediatamente. Muito obrigado pela cooperação, senhores.

Após a saída do oficial norte-americano, Miro e Gomes se entreolharam.

– São três Mech...

– E precisamos de dois, para engenharia reversa.

– E o último...

– Eu pilotarei! – disse Gomes.

CORAÇÕES DE FERRO

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– Não deve, senhor. Afinal o senhor é presidente da República, não deve correrestes riscos.

– Eu renuncio! Nomeio um substituto. Mas eu piloto esta coisa!

– Ai, meu deus... Certo, vamos fazer os arranjos. Mas temos de dar um nomecorreto, afinal não podemos chama-lo Valquiria. É nome de mulher-à-toa.

– Certo, pela seqüência dos deuses africanos, que tal Oxumarê, a serpente voa-dora?

– Pelo menos, não o chamaremos “pomba-gira”...

Fevereiro, 1954. Rio de Janeiro. Sede das Nações Unidas

O presidente do Brasil, Oswaldo Aranha, inicia a primeira sessão das NaçõesUnidas, após a vitória aliada contra os regimes totalitários.

– Graças a Deus, acabou.

ERNESTO NAKAMURA

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37ESPERANDO O CAVALEIRO NEGRO NO CAVALO BRANCO

– Então estás aí, minha querida? Vês, estou pronta para receber teu príncipeencantado, teu cavaleiro negro no cavalo branco... Vês minha meia-calça? Pensei emuma cinta-liga, mas ele decerto consideraria vulgar, o tolo apaixonado...

– Vadia...!

– Ora, vamos, que tais palavras não cabem bem... na tua boca, tão santa, tãopura... Ainda não sei se vou me controlar esta noite. Talvez me deixe levar, ser cavalga-da por aquele potranco... dizem maravilhas dos negros na cama!

– Me recuso a ver, presenciar isso...

E o silêncio, que minha nova dona saboreia, é doce a vingança em seus lábiossorridentes. Ela sabe que a outra não tem escolha a não ser ver. Você deve se pergun-tar quem sou eu, pois bem: eu sou o negro. Não, não o príncipe que se deliciará comminha nova dona, mas o gato.

E que cena, não? Uma mulher cheia de desejo, a ponto de aprisionar sua metade,apenas por lascívia e luxúria. Apenas? Não é isso que move o mundo? “Crescei emultiplicai-vos”, já ouvi minha antiga dona, pura e imaculada, orar. E eu. O gato, negro.Que vê, pensa e relata o que aconteceu naquela noite fatídica.

Eu acompanho minha dona, a real, há apenas alguns anos. Foi vê-la e saber queali estava minha oportunidade. Santa e imaculada por fora, uma mulher normal pordentro. Não, não se engane, ela era realmente imaculada e pura até então. Ela ape-nas... reprimia seu outro lado. Com asco, quando via qualquer homem, reprimia e resfri-ava o estremecimento, as borbulhas no estômago. Ignorava que o balé que dançava eravisto por centenas de homens com uma lascívia praticamente pedófila. Mas não ignora-va as visitas que eles faziam a seu pai apenas para contemplá-la, desejá-la e, claro,cortejá-la. Usava como um meio de exercitar seu distanciamento relativo aos homens.Agora, seu pai estava morrendo e ela precisava se casar.

Quando ela o viu pela primeira vez, nem todas as suas forças foram suficientespara evitar a tremedeira. O chá se derramou e seu pai ralhou, apenas com os olhos,aquela demonstração de desejo e fraqueza. Porém, o visitante sequer notou. Respeito-so, encarava o pai nos olhos, sem desviar jamais para apreciá-la. Foi tomada por umsentimento que jamais teve: raiva. Imensa, por ele não prestar atenção nos seios, napele branca, nos cabelos sedosos. Quem pensava que era?

Porém, se controlou. A raiva foi a força necessária para acabar com o estremeci-mento. Pensou em como se render ao desejo a tinha levado à raiva, ao ciúme, à inveja.Rejeitou tudo e, como a boa dama que era, serviu o chá e se retirou. Porém, ao servi-lo,notou que o homem prestava reverência ao pai, como um capitão prestaria ao seuvelho general. Ficou triste com o pesar nos olhos daquele homem, que apenas com aexpressão em seu rosto conseguia demonstrar amor e lealdade incondicionais ao pai.

ESPERANDO O CAVALEIRONEGRO NO CAVALO BRANCO

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Ela não sabia, mas estava apaixonada.

O que ela também não sabia é que aquele momento de fraqueza foi o que euprecisava – e aguardava – para começar meu trabalho.

Com a aprovação do pai, o homem começou a freqüentar a casa. Porém, parasurpresa de minha dona, não era por ela, era a pedido do pai. Ele não demonstravainteresse em conhecê-la. Nos poucos momentos em que se encontravam a sós, ele ape-nas a cumprimentava ou se despedia. Porém, ela passou a reparar mais no objeto de suapaixão, no porte que ele possuía, como de um príncipe, apesar dos modos meio rudes dequem não fora educado na nobreza. Parecia ser inteligente, mas não particularmenteeducado. E acendia os desejos dela como jamais ela pensou que fosse possível.

Começou a sublimar o desejo que sentia, o estremecimento, tentando convencera si mesma de que não era luxúria, mas, sim, amor. Que era isso o que as mulheressantas, devotadas aos maridos, deviam sentir no íntimo. Mal sabia ela que estava sefracionando, dividindo-se em duas personalidades, a cada dia mais. E eu, de minhaprisão, incentivava. Afinal, eu era só o gato... Podia sempre estar por perto. O que ummero gato poderia fazer de errado? O que um gato poderia causar de ruim?

Talvez você se questione como eu pude esperar tanto tempo. Os meses e mesesde aproximação, de sedução à distância, de libertação da minha nova dona e aprisiona-mento da antiga, o que só foi possível pela minha presença e pela recusa do pai emmorrer. O tempo passava, os curandeiros pregavam a morte próxima, rápida, “em bre-ve”, eles diziam, mas o velho continuava ali. Talvez eu tenha influenciado isso, também,não sei dizer. Mas imaginava que, sem o consentimento silencioso do velho, ela poderiarecuar, virar freira, algo assim.

Mas eu já estava presa naquele gato. Eu já era o gato... há tanto tempo... queaguardar mais alguns meses, ou mesmo anos, não seria um sacrifício. Analisando hoje,enquanto vejo minha filha correr pelo pátio e enfeitiçar pequenos insetos por diversão,não poderia ter sido diferente. O velho morreu quando o romance dos dois precisavaapenas de um empurrão para acontecer. O velório e o choro inconsolável acabou comas forças da puritana, deixando a sua outra face assumir. O feitiço foi simples e, claro,foi meu, ainda que eu tenha penado nos anos em que estou... estava... presa paraaprender a manipular a natureza com um corpo tão limitado.

Eu ainda não tinha força para deixar o gato e tomar o corpo daquela criança, tãodividida quanto confusa sobre a vida. Criada apenas pelo pai, ela não poderia saberque o desejo é a força mas também a fraqueza de uma mulher. Não tinha como enten-der que ela tinha que conciliar essas forças, aparentemente impossíveis de serem con-ciliadas, com seus interesses, com sua pureza aparente. Ela tinha tudo para ser perfeitaaos olhos de todos, e é. Ou melhor, sou.

Hoje, as duas me contemplam lamurientas de seu espelho-prisão. É claro queapenas eu posso vê-las e ouvi-las. São burras, as pobres... ficam ali se perguntando“Por que?” e querendo a liberdade. Não que eu vá explicar algum dia. Enquanto aqueleespelho estiver inteiro, eu estarei viva e plena em meus poderes, com meu maridohumilde, obediente e quente para me divertir. E então, um dia, minha tão aguardadavingança terá lugar... .

FERNANDO TREVISAN

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41A RELATIVIDADE E O ENGENHEIRO

O engenheiro de propulsão caminhava silenciosamente pelo corredor externo daespaçonave, o rosto tristemente resignado. De um lado do corredor utilitário, a paredetransparente – de plástico de altíssima resistência mecânica – voltada para a escuridãodo espaço profundo, que era quebrada, de vez em quando, pelo brilho fraco de umaestrela ou pelo brilho mais forte de um sistema binário. Do outro, a parede interna, comdecorações natalinas cuidadosamente espaçadas. Ele sempre se surpreendia com aprecisão com que os robôs controlados por Valentina, a inteligência artificial que co-mandava a nave, conseguiam arrumá-los. Podia jurar que os enfeites estavam exata-mente à mesma distância uns dos outros. Nem poderia ser diferente.

“Não há espaço para falhas no Espaço”, lembrou da frase favorita do seu instrutorcom um sorriso irônico.

Mas, no momento, o que o surpreendia era a calma no corredor. Mesmo em umaárea de acesso restrito apenas a pessoas da engenharia de manutenção, sempre haviamovimento, pessoas indo e vindo, técnicos e robôs verificando e consertando coisas.Mas, hoje....

Talvez fosse por causa da data.

O engenheiro nem precisava olhar para o comunicador de pulso ou acessar aintranet da nave. Sabia a data local perfeitamente: 24 de dezembro de 2098, sendo“data local” a expressão-chave para seu temperamento naquela hora.

“Será que essa data realmente quer dizer algo?”, pensava.

Sua linha de raciocínio foi interrompida por um som. Levantou os olhos e viu umvagão com um homem, correndo pelo trilho magnético ao centro do corredor.

– Olá, Carlos! – O homem do vagão o cumprimentou.

– Ah, oi, David! – O engenheiro reconheceu o colega de trabalho: dividiam o mes-mo turno no controle do motor nuclear.

– Tudo bem? A Denise está preocupada, pediu para que eu te encontrasse!

– Desculpe-me. Fiquei andando para espairecer um pouco e perdi a noção dotempo...

Os olhos azul-escuro de David mostravam que Denise não era a única pessoapreocupada com seu bem-estar.

– Você está mesmo bem, Carlos? Não quer que eu te dê uma carona?

A RELATIVIDADEE O ENGENHEIRO(ou o Enfeite da Terra e a Árvore de Natal)

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– Não é necessário. Já vou para a cidade. – Carlos indicou uma escotilha mais afrente, com uma luminária acesa com a mensagem: “Para a cidade”.

– Então, está certo. Você vai para a festa, não é?

– Claro, pode ficar tranqüilo. Tenho que entregar o presente para minha afilhada,não é? – O engenheiro forçou um sorriso.

David riu.

– É, a Cristine está doidinha pelo seu presente. Bom, tenho que checar osbiopurificadores no nível 7 antes de ir para casa. Até mais, e Feliz Natal, Carlos!

– Feliz Natal, David. – O engenheiro se despediu.

Três minutos depois subia o corredor de acesso e abria a escotilha sobre suacabeça, que dava para a cidade. A visão era de uma cidade normal de médio porte,para quinze mil pessoas. A diferença é que esta cidade se enrolava sobre si mesma,construída sobre a superfície interna de um cilindro de trinta e cinco quilômetros dediâmetro e cem quilômetros de comprimento. A gravidade era gerada pela rotaçãodesse cilindro sobre seu próprio eixo, permitindo uma vida normal para a populaçãocolonizadora.

“Mas, quão normal?” Carlos pensou, caminhando pelas ruas da cidade, estas simcheias de luzes, enfeites e gente, seja pessoas correndo para conseguir os presentesde última hora, seja apenas aqueles andando juntos com seus familiares e amigos.

O engenheiro parou em frente da vitrine de uma loja de doces, cego para a tenta-ção das guloseimas. Viu o reflexo de um homem de 41 anos, começando a ficar calvo eolhos tristes. Bem diferente do começo.

Ele se lembrava de seu embarque na Esperança, a espaçonave em que estava agora.

Tinha dez anos de idade quando seu pai o acordou no meio da noite e ordenougentilmente que arrumasse suas coisas. Sem dizer palavra, começou a colocar suascoisas na mochila. Imaginava se estariam fugindo, novamente, dos agentes da “NovaMoralidade”, o movimento fundamentalista antitrans-humanismo que controlava o go-verno terrestre. Carlos e seu pai eram considerados traidores da humanidade por teremrecebido uma melhoria genética em seus sistemas imunológicos. Ele ainda se lembra-va dos nomes falsos que usaram, da subida no Elevador Espacial, da visão da brilhantesafira azul que era seu planeta de origem, da incrível viagem até Marte, sem saber queembarcaria numa jornada ainda mais surpreendente.

Mesmo hoje, trinta “anos” depois, Carlos e a maioria de sua geração não sabiamcomo seus pais tinham forjado suas identidades e todos os dados necessários paraque os “inimigos da humanidade” passassem por “colonizadores” ao embarcar na Es-perança. A nave foi projetada para uma viagem para Payne 45b, o único planeta detec-tado com grande possibilidade de suporte à vida terrestre. E não sabia como tinhamconseguido o impossível: roubar a nave para fugir do Sistema Solar que os rejeitava.Quando a “Nova Moralidade” percebeu o acontecido, já era tarde demais.

JOSHUA FALKEN

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Eles já tinham atingindo a velocidade de escape. Ali começou seu trajeto de qua-renta anos, relativamente falando.

Carlos caminhava pelas ruas lotadas para o apartamento do amigo David.

E “relativamente” era outra palavra-chave, que ele só entendeu quando começoua estudar para assumir um posto na engenharia de manutenção no mundo artificial emque tinha vivido praticamente por toda a vida

Em 1905, um jovem físico, que trabalhava num escritório de patentes, chamadoAlbert Einstein descobriu um fenômeno chamado de “dilatação do tempo”. A idéia erasimples: quanto mais rápido um objeto se move, mais lentamente o tempo passaria paraaquele objeto em relação a um observador estacionário. O que pode parecer algo curio-so, mas um tanto esotérico: e afinal, o que isso importava para eles, na Esperança?

Simples: na velocidade gerada pelo gigantesco motor nuclear da nave, enquantotrinta anos se passavam em seu interior, quinhentos anos se passavam na Terra.

Meio milênio.

Carlos nem poderia imaginar o que isso poderia significar, mas ao mesmo temponão podia deixar de tentar. Que mudanças teriam ocorrido em seu planeta? Será que a“Nova Moralidade” tinha caído no ano seguinte a sua fuga? Ou ainda governava a Terra?

Que tipo de mundo a Terra seria agora?

Será que ela ainda existia, afinal de contas?

Eram perguntas que nenhum dos habitantes da nave saberia responder.

Carlos chegou e foi logo abraçado por Cristine, a filha de David, sua afilhada.

– Padrinho!

Com um sorriso um pouco menos triste, o engenheiro entregou o presente, que agarota desembrulhou imediatamente. Ela olhava maravilhada para a pequena Terra quesegurava, o planeta que só conhecia dos registros da intranet da nave e das históriasdos adultos.

“Mas será que você, ou qualquer um de nós, reconheceria nosso planeta natal sefosse até lá?”, pensou.

Cristine colocou o enfeite num lugar de destaque na árvore de Natal no canto dasala, junto com outros enfeites que representavam os outros planetas do SistemaSolar original.

A menina era de uma geração que nasceu no mundo da nave, sem conhecer asuperfície de um planeta, um ecossistema sem controles artificiais. Será que ela supor-taria a transição quando chegassem em Payne 45b em dez anos? E será que ela teriaa chance de voltar ao planeta natal de seus pais?

Ou a relatividade seria a barreira que deixaria a Terra para sempre como um sim-ples enfeite de Natal?.A RELATIVIDADE E O ENGENHEIRO

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45JESUS, APRENDENDO A PEDIR

Eons atrás – ou talvez Eons no futuro... –, havia Alvorada, cidade entre os riosgêmeos Tiaros e Bícaro.

Construída praticamente com material reaproveitado da cidade dos Ancestrais,poderosa civilização desaparecida, Alvorada era a mais importante cidade humana deque se tinha notícia, exceto por lendas e estórias perdidas no tempo.

Mesmo no verão, a sombra do maior palácio de Alvorada não era suficiente sequer paraatingir toda a extensão do portal do menor dos prédios dos Ancestrais. Negros eimperturbáveis, os gigantescos edifícios desabitados dos Ancestrais eram assombra-dos por perigos desconhecidos. Em seus telhados, monumentais figuras de esquele-tos, como gárgulas, pareciam observar com desdém a insignificante cidade nascida deseus restos.

Das riquezas deixadas pelos Ancestrais em seus edifícios, quase nada se sabia,já que poucos foram os afortunados que retornaram com vida das incursões feitasanualmente.

No segundo Palácio mais alto em Alvorada, apenas uma janela brilhava, iluminadana noite.

– Jeeesus! Jesus! Jeeeeeessuuuuuuuusss!!! – Em um quarto escuro, rompendo osilêncio da madrugada, a bela mulher ofegava em êxtase – Ahhhhhhhhhhhhhhhh! –gritou finalmente antes de cair quase desacordada, braços estirados ao longo do corposem roupas.

Ao seu lado, na cama, Jesus se preparava para acender um cigarro, enquantotentava se livrar da camisinha feita de intestino de peixe, cuidando para não se confun-dir na execução de ambas atividades.

O “Esperto Jesus”, como era conhecido na cidade, era um jovem de boa estatura.Tinha compleição longilínea, cabelos negros e lisos sobre os ombros, pequenos olhosverdes e nariz grande e fino. Suas pernas longas faziam dele um excelente corredor eincansável caminhante. Conjugadas estas características com uma mente ágil e inqui-eta, resultava-se que o Esperto Jesus era mais inclinado à aventura do que a se esta-belecer definitivamente em local ou ofício. “Nenhum lugar é melhor para O EspertoJesus do que na próxima aventura”, costumava dizer, quando perguntado.

O caro cigarro de erva-doce, obtido em uma “revista” no gabinete do marido dagarota ao seu lado, foi finalmente acendido.

Após algumas tragadas, Jesus o colocou de lado e tocou mais uma vez nohomúnculo verde que trazia amarrado em uma tira de couro ao redor do pescoço. Quemolhasse distraidamente, julgaria que o objeto era apenas um pingente de gosto duvido-so: Uma pequena figura humana de metal ordinário verde-sujo, com aproximadamente

JESUS, APRENDENDOA PEDIR

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dois centímetros de comprimento. Na verdade, tratava-se da mais importante posseque Jesus já tivera. Um dos lendários homúnculos, com grandes poderes!

O problema é que o Esperto Jesus, até o momento, não conseguira fazer ohomúnculo confessar quais eram exatamente estes poderes e, muito menos, utilizá-lostotalmente em seu benefício.

Sentado na cama, ouvindo a mulher ao seu lado ressonar no conforto preguiçosoda satisfação sexual, ele pensava no episódio de duas noites atrás.

Logo após ter obtido o homúnculo, Jesus aprendera um pouco sobre ele. Semdúvida, tinha que ser cuidadoso com seus pedidos, se não quisesse sair machucado:

– Eu quero todo a riqueza do mundo – tinha dito Jesus para o homúnculo, logo queo vínculo entre eles se estabeleceu; o humano com o domínio sobre o multidimensional.

Ambos estavam em um acampamento improvisado montado pelo homem, próximodos frios charcos ao sul de Alvorada. Era uma zona pestilenta e parcamente habitada. Ohomúnculo repousava sobre uma pedra do tamanho de um crânio, parcialmente enterra-da na lama, enquanto que Jesus encolhia-se diante de uma incipiente e insuficiente fo-gueira, vestido apenas com um chapéu e torcendo para que as roupas secassem logo.

– Eu gostosamente forneceria toda a riqueza do mundo para você, ó abominável,mas não posso fazê-lo sem prejudicar grandemente meus interesses – respondeu acriatura, sem fazer qualquer movimento aparente.

Jesus acocorou-se melhor e retirou da cabeça o chapéu negro de aba mole, ador-nado com penas de pavão, fingindo examinar seu interior enquanto pensava sobre aresposta do homúnculo.

– Você diz que gostaria de me dar toda a riqueza do mundo? Examinemos estaassertiva, escravo. Por que você gostaria de me dar toda a riqueza do mundo? – per-guntou Jesus, limpando alguma lama das penas de pavão.

– Porque “o mundo”, como você chama, é um planeta muito maior do que vocêpoderia percorrer com suas pernas em centenas de anos. Evidentemente, este concei-to simples de “planeta” está além da sua compreensão. Mas tomando seu pedido comofeito, eu teria que preencher o espaço acima do solo de Alvorada até que tocasse a lua.Isso se eu escolhesse apenas os bens mais comuns como ouro, pedras preciosas,metais preciosos, artefatos de valor econômico apreciável.

– Hummm... Deixe-me ver se compreendi. Você está dizendo que poderia “enter-rar” tudo isso aqui debaixo de toneladas de ouro e pedras preciosas?

– Evidentemente, ó execrável.

– Mas você não poderia ter o bom senso de examinar meu pedido sob uma óticamais favorável? Afinal, de que me serviriam riquezas se eu estivesse morto, enterradosob toneladas de ouro?

– Sim, eu compreendo e poderia ter esta espécie de bom senso. Isto é, claro, seeu não estivesse em uma posição na qual não me sinto inclinado a conceder favores avocê, meu captor, a quem estou ligado contra a vontade.

– Certo, compreendi. Potencialmente, então, qualquer pedido que eu fizer poderáter conseqüências muito diferentes das que eu tenho em mente, perigosas e letais.

LEO CARRION

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– Exatamente, ó pérfido.

Jesus abaixou-se e tentou acelerar a fogueira assoprando. Isto foi o suficientepara que ela apagasse definitivamente, deixando os dois seres sob a luz das estrelas eda lua minguante.

O homem dedicou-se a pensar no que tinha sido falado pelo homúnculo, além deespirrar de tempos em tempos.

Estes pensamentos foram interrompidos pela pequena explosão ocorrida ondeantes se encontrava a extinta fogueira. Em segundos, uma chama azulada cresceupoucos centímetros e firmou-se tremulamente. Jesus olhou para o homúnculo, que nãodemonstrava qualquer alteração.

– Vejamos então, verdinho. Você disse que me daria toda aquela riqueza mortal einútil, mas isto contrariaria seus objetivos. Explique-me esta segunda parte, a questãodos seus objetivos.

O homúnculo fez um de seus raríssimos movimentos e sentou-se na pedra. Desdeque ambos estavam juntos, poucas horas, era a terceira vez que o homem via a criaturamudar a posição ou forma.

– Uma vez que me encontro preso a você até que resolva me libertar do encargo,tenho que mantê-lo em condições de dizer a fórmula da libertação.

– Ahá! Entendi! Então, precisa que eu permaneça vivo para que um dia eu teliberte! Isso faz de mim, na prática, imortal?

– Evidentemente, meus poderes não são ilimitados, ó paspalho. E quão limitadoseles são é uma informação que prefiro guardar. Há pouco, por exemplo, reacendi o fogopara que você não tivesse risco de contrair uma doença fatal, prendendo-me nestemundo desprezível por toda a eternidade.

Jesus olhou para a minguada chama que, no momento, produzia mais fumaça doque calor. O lado bom é que espantava parte dos insetos.

– Percebi que reativou o fogo, mas com baixa intensidade. Isto é uma amostra doque me espera no futuro? Sua “boa-vontade” para comigo se limita a manter-me comvida, dentro de seus poderes, mas sem garantia de qualquer prazer, luxo ou conforto?

– Eu mesmo não teria colocado de melhor maneira, “meu senhor” – disse ohomúnculo, usando de uma inflexão irônica bastante perceptível.

– E porque, seu pequeno bastardo, não manda uma praga de mosquitos ou mearranca as pernas até que eu aceite dispensá-lo, para depois me matar com satisfação?

– Infelizmente, estas ótimas idéias são impraticáveis para mim. – respondeu o ser.– Pela natureza de nossa ligação, posso apenas agir quando você me pede algumacoisa ou quando você demonstre evidente interesse, como no caso da fogueira. E matá-lo depois da minha libertação também me é impossível. Uma vez liberto, desaparecereiimediatamente desta dimensão.

O aroma perfumado do fumo de erva-doce preenchia o quarto, enquanto o Esper-to Jesus desfrutava o calor da mulher deitado de barriga para cima, olhando para afigura em sua mão. Quantas maravilhas como estas estariam ao seu alcance? Bastavafazer os pedidos bem detalhados e com extremo cuidado, convencendo a criatura de

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que seus interesses estariam em jogo. E nisto, Jesus tinha se revelado um mestre!

Após muitas horas de indagações cuidadosas, Jesus construiu um pedido quedetalhava tudo que pudesse acontecer, não dando espaço para que o homúnculo “cri-asse” situações embaraçosas.

Como “teste” de seus novos horizontes, requisitou fazer amor com a mais deseja-da mulher de Alvorada, chamada Flor de Têmeris, além de utilizar os luxos do paláciode seu marido.

Por horas, Jesus aproveitou todas as delícias da mais jovem esposa de Cratus deTêmeris, prefeito da cidade e homem só menos importante que o próprio Kais, sobera-no de toda a região.

Jesus tomou o cuidado de requerer especificamente que não poderia ficar impo-tente, que a mulher deveria desfrutar e apaixonar-se e, mais importante, não sereminterrompidos por homem algum. Mais ainda, que homem algum estivesse presente nopalácio de Têmeris durante um dia inteiro, exceto o próprio Jesus.

Justamente por ter tido todos estes cuidados, o homem foi surpreendido quando aporta do quarto, onde estava deitado com Flor, foi arrombada repentinamente deixandoentrar diversas figuras de larga estatura e armadas com afiadas espadas.

Durante as horas seguintes, Jesus foi metodicamente espancado por um grupo deviolentas mulheres. A cada golpe, Jesus maldizia o homúnculo pendurado em seu pescoço.

Quando voltou a si, descobriu-se totalmente nu, exceto pelo homúnculo preso aoredor de seu pescoço. Encontrava-se preso pelos pulsos em uma viga de madeira dealgum subterrâneo do palácio. Tinha lesões por toda parte, mas nada aparentementequebrado.

Logo, percebeu que o fato de não poder falar devido aos seus machucados não oimpedia de se comunicar com o homúnculo. Após um bom tempo em que apenas con-seguiu articular ofensas, Jesus resolveu questionar seriamente o ser mágico:

– Quando eu falei que não queria ser interrompido por homens, você entendeuque eu poderia ser surrado por mulheres incrivelmente fortes?

– Achei que você precisava de uma demonstração mais ilustrativa de nossa rela-ção – respondeu o homúnculo.

– Suponho que não vou ser morto pelo prefeito, porque isso contraria seus inte-resses, não é?

– Sim. Acredito que contraria nosso mútuo interesse, na realidade. Se observarseu punho direito verá que os nós soltar-se-ão assim que puxados. As portas tambémrevelar-se-ão destrancadas em seu caminho até a rua.

– Não é capaz sequer de desatar todos os nós, desgraçado? Sabe que, mesmoque eu escape com vida deste palácio, isto não significa que terei chance de sobreviverna região de Alvorada. Parece-me relativamente claro que me equivoquei no pedido.Deveria ter começado com um teste menos perigoso potencialmente.

– Se lhe serve de consolo, testes mais simplórios não garantiriam nada, ó “mes-tre”. Eu poderia deixar que ganhasse confiança com coisas menores até escolher algocomo esta situação para aplicar-lhe um corretivo. A mim, parece que o arranjo foi perfei-

LEO CARRION

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to. Mas não tema. Tratando de nossos interesses em comum, ninguém será capaz delembrar-se de suas feições e associá-lo ao episódio.

Enquanto dialogava com o homúnculo, Jesus se liberara de todas cordas e per-manecia parado no meio da sala.

– Não sairei sem roupas, não importa o quanto isso seja comprometedor para osnossos interesses – disse, sublinhando a palavra “nossos” com ênfase.

Como resultado, surgiram roupas em seu corpo. Não as roupas que tinha escolhi-do dentre as melhores que pudera encontrar no palácio antes de seu intercurso comFlor, mas as suas habituais, remendadas, gastas e ainda cheirando a charcos.

– Desgraçado, filho de uma rã caolha! – disse Jesus, ao sair pela porta.

Fora do palácio, Alvorada torrava ao sol de verão. Uma cidade de construçõesbaixas onde a palavra tecnologia não significava outra coisa que não “magia”.

Mancando rua abaixo, em direção ao bairro das tabernas mais ordinárias, seguiao Esperto Jesus com uma tira de couro enrolada na mão, de onde um enfeite despre-tensioso e verde balançava.

– Você está enganado se acha que vai se livrar de mim assim fácil, verdinho –disse para o homúnculo. – Tenho aqui alguns recursos e idéias que você vai acharsurpreendentes, meu caro, para um ser humano que julga tão inferior. Acho que vouconseguir surpreendê-lo no futuro, escravo.

– Para mim, o tempo tem um correr diferente, ó pestilento. Aguardo com curiosida-de suas tentativas de fazer-me surpreso. O mais provável, no entanto, é que apesar dosmeus esforços você acabe morto em algum rincão solitário, deixando-me preso eterna-mente nesta realidade desprezada pelos Deuses.

JESUS, APRENDENDO A PEDIR

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51SONHO RUIM

Sob o sol inclemente do verão de 1970, o pequeno caixão branco brilhava, enquan-to o choro de uma mãe desconsolada quebrava o silêncio respeitoso do cortejo fúnebre.

Da porta da sua clínica, Marcus Kendall observava a procissão de imigranteshaitianos, todos habitantes de Red Creek, Flórida. Com 30 anos, o médico parecianaquele momento ter uma década a mais.

– Já é a quarta criança, só neste mês – murmurou para si mesmo, enquantopassava a mão pelos cabelos ruivos. – O que está acontecendo nessa cidade?

– A culpa não é sua – disse Laura Powers, a enfermeira que o auxiliava no consul-tório de Petit Haïti, um labirinto formado por vielas, becos e casas de madeira e queconstituía o bairro mais miserável do município. – Todos sabem que você está fazendoo melhor por aqui.

O médico meneou a cabeça, tentando acreditar no que a enfermeira dizia. A cidade,habitada por pouco mais de 2 mil pessoas, tinha alguns dos piores índices sociais dos EUA;a região do condado de Red Creek era considerada uma vergonha regional e, se continuas-se naquele ritmo, nacional também. Petit Haïti era praticamente uma sucursal do TerceiroMundo encravada no Primeiro. Kendall sabia, ao aceitar aquele emprego público e mudar-se do Norte rico para o Sul pobre, que tinha um desafio enorme pela frente.

Mesmo assim, cada morte infantil o desanimava, ainda mais quando os óbitos nãotinham uma explicação.

Era o caso de Henri Lambert, que agora seguia para seu descanso final. O cemi-tério tinha sido erguido pelos primeiros haitianos que chegaram na região, no início dosanos 60, fugindo da ditadura instalada na ilha caribenha por François “Papa Doc” Duvalier.Os Lambert haviam procurado Kendall na tarde do dia anterior, trazendo o bebê demeio ano de vida com febre alta e um quadro de fraqueza geral.

O médico detectara mais do que isso. Havia um odor diferente acompanhando acriança, o mesmo que havia percebido em outros pacientes que procuravam a clínica;sua origem eram as loções feitas de ervas que, Kendall aprendera, eram usadas pormuitos curandeiros adeptos do vodu em suas tentativas de cura. Não era mistériopara o jovem médico que aqueles imigrantes, formados em quase sua totalidade porpessoas de baixa instrução e extremamente supersticiosas do interior do Haiti, sem-pre procuravam os sacerdotes voduístas em caso de doença; a medicina era sempreo último recurso.

Mas mesmo a ciência não conseguira ajudar Henri. Ainda que tivesse apresenta-do uma pequena melhora algumas horas após dar entrada, e tivesse ficado em obser-vação durante a noite, a criança falecera pela manhã.

Sem qualquer explicação possível.

SONHORUIM

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Marcus soltou um longo suspiro, o ar escapando do corpo fatigado. Sentiu umcalafrio percorrer-lhe o corpo; em um primeiro instante, pensou que fosse uma gripe,após semanas de trabalho incessante.

Foi quando viu pelo canto dos olhos a mulher do outro lado da rua.

Era uma senhora franzina de pele escura, umas duas décadas mais velha do queo médico. Vestia um vestido de algodão azul e corte simples; na cabeça, levava umlenço vermelho amarrado. Seus olhos negros, semicerrados, encaravam com firmeza ocasal na porta do consultório.

O calafrio mais uma vez atingiu Marcus.

Não era a primeira vez que ele via aquela mulher. Na ocasião da morte de Jean-Pierre, a terceira criança a falecer, dez dias antes, Madame Solange posicionara-sedurante cinco minutos ininterruptos na calçada, observando com atenção a clínica. Elaera, conforme Laura explicara, uma mambo, o nome dado pelo culto vodu às sacerdo-tisas e curandeiras. Solange era umas das mais conceituadas mambos de Red Creek.

Naquele dia, o médico abrira a porta e, no mesmo instante, ela partiu. Marcus nãoentendeu aquela reação, mas Laura comentou que as curandeiras preferiam confiar emseus espíritos protetores, conhecidos como lwas, e diversas simpatias. A Marcus res-tou encolher os ombros, pensando que gostaria de ter conversado sobre as técnicasque ela usava em seus “pacientes”.

E agora lá estava a mulher mais uma vez, observando a clínica, sem piscar. Ocortejo já havia dobrado a esquina, deixando a viela deserta. A temperatura estava pertodos 40 graus, mas Kendall sentia frio. A presença de Madame Solange o incomodava.

Precisava descobrir o que ela queria.

– Onde vai? – Laura perguntou, os olhos azuis arregalados, ao ver Marcusabrir a porta.

Mas o médico já atravessava a rua, na direção da mambo, que permaneceu para-da. Antes que pudesse abrir a boca para perguntar o que ela fazia ali, a mulher come-çou a falar em creole, a língua oficial do Haiti.

– Sinto muito, mas eu não estou entendendo – Marcus começou a dizer, numatentativa de interromper o monólogo. Madame Solange, no entanto, continuava a falar,com uma palavra sendo repetida enfaticamente.

E então ela girou nos calcanhares e foi embora, deixando Marcus atordoadoe sozinho.

– Doutor, o que ela tanto disse? – Laura observava o médico, que agora voltavapara o consultório com o cenho franzido.

– Meu creole não é lá essas coisas, devo reconhecer, mas parecia que ela repetiuvárias vezes a palavra... – Marcus parou, sobrancelhas arqueadas, verificando mental-mente se havia ouvido direito a palavra – “canguru”.

MARCELO GALVÃO

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– Nós estamos bem distante da Austrália para isso fazer algum sentido. – Laurabebericava, na cozinha da clínica, o café recém-coado. No cômodo, além de Marcus,estava presente também Charlotte Leclerc, a jovem faxineira responsável por cuidar dolocal e que naquele momento lavava a louça.

– Sei disso. Mas foi o que escutei, ou pelo menos o que pensei escutar. “Canguru”,“aguru” ou talvez “ogaru”...

O barulho de uma louça se espatifando interrompeu Marcus.

– Desculpe-me, doutor – Charlotte balbuciou, enquanto recolhia os cacos da xíca-ra que deixara cair.

– Sem problema. – Marcus sorriu, para logo em seguida bocejar – Melhor eu irpara casa e descansar. Essa foi uma noite longa.

– Mande lembranças para Claire. – Laura disse, referindo-se a esposa do médico.– E pode deixar que tomo conta de tudo por aqui.

Com um aceno da mão, Marcus seguiu para o carro, esperando que o telefone dasua casa não tocasse até a manhã seguinte.

O casal Kendall morava num bairro considerado de classe média em Red Creek. Osobrado tinha um amplo gramado, assim como um quintal onde Marcus esperava queseus filhos pudessem brincar com tranqüilidade e segurança. A vizinhança, compostaexclusivamente por brancos, em nada lembrava Petit Haïti.

A casa estava vazia. Um recado pregado na geladeira avisava que Claire fora aosupermercado, para o desgosto de Marcus: na opinião dele, a esposa, grávida de 7meses, não deveria sair de casa sem necessidade.

Marcus, porém, bem sabia que seria impossível fazê-la mudar de idéia. Claire erauma mulher agitada e independente, que jamais ficava parada por muito tempo. O rapazàs vezes se pegava pensando em como era sortudo em ter encontrado uma companhei-ra compreensível, que resolvera seguir o marido quando este decidiu encarar um novodesafio e mudar-se para a Flórida. O salário pago pelo município também era bom.

Se quisesse, Claire poderia ter exigido que ficassem em Boston. Mas, mesmográvida do primeiro filho, ela decidira que valia pena seguir o sonho do marido de seestabelecer como médico de uma cidade do interior.

E agora lá estava Marcus Kendall, enfrentando a maior dificuldade da sua aindacurta carreira médica, vendo sua confiança ser abalada pelas mortes infantis. A ima-gem de Madame Solange surgiu na sua mente e mais uma vez ele ficou intrigado. Oque diabos a mulher queria dizer?

Ele precisava saber e, para isso, teria que visitá-la. Mas antes precisava de umaboa ducha e algumas horas de descanso.

A casa de Solange localizava-se em um lugar ermo de Red Creek, próximo de umriacho. Nos fundos da propriedade, ficava o oufò, o templo vodu onde ela realizava as

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cerimônias. A noite começava a surgir quando Marcus atravessou o portão de madeiraque dava acesso ao quintal. Após caminhar alguns metros, encontrou o oufò, que nãopassava de um barracão de paredes de madeira e telhado de zinco, com uma decora-ção composta por bandeirolas vermelhas e verdes. No centro, erguia-se um poste dequase dois metros, com um arco-íris e uma serpente. Representavam, como Marcuslembrou do “curso básico” sobre voduísmo que Laura ministrara quando ele chegou naclínica, os lwas principais: Dambala e Ayida Wèdo. O poste era chamado de poteau-mitan e servia como uma espécie de ponte pela qual os espíritos chegavam para pos-suir seus adoradores.

O vodu era uma religião em que a magia estava presente no dia-a-dia, Lauradissera. Ela havia comprovado aquilo em primeira mão, durante os três meses em quevivera no Haiti, um ano antes. Na ocasião, como enfermeira de uma organização deajuda humanitária, ela presenciara pessoas que acreditavam em feitiçaria, mau-olhadoe, é claro, zumbis.

A decoração colorida do oufò desaparecia conforme as sombras da noite avança-vam pelo lugar. O lugar parecia deserto; pelo o que Laura lhe havia informado, hoje nãoera dia de culto. Da entrada do barracão, Marcus chamou por Madame Solange.

Nenhuma resposta.

Marcus avançou mais alguns passos. De algum lugar do fundo do templo, agorana escuridão, veio um ruído.

– Tem alguém aí? – Marcus fez a pergunta em voz alta.

A resposta foi o ruído e que agora pareceu aos ouvidos do rapaz um gemido.

Alguém estava machucado e precisando de ajuda médica. Marcus lembrou-se deter visto um interruptor de luz perto da entrada do oufò.

Uma única lâmpada incandescente se acendeu para mostrar Madame Solangeem meio a uma poça de sangue.

O rapaz correu em direção da mambo; palavras em creole eram debilmente sus-surradas por ela.

– Acalme-se, por favor – Marcus disse, vendo que a mulher entrava em estado dechoque, seu corpo coberto de lacerações. Mas Solange continuou a balbuciar:

– L-loo...gar...garoo...

Era a mesma palavra, Marcus percebeu, que ela repetira enfaticamente naquelamanhã. E então, revirando os olhos, Madame Solange soltou seu último suspiro.

– Loogaroo – disse uma voz atrás do médico. Marcus voltou-se e viu Charlotte,parada no centro do templo. – Era o que ela tentava avisar para o senhor.

– O que você está fazendo aqui?

A moça, usando um vestido branco, aproximou-se, mãos cruzadas na altura do colo.

– Sou uma das ajudantes da mambo. – Olhou para a mulher estendida no solosagrado. – Desde o dia em que a terceira criança morreu, Madame Solange suspeitouda presença de um loogaroo em Petit Haïti.

MARCELO GALVÃO

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Ante a perplexidade estampada no rosto de Marcus, a moça explicou:

– Loogaroo é uma mulher ou um homem que fez um pacto com um lwa maligno emtroca de favores mágicos. Noutras vezes, é um alvo da maldição de um bòkò, um feiti-ceiro que trabalha com magia negra. De qualquer maneira, a criatura precisa se alimen-tar de crianças para sobreviver.

Marcus balançou a cabeça de um lado para o outro.

– Charlotte, eu não quero ser desrespeitoso com suas crenças, mas...

– De dia, o monstro anda, bebe e come feito gente, como eu e você. Mas quandochega a noite, ele esfrega uma poção feita de ervas pelo corpo, até sua pele sair.Depois de guardá-la num lugar fresco, está pronto para caçar, sua verdadeira carneexposta, usando suas garras afiadas como foices para escalar os telhados das casas,procurando por um bebê ou uma criança. Ela bebe o sangue dos pequeninos aos pou-cos, que acordam pela manhã pensando que foi tudo um sonho ruim.

A moça ajoelhou-se perto da sacerdotisa falecida:

– Madame Solange pediu que eu a ajudasse a fazer um amuleto contra o monstro.– De um bolso da saia, ela retirou uma pequena bola de pano multicolorida. Marcushavia visto aquele objeto antes pelo bairro: era um wanga, o tal talismã que protegiacontra o mal, cujo conteúdo era feito de ervas, terra e, alguns diziam, restos de cadáve-res. – Loogaroo foi mais rápido.

Ela voltou-se para o médico:

– Sei que é difícil para você acreditar nisso, doutor. É por isso que peço que voltepara a clínica. A senhorita Laura estava tentando contatá-lo quando eu saí de lá. Umaoutra criança foi internada nesta tarde.

Charlotte levantou-se e colocou a wanga nas mãos de Marcus:

– Não deixe que ela morra.

Adele Brun dormia tranqüila em um leito da clínica. Numa cadeira ao lado, Marcusa vigiava.

Duas horas antes, ele chegara correndo para atender a garota de dois anos, quehavia dado entrada com os mesmos sintomas dos pacientes anteriores. Após aplicar otratamento inicial, o médico recomendou aos pais de Adele que ela ficasse em obser-vação na clínica durante a noite, para garantir que os remédios seriam devidamenteministrados.

Marcus sabia que essa não era a única razão para manter a criança por perto. Dealguma forma, aquelas últimas palavras de Charlotte ainda ecoavam em sua mente,por mais que não acreditasse em superstições.

Depois de dispensar Laura e telefonar para Claire, informando que passaria anoite em Petit Haïti, ele resolveu ficar junto da criança. Pegou uma revista na sala deespera para manter-se acordado, sentou numa desconfortável cadeira de metal e ligou

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o abajur do criado-mudo. O artigo escolhido relatava a viagem à Lua no ano anterior enão demorou muito para que as pálpebras de Marcus ficassem pesadas.

Um ruído o despertou.

Marcus levantou-se, piscando várias vezes, o coração acelerado. Na cama demetal branco, Adele continuava a ressonar, o soro preso ao braço magro e frágil. Ne-nhum barulho anormal no quarto.

Ele ficou mais cinco minutos em pé, esperando notar algo diferente. Convencidode que tudo estava bem, verificou que era hora do medicamento da garota e caminhouaté a cozinha para pegar um copo d’água.

Um cheiro estranho atingiu suas narinas assim que cruzou o umbral; era o mesmoque sentira antes nas crianças, inclusive em Adele, e que atribuíra às loções de ervasdos sacerdotes voduístas. Na cozinha, o odor não só era mais forte como tambémsufocante.

O médico concentrou-se, tentando identificar a fonte do cheiro. Avançando pelocômodo, percebeu que a origem era a geladeira que usava para proteger vacinas emedicamentos do clima da Flórida.

Marcus abriu a porta da geladeira. Uma nuvem branca e refrescante o recepcionou,junto com o odor estranho. Estreitando os olhos, viu uma caixa de papelão nos fundos,por trás das embalagens dos remédios. Afastou com cuidado os medicamentos e trou-xe a caixa para perto.

Não havia dúvida de que aquela era a fonte do cheiro repugnante. Ao colocá-lasobre a mesa, Marcus calculou que a caixa, de tamanho médio e sem qualquer tipo deidentificação, pesava cerca de quatro quilos. Não existia qualquer tipo de lacre nasabas dela.

Prendendo a respiração para evitar o cheiro, ele abriu a caixa. Um grito agudosoou no quarto de Adele. Marcus disparou em direção do cômodo e empurrou a porta.

A primeira coisa que notou foi a abertura no teto, as telhas afastadas permitindo aentrada de alguém no quarto. Ou naquele caso, de algo.

A criatura parada ao lado do cama de Adele não era humana, ainda que pareces-se o rascunho de uma. A iluminação precária do quarto mostrava uma figura feminina,com músculos viscosos e vermelhos que lembraram por um instante os modelos deanatomia que Marcus estudara na faculdade.

A semelhança acabava por aí. Dez garras afiadas se estendiam das mãos delga-das, enquanto uma língua comprida se projetava da boca entulhada de dentes triangu-lares. Era uma loogaroo, com um filete de saliva escorrendo pelo queixo e caindo sobrea pequena e assustada Adele.

Pelo visto, a criatura não gostava de ser interrompido em suas refeições, poissaltou de imediato sobre Marcus. O rapaz jogou-se no chão, mas ainda assim sentiu asgarras rasgarem a pele na altura da cintura, o sangue empapando calça e camisa.Urrando de dor, Marcus levantou-se e viu o monstro com as pernas arqueadas, comose preparando para um novo bote.

E então a loogaroo estancou, seus olhos azuis fixos em algo no chão. Marcus

MARCELO GALVÃO

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seguiu o olhar e viu a wanga, que havia caído do seu bolso rasgado. Pelo jeito que omonstro tremia, o amuleto funcionava.

O médico sabia que não teria outra chance para salvar Adele. A única arma quetinha por perto era a cadeira de metal, e foi com ela que Marcus atacou a criatura,batendo repetidamente no tronco e na cabeça. A loogaroo retrocedeu, tanto pelos gol-pes quanto pela wanga, até encurralar-se no canto do quarto.

– Não me mate – as palavras saíram debilmente da boca sem lábios da criatura.Marcus, segurando a cadeira, agora toda deformada pelos impactos, mirou os olhossuplicantes da loogaroo. As imagens de Adele, Henri, Jean-Pierre, Françoise e Danielsucederam-se rapidamente em sua mente.

A cadeira de metal desceu uma última vez na direção do monstro.

Um sonho ruim. Foi essa a explicação que Marcus deu para Adele, antes de apli-car-lhe um sedativo, desejando que ele próprio pudesse acreditar naquela explicação.

Mas o corpo inerte no canto demonstrava o contrário. Aproximando-se, Marcusnotou um estado de putrefação avançado, exalando um forte fedor de podridão. Umoutro cheiro chegava ao seu nariz, vindo da cozinha. Marcus lembrou da caixa de pape-lão; com as mãos trêmulas, afastou as abas.

O rosto de Laura Powers repousava dentro da caixa, junto com o resto da sua peleque, com uma aparência pegajosa, fora devidamente dobrada como uma peça de roupa.

Durante as três semanas seguintes, Marcus não conseguiu dormir direito pensan-do no que havia acontecido. E, principalmente, no que ocorrera com Laura.

Na quarta semana, ele decidiu viajar para o Haiti, contrariando o desejo de Claire,já que faltava apenas um mês para o nascimento do filho. Hospedou-se na capital PortoPríncipe e tentou refazer o passos que a enfermeira fizera um ano antes. Após umasemana e vários dólares, ele acreditou ter descoberto uma pista.

No ano anterior, trabalhando como voluntária, Laura socorrera uma criança duran-te uma colisão de veículos, levando-a para o hospital mais próximo. O pai dela, noentanto, queria que a filha fosse tratada por curandeiros locais. Após uma grande dis-cussão, a garota ficou no hospital, apenas para morrer dias depois.

O pai nunca perdoou Laura; o boato era de que ele havia pago uma grande quan-tia para que um bòkò lançasse uma maldição sobre a moça, transformando-a em ummonstro.

Foi tudo isso que Marcus conseguiu em sua estadia no Haiti.

Ele chegou em Red Creek no dia em que seu filho nasceu. Na manhã seguinte, osKendall mudaram-se de cidade, sem deixar endereço.

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59OLHOS AZUIS, MANTO RUBRO

Quadros. Pinturas, fotografias. Centenas. Diversos estilos. Todas representando amesma pessoa, a misteriosa mulher que transformou a sua vida para sempre. Algumas,ele mesmo pintou, tendo se dedicado ao aprendizado desta arte apenas para este fim.A maioria, eram de artistas renomados que ele foi contratando através das décadas. Asfotografias, todas de lindas modelos que tinham alguma semelhança com ela. Porém,nada até agora, nem lente nem pincel, conseguiu representá-la a contento.

Seu olhar se demora sobre uma das imagens. Uma fotografia que ele mesmoproduziu e tirou no início dos anos oitenta. Já se passaram quase trinta anos. Ontem. Amodelo, a mais parecida com sua musa, provavelmente já deve estar beirando a casados cinqüenta. Impressionar-se-ia em vê-lo com exatamente o mesmo aspecto de ou-trora? No quadro, ele pode observar com atenção todos aqueles intrigantes símbolosazuis pintados em seu busto. Lembra-se exatamente deles. Em detalhes. De seu brilho,que até hoje se reflete em seus olhos. Foi como tudo começou. Ele se lembra. Inclusivedaquilo que não presenciou. Foi há muito tempo...

Uma noite a cada ano, ela visitava outro mundo. Diferente do seu. Um mundo ondea magia se escondia sob lagoas, atrás de espelhos, e além das trevas. A maior parte dopovo deste mundo não acreditava mais em mágica, mas, às vezes, sob especiais cir-cunstâncias, ou em determinadas datas, era capaz de sentir os seus efeitos. Era umlocal estranho para ela, considerando-se que era feita de pura energia mística. Este erao seu mistério.

Uma noite a cada lua, ele saía para caçar. Séculos de vida, força e velocidadesobrenaturais. Belo e poderoso. Imortal. Mas possuía duas grandes fraquezas. A luz dosol o feria gravemente, podendo até mesmo matá-lo. E ele precisava beber sanguehumano regularmente para preservar a sua longa existência. Ah, a fome! Esta era a suamaldição.

Ela tinha por missão tocar a vida de alguém. Seu instinto a fazia descobrir quemajudaria, sempre no momento exato. Devia trazer um pouco de magia. Manter a chamaacessa. Mudar um destino. Isto garantia que ambos os mundos continuassem interliga-dos, e que o seu não cessasse definitivamente de existir. Encanto para este mundo,vida para o dela. O portal sempre era aberto perto de uma antiga floresta. Florestaseram lugares mágicos.

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Já perdera a conta de quantas décadas faziam desde que se transformara naque-le ser de pesadelo. Sanguessuga. Vampiro. Demônio. Não era exatamente o que eleimaginava, mas foi precisamente aquilo que ele pediu. Era capaz de sentir a vida pul-sando nas veias de suas vítimas a metros de distância. Seu território de caça era a áreade uma velha floresta nas proximidades de sua vila. Florestas eram lugares sombrios.

Vagava tranqüila, após sua viagem interdimensional, enquanto ia tentando desco-brir exatamente o que faria desta vez. Já transformara um escravo num rei e ajudara umjovem a conquistar a sua amada. Já dera a dica da música perfeita para um harpista eencantara um cego para que voltasse a enxergar. Já levara uma dama ao baile maisimportante de sua vida e auxiliara um garoto a fugir das garras assassinas de seupadrasto. Gostava do que fazia. E isto a fazia feliz. Até que pôde sentir uma alma negrae atormentada se aproximando, sorrateiramente.

Espreitava, silencioso, esperando por alguém que pudesse lhe ser fonte da vitalbebida. Não importava sexo ou idade, tampouco classe social. Quando a fome vinha,imperativa, só lhe restava obedecer. A sensação de prazer era indescritível. Por milési-mos de segundo, era como se o seu coração voltasse a bater. Vida. Até que pôde senti-la. Nenhum ser humano tinha um aroma tão forte e agradável. Estonteante. Vários metrosde distância ainda os separavam, mas era como se a noite inteira tivesse se iluminado,como num passe de mágica. Seguiu em direção à luz.

Num instante, ela teve certeza de que a sua busca terminara. Era ele. Seu objetivo.Já sabia exatamente o que fazer, tal era a sua natureza. No momento certo, ela sempresabia. Só faltava deixá-lo se aproximar, todo confiante, com seus céleres passos e suaspresas protuberantes. Sim, à sua maneira, ele era extremamente elegante e altivo. Elaestremeceu. Num átimo, sentiu o toque de sua pele, tão gelada. A última coisa que viufoi o intenso negror dos seus olhos transformando-se em surpresa.

Sua pele era tão alva quanto a dele. Mas quente, deliciosamente. O luar era refle-tido nos inúmeros cristais que adornavam seu vestido, tornando-o multicolorido. Emseus braços, e em seu busto entrevisto através do decote, era possível ver pintadosdiversos símbolos azuis. Era ilusão, ou eles realmente brilhavam em sua pele? Quandoele surgiu em sua frente e a abraçou, ela não esboçou reação alguma. Como se oesperasse. A pele frágil do pescoço se rendeu ao fio de seus dentes, e ele pôde saciara sua fome cruel. Definitivamente.

Tenta conter a torrente de lembranças. Afinal, é esta a noite, e ele tem muito o quefazer. Uma noite a cada ano. Assim como ela. A noite dela. Levanta-se de sua poltronae sai a verificar se os animais estão prontos. Sua missão é grandiosa, mas não impos-sível. Não para alguém que tem a eternidade ao seu favor. Ele acredita nisso.

Pois quando o sangue dela entrou em seu corpo, ele pôde sentir a magia fazerefeito. Transmutação. Ela o surpreendera, e não o contrário. Misteriosamente, seus olhosse tornaram profundamente azuis, e ele quase pôde resgatar dentro de si o significadoperdido dos símbolos que ela tinha pelo corpo. Muito mais do que a mera lembrança desua beleza sobrevivera dentro dele. Ele sabia. E ele ia se redimir.

RENATO ARFELLI

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Hoje, ele tem certeza de que tudo aquilo teve a sua razão de ser. Intuitivamente,ele sabe o que tem de ser feito. Sempre. Fazer as pessoas acreditarem. Impedir o fim deum mundo, que, ele sente, também é seu. Nunca mais precisou se esconder da luz dosol, e muito menos tirar outra vida. Como se a fonte de sua vida eterna escoasse deoutro local, antigo, nobre.

Sentir o calor em sua própria pele sempre o anima, e ele parte empolgado paralevar sorrisos e sonhos por onde passar. Em apenas uma noite, ele precisa estar aolado de todas as pessoas do mundo. Ou pelo menos, de todas as crianças. Quandoconseguir, os dois mundos se tornarão um só novamente. E ele voa rapidamente peloglobo, e sabe que, ano a ano, está mais próximo de conseguir. No fundo, ele próprio éapenas mais uma criança, e esta constatação basta para fazer com que sua risada depuro entusiasmo possa ser ouvida ecoando pela noite. Ho, ho, ho!.

OLHOS AZUIS, MANTO RUBRO

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63AMARGURA - RODERICO REIS

Nos primórdios, era mais fácil. Lembro-me bem dessa época. Para cada humano,um anjo. Cada criança, ao nascer, recebia o seu protetor. Na verdade, nós escolhíamosas nossas crianças, de acordo com a nossa vontade e afinidade. A dedicação era ex-clusiva. Criávamos intimidade com nossos protegidos. Tínhamos tempo para descobrirseus medos e anseios, suas vontades e provações. Podíamos orientá-los e salvá-los.

Bons tempos...

Mas os seres humanos se espalharam e se multiplicaram, como Ele ordenou. Nós,não. Hoje, cada anjo vigia dezenas de pessoas. Foi necessário nos adaptarmos. Comoos humanos se adaptaram. Copiamos seu modo de vida pois somente assim consegui-ríamos cumprir a função que nos foi delegada.

Hoje, usamos computadores de mão para controlar nossas atividades, esta má-quina infernal...

Desculpe... é que... é tão difícil...

Bem... arcanjos tornaram-se gerentes para vigiar nossa produtividade. Temos reu-niões semanais e metas a cumprir. Eu tenho uma cota de atender 65% das orações epedidos em um prazo máximo de 72 horas.

Blackberries nos avisam com SMS quando algo de ruim está para acontecer. Mas,apesar de os humanos terem se multiplicado e nós nos adaptado, o tempo continua omesmo. Mesmo viajando nas asas de aviões, não é sempre que chegamos a tempo deevitar desgraças.

E desgraças acontecem. Como acontecem! Terremotos, guerras, fome... eu sei,estas estão no cronograma, mas como entender crianças sendo molestadas por adul-tos inconseqüentes e adolescentes assassinando colegas em shoppings e cinemas?Isto é... insano...

Doutor, sinto como se minhas asas pesassem toneladas... perdi totalmente a von-tade de sorrir.

Só consigo pensar em prazos, metas... e nas pessoas sob minha responsabilida-de... nas minhas falhas...

Tudo minha culpa...

Doutor, o que faço? Existe remédio para isto?

Será que Ele planejou assim?.

AMARGURA

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65O SONHO - ROSE SANTOS

Celeste acordou com os raios do sol rasgando a cortina florida do seu quartoescuro. Assustada, olhou rapidamente em volta querendo proteger-se de algo. Então,lembrou-se de que havia tido um sonho esquisito na noite anterior. Do nada, havia setornado um brinquedo vivo que divertia mulheres loucas, no grande casarão onde haviaassistido uma peça de teatro chamada “Histeria”.

Em meios a risos soltos, largas gargalhadas e choros compulsivos, Celeste iasendo apertada por loucas mãos. Sentindo-se uma marionete indefesa, gritava, masera sufocada pelas mãos frias e grandes daquelas mulheres.

Elas pareciam querer descobrir porque Celeste havia virado aquele brinquedoestranho e de cor esquisita.

Assim passou a noite toda, sem direito a pedir para que parassem. Ficou inerte namão de uma moça loura que soltava soluços baixinhos e a olhava insistentemente.Aproveitou para descansar. A moça olhava o palpitante e assustado suposto brinquedoque não lhe divertia. Delicadamente passou o indicador no coração de Celeste queren-do acalmá-la: “Não fique assim, não. Vai passar, agora está protegida”. Sorriu.

Foi passeando com seu dedo frio pelas marcas do brinquedo indefeso. Apertouvagarosamente suas orelhas longas, parecendo divertir-se com aquele movimento. Foiapertando ao longo do corpinho de Celeste até chegar nas suas extremidades.Massageou, tirou o laço que amarrava seu cabelo, partiu em duas partes, sorriu eamarrou-o no pescoço de Celeste. “Agora pode ir. Já está salva”.

Celeste finalmente pareceu despertar e caminhou até a sala, aconchegando-seno sofá lilás. Iria escrever um conto sobre a moça loira de olhos doces que a haviasalvado, às vésperas das festas chatas de final de ano.

O SONHO

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67IDÉIAS DE DRAGÃO

O pacote era bem mais pesado do que aparentava. Quando o carteiro o pôs emsuas mãos, Marina quase o deixou cair.

– Quer ajuda, moça? – perguntou o carteiro.

– Não, obrigada. Já segurei.

Enquanto levava o pacote para a sala, viu a postagem internacional. “Só pode sercoisa do tio Augusto”, pensou. Ele viajava muito e nunca deixava de lhe trazer umpresente. Mas por que será que desta vez enviou pelo correio? Começou a desembru-lhar o pacote.

Logo ao destampar a caixa, um postal. Lia-se: “Querida, não agüentei esperar.Este presente é muito a sua cara! Mandei logo pelo correio mesmo. Além do mais, comcerteza ia dar excesso de bagagem! Eu comprei de um artesão aqui da Bulgária queadapta peças antigas, dando uma apresentação mais moderna. Portanto, minha queri-da, você tem aí uma quase antiguidade. Vai servir bem para te fazer companhia naslongas horas que você passa em frente à telinha. Um grande beijo, do seu padrinho,que te adora!”

Dentro da caixa, um pesado objeto estava embrulhado em papel celofane. Reti-rou-o e acabou de desembrulhá-lo. Sorriu ao ver o que era: a estátua de um dragão que,sentado sobre a própria cauda, operava um computador. Era de um metal dourado,provavelmente bronze bem polido, e os olhos da fera eram vermelhos, feitos de algumcristal ou pedra que imitava o rubi. Uma das mãos estava sobre o teclado e a outraapoiava o queixo, como se a criatura buscasse inspiração.

A princípio, gostou muito do presente. Ficou admirando-o por um tempo. Mas de-pois veio-lhe uma certa tristeza. O tio a conhecia bem. Conhecia seu hobby: escrever.Até já lera alguns dos seus contos. Tinha gostado muito, assim como outros parentes eamigos. Marina havia ficado feliz, sonhou até em se tornar escritora. Mas, quando resol-veu mostrar os textos para estranhos, pessoas que entendiam mais de literatura, tudodesabou. Recebera pouca ou nenhuma crítica favorável. Fora uma grande decepção. Otio não sabia disso mas, naquele momento, ela escrevia bem menos que antes.

Enquanto olhava a estátua, lembrava-se dos textos que escrevera ou que apenascomeçara a escrever. Muitos jaziam inacabados no computador. De repente, fitando osbrilhantes olhos do dragão, algo lhe ocorreu. Uma idéia para um texto. Veio concomitantea um frio na barriga. A idéia pareceu ótima, mas logo Marina refreou seus sentimentos.Era apenas mais uma que também ia dar em nada. Logo ia morrer, mal ela tivesseescrito a primeira página. Porém, a idéia pareceu-lhe irresistível demais para que pu-desse evitá-la. Além disso, escrever ainda era, ao menos, um hobby.

Pôs a estátua ao lado do computador e abriu o arquivo. Era o seu pretenso primei-ro romance, estagnado no terceiro capítulo. Toda vez que Marina o relia, sentia incon-

IDÉIASDE DRAGÃO

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sistências que não conseguia identificar com precisão. Algo no texto não fazia sentido,mas Marina não sabia o que era, logo não podia reescrever. Ler aquelas palavras eracomo ouvir uma criança mentir.

Resolveu então reescrever tudo, usando a idéia do dragão. Começou, as palavrasfluíam bem, tudo parecia estar dando certo. Mas ao terminar a primeira página, comohavia previsto, travou. “É claro, Marina!”, pensou, “Você esperava o quê? Um milagre?Agora vamos lutar mais um pouco com as palavras e depois deixar tudo pra um outro dia.”

Antes de fazer isso, olhou novamente para o dragão. Outra idéia surgiu. Não acre-ditou como era simples, como era fácil a solução. Encheu a segunda página, e depoismais uma. Ao olhar para a estátua, era como se retomasse o fôlego. Aquilo a assustou,mas não quis parar, não quis pensar nisso, temendo arriscar-se a perder aquela enxur-rada de palavras que fluíam da sua mente para a tela do computador. Achou inacreditávela velocidade com a qual acabou o primeiro capítulo. Só então fez uma pausa.

“Faz tempo que ela não me responde”, pensou Marina, “será que eu devo enviareste capítulo pra ela?”. Marina havia ido ao lançamento de um livro onde conhecera aautora, uma escritora profissional que escrevia no gênero preferido de Marina: fantasia.Ela gostou bastante de Marina, achou-a simpática e criativa, além de muito motivadapara escrever. Concordara em avaliar alguns dos textos de Marina. Ela enviou, mas ascríticas feitas foram desanimadoras. Ela tentou seguir seus conselhos e se esforçoubastante, mas os textos retornaram com novas críticas, cada vez piores, para novos eantigos erros. Até que a escritora passou a dizer que estava com pouco tempo e, porfim, não mais respondeu.

“Bom”, pensou Marina, “será apenas mais um e-mail sem resposta”. E enviou o texto.

Prosseguiu para o segundo capítulo. O ritmo pareceu aumentar ainda mais. Nemolhava mais para a estátua. Apenas sua presença ali já parecia nutrir-lhe a mente coma matéria-prima da criação. Marina sentia a alegria controlar seus atos, ordenando-lhe:escreva, escreva, escreva.

De uma hora pra outra, um tom escarlate passou a incidir sobre tudo aquilo queseu olhar tocava. Era com se luzes vermelhas emanassem de sua visão. Teve medo,mas, sem saber por quê, se viu forçada a continuar a escrever. Sentia-se inebriada. Atela do computador dominava e atraía sua visão.

E passou o primeiro dia e a primeira noite. Ela não teve fome, não teve sede, nãoteve sono. Só escrevia. Sete capítulos. Naquele momento, chegou uma nova mensa-gem. Ela vinha ignorando todas enquanto escrevia, porém aquela era a resposta daescritora. Ela dizia: “Sensacional, Marina! Ter colocado o dragão para narrar a históriaem primeira pessoa ficou muito melhor que o narrador onisciente e imparcial em tercei-ra pessoa. E o seu estilo, sua precisão, a clareza e originalidade das idéias, tudo melho-rou muito. Você deve estar trabalhando bastante. Depois eu te mando uma crítica maisdetalhada do texto. Assim que você tiver mais, mande pra mim!”

Era isso. Mas àquela altura, Marina já sabia que seria assim. Não restava maisdúvida alguma. Suspirou profundamente e teve de dissipar a fumaça de sua frentepara poder voltar a ver a tela. Mandou os outros capítulos para a escritora e reto-mou a escrita.

UBIRATAN PELETEIRO

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Passou o segundo dia e a segunda noite. Ainda bem que ela conseguia digitarsem olhar o teclado, pois as letras já haviam desaparecido das teclas, desbastadas porsuas garras. Chegou uma nova mensagem da escritora. Dizia: “Impressionante, Marina!Não podia imaginar que você já havia escrito tanto assim. Está tudo ótimo, não tenho oque criticar, apenas elogiar. Gostei tanto que até enviei, com recomendações, para meueditor. Acho que você não vai se importar. Ele está procurando novos autores e, se omeio e o final do seu livro forem tão bom quanto o início, tenho certeza de que ele vai tepublicar.”

“É claro que vai”, pensou Marina. E ela atravessou o terceiro dia e a terceira noite.Terminou o livro. Não havia nada a revisar, tudo estava como deveria estar. De repente,o encosto da cadeira não suportou mais a pressão de sua cauda e quebrou. Também oassento não suportou o peso e se partiu. No mesmo instante, chegou nova mensagemda escritora: “Parabéns, Marina! Meu editor também gostou e vai querer ver os originaisquando você terminar. Faço questão de ir com você!”

“Não é necessário”, pensou Marina, “eu levarei até ele, agora.” Ela mandou impri-mir e, enquanto aguardava, passou suas garras carinhosamente sobre a estátua debronze. A figura humana, de uma mulher, parecia extremamente insegura a operar ocomputador.

– Obrigado – disse Marina, e sua voz estrondeou na casa feito um trovão.

Pegou os originais. Destruiu quase todos os móveis da sala ao passar em direçãoà varanda. Arrebentou o parapeito de vidro temperado, que se estilhaçou num estourosurdo e se derramou na rua, feito uma chuva de cristal. Mas nada disso importava mais.Sentiu o sol incidir nas escamas. Como se fossem feitas de metal, elas drenavam oagradável calor para o interior de seu corpo.

Então se lançou no ar, abriu as imensas asas e alçou vôo.

IDÉIAS DE DRAGÃO

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Então, membro da Fábrica dos Sonhos, envie um e-mail para

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até 1º de setembro. Você receberá todas as informações para

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