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O MEDO DAS DESAPROPRIAÇÕES NAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DO DELTA DO JACUÍ: REPRESENTAÇÕES QUE CIRCULAM NA MÍDIA JORNALÍSTICA Luciana Marcon (ULBRA) 1 Maria Lúcia Castagna Wortmann (ULBRA e UFRGS) 2 Introdução - As Unidades de Conservação da Natureza As Unidades de Conservação da Natureza são espaços terrestres delimitados para a proteção da biodiversidade de determinada região. Antônio Carlos Diegues (2001), cientista social e pesquisador das temáticas ambientais, afirma que a criação das primeiras áreas protegidas se deu nos Estados Unidos, com o Parque Nacional de Yellowstone, em 1872, a partir de uma visão preservacionista da natureza. Ou seja, naquela conjuntura, as pessoas acreditavam que a única maneira de proteger a natureza seria afastando os seres humanos, que poderiam “apreciá-la” e “admirá-la” de longe (DIEGUES, 2001). No entanto, como aponta Diegues (2001), pouco tempo depois, no século XX, surgiram as noções que deram origem ao conceito de sustentabilidade, pensadas a partir da atuação do engenheiro florestal e político Gifford Pinchot, voltando-se esse à conservação dos recursos naturais, que, segundo ele (ibid.) deveria basear-se no uso dos recursos pelas populações no presente e no futuro, objetivando evitar desperdícios e promover o uso dos recursos para beneficiar a maioria dos cidadãos. Apesar dos muitos embates e discussões suscitados, somente em 18 de julho de 2000 foi criada uma lei a qual tem sido atribuído o propósito de promover uma maior proteção à natureza: a Lei 9.985 que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), definido pelo conjunto de áreas protegidas em nível federal, estadual e municipal. Nos dias atuais, o SNUC é gerido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA, que acompanha a implementação do sistema), pelo Ministério do Meio Ambiente (que coordena o sistema) e pelos órgãos executores: o Instituto Brasileiro do Meio 1 Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil. E- mail: [email protected] 2 Professora convidada do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil. E- mail: [email protected]

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  • O MEDO DAS DESAPROPRIAÇÕES NAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DO

    DELTA DO JACUÍ: REPRESENTAÇÕES QUE CIRCULAM NA MÍDIA

    JORNALÍSTICA

    Luciana Marcon (ULBRA)1

    Maria Lúcia Castagna Wortmann (ULBRA e UFRGS)2

    Introdução - As Unidades de Conservação da Natureza

    As Unidades de Conservação da Natureza são espaços terrestres delimitados para a

    proteção da biodiversidade de determinada região. Antônio Carlos Diegues (2001), cientista

    social e pesquisador das temáticas ambientais, afirma que a criação das primeiras áreas

    protegidas se deu nos Estados Unidos, com o Parque Nacional de Yellowstone, em 1872, a

    partir de uma visão preservacionista da natureza. Ou seja, naquela conjuntura, as pessoas

    acreditavam que a única maneira de proteger a natureza seria afastando os seres humanos, que

    poderiam “apreciá-la” e “admirá-la” de longe (DIEGUES, 2001).

    No entanto, como aponta Diegues (2001), pouco tempo depois, no século XX,

    surgiram as noções que deram origem ao conceito de sustentabilidade, pensadas a partir da

    atuação do engenheiro florestal e político Gifford Pinchot, voltando-se esse à conservação dos

    recursos naturais, que, segundo ele (ibid.) deveria basear-se no uso dos recursos pelas

    populações no presente e no futuro, objetivando evitar desperdícios e promover o uso dos

    recursos para beneficiar a maioria dos cidadãos.

    Apesar dos muitos embates e discussões suscitados, somente em 18 de julho de 2000

    foi criada uma lei a qual tem sido atribuído o propósito de promover uma maior proteção à

    natureza: a Lei 9.985 que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da

    Natureza (SNUC), definido pelo conjunto de áreas protegidas em nível federal, estadual e

    municipal. Nos dias atuais, o SNUC é gerido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente

    (CONAMA, que acompanha a implementação do sistema), pelo Ministério do Meio

    Ambiente (que coordena o sistema) e pelos órgãos executores: o Instituto Brasileiro do Meio

    1 Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil. E-mail: [email protected] 2 Professora convidada do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil. E-

    mail: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]

  • Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e Instituto Chico Mendes de

    Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

    O SNUC é composto por doze categorias de manejo organizadas em dois grupos

    principais: Unidades de Proteção Integral3, as quais cabe manter o ambiente livre de

    alterações causadas por interferência humana, do que decorre a proibição de os humanos

    habitarem as áreas assim classificadas; e as Unidades de Uso Sustentável4 que, embora

    explorem o ambiente, devem garantir a perenidade dos recursos ambientais e dos processos

    ecológicos.

    Incursionando pela história da criação das Unidades de Conservação instaladas no

    Estado do RS, é possível ver que essas foram pensadas a partir de uma lógica

    preservacionista5, que afirmava a necessidade da ausência dos seres humanos nas áreas a

    serem preservadas. O Parque Estadual do Delta do Jacuí, foco do estudo que está sendo

    relatado, foi criado pelo Decreto Estadual nº 24.385, de 14 de janeiro de 1976, que salientou

    serem as Ilhas um filtro natural por estarem situadas na abertura de rios com grandes índices

    de poluição. Entende-se, assim, que essas contribuem para manter certo grau de potabilidade

    para as águas do Guaíba e para garantir bons níveis de produtividade de pescado, podendo

    essa área ser utilizada tanto para fins preservacionistas, quanto educacionais, recreativos e

    científicos. Já a área classificada como Parque Estadual tinha moradores no momento de sua

    implantação, o que acarretou problemas de diversas ordens, incluindo-se entre esses os que

    afetaram a vida de tais moradores.

    Neste artigo, discutimos como a imprensa gaúcha tem focalizado esta situação,

    centrando nossa atenção no jornal gaúcho Correio do Povo6. Nele buscamos garimpar

    3 Estão inclusas na categoria de Unidades de Conservação de Proteção Integral as Estações Ecológicas, Reservas

    Biológicas, Parques, Monumentos Naturais e Refúgios de Vida Silvestre. 4 Estão inclusas na categoria de Unidades de Conservação de Uso Sustentável as Áreas de Proteção Ambiental, as Áreas de Relevante Interesse Ecológico, as Florestas Nacionais, as Reservas Extrativistas, as Reservas de

    Fauna, as Reservas de Desenvolvimento Sustentável e as Reservas Particulares do Patrimônio Natural 5 Segundo Antônio Carlos Diegues (2001), o preservacionismo tinha como intuito promover a proteção da natureza contra o desenvolvimento industrial e urbano. As ideias que deram sustentação a essa corrente,

    conforme salienta Diegues (ibid.) dizem respeito a valores que implicam em uma reverência do ser humano

    frente à natureza, no sentido de uma apreciação estética e espiritual da vida selvagem. 6 O jornal Correio do Povo foi fundado em 1895 em Porto Alegre (RS) pelo jornalista Caldas Júnior.

    Informações fornecidas pelo pesquisador Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite (2013), apontam que este jornal

    circulou durante 89 anos de forma ininterrupta, entre 1895 e junho de 1984, reiniciando sua publicação em 31 de

    agosto de 1986. Em março de 2007, o Correio do Povo foi adquirido pela Rede Record de

    Comunicação, conglomerado midiático controlado pelo bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de

  • discursos invocados para focalizar a complexa problemática instaurada sobre as Unidades de

    Conservação do Delta do Jacuí. Examinamos quinze reportagens localizadas a partir do

    acervo online do referido jornal, que foram publicadas entre outubro de 1997 e outubro de

    2004. A busca dessas reportagens foi realizada através das expressões-chaves “unidade de

    conservação” e “área protegida”, tendo sido selecionadas aquelas que se referiam mais

    detidamente à ocupação das Unidades de Conservação do Delta do Jacuí.

    A implantação do Parque Estadual do Delta do Jacuí e suas implicações

    Embora não tenhamos encontrado no acervo online do jornal Correio do Povo

    matérias jornalísticas que focalizassem a criação do Parque, em 19767, localizamos um

    conjunto de reportagens que abordam a insegurança que passou a afligir os moradores do

    referido Parque a partir de sua criação, reportagens que listamos e passamos a comentar a

    seguir: Questionamento sobre parque Delta do Jacuí8 (20 de outubro de 1997); Invasores

    resistem à ordem de saída9 (11 de julho de 2001); Casebres no Delta do Jacuí são

    removidos10 (20 de julho de 2001); Obras no Delta são proibidas11 (16 de junho de 2002);

    Abre-se a fase definitiva do Delta12 (13 de outubro de 2002); Governo removerá 600

    famílias13 (26 de fevereiro de 2003); e Novo protesto bloqueia estrada14 (5 de novembro de

    2003).

    Deus. O site do jornal apresenta um mecanismo de busca próprio que disponibiliza reportagens online publicadas

    a partir de 09 de junho de1997: http://www.correiodopovo.com.br/, acesso em 25 de abril de 2017. 7 O jornal Correio do Povo disponibiliza na internet, de modo gratuito, reportagens publicadas desde junho de

    1996. 8 Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2017. 9 Disponível em: . Acesso

    em 25 abr. 2017. 10 Disponível em: . Acesso em: 25 abr.

    2017. 11 Disponível em: . Acesso em 25 abr.

    2017. 12 Disponível em: . Acesso em: 25 abr.

    2017. 13 Disponível em: . Acesso em: 25 abr.

    2017. 14 Disponível em: . Acesso em 26 abr.

    2017.

    http://www.correiodopovo.com.br/

  • Na reportagem Questionamento sobre parque Delta do Jacuí15 foi denunciado o medo

    que os moradores deste Parque Estadual sentem em relação à desapropriação de suas

    moradias, uma vez que isso estava previsto legislação. A reportagem informava estarem tais

    cidadãos solicitando uma assembleia para “saber se haverá remoção de moradores e

    indenização para a implantação do parque, já que a maioria vive na área há 25, 30 e até 80

    anos, não tendo para onde ir” (CORREIO DO POVO, 20 de outubro de 1997). Além do risco

    de desapropriações, os moradores questionavam, na reportagem, “as alternativas que a

    fundação [Zoobotânica – órgão administrador da UC à época –] nos apresenta para a

    sobrevivência imediata” (ibid.), cabendo esclarecer que as atividades de subsistência destas

    pessoas envolviam a criação de porcos e a reciclagem de lixo, que estavam proibidas.

    Passados alguns anos, o jornal voltou a tratar do assunto ao publicar uma nota com o

    seguinte título Invasores resistem à ordem de saída16(CORREIO DO POVO, 11 de julho de

    2001), que informava sobre a reintegração de posse de uma área particular localizada no

    Parque Delta do Jacuí17, que havia sido “invadida” por um grupo de moradores da Ilha

    Grande dos Marinheiros. O jornal noticiou estarem as famílias que haviam se instalado na

    área resistindo à desocupação, sob a alegação de ser essa uma área de risco por sofrer

    inundações, que estaria desocupada há anos. Ainda no mesmo mês (Correio do Povo, 20 de

    julho de 2001), a reportagem intitulada Casebres no Delta do Jacuí são removidos18 relatou o

    sucesso dessa desapropriação. Segundo a reportagem, foi procedida a expropriação de 104

    “casebres” da Ilha Grande dos Marinheiros, acompanhada por 23 policiais militares do

    Pelotão de Operações Especiais da Brigada Militar19. Segundo declaração feita por João

    Carlos Hert, representante dos moradores, “a ocupação ocorreu porque eles [, os moradores,

    ] ficaram com medo de ser transferidos [das Ilhas] para outro lugar, distante dos pontos de

    recolhimento de papéis e materiais recicláveis nas ruas da cidade” (CORREIO DO POVO,

    20 de julho de 2001). Cabe destacar que a reportagem termina enfatizando a ilegalidade de

    15 Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2017. 16 Disponível em: . Acesso

    em 25 abr. 2017. 17 Cabe esclarecer que desde o Decreto Estadual nº 40.812, de 6 de junho de 2001, o Parque Estadual do Delta do Jacuí passara a ser gestado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente - SEMA 18 Disponível em: . Acesso em: 25 abr.

    2017. 19 Brigada Militar é o nome de uma Corporação Pública do Rio Grande do Sul, que visa realizar o policiamento ostensivo, de forma a preservar a “ordem pública”. Mais informações no site: . Acesso em: 2 mai. 2017.

  • qualquer moradia nas áreas pertencentes ao Parque Delta do Jacuí, não informando a

    localidade para a qual tais moradores foram “deslocados”. Além disso, o diretor do

    Departamento de Florestas e Áreas Protegidas (DEFAP) da Secretaria Estadual do Meio

    Ambiente (SEMA) à época, Luiz Felippe Kunz Júnior, ressaltou que não havia nenhum plano

    de “transferência” dos demais moradores que residiam em regiões do Parque Estadual.

    Cabe ressaltar que a situação dos moradores do Delta deixou de ser abordada pelo

    jornal Correio do Povo por algum tempo, até que em 16 de junho de 2002 foi veiculada uma

    reportagem curta, intitulada Obras no Delta são proibidas20, que enfatizava a impossibilidade

    das muitas regiões alagadiças habitadas do Delta do Jacuí sofrerem qualquer intervenção que

    visasse evitar essas inundações, uma vez que essas áreas fazem parte de um Parque Estadual.

    O diretor do Departamento de Florestas e Áreas Protegidas (DEFAP) à época, Luiz Felipe

    Kunz, admitia estar tramitando no Conselho Estadual do Meio Ambiente uma proposta para

    que “as regiões habitadas do arquipélago não sejam mais consideradas como parte do

    parque Delta do Jacuí” (CORREIO DO POVO, 16 de junho de 2002), proposta essa que,

    segundo ele, se voltava a corrigir o que esse diretor classificou como um “erro histórico”, pois

    o Parque teria sido imposto a uma região que já possuía milhares de habitantes.

    Neste mesmo ano, em 13 de outubro de 2002, a reportagem Abre-se a fase definitiva

    do Delta21 trazia esclarecimentos sobre esta situação, ao salientar que após 26 anos de sua

    criação, somente naquele momento o Parque Delta do Jacuí começaria a ser implementado,

    estando o término desta implantação previsto para o ano de 2010. Aliás, os mais de 15 mil

    moradores da área foram classificados, na reportagem, como “questões complexas”, que

    precisariam ser resolvidas. Para minimizar os danos que adviriam da implementação do

    Parque, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA) propôs que os limites da área

    protegida fossem redefinidos, de forma que “apenas 405 famílias” tivessem de ser

    “indenizadas ou reassentadas” (CORREIO DO POVO, 13 de outubro de 2002), sob a

    responsabilidade do Estado e das prefeituras, respectivamente.

    20 Disponível em: . Acesso em 25 abr.

    2017. 21 Disponível em: . Acesso em: 25 abr.

    2017.

  • Em 26 de fevereiro de 2003, o jornal Correio do Povo publicou a seguinte reportagem:

    Governo removerá 600 famílias22, cujo subtítulo era “Moradores das margens da BR 290, no

    Delta do Jacuí, serão transferidos”. O texto da reportagem informava aos leitores do jornal

    sobre um debate ocorrido entre secretários estaduais de Habitação e Meio Ambiente e a

    CONCEPA23, estando entre os assuntos abordados a criação de um projeto urbanístico e de

    programas de inclusão social “para mudar o foco de sobrevivência” (CORREIO DO POVO,

    26 de fevereiro de 2003). O então titular da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento

    Urbano do Estado, Alceu Moreira, afirmou nesta reportagem: “temos que resgatar a

    cidadania daquelas pessoas. Nosso objetivo é a reinserção social e não somente a remoção.

    Vamos relocar as famílias em moradias decentes” (ibid.). Cabe registrar, no entanto, que foi

    ressaltado na reportagem que nenhuma das medidas foi tomada por falta de dados atualizados

    sobre as áreas habitadas.

    Em 5 de novembro de 2003, o jornal relatou o bloqueio da pista localizada junto à

    ponte do Guaíba pelos moradores das Ilhas. Na reportagem Novo protesto bloqueia estrada24,

    um representante dos moradores afirmou que o motivo do bloqueio decorreu de que, embora

    os referidos moradores aceitassem ser transferidos, eles não queriam que suas casas fossem

    removidas das Ilhas. O órgão que estaria movendo uma ação contra os moradores seria a

    CONCEPA, pois suas casas estariam localizadas em faixas de domínio, que, segundo o

    Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT, 2017), são “a base física

    sobre a qual assenta uma rodovia, constituída pelas pistas de rolamento, canteiros, obras-de-

    arte, acostamentos, sinalização e faixa lateral de segurança, até o alinhamento das cercas que

    separam a estrada dos imóveis marginais ou da faixa do recuo”, sendo que morar em tais áreas

    se configura como ilegal. O último parágrafo da reportagem relembra o leitor de que mais

    famílias precisarão ser transferidas das localidades do Parque Delta do Jacuí, por ser essa uma

    UC de proteção integral.

    22 Disponível em: . Acesso em: 25 abr.

    2017. 23 A empresa Triunfo CONCEPA administra 121 quilômetros de rodovias no Estado do Rio Grande do Sul.

    Segundo o site da empresa, sua “área de concessão corresponde a 3.928 km², onde vivem, aproximadamente, 2

    milhões de habitantes”, segundo dados do IBGE de 2010. Um dos trechos administrados corresponde à BR-116,

    a chamada Travessia Régis Bittencourt, que liga a cidade de Porto Alegre à Eldorado do Sul, sendo de sua

    competência a administração do trecho que atravessa a região das Unidades de Conservação do Delta do Jacuí.

    Disponível em: . Acesso em: 4 abr. 2017. 24 Disponível em: . Acesso em 26 abr.

    2017.

  • Cabe destacar a escolha de verbos utilizados nas reportagens para se referir às ações a

    serem realizadas como a população: transferir, remover e recolocar, tais como fazemos com

    objetos ou, até mesmo, rejeitos. Neste momento, é importante nos valermos das discussões

    realizadas pelo sociólogo Zygmunt Bauman (2005). Em Vidas Desperdiçadas, Bauman

    (2005) apresenta o conceito de “redundância” aplicando-o aos seres humanos na

    contemporaneidade. O autor (ibid.) explica que, no período que se convencionou chamar de

    Modernidade, a “ordem” era se tornar um ser produtor, trabalhador, com um emprego. O

    “desempregado” indicava um afastamento desta “ordem”, indicando, segundo Bauman

    (2005), uma condição temporária. Nos tempos líquidos, conforme o mesmo autor (ibid.),

    alguns sujeitos podem ser classificados como “redundantes”, o que indica uma condição de

    permanência e de regularidade. Conforme pontua Bauman (ibid.), ser “redundante” significa

    ser desnecessário, extranumérico, dispensável, pois “os outros” se encontrariam em melhor

    situação sem a presença do “redundante”. Sendo assim, não são encontradas justificativas

    para a sua existência. Bauman (2005) aponta que “‘redundância’ compartilha o espaço

    semântico de ‘rejeitos’, ‘dejetos’, ‘restos’, ‘lixo’ – com refugo” (p. 20, destaque do autor). O

    autor (ibid.) destaca que, enquanto a rota provável dos desempregados era a de serem

    chamados novamente à ativa, o porvir do redundante é o “depósito de dejetos, o monte de

    lixo” (p. 21).

    Podemos traçar um paralelo entre os “redundantes” de Bauman (2005) e os sujeitos

    pobres moradores do Parque do Delta do Jacuí, uma vez que não são raras as reportagens que

    indicam serem esses estigmatizados em função da atividade que realizam – a coleta de lixo de

    outras localidades e a sua reciclagem. Aliás, esse parece ser o motivo pelo qual sua presença é

    criticada e indesejada, sendo até mesmo, muitas vezes, caracterizada como um “problema”.

    Os sujeitos que vivem na área do Delta, assim como os objetos por eles manuseados em seu

    trabalho, podem, então, ser facilmente removidos, retirados, recolocados, demonstrando,

    assim, sua dispensabilidade. Cabe indicar, no entanto, que há outras moradias nas ilhas a que

    não são feitas restrições, sendo essas as moradias luxuosas da localidade. A presença dos

    casarões que ocupam grandes áreas nas quais se processam intensas substituições da flora

    nativa por espécies que oferecem efeitos paisagísticos mais requintados não está configurada

    como um problema ecológico nas reportagens do jornal Correio do Povo. Aliás, tampouco o

  • lixo gerado nessas propriedades mais sofisticadas parece afetar a integridade das Ilhas, pois

    este não está referido nas reportagens examinadas.

    As disputas acerca da (re)classificação da Unidade de Conservação do Delta do Jacuí

    São tantas as problemáticas envolvendo os moradores do Parque Estadual do Delta do

    Jacuí que, sob o estatuto de “maior proteção” – na reportagem Mais proteção para o Delta do

    Jacuí25, de 26 de novembro de 2003 -, a SEMA voltou-se a analisar uma proposta de

    transformação do Parque Estadual em Área de Proteção Ambiental, pois uma UC de Uso

    Sustentável permite a presença de moradores em sua área. Já a parte mais “conservada” do

    Parque se transformaria em Reserva Biológica, que se caracteriza como UC de proteção

    integral.

    Essa necessidade de adequação de categorizações para implementar melhorias nas

    comunidades das Ilhas tornou-se mais evidente no ano de 2004, ano em que podemos

    encontrar no jornal Correio do Povo uma grande diversidade de notas e reportagens que

    referenciam essa situação. Destacamos, mais uma vez, aquelas que ressaltavam a situação dos

    moradores das Ilhas do Delta do Jacuí: Delta pode expulsar 20 mil pessoas26 (16 de janeiro de

    2004); SEMA não expulsará moradores27 (19 de janeiro de 2004); Verle pleiteia decisão em

    conjunto para as Ilhas28 (1º de outubro de 2004); Entidades ambientalistas reagem29 (3 de

    outubro de 2004); Delta do Jacuí mobiliza entidades30 (6 de outubro de 2004); Governo

    25 Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2017. 26 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 27 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 28 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 29 Disponível em: . Acesso em 30 abr. 2016. 30 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2016.

  • discute sobre Delta31 (7 de outubro de 2004); e Procuradores inspecionam o Delta32 (21 de

    outubro de 2004).

    A reportagem publicada em 16 de janeiro de 2004 – Delta pode expulsar 20 mil

    pessoas33 - discutia algumas das proposições tomadas pelo Conselho Estadual do Meio

    Ambiente (CONSEMA) e pelo Departamento de Florestas e Áreas Protegidas (DEFAP) da

    SEMA, voltando a destacar a problemática da ocupação irregular de áreas que também

    possuem lavouras de arroz. A então coordenadora executiva do Núcleo Amigos da Terra34,

    Kathia Vasconcellos Monteiro, afirmou que “tem uma cidade dentro da área do parque que

    deve sair” (CORREIO DO POVO, 16 de janeiro de 2004). Cabe ressaltar que comentários

    como esse não são raros, quando se focaliza essa questão. Ou seja, há importantes disputas no

    próprio discurso ambientalista acerca da preservação, e essa disputa se acirra quando o tema

    central da discussão são as áreas protegidas. O gestor de implantação do Parque, Luiz Alberto

    Carvalho Júnior, explicou que “Se tirarmos as lavouras, acabamos com a economia de

    Eldorado do Sul. Precisamos encontrar um meio termo para preservar a natureza e a renda

    daquelas pessoas. (...) o grande problema é que o parque começou errado” (CORREIO DO

    POVO, 16 de janeiro de 2004), porque no momento de sua implantação, como já foi

    mencionado, o local já era habitado.

    Três dias após a reunião anteriormente referida, em 19 de janeiro de 2004, a SEMA

    informa através da reportagem SEMA não expulsará moradores35, que as 20 mil pessoas que

    residiam nas dependências do Parque não seriam “expulsas” de suas casas. O secretário da

    SEMA à época, José Alberto Wenzel, se pronunciou para dizer que o Estado pretendia

    “conciliar a questão ambiental com a dignidade das famílias e, ao mesmo tempo, manter a

    cadeia produtiva agrícola regional, garantindo a subsistência da população” (CORREIO DO

    POVO, 19 de janeiro de 2004). Wenzel também declarou ser desejo da SEMA ter um maior

    31 Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016. 32 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 33 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 34 Amigos da Terra Brasil é uma Organização da Sociedade Civil que atua na defesa do meio ambiente há mais

    de 40 anos, conforme informações de sua página oficial na internet. Seu lema é “mobilizar, resistir e

    transformar”. 35 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017.

  • controle sobre as dependências do Delta, para reduzir o impacto de atividades que gerariam

    degradação ao meio ambiente.

    Mais uma nota sobre a situação foi publicada após três meses: Verle pleiteia decisão

    em conjunto para as Ilhas36, de 1º de outubro de 2004. Nessa nota, o jornal informava que o

    prefeito de Porto Alegre (RS), João Verle, havia sido surpreendido pela decisão do

    governador em exercício, Antônio Hohlfeldt37, de aprovar a transformação do Parque em

    APA, através de um decreto considerado “precipitado” e sem considerar os dados e

    procedimentos dos órgãos envolvidos nas análises do projeto. Ou seja, o Decreto Estadual nº

    43.367, de 28 de setembro de 2004, revogou o decreto de criação do Parque Estadual do Delta

    do Jacuí e da Reserva Biológica e criou a Área de Proteção Ambiental (APA) do Delta do

    Jacuí e uma Reserva Biológica dos Banhados do Delta. A grande área protegida deixou de ser

    uma UC de proteção integral e foi transformada em uma UC de uso sustentável.

    No entanto, tal atitude descontentou muitas entidades ambientalistas que participavam

    das discussões promovidas até aquele momento. Isso pode ser observado na reportagem

    intitulada Entidades ambientalistas reagem38, publicada em 3 de outubro de 2004, na qual

    está apresentada a discussão da suposta inconstitucionalidade do Decreto acima referido, uma

    vez que, de acordo com a Constituição Federal, a mudança de classificação ou a extinção de

    uma UC deve ser realizada mediante Lei, e não por Decreto, como foi o caso. Além disso, a

    promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio de Defesa do Meio Ambiente do

    Ministério Público Estadual, Sílvia Cappelli, relata que, segundo a Constituição Federal, a

    mudança de categorização do Parque prevê que se realize audiências públicas com a

    comunidade afetada, o que não ocorreu. Capelli voltava a abordar a situação dos moradores

    do Parque categorizando-os de duas formas: moradores que têm seu certificado de

    propriedade e “invasores”. Moradores com certificado, segundo ela, poderiam ser

    desapropriados, mas os moradores considerados “invasores” deveriam ser simplesmente

    36 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 37 João Verle e Antônio Hohlfeldt pertenciam a partidos políticos diferentes – Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), respectivamente – e defendiam posições bastante diferentes

    relativamente ao modo de lidar com as demandas das chamadas classes populares. 38 Disponível em: . Acesso em 30 abr. 2016.

  • “retirados”. Ela registrou, ainda, que: “'Estão nivelando como se todos tivessem direito”

    (CORREIO DO POVO, 3 de outubro de 2004).

    Em 6 de outubro de 2004, a reportagem Delta do Jacuí mobiliza entidades39 focalizou

    a oposição de opiniões entre moradores do Delta e ambientalistas. Enquanto os ambientalistas

    entravam com uma ação de anulação do Decreto supracitado (Decreto Estadual nº 43.367) no

    Ministério Público, os moradores das Ilhas manifestavam seu apoio à medida: “estamos há 24

    anos nesse fica e não fica. Esta APA é a melhor coisa que já foi feita nesse período”

    (CORREIO DO POVO, 6 de outubro de 2004), afirmou Amilton da Silva, representante dos

    moradores. Aldo Berni, chefe da Divisão de Unidades de Conservação da SEMA, declarou,

    nessa reportagem, que a mudança de categorização da área se deu em função de um “erro” na

    implantação da Unidade e porque “não existem condições para retirar e indenizar as famílias

    que estão lá” (ibid.). No dia seguinte, esses moradores se reuniram com o vice-governador

    Eduardo Krause para demonstrar sua satisfação, quanto ao Decreto que criava a APA,

    conforme foi veiculado na reportagem Governo discute sobre Delta40, de 7 de outubro de

    2004. Sua nova luta se daria no sentido de participar da construção do plano de manejo da

    Unidade.

    Na reportagem Procuradores inspecionam o Delta41, de 21 de outubro de 2004, foi

    relatada a “conversa” ocorrida entre os moradores das Ilhas e o procurador-geral de Justiça,

    Roberto Bandeira Pereira e seus colaboradores. Segundo os moradores da região, o Decreto

    que transforma o Parque em APA acabaria “com uma ansiedade de 28 anos” (CORREIO DO

    POVO, 21 de outubro de 2004), além de proporcionar uma melhora nas condições básicas de

    existência das famílias da região, pois com a mudança de normativas cerca de 18 mil pessoas

    passariam a ter acesso tanto ao saneamento básico, quanto à água encanada.

    Mesmo com o apelo dos moradores relativamente à permanência do Decreto, em 19 de

    outubro de 2005, o jornal Correio do Povo anunciou, através da nota Lei redefine o Parque

    39 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2016. 40 Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016. 41 Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017.

  • Delta42, a aprovação da lei que criava a APA e o Parque pela Assembleia Legislativa: a Lei nº

    12.371, de 11 de novembro de 2005. O então Secretário Estadual do Meio Ambiente, Mauro

    Sparta, “comemorou” a decisão. Segundo ele, a aprovação do projeto “foi muito importante

    por aumentar a área de proteção no Delta e oferecer solução aos moradores, conciliando a

    questão ambiental com a social” (CORREIO DO POVO, 19 de outubro de 2005).

    No entanto, não nos parece que essa “conciliação” venha ocorrendo, uma vez que

    contendas continuam a se repetir relativamente à área ainda nos dias de hoje. Isso fica notório,

    por exemplo, no chamamento público43 publicado em 30 de janeiro de 2017 pela Secretaria

    Estadual do Meio Ambiente, que conclamou os moradores das Unidades de Conservação do

    Delta do Jacuí a comparecerem à sede da Divisão de UC com os documentos relativos a seus

    imóveis para que o levantamento fundiário da localidade fosse efetivado. Ou seja, a questão

    relativa às moradias nas Unidades de Conservação do Delta do Jacuí continua suscitando

    levantamentos, reuniões e discussões, mas as dúvidas sobre a legalidade de tais empreitadas,

    bem como sobre os aspectos relacionados às desapropriações/expulsões dessas áreas não

    parecem ter sido sanadas.

    Algumas considerações finais

    Retomamos aqui, aspectos salientados por Bauman (2005) relativamente à exclusão de

    pessoas consideradas “redundantes”. Segundo ele (ibid.), as pessoas “refugadas” são o

    resultado iminente da modernização; ou seja, ao se propugnar a ordem – e com isso,

    determinar o que se considera o “normal” e o “ilegal” –, uma parcela da população será

    classificadas como “deslocada”, ou como não pertencente a uma determinada região,

    localidade, posição social etc. Podemos, assim, traçar um paralelo entre essa teorização e a

    população moradora do Delta do Jacuí. No momento da classificação e reclassificação de

    áreas como UCs de proteção integral, decidiu-se por transformar os donos dos casebres da

    região – assim como as atividades econômicas por eles exercidas – em transgressores da lei,

    42 Disponível em: . Acesso em: 1 mai. 2017. 43 Disponível em: . Acesso em: 8 mai. 2017.

  • enquanto a presença dos moradores das casas luxuosas não parece ser questionada em

    nenhum momento.

    É importante ressaltar que, pretendemos, neste artigo, capturar algumas discussões que

    envolveram aspectos relacionados às disputas que ocorrem relativamente ao direito de

    moradia nas Unidades de Conservação do Delta do Jacuí, valendo-nos daquilo que é posto em

    circulação nas páginas de um jornal local. Destacamos a importância de centrar nossas

    análises nessa mídia, a qual tantos têm acesso, argumentando que o jornal se configura como

    uma potente pedagogia cultural, na medida em que, nas matérias que veicula, é dado

    destaque, bem como são ressaltadas, ordenadas, classificadas, localizadas, exemplificadas,

    comparadas e explicadas, ora com maior, ora com menor ênfase, questões que estão em pauta

    nas comunidades ou nos grupos sociais de uma determinada localidade.

    Referências

    BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

    BRASIL. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Brasília, 18 jul. 2000. Disponível em:

    . Acesso em: 28 abr. 2017.

    DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. 3 ed. São Paulo:

    Hucitec, 2001.

    LEITE, Carlos Roberto Saraiva da Costa. Correio do Povo (1895): Tradição e História. Café

    História. 05 ago. 2013. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2017.

    RIO GRANDE DO SUL. Decreto Estadual n. 24.385, de 14 de janeiro de 1976. Porto

    Alegre, 14 jan. 1976. Disponível em:

    . Acesso em: 8 mar. 2016.

    RIO GRANDE DO SUL. Decreto Estadual n. 43.367, de 28 de setembro de 2004. Porto

    Alegre, 28 set. 2004. Disponível em:

  • id_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=47998&hTexto=&Hid_IDNorma=47998>. Acesso em

    8 mar. 2016.

    RIO GRANDE DO SUL. Lei Estadual n. 12.371, de 11 de novembro de 2005. Porto

    Alegre, 11 nov. 2005. Disponível em:

    . Acesso em 14 mar. 2016.