O LUGAR NO CONTEXTO DAS REDES GLOBAIS: O POLO ...

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ISABELLA BATALHA MUNIZ BARBOSA O LUGAR NO CONTEXTO DAS REDES GLOBAIS: O POLO INDUSTRIAL E DE SERVIÇOS DE ANCHIETA, ES - uma paisagem em transformação Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Área de Concentração: Paisagem e Ambiente Orientadora: Prof.ªDr.ªMaria Ângela Faggin Pereira Leite São Paulo 2010

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  • INTRODUO 1

    ISABELLA BATALHA MUNIZ BARBOSA

    O LUGAR NO CONTEXTO DAS REDES GLOBAIS: O POLO INDUSTRIAL E DE SERVIOS DE ANCHIETA, ES

    - uma paisagem em transformao

    Tese apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo daUniversidade de So Paulo para obteno do ttulo de

    Doutor em Arquitetura e Urbanismo.

    rea de Concentrao: Paisagem e Ambiente

    Orientadora: Prof.Dr.Maria ngela Faggin Pereira Leite

    So Paulo2010

  • INTRODUO2

    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUAL-QUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    E-MAIL: [email protected]

    Barbosa, Isabella Batalha Muniz B238L O lugar no contexto das redes globais: o Polo Industrial e de Servios de Anchieta, ES - uma paisagem em transformao / Isabella Batalha Muniz Barbosa. --So Paulo, 2010. 341 p. : il.

    Tese (Doutorado - rea de Concentrao: Paisagem e Ambiente) FAUUSP. Orientadora: Maria ngela Faggin Pereira Leite

    1.Planejamento territorial 2.Globalizao 3.Paisagem 4.Estado (Poltica) 5. Mercados I.Ttulo

    CDU 711

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    memria da minha av, Ceclia (1910 - 2009), exem-plo de vida. Independente e talentosa, viveu os anos da modernidade e a arte em sua essncia.

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  • INTRODUO 7

    Dedico esta tese, em especial, s pessoas queridas do meu cotidiano, pelo apoio incondicional, pela pacincia ante a ausncia sentida nas solicitaes do dia a dia. Sem essa compreenso e esse aporte por parte delas, a reali-zao dessa tese no seria possvel:

    A Paulo,

    Aos meus fi lhos, Gabriel, Julia e Luisa,

    Aos meus pais, Regina e Jos.

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  • INTRODUO 9

    minha orientadora, Professora Dr. Maria ngela por compartilhar de sua experincia e de seus conhecimentos; pela dedicao e ateno, crticas e comentrios, que possibilitaram o meu amadurecimento na forma de conduzir e estruturar a tese e de evitar os desvios de percurso; enfi m, pelo cientifi cismo que empreendeu metodologia para que eu avanasse no sentido de qualifi car objetivamente a tese.

    Aos Professores Drs. Eugnio Queiroga e Maria Monica Arroyo, que compuseram a Banca de Exame de Qualifi cao, pelas observaes e cr-ticas pertinentes, que em muito contriburam para enriquecer o desenvol-vimento da tese.

    A todos os professores da rea de Paisagem e Ambiente com quem convi-vi por quase oito anos no cumprimento do Programa de Ps-Graduao - Mestrado e Doutorado -, pelo aprendizado contnuo, pela criatividade e habilidade na docncia, sem deixar de fazer meno especial aos Professo-res Drs. Catharina Lima e Jorge Oseki (in memoriam).

    Professora Dr. Eneida Maria de Souza Mendona, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Esprito Santo, pela admirao e pela seriedade com que conduz os assuntos acadmicos. Incansvel, est sempre disposta a contribuir no desenvolvimento dos tra-balhos, das dissertaes ou teses.

    Diretoria do Instituto Jones dos Santos Neves Ana Paula Vitali Janes Vescovi (Diretora-Presidente), Andra Figueiredo Nascimento (Diretora Administrativa), Rodrigo Borrego Lorena (Diretor de Estudos e Pesqui-sas), pelo apoio no perodo dedicado fi nalizao da tese.

    Professora Maria Dalva Marchezi, pelo trabalho de reviso.

    A Camila Chicchi e Eugnio Herkenhoff, pelo carinho e pela disponibili-dade no trato das imagens e do projeto grfi co.

    AGRADECIMENTOS

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    Aos meus irmos, Flvia e Hylson, e demais familiares, Zlia e Guida, que sempre me apoiaram nas horas difceis.

    A Edna, pelo cuidado para com os meus fi lhos.

    s amigas Esther, Gorete, Vera Carreiro, pela amizade e torcida para a concluso da tese.

    Aos amigos da Ps-Graduao, Peter e Cristiane, pelas trocas e pela soli-dariedade.

    Ao Professor Roberto Garcia Simes, ao Dr. Perseu Carvalho, jornalis-ta Helena Macedo e demais pessoas que contriburam com entrevistas e depoimentos.

    Aos representantes das Instituies que me apoiaram no perodo de de-senvolvimento desta tese:Ana Mrcia Erler ADERES.Adlia Maria Souza Secretaria de Turismo da Prefeitura Municipal de Anchieta.Claudimar Maral Instituto Jones dos Santos Neves (Dept Estudos Econmicos).Heloires Nogueira Instituto Jones dos Santos Neves (Banco de Dados)Hideko Nagatami Feitoza Especialista em SIG da Unidade Central GE-OBASES /IJSN.Sandra Berredo Espao Construtora Estudos do Plano Diretor Muni-cipal de Anchieta.

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    Os novos formatos e signifi cados atribudos aos lugares perante a globali-zao tm refl exos expressivos na produo do espao, assim como no co-tidiano. Em face das tecnologias de rede a serem implantadas no territrio do Esprito Santo, inmeras variveis se apresentam como possibilidades de novas formas de organizao socioespacial. O objeto emprico da tese o Polo Industrial e de Servios de Anchieta (ES) no mbito das relaes estabelecidas entre Estado, mercado e redes globais. A hiptese a de que as estratgias para efetivao do Polo Anchieta privilegiam os interesses do mercado, o que notadamente compromete os processos socioambientais do espao coletivo e da paisagem. A reduo do territrio sua dimenso estritamente econmica rompe, de maneira profunda, a trama das rela-es estabelecidas historicamente nos lugares de vida. O Estado perde autonomia pblica e abre mo do seu papel regulatrio ao substituir lar-gamente o planejamento por um imediatismo mercadfi lo, benefi ciando duplamente as grandes corporaes: por um lado, permite a instalao dos objetos tcnicos, e, por outro, viabiliza a modernizao dos sistemas de engenharia e da logstica de transportes, vetores fundamentais para a especializao produtiva do territrio. A tese investiga ainda as tendncias de concentrao econmica e tecnolgica, preferencialmente no litoral e no entorno da Regio Metropolitana da Grande Vitria, direcionadas por um Plano de governo, o que leva ao desenvolvimento desigual das redes de infraestrutura. Com isso, a rede tcnica expandida, mas aprofundam-se as diferenas regionais.

    Palavras-chave: Planejamento territorial. Globalizao. Estado. Mercado. Lugar. Paisagem.

    RESUMO

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    New formats and meanings assigned to places as a result of globalization markedly infl uence space production, as well as daily life. In face of the network technologies that are about to be introduced into the Espirito Santo State territory, countless variables are proposed as possible new for-ms of social and spatial organization. This thesis empirical object is the Polo Industrial e de Servios de Anchieta (ES) (Anchieta ES Industry and Service Center) in the context of the relationships established among state, market, and global networks. The hypothesis is that the strategies used to create the Anchieta Industry and Service Center will favor market interests, which will greatly affect common space and landscape, as far as their social-environmental processes are concerned. Reducing the territory to its strictly economic dimension severely breaks up the historically esta-blished web of relationships in the living places. The State loses its public autonomy and renounces its ruling role as planning is extensively replaced by a marketing immediacy that will twice benefi t the large corporations: on one hand, it allows the set up of the technical objects, and on the other, it makes the modernization of engineering systems and transport logistics feasible, which are fundamental vectors towards the territory productive specialization. This thesis further investigates the economical and techno-logical concentration tendencies, preferably along the coast and surroun-ding the metropolitan area of Grande Vitria, which are controlled by a government plan and lead to an uneven development of the infrastructure networks. In this way, the technical network is expanded, but the regional differences grow deeper.

    Key Words: Territorial planning. Globalization. State. Market. Place. Lan-dscape.

    ABSTRACT

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  • INTRODUO

    Carta Altimtrica do Esprito Santo Localizao dos portos no litoral do Esprito Santo. Cidades-polo isoladas no Esprito Santo do sculo XIX. Companhia Siderrgica de Tubaro (CST) e respectivo porto. Fbrica da Aracruz Celulose. Plantio de eucalipto no municpio de Aracruz. Protesto pela devoluo das terras indgenas Aracruz Celulose. Protesto contra o desmatamento - Aracruz Celulose.Limites territoriais do municpio de Vitria. Regio Metropolitana da Grande Vitria e os limites territoriais Uso do Solo da Regio Metropolitana da Grande Vitria.Distribuio do PIB por microrregio. Distribuio de renda no Esprito Santo. ndice de violncia do Esprito Santo. Saneamento Urbano Esprito Santo. Rede de cidades contempladas no Plano 2025. Distribuio dos Investimentos 2007-2012. Sistema Logstico Gois-Minas Gerais Esprito Santo. Logstica porturia e de transportes do Plano 2025. Esquemtico dos projetos logstica elencados no Plano 2025.Mapeamento dos campos de petrleo no litoral do ES. Percurso da Unidade de Tratamento de Gs (UTG) sul. Zona Industrial do Polo e as reas desapropriadas.Polo Anchieta e sua insero geogrfi ca no Esprito Santo. Localizao do Polo em relao ao Macrozoneamento PDMDesenho do Polo e respectivo zoneamento.Relativizao do permetro urbano de Anchieta antigo e atual.Permetro Urbano de Anchieta . Mapa Plano Diretor Municipal de Anchieta e zoneamento. Mapa Plano Diretor Municipal e ZEIAs.As manchetes veiculadas nos jornais capixabas.A regio do Plo Anchieta vizinho RMGVDiviso Distrital do municpio de Anchieta. Estrutura urbana linear polinucleada. Estrutura Fundiria do municpio de Anchieta. Stio histrico de Anchieta s margens do Benevente. Santurio de Anchieta com Igreja e residncia anexa. Cela do aposento do Beato AnchietaPraia de Anchieta e o busto do beato. Stio arqueolgico de Riritiba. O Rio Salinas, tributrio do Rio Benevente, que leva s Runas. Runas do Rio Salinas.Mapa Uso do Solo do municpio Anchieta. A baa do Rio Benevente O barco, a rede e a pesca, smbolos da tradio local. Lagoa Me-B. APA de Guanandy.Floresta de transio entre o mangue e a Mata Atlntica. Falsias em Ubu. A criao de parques sugeridos pela Agenda 21 de Anchieta. Monte Agh, em Puma visto das praias de Anchieta. Monte Agh destaca-se na paisagem. Estao Ecolgica do Papagaio em relao ao Plo.Lagoa Me-B em relao ao Polo.

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    Figura 1 Figura 2Figura 3Figura 4Figura 5Figura 6Figura 7 Figura 8Figura 9Figura 10Figura 11Figura 12Figura 13 Figura 14Figura 15Figura 16Figura 17Figura 18Figura 19 Figura 20Figura 21Figura 22Figura 23Figura 24Figura 25 Figura 26Figura 27Figura 28Figura 29Figura 30Figura 31 Figura 32Figura 33Figura 34Figura 35Figura 36Figura 37 Figura 38Figura 39Figura 40Figura 41Figura 42Figura 43Figura 44Figura 45Figura 46Figura 47Figura 48Figura 49Figura 50Figura 51Figura 52Figura 53Figura 54

    LISTA DE FIGURAS

    666771778181818188899094959596114129121122123126127142145145146154156159161177195197198200213214214214214216216220222222223223225226226230230242242

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    Monte Urubu em relao ao Polo. Distribuio das APPs no interior do Polo. Recursos Hdricos da Microrregio Metrpole Expandida Sul. Estudo da construo das barragens na microrregio sul.Partculas Totais em Suspenso (PTS) Situao atual. Partculas Totais em Suspenso (PTS) Situao com o Polo.Implantao de Wind fence para conteno do p de minrio.Loteamento Monte Agh.Censo Imobilirio do setor imobilirio na RMGV. A notcia veiculada na mdia: governo estadual veta a Baosteel.Mdia especula: a priorizao das atividades petrolferas. Ptio do Santurio de Anchieta de onde se avista o mar. Escadaria junto ao Santurio - percurso dos jesutas. Casaro da famlia Assad na vila histrica de Anchieta. Atracadouro de barcos na baa do Benevente. Pr do sol em Anchieta.

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    Figura 55 Figura 56Figura 57Figura 58Figura 59Figura 60Figura 61 Figura 62Figura 63Figura 64Figura 65Figura 66Figura 67 Figura 68Figura 69Figura 70

    243244248250254254255257261279280311311311311313

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    Populao dos municpios da RMGV 2008 Populao por Macro e Microrregio (ES) - 1991 e 2000 Distribuio PIB por microrregio Evoluo, nmero de projetos, do valor total e do valor unitrio Investimentos previstos 2007-2012, PIB 2005 e principais atividadesInvestimento do Esprito Santo PAC Investimentos PAC por setor de atividade 2007-2010 Principais atividades de investimentos no Esprito Santo Principais investimentos no Esprito Santo 2008-2013 Projetos vinculados ao Polo Anchieta Populao Anchieta 2000 / 2007 Populao, rea e Densidade Demogrfi ca, Micorregio Sul - 2000 Taxa de urbanizao (%) Guarapari, Anchieta e PinaPIB para a Microrregio Metropolitana Expandida Sul Produto interno bruto Municpio de Anchieta 2005 por setor (%) Elementos de destaque meio ambiente - Anchieta Estimativa de populao 2007-2020 - Anchieta Projeo de crescimento da populao com Plo Industrial Quadro de demandas atuais, vazes e projees para 2012 e 2018

    Investimentos previstos pelo Plano 2025 Produo industrial estados federados - abril 2009

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Tabela 2 Tabela 3 Tabela 4 Tabela 5 Tabela 6 Tabela 7 Tabela 8 Tabela 9 Tabela 10 Tabela 11 Tabela 12 Tabela 13 Tabela 14 Tabela 15 Tabela 16 Tabela 17Tabela 18Tabela 19

    Grfi co 1Grfi co 2

    88 93106108115117 117118 129147195196 199 203203227238238249

    97270

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    AAE ADERES APA CST CEFETES ES GAMA IBGE IEMA IJSN IPHAN PDM RMGV SEP SETADES SNUC TAC

    UFES

    Avaliao Ambiental EstratgicaAgncia de Desenvolvimento em Rede do Esprito SantoArea de Proteo AmbientalCompanhia Siderrgica de TubaroCentro Federal de Educao Tecnolgica do Esprito SantoEsprito SantoGrupo de Apoio ao Meio AmbienteInstituto Brasileiro de Geografi a e EstatsticaInstituto Estadual do Meio AmbienteInstituto Jones dos Santos NevesInstituto do Patrimnio Histrico e Artstico NacionalPlano Diretor Municipal Regio Metropolitana da Grande Vitria Secretaria de Estado de Economia e de PlanejamentoSecretaria de Estado do Trabalho, Assistncia e do Trabalho. Sistema Nacional de Unidades de Conservao Termo de Compromisso de Ajuste de CondutaUniversidade Federal do Esprito Santo

    LISTA DE SIGLAS

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    INTRODUO 25

    PARTE I: A Globalizao como processo; o Territrio como instrumento 35

    CAPTULO 1 - PLANEJAR E GERIR O TERRITRIO NA GLOBALIZAO 37 1.1 As fronteiras no impem limites s redes tcnicas 44 1.2 O Territrio: estruturao na escala local, regional e nacional 50

    CAPTULO 2 - O TERRITRIO COMO SUPORTE DO SISTEMA DE OBJETOS E DE AES 61 2.1 Da ao dos homens 64 2.2 A tecnifi cao e a constituio desigual do territrio do Esprito Santo 75 2.2.1 A especializao e centralidade da RMGV 85 PARTE II: Especializao produtiva e preparao do Territrio 101

    CAPTULO 3 - O PLANO 2025 ESTRUTURAO E ESTRATGIAS 103 3.1 Diretrizes de desenvolvimento 109 3.1.1 Desenvolvimento da rede de cidades 111 3.1.2 Desenvolvimento da logstica e de circulao de mercadorias 120 3.1.3 Imagem e comunicao do Plano 130 3.2 As interfaces entre Estado e mercado: o movimento empresarial ES em Ao 131

    CAPTULO 4 - O POLO INDUSTRIAL E DE SERVIOS DE ANCHIETA 139 4.1 Localizao e rea de infl uncia 144 4.2 Desenho Conceitual do Polo 147 4.3 Plano Diretor Municipal respalda o Polo? 150

    CAPTULO 5 - O DISCURSO E A PRXIS INVERTIDA 167

    5.1 A retrica e o mito da sustentabilidade 179

    PARTE III: O Plo conectando o Lugar ao Mundo 185

    CAPTULO 6 - ANCHIETA: UM LUGAR DO MUNDO 187 6.1 As dinmicas socioespaciais na regio de infl uncia do Plo 194 6.1.1Saneamento Bsico 204 6.1.2 do sistema virio 206 6.2 A paisagem e os objetos localmente qualifi cados 209 6.2.1 Ecossistemas e ambiente urbano 218

    SUMRIO

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    CAPTULO 7 - RISCOS E VULNERABILIDADES DO POLO 235 7.1 Sobrecarga na estrutura fsica e social 236 7.2 A questo ambiental 243 7.2.1 gua: imprescindvel para o funcionamento do Polo 247 7.2.2 A emisso de poluentes tende a aumentar 253 7.2.3 O turismo ameaado 256 7.2.4 O boom imobilirio na regio do Polo e refl exos na RMGV 260

    CAPTULO 8 - OS CENRIOS ANTE AS FLUTUAES DA ECONOMIA MUNDIAL 265

    8.1 Os resultados da AAE e a sada da Boasteel 271

    CAPTULO 9 - AS INTERVENES: COTIDIANO E IMAGINRIO SOCIAL 287

    CAPTULO 10 - UMA REFLEXO: E COMO FICA A PAISAGEM? 303

    CAPTULO 11 - CONSIDERAES FINAIS: O Futuro do Lugar 315

    REFERNCIAS 325

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    Pensar viver. Viver pensar. No h pensamen-tos sem riscos. No h pensamento que no seja um afrontamento pessoal com o mundo. Pensar tam-bm esbarrar no precipcio, assumir o desespero e a solido que possam resultar do pensamento. Pen-sar se expor.

    Hannah Arendt (journal de pense, 1950)

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    INTRODUO

    Na atualidade, nosso meio de pensar a sociedade contempornea a noo de rede, mais fl exvel que a noo de sistema, mais histrica que a de estru-tura. A rede o fi o condutor que integra e desafi a todas as epistemologias. As redes tcnicas se realizam, tornando-se histria, com a intermediao das empresas e do Estado1. Na medida em que um lugar ou determinada poro do territrio se torna um grande negcio para o capital global, as leis de mercado passam a ditar as regras do ordenamento e da confi gurao socioespacial que se consolidam pelo ato jurdico. Das possibilidades da ao, emerge o planejamento, como instrumento tcnico para a superao dos problemas e a concretizao das metas. A forma clssica e bvia do planejamento o plano, viabilizando uma dada estratgia de desenvolvi-mento e preparando o territrio para recepo das redes tcnicas: o plano como um resultado das relaes de poder que nele encontraro expresso concreta. Esta tese no se restringe, porm, apenas ao contexto social do planejamento e aos interesses do poder, mas focaliza tambm o envolvi-mento com os coletivos, com os objetos e com os sujeitos.

    O planejamento tem que acordar com a ideia de que a irreversibilidade da globalizao um fato do qual no se pode mais escapar, assim como indiscutvel a interdependncia entre a histria geral, coletiva, e as histrias particulares. A globalizao, ao assinalar a existncia de um outro tempo, que o tempo da ressignifi cao dos contedos, dos novos nexos que rear-ticulam as inscries do vivido, aciona tambm o movimento das dimenses pulsantes e desejadas. Na mistura dos tempos, as marcas da histria, os eventos, condensam-se, deslocam-se e criam novos sentidos. A histria do sujeito contemporneo no , portanto, uma linha reta, mas traada por pontos de condensao nos quais as tramas do vivido se entrecruzam e pulsam, no passado e no presente, no local e no global. Ao tentar transpor essas redefi nies do domnio da subjetividade para o da histria coletiva e do territrio para o plano global, encontramos muitas difi culdades. Hoje, o que est sendo privilegiado so as relaes pontuais entre os grandes atores globais; no entanto, muitas vezes, falta sentido de cognio s aes por

    1 Na tese, o uso da palavra Estado em letra maiscula faz referncia instncia do poder poltico; e estado em letra minscula refere-se a unidade territorial federativa.

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    eles comandadas nos lugares de vida. Como enfrentar os discursos que partem do pressuposto (na origem iluminista) de que a histria sempre avana em direo a um progresso to certo quanto indefi nido e cambiante? O entendimento da dialtica inerente questo talvez resida na crena de que a articulao histrica do passado inseparvel daquela escrita agora, no presente. No se trata, ento, de adquirir um conhecimento isento, dito objetivo, do passado, mas de articular passado e presente de tal maneira que ambos sejam transformados em vises pautadas pela existncia.

    No contexto atual de aparente instabilidade, em que as superestruturas se interpem e se sobrepem s microestruturas, falar do meu interesse no objeto emprico da tese, a princpio, parece um pouco complexo, especial-mente em se tratando de um lugar com uma construo coletiva especfi ca, carregada de confi guraes culturais e simblicas, cuja paisagem e sociedade esto ambas sob domnio da economia globalizante e em vias de signifi cati-vas mudanas. A planifi cao espacial que ser discutida ao longo desta tese no capaz de dar conta da dialtica do espao, quanto mais de super-la, considerando que, em geral, a concepo do planejamento est imbuda de um discurso ideolgico repleto de contradies que contrasta com o espao concreto, o do habitar: gestos e percursos, smbolos e sentidos, confl itos entre desejos e necessidades.

    Em 2007, eu havia acabado de retornar ao Esprito Santo aps um longo perodo de ausncia morando no estado de So Paulo, onde desenvolvia atividades acadmicas ligadas ao Programa de Ps-Graduao da FAU/USP. Interessante que, ao chegar, logo percebi um movimento intenso acerca de um assunto que, at ento, era para mim desconhecido e que permeava di-versos segmentos da sociedade. Diariamente, e de forma enftica, o assunto circulava na mdia: o Polo Industrial de Anchieta. Naquele momento, ante um objeto tcnico de tal magnitude, que suscitava sentimentos ambguos na sociedade capixaba, tanto de xtase quanto de estarrecimento, algo de enigmtico impulsionava a minha capacidade de compreenso para a con-textualizao do objeto, no lugar e no mundo. A importncia do signifi cado o que estava buscando. O assunto foi despertando o meu interesse quase que de imediato, uma vez que o Polo Industrial e de Servios de Anchieta, alm de ser um empreendimento ambicioso, consolida as parcerias entre o Governo do Estado do Esprito Santo e o setor privado e carrega, em

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    seu bojo, incongruncias que se explicitam medida que se aprofunda o conhecimento das questes que o envolvem.

    O Polo Industrial e de Servios foi criado pelo Governo do Estado por de-creto de utilidade pblica (n1247-S/2007), no distrito urbano de Anchieta, e tem na siderurgia o seu projeto-ncora, o que requer ainda empreendimentos paralelos de logstica para sua operacionalizao. O Polo tem por objetivo oferecer condies na criao de vantagens competitivas das atividades desenvolvidas no seu interior que possam ampliar a insero do Esprito Santo no contexto das redes tcnicas globais. Os critrios para seleo e organizao de locais que respondam s crescentes necessidades das redes tcnicas obedecem a objetivos quantitativos de expanso da produo que, em geral, emergem de consideraes imediatas ou de curto prazo. A esco-lha de Anchieta para sediar o Polo Industrial se deu por alguns aspectos considerados estratgicos para o bom funcionamento do empreendimento, do ponto de vista da localizao, tais como a vocao porturia, aliada ao desempenho da atividade siderrgica e ao fato de o local facilitar a explo-rao do petrleo via gasoduto.

    Mediante questionamentos que iam surgindo, passei a refl etir sobre o objeto de interesse por outros vieses, indagando quando e a partir de que premissa se atribui valor e signifi cado a determinado objeto. A princpio, deparei-me com a possibilidade desse interesse ter sido manifestado pela nostalgia acionada pelo imaginrio, ou seja, uma forma de pensamento que se afasta do real e se apoia na percepo e na memria. Considerando o contexto do lugar, so relevantes os aspectos de sua paisagem natural entrecortada por praias, lagoas, rios e mangues, enriquecidos pelo patrimnio histrico, artstico e cultural. Dentre outras razes, especulei se a razo do interesse no poderia ter sido tambm causada pelo receio de que a paisagem singular de Anchieta, captada em determinado instante por imagens desiderativas e buclicas do lugar, pudesse estar literalmente na iminncia de se encerrar ante o panorama impactante dos projetos previstos para o Plo Industrial. Estas talvez pudessem ter sido as razes iniciais para as quais eu estivesse sendo instigada a estabelecer uma interlocuo com o objeto de estudo.

    No decorrer do processo, vrias questes ambivalentes foram sendo por mim incorporadas. Um tanto quanto provocativas e instigantes, as questes que envolvem o Polo Industrial de Anchieta foram capazes de

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    permitir o deslocamento de um interesse manifestado inicialmente para o desenvolvimento da tese, o qual a princpio, estaria focado na investigao da construo imagtica do urbano capixaba, da orla ao mangue, dando continuidade pesquisa j empreendida na minha dissertao de Mestrado (2005)2. Essa pesquisa j destacava, dentro de uma perspectiva histrica, o projeto de modernizao da Regio Metropolitana da Grande Vitria (RMGV), vinculado diretamente ao planejamento estratgico do Estado, que, no modelo desenvolvimentista de industrializao dos anos 1970/1980, j visava atender s demandas da economia internacional.

    Os estudos mostraram que a parceria entre setor pblico e privado foi o principal vetor da expanso da Grande Vitria na primeira fase de indus-trializao do Esprito Santo. Essa parceria interferia sistematicamente na formao do mercado imobilirio de terras urbanas, revelando uma gama de confl itos no uso e na ocupao do solo, o que resultou num processo de segregao socioespacial e na fragmentao de reas ambientalmen-te sensveis. Busquei, assim, identifi car o papel do poder pblico como elemento estruturador do espao e da especializao do territrio, tendo como eixo de abordagem a Baa Noroeste de Vitria. Ao se pensar o Polo Anchieta, no h como desvincul-lo da experincia com a primeira fase de industrializao no Esprito Santo, que gerou uma srie de confl itos de cunho ambiental e social. Ainda hoje, o processo tecnolgico do Esprito Santo, associado disseminao das polticas neoliberais, tende a privilegiar as relaes de mercado, especialmente aqueles setores considerados estra-tgicos para consolidao do comrcio exterior com base na siderurgia.

    Esta tese de doutorado visa dar continuidade s pesquisas j empreendidas no Mestrado, ampliando o contexto metropolitano para a dimenso regional, tendo como tema central a implantao do Polo Anchieta no mbito das estratgias formuladas pelo Plano 2025 do Governo do Estado do Esp-rito Santo. Observa-se que a eleio de um lugar para receber os objetos tcnicos tem sido cada vez mais pautada no somente pelas condies locais oferecidas, mas preferencialmente pelos circuitos internacionais de produo que se estruturam num mbito maior, global, para depois incidi-rem na escala do lugar. H, na concepo do Polo Anchieta, um contexto

    2 BARBOSA, Isabellla B. Muniz. Modernidade e Assimetrias na paisagem: a fragmentao de ecossistemas naturais e humanos na Baa Noroeste de Vitria. Dissertao Mestrado. FAU/USP. So Paulo. 2005

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    de supervalorizao das questes relativas ao mercado dentro do qual se d uma forma especfi ca de construo e apropriao da paisagem sobre a qual smbolos e signifi cados sociais se alteram ou adquirem novos valores.

    A macroeconomia poltica e suas instncias contm seus mecanismos de regulao, ou seja, do que permitido (uso industrial) e do que possa ser explorado (as belezas naturais e o stio histrico). Os prprios instrumentos normativos geridos pelo poder pblico Planos Diretores Municipais e Plano 2025 interferem na estruturao do territrio, e com frequncia, instituem dispositivos legais geradores de confl itos. O decreto estadual que cria o Polo Industrial assim como o prprio zoneamento do Plano Diretor Municipal de Anchieta dispem sobre grande rea destinada ao uso industrial, contgua s reas ambientalmente sensveis. O tema da tese emerge, portanto, das indagaes e confl itos gerados no prprio seio do planejamento. Em que medida a especializao produtiva e a tecnolgica, a despeito de gerao de empregos e arrecadao tributria gerados, privile-giam as relaes de mercado e promovem a alienao dos lugares de vida, moldando comportamentos e eliminando tradies e hbitos culturais? Ante a economia global, o planejamento, em vez de atuar como mediador, torna-se gerador de confl itos? Nessa perspectiva analtica, a tese procura investigar a forma como o espao estratgico dialoga com o espao natural e como a mediao entre ambos ir confi gurar novas estruturas de urbanidade.

    Outra hiptese que a tese procura investigar a de que, apesar das intenes manifestadas no Plano 2025 com a criao de polos de atrao regional, como o Polo de Anchieta, a Regio Metropolitana da Grande Vitoria (RMGV) dever continuar a comandar a centralidade econmica, cultural e de servios em relao s demais regies. Com a insero mais proeminente nas redes globais e a ampliao de mercados, confi gura-se uma tendncia ao adensamento de tecnologias nos municpios adjacentes regio metro-politana. Uma das indagaes fundamentais, consiste em averiguar em que medida a criao de vrios centros ou rede de cidades polo passa por um processo social de disputa entre grupos e instituies privadas, que tm um papel importante na redefi nio e recomposio da centralidade no contexto contemporneo. Como essa combinao de interesses pode levar tanto revalorizao da RMGV, quanto, ao mesmo tempo, redirecionar a economia com a constituio de novos eixos de centralidade como o Polo Industrial

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    de Anchieta? O movimento, claramente observado, dos investimentos nas duas regies litorneas que fazem limite com a RMGV indica a possibilidade futura de conurbao entre elas, ampliando-se e estendendo-se o que seria hoje a regio metropolitana. Os investimentos continuam concentrados e direcionados para a Regio Metropolitana e em seu entorno imediato, na costa litornea dos municpios adjacentes.

    Com base na abordagem conceitual acerca das categorias analticas do es-pao _o territrio, o lugar e a paisagem, sobre os quais direcionei os meus estudos no programa de ps-graduao da FAU/USP-, reconheci, no Plo Industrial e de Servios de Anchieta, o estudo de caso que possibilitava apoiar as minhas argumentaes em teorias de autores j consagrados, em especial, no arcabouo terico de Milton Santos, cuja fundamentao con-verge para a capacidade de percepo do movimento dialtico do mundo e respectivo rebatimento nos lugares de vida.

    Importante resgatar o particularismo do lugar, ressaltando premissas bsicas do componente socioambiental, junto aos processos tcnicos e projetuais que imprimem materialidade e forma ao territrio e paisagem. no lugar que o espao e o tempo mundiais so indissociveis e onde a confi gurao do sistema tcnico se revela. A escolha dos aspectos qualitativos e respec-tivas escalas de abordagem, nem sempre fcil, ou seja, selecionar alguns aspectos e abstra-los dos demais, porque h inmeras possibilidades crticas de construo das anlises qualitativas, considerando que, aes e objetos so interdependentes e conformam a complexidade das estruturas existen-tes. A mediao entre um subsistema e um sistema global indispensvel, mas a anlise se torna inconsistente se no observada as razes sociais as quais fazem com que os homens adotem comportamentos que conduzam a mudanas no espao.

    Para mensurar possveis impactos que um objeto tcnico de magnitude possa imprimir num pequeno lugarejo, h que se defi nir alguns indicadores necessrios que possam dar conta de estimar a capacidade de suporte atual do municpio no atendimento s demandas potenciais a serem geradas pelo Polo Industrial. Os dados e indicadores referentes economia, dinmica populacional, infra-estrutura e o sistema virio so relevantes para avalia-o da reproduo e ampliao da estrutura urbana, observados o grau de consolidao e de carncia em face da perspectiva de aumento considervel

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    das demandas. No que se v proceder a um levantamento detalhado des-ses aspectos, mas, pelo menos, buscar um panorama refl exivo da situao atual. A anlise relacional se torna imprescindvel. Alm das anlises das condies urbansticas e socioespaciais dos municpios diretamente atingi-dos pelo Polo Industrial, imprescindvel reconhecer o vnculo substancial estabelecido entre homem e natureza, aquilo que comumente se denomina ecossistemas urbanos. Assim, situam-se os objetos localmente qualifi cados que interagem no espao. De posse de um diagnstico sinttico das dinmi-cas socioespaciais e estruturas de suporte, prospectar um cenrio de futuro ante a imbricao do lugar s redes tcnicas.

    Os dados se baseiam no levantamento das principais fontes secundrias das estatsticas ofi ciais, de modo a compatibiliz-las num universo analtico convergente e prximo da realidade. Em geral, as publicaes de dados ofi ciais privilegiam as regies metropolitanas em detrimento das bases municipais. Apesar dessa lacuna, tentou-se chegar o mais prximo possvel de um diagnstico que espelhe as principais dimenses das dinmicas dos municpios que compem a microrregio sul, e em especial, o municpio de Anchieta. Alm da anlise empreendida com base nos dados censit-rios, algumas informaes relativas s principais atividades econmicas municipais com agregados de emprego e renda foram obtidas do Cadastro Central de Empresas (Cempre)3, um levantamento realizado pelo IBGE, disponvel para o perodo de 1996 a 2005, alm dos dados fornecidos pela SETADES4 . Outras fontes tambm foram pesquisadas para levantamento de indicadores, tais como, os documentos da Agenda 21, os estudos do Plano Diretor Municipal, o documento Perfi l de Anchieta elaborado pelo Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN)5 e Avaliao Ambiental Estratgica do Plo Industrial de Anchieta (2008).

    Quanto s escalas de abordagem, pelo porte dos investimentos previstos no Polo, os impactos tero repercusses em toda a regio sul do estado com refl exos para a Regio Metropolitana da Grande Vitria, assim como tambm, para o territrio estadual, tendo em vista novas formas de arti-culao entre as redes de cidades. Com a implantao do Polo, passa-se a

    3 A base de dados do Cempre so as empresas e unidades locais formalmente constitudas, registradas no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurdica).4 Secretaria de Estado do Trabalho, Assistncia e Desenvolvimento Social (SETADES)5 O Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) est vinculado Secretaria de Estado de Economia e Planejamento do Esprito Santo (SEP).

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    verifi car de que forma as estruturas urbanas que integram a microrregio do litoral sul se relacionam e como tambm so impactados pelo Polo. O foco da anlise recai sobre os municpios diretamente afetados, Anchieta, Pma (Microrregio Expandida Sul) e Guarapari (R.M.G.V), observando-se a interao dos processos espaciais estabelecidos entre eles, bem como, as articulaes existentes entre o Polo e as respectivas cidades. Procura-se, assim, explicitar a formao econmica da regio, seus principais ciclos produtivos, as diferenas e similaridades.

    A linha argumentativa desta tese se apoia na ideia de que as representaes produzidas por uma cultura esto em constante intercmbio e respondem aos confl itos por meio de processos e linguagens distintos, existindo, assim, a possibilidade de se trabalhar conjuntamente a interpretao dos fenmenos globais e locais. Graas a seu poder de sntese, o confl ito possui a proprie-dade de integrar os cidados em uma temtica ampla e de rever os fatos que se sucedem no tempo e no espao. A confi gurao do territrio em questo est, portanto, vinculada ao real pelos smbolos culturais e pelos modos concretos da ao. Essas duas questes so, na verdade, indissociveis.

    Como os lugares no se realizam independentemente dos fl uxos, a repre-sentatividade espacial do lugar - Anchieta - bem como todo o seu funcio-namento enquanto sistema e produtor dinmico da herana histrica e cultural que se confi gura na paisagem justifi cam um esforo de sntese para a compreenso da dinmica das redes tcnicas em relao ao contexto local. A tese dialoga com essa perspectiva de abordagem, ou seja, a compreenso da histria inserida num amplo processo de produo globalizante, comuni-cao e recepo de fatos e signifi cados que afetam a vida cotidiana. Nessa busca, preciso refl etir sobre conceitos que fundamentam as prticas da produo espacial contempornea, que se descortinam na paisagem, e, por meio deles, tentar explicar as estruturas invisveis, ou seja, aquilo que est oculto por trs dos fenmenos.

    Considerando o processo de urbanizao historicamente vinculado ao modo de produo capitalista, h que se destacar tambm a importncia do carter histrico do Estado na constituio do espao e as relaes que ele estabelece com grandes empresas no contexto global. A fundamentao terica passa necessariamente pela interpretao do meio tcnico-cientfi co-informacional (SANTOS; SILVEIRA, 2005) como forma de ampliao e

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    sustentao do processo capitalista de produo. A partir da abordagem conceitual, possvel uma refl exo sobre as estratgias e aes referentes implantao do Polo Anchieta, que incidem diretamente no lugar - An-chieta (ES) - e no territrio o estado do Esprito Santo. A tese pressupe o entendimento da questo, considerando o espao como instncia social, a globalizao como processo, o territrio como instrumento e os lugares como protagonistas das aes globais. Est dividida em trs partes:

    Parte I A Globalizao como processo; o Territrio como instrumento. A primeira parte da tese nos remete aos questionamentos atuais sobre as condies intrnsecas da globalizao, e sobre como essas condies favorecem, ou no, as possibilidades de ordenao dos territrios quando considerados imersos em contextos que no mais operam somente me-diante limites fsicos estabelecidos por fronteiras. Para tanto, necessrio resgatar conceitos sistematizados pela Geografi a, que possam auxiliar na compreenso da insero econmica do estado do Esprito Santo nas redes globais e de como se do as manifestaes locais para essa nova realidade. O referencial terico refere-se ao planejamento das aes no contexto da globalizao e responsabilidade do Estado na articulao das polticas p-blicas de ordenamento territorial, sem deixar de considerar novos vnculos associados ao territrio.

    Vale ressaltar que mesmo sendo o Polo Anchieta o objeto emprico da tese, seus refl exos se estendem para alm dos limites ofi ciais do prprio muni-cpio, sendo relevantes alguns condicionantes histricos representativos do estado do Esprito Santo como um todo, onde o territrio evoluiu de forma diferenciada em conformidade com as sucessivas aes que nele se estabeleceram. Resgatam-se ainda nesta primeira parte, as aes pautadas na construo socioespacial do territrio, as quais, historicamente, comandaram a efetivao da Regio Metropolitana da Grande Vitria como centralidade econmica e tecnolgica.

    Parte II Especializao produtiva e preparao do Territrio. A segunda parte se refere dinmica particular do territrio do Esprito Santo no m-bito do planejamento estratgico contemporneo e da globalizao. Aqui so apresentadas as diretrizes do planejamento de longo prazo do Governo do Estado do Esprito Santo - o Plano 2025 -, que permitiram respaldar a criao do Polo Industrial de Anchieta. A abordagem das estratgias

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    de articulao das parcerias pblica e privada e do processo de inovao tecnolgica, particularmente aquele relacionado fl uidez do territrio por meio da logstica estabelecida entre sistemas de transporte / tecnocincia / comunicao / informao, central para a construo da linha argumenta-tiva da tese. Tratar-se-, tambm, do discurso inerente ao planejamento na preparao do territrio para a implantao das redes tcnicas e aos aspec-tos intrnsecos relacionados a esse discurso. Nessa perspectiva, buscar-se- compreender como os prprios recursos do discurso procuram responder, com uma determinada tcnica e sentido da imaginao, aos confl itos de ordem socioespacial e a construo de uma base ideolgica favorvel reproduo dos interesses corporativos.

    Parte III O Lugar e a imbricao s redes tcnicas Esta terceira parte se refere categorizao do lugar - Anchieta - no contexto da Microrregio Metrpole Expandida Sul no qual se insere, abordando aspectos relativos confi gurao histrico-cultural e estrutura de suporte do municpio com respectivas dimenses analticas. Partindo do pressuposto de que o espao carrega em si um contedo material e imaterial ao longo do processo de sua formao, as aes que envolvem o Polo Anchieta requerem uma re-fl exo sobre os desdobramentos do quadro atual, ou seja, um esforo de prognstico acerca de possveis impactos que objetos tcnicos, e notada-mente econmicos, possam causar nos lugares protagonistas do processo e que incidem diretamente no cotidiano. Criam-se assim, condies obje-tivas de investigar, qualifi car e monitorar o ambiente cotidiano em via de transformao. Na parte III se procede apresentao dos condicionantes socioespaciais e dos ecossistemas, destacando-se as reas legalmente pro-tegidas, para num segundo momento, avaliar os fatores crticos e/ ou de risco os quais estas estruturas esto submetidas. A abordagem do Plo como objeto de articulao entre o lugar Anchieta - e o mundo, introduz a discusso sobre a redefi nio do lugar como expresso mundial, visto que o processo produtivo d-se tambm fora das fronteiras do lugar especfi co. Neste cenrio de complexidade, vale ressaltar a pertinncia do contedo simblico dos objetos inerentes paisagem de Anchieta no imaginrio social, revelando a importncia do valor esttico e cultural que atribui sentido de existncia ao lugar.

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    O sistema tcnico dominante no mundo de hoje tem uma outra caracterstica, isto , a de ser invasor. Ele no se con-tenta em fi car ali onde primeiro se instala e busca espalhar-se, na produo e no Territrio. Pode no o conseguir, mas essa a sua vocao.

    Milton Santos (2006)

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    Uma srie de substituies, de deslocamentos, de tradues mobilizam povos e coisas em escala cada vez maior.

    Latour (1994)

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  • PLANEJAR E GERIR O TERRITRIO NA GLOBALIZAO 39

    Todo projeto de transformao da sociedade pressupe apreender a com-plexa estrutura das prticas espaciais e temporais. Compreender a lgica espacial com que novas tecnologias incidem sobre uma determinada regio ou lugar passa pelo entendimento das relaes histricas e seu rebatimen-to no territrio, com a intermediao do Estado, das demais instituies e do conjunto de agentes da economia. Cada poca se molda em funo dos processos hegemnicos que a lideram, e cada lugar sofre importantes modifi caes qualitativas advindas desses processos, conforme os condi-cionantes existentes.

    Para os limites desta tese, ou seja, a anlise sobre como o recorte territo-rial (o lugar) se insere num contexto global e sobre o rebatimento dessa insero nas questes cotidianas, torna-se imperativo avaliar as mudanas associadas aos movimentos e s confi guraes de maior complexidade nesse quadro de disperso de fl uxos com que se defrontam as unidades territoriais na atualidade. O lugar, espao da concretizao das possibilida-des do mundo, no pode mais ser explicado em si mesmo, mas somente a partir de uma lgica que envolve as relaes globais mediadas por objetos e sistemas tcnicos. Assim, algumas contextualizaes tericas devem ser relembradas para nortear o entendimento das aes no mundo contem-porneo.

    A histria da mudana social , em parte, apreendida pela concepo do espao e do tempo. Na perspectiva materialista, as concepes do tempo e do espao so criadas necessariamente por meio de prticas e proces-sos materiais que servem reproduo da vida social (HARVEY, 1989, p.189-208). No processo de produo capitalista, a organizao espacial efi ciente e o tempo de giro so condicionantes fundamentais que servem de medida busca da lucratividade e ambos esto sujeitos a mudanas. Para Santos (1979), as modifi caes do papel das formas contedo ou simplesmente da funo cedida forma pelo contedo so subordina-das, e at determinadas, pelo modo de produo tal como ele se realiza na e pela formao social (SANTOS, 1979, p.17). Assim, h toda uma hist-ria de inovaes tcnicas e organizacionais que visam colocar no centro da

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    modernidade capitalista a acelerao do ritmo dos processos econmicos e, em consequncia, da vida social. Portanto, trata-se aqui de desvendar as relaes espao/tempo no mundo contemporneo. A mediao dessas relaes dada pela tcnica, que implica transformaes profundas na reproduo das relaes sociais, provocadas pela acelerao das aes.

    Hoje, temos uma nova forma de organizao social, que se viabiliza pela tecnologia e pela informao. A globalizao, se observada em suas im-plicaes simultaneamente econmicas, polticas e culturais, constitui-se como nova experincia, abrangente e contraditria, como um processo que adquire predominncia crescente no mundo contemporneo sobre as formaes sociais, seja locais, nacionais, seja regionais. Muitas disci-plinas esto empenhadas em compreender e explicar as novas situaes, os acontecimentos e as rupturas assim como as relaes que engendram estruturas que se transformam com a sociedade global e se revelam no espao. H vrias interpretaes formuladas acerca da natureza do espao, mas, diante do interesse em compreender como se do as relaes ante a complexidade do processo de globalizao, ative-me, preferencialmente, abordagem terica de Milton Santos. O autor argumenta que o espao o resultado do casamento indissolvel entre sistemas de objetos e sistemas de aes (SANTOS, 1994, p.43). Todo objeto pressupe uma tcnica que permite atuar sobre a materialidade e se consolida por meio do trabalho humano. Partindo desse pressuposto, a tcnica elemento fundamental na intermediao entre esses dois sistemas, objetos e aes.

    A construo e a reproduo do cotidiano na contemporaneidade tm por base a ideia de que as relaes sociais so regidas por um conjunto de objetos cada vez mais tcnicos e artifi cializados. A noo de objeto tcni-co ser central na tese e, para tanto, pertinente apresentar a proposio conceitual de Seris (Apud SANTOS,1994, p.22): ser objeto tcnico todo objeto susceptvel de funcionar, como meio ou como resultado entre os requisitos de uma atividade tcnica. E justamente na forma como se estabelecem as relaes entre objetos e aes que se procura um sentido para a reafi rmao dos valores sociais.

    Os objetos tcnicos esto presentes praticamente em todos os lugares. O objeto cientfi co graas natureza de sua

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    concepo, tcnico por sua estrutura interna, cientfi co-tcnico porque sua produo e funcionamento no sepa-ram tcnica e cincia. E , tambm, informacional porque, de um lado, chamado a produzir um trabalho preciso e de outro lado, funciona a partir de informaes.

    SANTOS (2008, p.215)

    As novas tecnologias alteram as relaes de produo e consumo e im-plicam uma nova concepo de espao-tempo e mesmo das identidades culturais mescladas. O chamado mercado global se impe e procura ins-talar sua vocao de expanso mediante processos que levam busca da unifi cao nas diversas escalas territoriais. Poderamos chamar de macro-atores queles que de fora da rea, determinam as modalidades internas da ao. Santos (2008,p.28) distingue dois perodos relativos difuso de tecnologias no Brasil: o primeiro, que ele denomina de meio tcnico-cien-tfi co, que se caracteriza pela revoluo das telecomunicaes no Brasil; o segundo perodo, ele denomina de tcnico-cientfi co-informacional, e nesse perodo, os sistemas de informao e fi nanas passam a confi gurar uma nova geografi a com base na acelerao dos fl uxos . Assim, a globali-zao deve ser encarada a partir de dois processos paralelos: de um lado, d-se a produo da materialidade, ou seja, das condies materiais que nos cercam e que so a base da produo econmica, dos transportes e das comunicaes. De outro h a produo de novas relaes sociais entre pases, classes e pessoas (SANTOS, 1994,p.43).

    No plano global, as aes constituem normas de uso dos sistemas loca-lizados de objetos, enquanto no plano local, o territrio, em si mesmo, constitui uma norma para o exerccio das aes (SANTOS,1994,p.43). A partir dessas duas ordens, constituem-se, paralelamente, uma razo global e uma razo local que, em cada lugar, se superpem e, num processo dia-ltico, tanto se associam quanto se contrariam. nesse sentido que o lugar defronta o mundo, mas tambm o confronta, graas sua prpria ordem. Esses destaques de Milton Santos reforam o pensamento de que uma das grandes contradies do mundo contemporneo aquela que ope, de um lado, o acelerado desenvolvimento tcnico e, de outro, o aprofun-damento das desigualdades socioeconmicas e territoriais. Esse e outros processos fazem parte da lgica de acumulao capitalista que, a um s tempo, cria a abundncia e a escassez, divide e especializa o trabalho na

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    unidade de produo, na sociedade e no territrio com base no desenvol-vimento geografi camente desigual e combinado.

    Massey 6 (1993) analisa a ideia de compresso espao-tempo no mbito da globalizao, acrescentando suas distintas geometrias do poder, em que a compresso se multiplica pela desigualdade de suas confi guraes, de sua origem e de sua distribuio. Assim, torna-se imprescindvel distinguir quais so seus agentes e como a globalizao afeta diferentemente no s as classes sociais, em termos das violentas desigualdades sociais em que todos se inserem, mas tambm as diferentes etnias, os diferentes gneros, grupos etrios, etc. A compresso espao-tempo, nesse contexto, portan-to, no diz respeito apenas a quem se desloca e a quem no se desloca; diz respeito tambm ao poder em relao aos fl uxos e ao movimento. Di-ferentes grupos sociais tm distintas relaes com essa mobilidade igual-mente diferenciada. Alguns so mais implicados do que outros; alguns ini-ciam fl uxos e movimentos, outros no; alguns esto mais na extremidade receptora do que outros; alguns esto efetivamente aprisionados por ela (MASSEY, 1993, p. 61). No se trata, porm, de uma transformao me-ramente quantitativa, como mais alternativas territoriais, maior facilidade de acesso, maior velocidade de mudana. Para Haersbaert (2005), h uma transformao qualitativa, envolvendo tudo, que se revela como sendo a nova experincia de tempo-espao, mais fl uida, e que inclui a compresso ou o desencaixe espao-temporal mergulhados nas distintas geometrias de poder, profundamente diferenciadas de acordo com as classes sociais e os grupos culturais.

    Alm do reconhecimento da complexidade da compresso tempo-espao a partir da diferenciao dos seus objetos e atores, e das relaes de poder extremamente desiguais, como destaca Massey, importante focalizar ou-tra questo to ou mais relevante: o reconhecimento de que a compresso espao-tempo envolve apenas uma das formas com que o espao social se manifesta, aquela que se encontra mais diretamente ligada ao que Shiel-ds (1992) denomina relao de presena e ausncia. Juntamente com a diferenciao ou contraste, a incluso e a excluso ou o dentro e o fora, a relao de presena e ausncia integra o conjunto dos trs componentes

    6 MASSEY, D. Power-geometry and a progressive sense of place. In: Bird, J. et al. (eds.) Mapping the futures, local cultures, global change. Londres, Nova York: Routledge. 1993, p.61.

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    da espacializao da sociedade, segundo o autor: incluso, excluso e di-ferenciao espacial continuam aparentemente imutveis. Pode-se afi rmar que as desigualdades e a excluso scio-espacial foram at intensifi cadas (SHIELDS: 1992, p.187). Para Shields, o ps-modernismo, fenmeno contemporneo da globalizao, desestabiliza a estrutura metonmica que relaciona presena e ausncia com proximidade e distncia.

    Uma unio sinttica de distncia e presena, do estrangeiro e do ntimo, torna-se concebvel e praticvel [...] As pr-prias fronteiras, assim, mudariam de sentido, elas podem ter-se tornado mais do que linhas que defi nem o que est delimitado do que no est, o ordenado do no-ordenado, ou o conhecido do desconhecido, mas, tais fronteiras pare-cem estar se dissolvendo.

    (SHIELDS, 1992, p.192)

    Segundo Shields, o resultado dessa relao complexa entre presena e au-sncia um espao profundamente descontnuo, fragmentado. Pode-se destacar o movimento, ao ou processo global como a possibilidade de acessar ou conectar, num mesmo local e ao mesmo tempo, diversos terri-trios. Isso pode se dar tanto por uma mobilidade concreta, no sentido de um deslocamento fsico, quanto informacional, no sentido de acionar diferentes territorialidades, mesmo sem deslocamento fsico, como em al-gumas experincias proporcionadas por meio do chamado ciberespao. Alguns objetos se movem muito mais rapidamente do que outros, afe-tando a vida de todos que dependem dessa mobilidade. Enquanto alguns produtos efetivamente se libertam do constrangimento da distncia, ou-tros adquirem novos valores justamente por dependerem dessas distn-cias e por se tornarem, assim, relativamente menos acessveis. Portanto, a seletividade espacial resultado da forma como as redes de tecnologia se organizam. O tempo necessrio para cruzar distncias pode ter diminudo de maneira inversamente proporcional aos diferentes modos de faz-lo, mas o acesso a esse privilgio to mais restrito quanto maior for a sua potencialidade tcnica e seu alcance espacial. Nessa perspectiva, os territ-rios so mais densos e mais complexos se considerados sob o ngulo dos mltiplos poderes que nele e sobre ele atuam.

    A globalizao, portanto, no apenas resultado dos avanos tecnolgicos e dos mercados competitivos em expanso, mas fundamentalmente um

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    fenmeno poltico e ideolgico. Tomar conscincia do processo nos leva a refl etir com profundidade sobre as dimenses confl itantes e contraditrias da realidade brasileira, em especial, dos lugares alvo das redes tcnicas. Pensar em ordenar o territrio na atual conjuntura requer, como pressu-posto, diversifi car o foco e as escalas de anlise, identifi car a forma como os vetores econmicos se distribuem nos infi ndveis circuitos espaciais, entender essa complexidade como associada mudana da base tcnica produtiva do pas, destacando as foras motrizes que tm impulsionado a especializao/diferenciao dos lugares. preciso ir alm do espao fsico, sem entretanto, subestim-lo; preciso pensar em diferentes esca-las, integrando a lgica da continuidade e da descontinuidade no espao. Com isso, preciso repensar as regies, ressaltar os novos eixos e a nova logstica territorial nacional, condio tcnica e operacional indispensvel para se pensar o planejamento e/ou polticas pblicas.

    A forma de insero regional/local no processo de globalizao trans-forma as condies histricas do territrio, engendrando novas formas de produo do espao ordenador/ regulador. Para tanto, necessrio resgatar conceitos sistematizados pela geografi a que possam auxiliar na compreenso da insero econmica do estado do Esprito Santo nas re-des globais e como se do as manifestaes locais para esta nova realidade.

    1.1 As fronteiras no impem limites s redes tcnicas

    Com a globalizao, as aes e estratgias do planejamento, em geral, se fundam nas tecnologias de rede e, em ltima instncia, tm seu rebati-mento no territrio, o que no determina que este seja pensado apenas como mero palco das aes polticas, mas como uma representao em si mesmo. O resgate das origens do conceito do territrio essencial para esclarecer sua condio atual. Cada autor, dependendo da sua linha de trabalho e de suas concepes terico-metodolgicas, d nfase a alguns aspectos dentro do territrio, seja o aspecto econmico, poltico e cultural ou o entrelaamento desses fatores, para explicar o conceito e a dinmica de um espao que est sempre em construo. No objetivo, aqui, pro-ceder a uma extensa reviso bibliogrfi ca sobre conceitos de territrio; porm alguns pressupostos bsicos acerca do territrio estabelecidos pela Geografi a clssica e crtica, so necessrios para introduzir a questo. Se,

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    por um lado, h proposies que distinguem o territrio como rea de exerccio do poder e da soberania do Estado, concepo associada s ra-zes da Geografi a poltica, por outro lado, o territrio pode ser entendido como espao identitrio. Soma-se a esses dois conceitos, outra proposio contempornea que afi rma ser o territrio a prpria expresso do movi-mento global.

    O conceito fundador do territrio para a Geografi a encontra-se em Paul Vidal de La Blache, que convencionou usar expresses como fi sionomia de uma regio, fi sionomia de um pas, fi sionomia da paisagem ou fi sionomia da terra. Trata-se de levar em conta, toda vez, a caracterstica do territrio considerado, isto , aquilo que o especifi ca e o distingue den-tre os outros, e que preciso compreender. Fisionomia e caracterstica no so representaes subjetivas, so realidades objetivas que identifi cam verdadeiramente um territrio, e que necessrio reconhecer, delimitar, localizar, tanto espacialmente como qualitativamente, a fi m de reproduzi-las, como observa La Blache, que prossegue afi rmando que , portanto, sobre o plano das aparncias que preciso se situar para apreender toda a sua densidade epistemolgica e ontolgica. O aspecto das coisas uma realidade geogrfi ca.7

    O territrio, suporte da ao dos homens em um processo contnuo e ininterrupto, associa as referncias naturais expressivas s culturais histo-ricamente construdas, numa relao mpar de identifi cao do territrio. As heranas vo se acumulando no tempo e no espao por meio de sua materialidade historicamente socializada. Pertencer a um determinado lu-gar faz parte de um processo de identifi cao com seu entorno. O lugar passa a ter signifi cado simblico. E, nesse contexto, ressalta-se o trabalho mtuo e de cooperao entre os homens, como fator de evoluo, como marca da luta pela existncia. Falar em territrio evidenciar que os lu-gares nos quais esto inscritas as existncias humanas foram construdos pelos homens, e, ao mesmo tempo, pela sua ao tcnica e pelo discurso que mantinham sobre a ao. As diversas etapas do processo de trabalho determinadas pelas relaes sociais, marcam, tambm, as mudanas veri-fi cadas no espao geogrfi co, tanto morfologicamente, quanto do ponto

    7 Texto: A fi sionomia da paisagem, de Alexander Von Humboldt a Paul Vidal de La Blache. Tra-duo Vladimir Bartalini (AUP5834). FAU / USP. Pg.44

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    de vista das funes e dos processos. assim que as pocas se distinguem uma das outras.

    H de se considerar que, dependendo do grupo cultural, do contexto histrico e geogrfi co, o processo de territorializao se d privilegiando determinadas variveis que se conjugam no tempo e no espao. Tanto as representaes territoriais quanto as identidades intrnsecas a elas so categorias e produtos da cultura, em um determinado momento, num cer-to ambiente. O territrio , pois, sempre conjuntura histrica e forma geogrfi ca que incorpora sentido por meio dos processos sociais que se expressam por meio dele. Muitas dessas formas vo se acumulando de maneira diferenciada ao longo do tempo, originando a multiplicidade de regies hoje existentes com caractersticas diversas conjugadas num terri-trio mais amplo, o pas.

    Como no poderia deixar de ser, Milton Santos d relevantes contribui-es para a construo do conceito de territrio em vrias de suas obras, de grande importncia para a Geografi a. Para Santos (1979), um espao nacional pode ser estudado como um sistema, cujos recursos so, na ver-dade, indivisveis do capital, da populao, da fora de trabalho, etc. O au-tor entende que no h como pensar o espao desvinculado do territrio: a confi gurao territorial se compe do conjunto de sistemas naturais e dos acrscimos superpostos pela sociedade em uma rea ou pas (SAN-TOS, 1996, p. 51). E o autor prossegue na sua argumentao: em cada perodo histrico esses recursos se combinam e se distribuem de maneira diferente. Santos provoca o leitor, movendo-o para seu raciocnio amplo e signifi cativo da importncia maior em compreender a categoria terri-trio, uma vez que, para o autor, na base territorial que tudo acontece, mesmo com as confi guraes e reconfi guraes mundiais infl uenciando o espao territorial.

    Raffestin (1993, p.150-151) reconhece a relao intrnseca entre territrio e modos de vida, ao afi rmar que a prtica espacial se traduz por uma pro-duo territorial, por mais simples que seja a sociedade, gerando sistemas de malhas, ns e redes que se imprimem no espao, constituindo o terri-trio. A anlise de Raffestin enfatiza a construo do territrio mediante relaes marcadas pelo poder. Na concepo do referido autor, o territ-

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    rio tratado, principalmente, com uma nfase poltico-administrativa, isto , como o territrio nacional, espao fsico onde se localiza uma nao; um espao onde se delimita uma ordem jurdica e poltica; um espao medido e marcado pela projeo do trabalho humano com suas linhas, limites e fronteiras. Assim, para o autor, faz-se necessrio focar a anlise em uma categoria essencial para a compreenso do territrio, que o po-der exercido por pessoas ou grupos sem o qual no se defi ne o territrio. Poder e territrio, apesar da autonomia de cada um, vo ser enfocados conjuntamente para a consolidao do conceito de territrio. Observa-se, ento, porque os problemas do territrio e a questo da identidade esto indissociavelmente ligados. Assim, o poder relacional, pois est intrnse-co em todas as relaes sociais, conforme observa Raffestin:

    [...] um espao onde se projetou um trabalho, seja energia e informao, e que, por conseqncia, revela relaes mar-cadas pelo poder. (...) o territrio se apia no espao, mas no o espao. uma produo a partir do espao. Ora, a produo, por causa de todas as relaes que envolve, se inscreve num campo de poder [...]

    (RAFFESTIN, 1993, p. 144).

    Haesbaert analisa o territrio com diferentes enfoques, elaborando uma classifi cao em que se verifi cam trs vertentes bsicas: 1) jurdico-poltica, segundo a qual o territrio visto como um espao delimitado e con-trolado sobre o qual se exerce um determinado poder, especialmente o de carter estatal; 2) cultural(ista), que prioriza dimenses simblicas e mais subjetivas, ou seja, o territrio visto fundamentalmente como produ-to da apropriao feita atravs do imaginrio e/ou identidade social sobre o espao: 3) econmica, que destaca a desterritorializao em sua pers-pectiva material, como produto espacial do embate entre classes sociais e da relao capital-trabalho (HAESBAERT apud SPOSITO, 2004, p.18).

    Com base nas argumentaes dos grandes autores da Geografi a, pode-ramos afi rmar que a relao tecida entre a histria e o espao fornece uma base aparentemente material identidade que se confi gura em um territrio. O territrio , assim, domnio (natural, concreto) e apropria-o (simblica), sendo ambos formas de controlar e ordenar; porm, a existncia e infl uncia das redes globais e fl uxos considerada como ele-

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    mento essencial para complementao do conceito do territrio. Pensar a conduo de polticas de ordenamento territorial no pode prescindir desse entendimento. Nessa perspectiva, ao se defi nirem os limites dos ter-ritrios dotados de certa homogeneidade natural, cultural e simblica, h que se considerar a preponderncia dos mltiplos fl uxos e conexes que atravessam esses territrios e que fazem de cada um deles a combinao especfi ca de um conjunto de redes. De certa forma, a complexidade do contexto mundial ressaltada como uma difi culdade para implementar o ordenamento do territrio, com base no pressuposto de que as redes de informao, empresariais e sociopolticas, transcendem fronteiras e geram novas relaes locais/globais.

    A nova dinmica imposta pela globalizao implica reconhecer que as no-vas redes de fl uxos funcionam mediante circuitos conectados externamen-te e, no mais das vezes, por cima ou margem dos sistemas de regulao e controle de que dispem os governos nacionais e estaduais. Diante dos novos desafi os que o fenmeno da globalizao prope, muitos autores identifi cam a evidente instabilidade da confi gurao territorial clssica adotada pela Geografi a. O espao global se reorganiza para atender as no-vas necessidades do processo produtivo, que no mais reconhece, neces-sariamente, as fronteiras regionais, territoriais ou culturais. Podemos nos reportar a essas dinmicas de fl uxos em constante movimento, que intera-gem no espao, como as denominadas por Deleuze e Guattari (1980) de desterritorializao e que, por isso, devem ser consideradas em qualquer processo de operacionalizao de polticas de planejamento territorial que procurem um resultado mais efi ciente.

    Essa nova articulao territorial em rede d origem a territrios-rede fl e-xveis, onde o mais importante ter acesso aos pontos de conexo que permitem jogar com a multiplicidade de territrios existentes, criando assim uma nova territorialidade. No se trata, tambm, como no passa-do, da simples possibilidade de acessar diferentes territrios. Trata-se, de fato, de vivenci-los, concomitante e/ou consecutivamente, num mesmo conjunto, sendo possvel criar a um novo tipo de experincia espacial integrada. Essa multiplicidade de justaposio ou convivncia simultnea de tipos territoriais distintos ser denominada por Haesbaert como ml-tiplos territrios. Ele sintetiza esse fenmeno pela ocorrncia das seguin-

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    tes modalidades: uma dimenso tecnolgica de crescente complexidade que resulta na extrema densifi cao de alguns pontos do espao altamente estratgicos; uma dimenso simblica cada vez mais importante, onde impossvel estabelecer limites entre as dimenses material e imaterial da territorializao; o fenmeno do alcance planetrio instantneo (dito em tempo real), por contatos globais dotados de alto grau de instabilidade e imprevisibilidade; a identifi cao espacial ocorrendo muitas vezes no/com o prprio movimento e, no seu extremo, com a prpria escala plane-tria (HAESBAERT, 2002, p.47-48).

    A cada novo perodo, especialmente com o fenmeno da globalizao, as fronteiras constitudas historicamente esto sujeitas s novas aes e comandos de agentes hegemnicos que se estabelecem no plano mundial. Em seu estudo sobre territorialidade e identidade, Claval (1996) considera que, assim como todas as construes, as identidades tambm podem ser colocadas em questo - e por vezes o so. H crises identitrias que provo-cam frequentemente uma modifi cao da relao com o espao: as trans-formaes da realidade espacial correm o risco de provocar, ao contrrio, um questionamento das construes identitrias; elas devem ser refor-muladas ou reconstrudas sobre novas bases. Considerando essa linha ar-gumentativa, o espao territorial est sujeito a transformaes sucessivas, conforme seja analisado sistematicamente no contexto histrico. A partir dos sistemas de variveis e a ocorrncia de fenmenos que conjugam cada perodo histrico, h possibilidade de desmantelamento da ordem estabe-lecida e a harmonia do conjunto anterior. As cidades se transformam em polos de um sistema articulado em escala mais ampla, regional, mundial, no qual se desenvolvem novas bases operacionais.

    O quadro que se apresenta na contemporaneidade, portanto, o da reor-ganizao da vida cotidiana. A construo e a destruio de regies so indissociveis da construo, da destruio e da reconstruo de territ-rios. O problema, ento, o de como regionalizar ou polarizar atividades em torno de uma regio, num mundo envolvido em dinmicas sempre mutantes. Conforme sejam dadas as rupturas e descontinuidades hist-ricas, surgem rearranjos organizacionais que se privilegiam das tcnicas como forma de constituir um novo sistema inteligente para superao das adversidades. Poderamos, assim, reconhecer diversos momentos em um

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    processo de evoluo que permanente.

    Em outros termos, est-se diante de um movimento de diferenciao de espaos territoriais de largo espectro, e os vetores que o impulsionam so de natureza multidirecional e, em grande medida, esto relacionados aos usos divergentes, competitivos e confl itantes dos lugares e das suas poten-cialidades intrnsecas (recursos naturais, posio na rede de fl uxos, infraes-trutura e outras), bem como s migraes dos capitais produtivos (princi-palmente os industriais) nas escalas intrametropolitanas, intermunicipais, interestaduais e inter-regionais. Observa-se que, no Brasil, prevalecem as desigualdades socioespaciais e em escalas diversas, isto , nas regies, nos estados, nas metrpoles e nos centros urbanos. As interconexes das di-versas escalas do espao variam de acordo com sua capacidade de acumu-lao tcnica, o que , para Milton Santos, revelador da produo histrica da sociedade e do acmulo da riqueza na sociedade capitalista.

    Desse modo, os confl itos reais e potenciais embutidos no complexo e desigual uso do territrio se revelam de forma explcita na materialidade concreta, cabendo ao poder pblico, seja qual for a instncia de poder que esteja legitimada, a funo de ordenar e gerir esses espaos territoriais. Pela perspectiva dessa refl exo, uma das consequncias da globalizao a forte tendncia atual de restringir/confi nar a formulao das polticas pblicas abrangentes (ou estratgicas) s regies ou pores do territrio nacional nas quais se verifi cam as menores densidades de fl uxos e redes. Pensar o planejar implica estabelecer conexes entre focos dinmicos da economia e das regies e lugares postos margem desse processo de reconfi gurao acelerada do territrio nacional. Nesse contexto, o plane-jamento teria por princpio estabelecer um diagnstico que permita iden-tifi car e representar os principais movimentos e vetores que impactam as regies e os lugares, indicando tendncias e aferindo demandas e potencia-lidades de modo a estabelecer metas para as polticas pblicas.

    1.2 O territrio: estruturao na escala local, regional e nacional

    O Brasil est inserido num processo globalizante, onde os territrios, as-sim como as regies, esto se tornando muito mais complexos, imersos em redes mltiplas de relaes locais/globais, cujas variveis os atingem e

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    os transformam de forma acelerada. Como vimos, esse movimento din-mico e global acirra as mltiplas diferenciaes econmicas e regionais. O pas como um todo emblemtico dessa situao desigual, o que sugere pensar a forma como se instalam as redes globais no territrio nacional: a riqueza se d, mas, simultaneamente, a reboque da marginalizao so-cial de grande parte da nao. Assim, qualquer proposta de mudana ou ordenamento do territrio que possa reverter este quadro em benefcio de toda a sociedade passa, necessariamente, por uma tentativa de com-preender o territrio como uma totalidade, a partir das aes e dos usos de todos os atores que nele operam. A compreenso do planejamento das aes pressupe a verifi cao dos fatos e as peculiaridades da organizao territorial brasileira numa escala mais ampla, global, passando pela escala local, regional e nacional.

    Para referenciar as anlises, importante nos reportarmo-nos aqui s dife-rentes escalas que designam as diversas intervenes no espao. A aborda-gem antes de tudo deve ser relacional, conforme props Lacoste (1976), considerando-se, em primeiro plano, a forma e a natureza das relaes sociais e suas interaes espaciais, cuja percepo poder variar bastante, de acordo com o contexto; por exemplo, regies em Portugal e certas regies no Brasil dizem respeito a recortes em dimenses muitssimo di-ferentes. Em geral, o recorte territorial local identifi cado, muitas vezes e simplesmente, com os limites jurdico-administrativos, restringindo-se, preferencialmente, ao municpio. Entretanto, na escala local, h que pre-valecer a ideia de recortes espaciais em graus variveis, de acordo com o seu tamanho, expressando esses recorte a vivncia pessoal do espao. San-tos defi ne a cidade local como a aglomerao capaz de responder s ne-cessidades mnimas vitais, reais ou criadas, de toda uma populao, funo esta que implica uma vida de relaes(SANTOS, 1979, p.71). J a escala regional, bastante debatida por gegrafos, variveis distintas lhe podem ser atribudas, mas em primeiro lugar o fato de ela constituir uma iden-tidade imediata do nvel local, onde ocorrem processos e peculiaridades similares. Uma caracterstica da escala regional que ela pode se desdo-brar em vrios nveis, podendo chegar a at trs: macrorregional, (meso) regional e microrregional. A escala nacional diz respeito escala do pas, do territrio ocupado por um Estado soberano. E, por fi m, a escala global abrange o mundo inteiro e diz respeito, sobretudo, a fenmenos de ordem

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    econmica no sistema mundial capitalista (SOUZA, 2006, p104-110). H que se considerar a diferenciao regional como pressuposto bsico para entendimento da confi gurao e estruturao do territrio brasileiro, que vai se dar muito em funo do carter histrico de uso do territrio apropriado pelo Estado para consecuo de seus objetivos. Na hiptese de Lefebvre, o espao desempenha uma funo na estruturao de uma tota-lidade, como um instrumento poltico, medida que apropriado, trans-formado em territrio. A representao do territrio est, assim, sempre a servio de uma estratgia projetada. O Estado, a sociedade e a estrutura territorial compem a totalidade, com mltiplos centros federados de po-der, mltiplos ncleos de atores pblicos e privados e uma estrutura ter-ritorial que se torna, progressivamente, mais densa, medida que refl ete a multiplicidade de poderes especfi cos e seus projetos de desenvolvimento sobre territrios determinados (LEFEBVRE, 1976, p.25-31).

    Para se pensar a questo regional no mbito do planejamento, vale aqui resgatar o conceito de regio, diretamente vinculado ao de territrio. Ter-ritrio e regio so como dois conceitos-chave da Geografi a; precisam an-dar juntos e so mesmo indissociveis. No h consenso para o estabeleci-mento de uma defi nio nica do conceito de regio, o que, muitas vezes, torna necessrio considerar, para efeitos referenciais, a regio como uma construo de espaos territorialmente delimitados, para algum objetivo especfi co. O que subsiste a necessidade de trat-la no somente como um objeto rgido, mas como fenmeno que se transforma historicamente. Para Komar (1976), uma regio uma rea que tem uma categoria hist-rica. No curso da evoluo social, muda com relao aos seus contedos e quanto ao grau de diferenciao interna, podendo tambm alterar-se territorialmente em uma ou outra medida (KOMAR Apud LEITE:2006, p.25).

    Um dos referenciais terico-metodolgicos em que se apoia a questo regional aquele que procura conciliar elementos de homogeneidade e heterogeneidade desenvolvidos sistematicamente desde o sculo XIX. O primeiro caminho procura envolver aspectos e indicadores geogrfi cos, sociais, econmicos e culturais que permitam compor uma determinada rea com caractersticas comuns de forma a trat-la como regio homog-

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    nea. O segundo caminho busca ressaltar a natureza heterognea do espao ou territrio produzida na existncia local de um estoque (infraestrutura, recursos humanos, capital, etc) e de fl uxo (migrao, informao, conhe-cimento, mercadorias, servios). Conciliar essas duas premissas bsicas permite levar em conta a importncia, no da anlise esttica da regio, mas de contextos dinmicos, de fl uxos que interagem intra e entre lugares ou reas. Ademais, um dos princpios do desenvolvimento a valoriza-o das diferenas base da competitividade e da complementaridade , reconhecendo-se no haver um modelo nico a ser adotado, mas, sim, mltiplos caminhos a confi gurar o desenvolvimento como um processo de mudana, e no como um estado em si.

    Algumas teorias acerca da organizao espacial exerceram considervel infl uncia na adoo de planos setoriais de interveno no Brasil, parti-cularmente as da escola francesa8 . Essas teorias viam o Estado como o sujeito motor da interveno e da ao, sendo o territrio um conjunto a ser dividido em regies de desenvolvimento, sujeitas a processos de hierar-quizao, estruturao e polarizao. A ideia fora central 9 dessas teorias, mais implcita que explcita, continuava a ser a da modernizao da cidade.

    Em um texto clssico da geografi a regional, Kayser10 (1969) escreveu o seguinte: o espao polarizado que se organiza em torno de uma cidade uma regio. No artigo, o gegrafo destacou a fora centrpeta exercida pela cidade, que ocorreu em funo da progressiva concentrao espacial de bens e servios e dos meios de produo que interferem na dinmica econmica regional. Essa linha de raciocnio no nova e foi motivada, em grande parte, pelo reconhecimento de processos socioeconmicos que romperam os limites jurdico-administrativos do que convencionalmente chamamos de cidade. No Brasil, essas teorias vinculadas a polos de desen-

    8 Dentre as principais teorias formuladas, destacam-se a Teoria do Lugar Central( 1930/1940), representada pelo gegrafo Walter Christaller, e a Teoria dos Plos de Desenvolvimento, repre-sentada principalmente por Perroux. A primeira considera o espao plano e homogneo, no qual a cidade considerada como um lugar central. A segunda, baseia-se no princpio da heterogeneidade a partir de polos de desenvolvimento. A atrao exercida pela cidade em torno de sua rea circun-dante, em razo das atividades comerciais e de servios, provoca a criao de reas de infl uncia, formando as regies polarizadas. (CROCCO, M. CEDEPLAR/UFMG.2008)9 A ideia- fora central tem origem no Urbanismo modernista de Le Corbusier, complementada por outras ideias-fora como ordem e racionalidade, assim como modernizao da cidade. 10 KAYSER, B. (1969). A regio como objeto de estudo da geografi a. In: GEORGE, Pierre et alli. A geografi a ativa. So Paulo:Difel, 1980, p.283

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    volvimento se adequaram ao momento de autoritarismo poltico, servindo assim de apoio ideolgico formulao de polticas espaciais que tinham por discurso a correo dos desequilbrios regionais. Entretanto, o enfo-que racional, esteve, via de regra, ligado a uma realidade estruturada em sistemas, o que no contemplava as prioridades ou os problemas concre-tos a serem superados, mas, sim, girava em torno dos procedimentos, vale dizer, do mtodo.

    A abordagem sistmica (systems planning), e mais ainda uma variante a ela estreitamente racional (racional process view) sublinharo a racionalidade dessa abordagem como elemento distintivo em face do planejamento fsico-terri-torial. No que a preocupao com a racionalidade estives-se ausente do planejamento clssico; entretanto, a maneira como essa preocupao passa a ser veiculada conhece uma virada nos anos 70. Em ambos os casos, trata-se de uma ra-cionalidade instrumental, que se volta exclusivamente para a adequao dos meios a fi ns preestabelecidos, permane-cendo estes ltimos inquestionveis.

    (SOUZA, 2006, p.132)

    As aes implementadas pelo planejamento desde o incio da formao do meio-tcnico-cientfi co no Brasil, assim como no caso do Esprito Santo, criaram antagonismos socioambientais e desigualdades regionais, priorizando sempre, e, em primeira instncia os interesses dominantes. As desigualdades regionais so fl agrantes e pronunciadas. O sistema de infra-estruturas e de redes tcnicas desigualmente distribudas concentra-se nas regies Sudeste e Sul, conforme atestam Santos e Silveira (2005). Essa concentrao se d devido a um processo circular, no qual a diviso terri-torial do trabalho mais intensa gera uma maior necessidade de circulao e encontra resposta na difuso dos transportes, que permite, por sua vez, uma maior especializao e distribuio das funes produtivas.

    O planejamento pblico nacional centralizado dos anos 1980 foi a alter-nativa encontrada para minorar as disparidades regionais; entretanto, trou-xe em seu bojo a falncia do planejamento regional pautado numa viso fundamentalmente macrorregional (regies administrativas). A implemen-tao das aes de liberalizao da economia e de reduo do papel do Estado no favoreceram o planejamento pblico, em particular o regional. Ao contrrio, observou-se uma no adequao de ferramentas ao novo

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    contexto mundial e o desmantelamento dos vrios instrumentos dispon-veis at ento.

    Alguns fatores concorreram decisivamente para enfraquecer a legitimida-de do exerccio de planejar. Na tradio poltico-administrativa brasileira, a regio sempre foi mais uma escala de interveno do que de adminis-trao. Assim, as regies responderam muito mais centralizao do que descentralizao, ao contrrio do que ocorreu, por exemplo, na Frana. O resultado disso que, exceo feita para raros casos, a forma como o planejamento se instaurou no Brasil no foi capaz de estimular um pen-sar para alm do reconhecimento da polarizao regional. Outro fator relevante foi a derrota do planejamento no mbito urbano com a trans-ferncia das responsabilidades para os planos diretores e o esvaziamento dos movimentos sociais urbanos que haviam dado suporte ao Movimento Nacional pela Reforma Urbana11. A importncia de planos e garantias formais foi exagerada, em detrimento de uma anlise social mais ampla. A participao popular, que, deveria ser vista como o fator-chave para a de-mocratizao do planejamento, tornou-se secundria, haja vista a pouqus-sima ateno dispensada aos conselhos municipais e de desenvolvimento.

    Nos anos 2000, os avanos na agenda de curto prazo do pas permitiram cogitar a reestruturao do planejamento de mdio e longo prazo. O ide-rio poltico-econmico liberal passa a fornecer as grandes linhas inspirado-ras de aes que visam s reestruturaes econmicas e territoriais. Nesse novo contexto, a questo regional vem retomando seu papel de relevncia, perdida nas ltimas dcadas. Hoje, devido ao impacto dos movimentos preponderantes das redes globais sobre as naes, reconhece-se que as unidades territoriais, seja regies seja municpios, permanecem como im-portantes atores no cenrio mundial, e procura-se fortalecer as possibilida-des de eixos de desenvolvimento. Com o indiscutvel fortalecimento dos municpios nos ltimos quinze anos, decresce consideravelmente o poder da Unio como indutor e o coordenador exclusivo das estratgias e polti-cas de alcance nacional. Desse modo, refora-se a necessidade do Estado em compreender e agir sobre as regies, em especial, as metropolitanas e

    11 No Brasil, no fi nal da dcada de 1980, surge a concepo progressista da Reforma Urbana, ca-racterizada como um conjunto articulado de polticas pblicas, de carter redistributivo. A Reforma Urbana estaria voltada para o atendimento do seguinte objetivo: reduzir os nveis de injustia social no meio urbano e promover uma maior democratizao do planejamento e da gesto das cidades.

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    os aglomerados urbanos, que so, atualmente, os mais importantes vetores de especializao e de diferenciao do territrio nacional. Esses espaos territoriais (metropolitanos) representam foras de difcil controle e coor-denao, seja pela complexidade inerente a eles, seja pela sobreposio das escalas de gesto dos nveis de governo que neles atuam. Nesse contexto, uma questo suscita confl itos de competncia no seio do Estado ante a existncia das territorialidades-redes: como ordenar e o que ordenar?

    Pensar em poltica pblica de ordenamento territorial ou de mitigao dos problemas expressos no territrio implica pensar uma dimenso tecno-lgica de crescente complexidade, que resulta na densifi cao de alguns pontos altamente estratgicos do espao. A importncia do quadro atual destacada por meio da construo de novas formas no exerccio das funes do Estado e dos diversos atores intervenientes. De certa forma, h uma postura inovadora na conduo de polticas pblicas no Brasil quando se atribui papel central ao territrio na consecuo de objetivos estratgicos. Uma premissa a realar a da revalorizao das regies no contexto mundial, no mais tratadas somente como provedoras passivas de insumos ao desenvolvimento.

    Com a mundializao dos mercados e o processo de globalizao econ-mica e cultural, a importncia das regies e dos blocos regionais ganhou novos contornos, constituindo-se em doutrina a defesa das economias regionais e a possibilidade de competitividade dessas economias na eco-nomia global. As escolhas so feitas tambm pela efi cincia das malhas de coordenao e pelo alcance da gesto de recortes territoriais mais reduzi-dos. Nessa perspectiva, o fortalecimento da rede de cidades e/ou micror-regies favorece a criao de novas centralidades, motivada por interesses econmicos. As cidades deixam de ser apenas as sedes da vida cotidiana, para se transformarem em polos de um sistema articulado em escala mais ampla, a regional, favorecidos pela mobilidade e fl exibilizao do sistema de transportes e comunicao. As grandes cidades continuam a exercer importncia na articulao e polarizao econmica, em especial, as me-trpoles.

    A possibilidade de antecipar os efeitos locais de uma determinada ao, tendo o territrio como referncia prvia, que faz a regio uma ferra-

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    menta estratgica importante. O planejamento das aes deve ter por prin-cpio as regies consideradas como estruturas socioespaciais ativas, pos-suindo, conforme sejam ordenadas, a capacidade de ajustar-se dinmica da competio global. Hoje, as abordagens do territrio no contexto do planejamento conciliam a importncia de contextos dinmicos, de fl uxos que interagem intra e entre locais. Em linhas gerais, a anlise da literatura aponta que os arranjos territoriais, que, de alguma forma, so adjetivados de cidades-regies12, so resultados do perodo de acumulao fl exvel, das transformaes do sistema fordista e das novas tecnologias que se transformaram em fator de produo. A esse respeito, Harvey escreve:

    A acumulao fl exvel envolve rpidas mudanas dos pa-dres de desenvolvimento desigual, tanto entre setores quanto em regies geogrfi cas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego chamado setor de servi-os, bem como conjuntos industriais completamente no-vos em regies at ento subdesenvolvidas tais como Ter-ceira Itlia, Flandes, os vrios vales e gargantas do silcio, para no falar da vasta profuso de atividades dos pases

    recm-industrializados. (HARVEY, 2000, p.140)

    Essa linha de raciocnio em torno das cidades que infl uenciam uma abran-gncia maior de escala no nova e foi motivada, em grande parte, pelo reconhecimento de processos socioeconmicos que romperam os limites jurdico-administrativos do que convencionalmente chamamos de cidade. Tanto na anlise da literatura quanto no debate sobre as polticas gover-namentais, os argumentos sobre as cidades-regies prevalecem em dois pontos principais: 1) a abertura ao mercado global fez com que as estru-turas locais e regionais se tornassem mais frgeis, o que, em alguns casos, coincide com mudanas na base produtiva, com impacto direto na oferta de emprego; 2) de posse desse diagnstico e com base na ideia de rees-truturao, caber aos atores locais-regionais (o regional uma forma de dizer que os problemas da reestruturao atingem mais que uma cidade) reunir foras para superar os problemas (ARRAIS, 2008, p.86).

    O avano terico-emprico recente no campo do planejamento regional

    12 O conceito de cidade-regio se aplica s regies metropolitanas ou cidades que exercem grande infl uncia sobre outras em seu entorno, preferencialmente no que diz respeito s atividades econ-micas e de prestao de servios.

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    respaldado por novos e sofi sticados instrumentos metodolgicos, em face dos resultados positivos alcanados na Unio Europeia. A nova poltica industrial francesa, por exemplo, tem no seu eixo principal, os chamados polos de competitividade. Esses plos so constitudos de projetos co-letivos que renem empresas (com uma, pelo menos, considerada ncora), centros de pesquisa, em uma zona geogrfi ca determinada. Trata-se de um instrumento de competitividade industrial/empresarial e de atrativida-de territorial/empresarial, que tem como critrios a insero territorial, a visibilidade internacional, a qualidade das parcerias e sinergias potenciais entre empresariado e desenvolvimento do territrio13 . Esses polos urba-nos direcionais, as chamadas cidades mundiais ou cidades-regies globais, com suas complexas redes d