O livro um objeto de estudo de práticas culturais
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O livro: um objeto de estudo de práticas culturais
PRISCILA LEAL MELO
Para além do interesse em seu conteúdo imanente, o livro figura atualmente na
historiografia como objeto de estudo que permite o acesso a práticas culturais
de uma determinada época, extrapolando os limites - embora imprecisos - de
suas mensagens. O acesso às relações que os leitores de outros períodos
históricos mantinham com essa ferramenta de trabalho e lazer, de aprendizado
e evasão, abriu o leque de opções de análise, acirrando o debate teórico que
também ofereceu contribuições significativas. Partindo do aparentemente
óbvio - onde muitas vezes se esconde a resposta para a compreensão de um
costume -, os pesquisadores descobriram a capa, com suas cores, letras e
imagens tão variadas quanto a imaginação é capaz de produzir. Voltaram o
olhar para as oficinas - desde o manuscrito ao impresso; às estantes - públicas
ou privadas; aos mercados - livres ou proibidos. E se depararam também com
um sujeito fundamental na finalização de todo e qualquer livro: o leitor,
"parceiro" indispensável do autor na elaboração de uma obra.
Com os homens e as mulheres do século XVIII, perceberam a predileção por
revestimentos, tipos de papel entre outros detalhes que se distinguem pelo
toque. Dos olhos e das mãos. Com a estética da recepção e o novo conceito de
leitura - que destituiu do texto o seu poder irrefutável sobre o receptor da
mensagem -, elevaram o leitor à condição de sujeito da apreensão de um
determinado conteúdo, desviando a atenção dos especialistas não mais para a
mensagem que se quis passar, mas sobre a mensagem que de fato foi recebida.
Com isso, eleva-se para o primeiro plano de discussão a análise dos alcances e
dos limites da potência de um texto sobre quem o lê. Na linha de frente desse
debate, encontram-se - entre outros, como o crítico brasileiro Luís Costa Lima
e Antônio Cândido, a quem muito devemos nesta busca - Jean Starobinsky,
Robert Darnton, Roger Chartier e o marxista Pierre Bourdieu.
Os dois primeiros debruçaram-se sobre a Época das Luzes, trazendo
contribuições expressivas sobre a obra de Jean-Jacques Rousseau. Mediante a
confirmação de suas hipóteses, o historiador americano Robert Darnton revela
o significado do conceito de leitura para o pensador iluminista e, ao ampliar
sua análise para a maneira como a obra de seus contemporâneos foi lida,
subverte as teses marxistas, afirmando que os ideais filosóficos em vigor no
século XVIII não informaram os revolucionários franceses. Para promover
esta reviravolta, ele estudou o formato dos livros, sua circulação - o que inclui
custos de fabricação e alcance de distribuição - e, finalmente, sua apropriação.
Em sua trajetória, outras fontes vão sendo utilizadas na tentativa de
compreensão da verdade mais próxima sobre o impacto que um livro como
a Enciclopédia realmente teve sobre os rumos da revolução de 1789.
O que se constata, então, é a ampliação da percepção que se tem do livro,
hoje, não mais um objeto estanque, válido apenas pela mensagem que
comporta em suas páginas impressas, mas irreversivelmente enriquecido pela
sociedade que o cerca. É um instrumento vivo, sempre pronto para ser
reescrito. Muitos de nós realizamos essa formidável conquista algumas vezes
na vida. Os que têm o costume de fazer anotações nas margens dos textos
poderiam realizar a interessante experiência de reler aquele conteúdo
esquecido. Neste esforço, vão descobrir que o que aos 15 anos era belo ou
mesmo indispensável, aos 35 anos, ou 40 anos, certamente já não o é. Ou
ainda, vai notar nas mesmas linhas outrora percorridas mensagens antes não
anotadas. Nós crescemos. E conosco, amplia-se o conteúdo da obra.
Da riqueza que essa abertura da definição e da compreensão do que seja o
livro oferece, torna-se possível ao pesquisador propor um número infinito de
questões, sempre, é claro, levando-se em consideração a disponibilidade de
fontes primárias e a adoção criteriosa de uma metodologia para a coleta e a
análise dos dados. Desde que Roger Chartier e Daniel Roche escreveram
sobre a mudança de perspectiva a respeito do livro, vimos emergir a
ampliação do volume de documentos capazes de esclarecer sobre o alcance de
uma obra. Tarefa que passou a ser factível acessando catálogos, bibliotecas
particulares, e uma série de outros tipos de fontes; até mesmo testamentos,
pois muitos são os que especificam nos últimos instantes o derradeiro destino
que desejam dar aos seus companheiros de viagem.
Diante dessa revisão, estudar um livro é também acessar sua leitura. Vemos o
objeto deslocar-se da etapa inicial do processo básico de comunicação -
emissor-mensagem-receptor - para esse último. Surge assim a preocupação
com a leitura, com a maneira como a obra foi entendida pelo leitor - segundo
Cândido, o autor final de um texto percorrido. Chartier foi quem melhor
esboçou as etapas indispensáveis a uma pesquisa séria no campo da história da
leitura. Ela deve conter a análise da produção, da circulação e da apropriação
da obra. Na primeira fase, poderíamos dizer, embora de maneira muito
simplificada, que devem estar presentes os elementos constitutivos da
materialidade do texto: qualidade do papel, formato do volume; se com ou
sem ilustrações, local de fabricação; se foi encomendado - e por quem -, o
número de exemplares... Enfim, informações indispensáveis à etapa seguinte,
que visa à compreensão da difusão do livro. Não é difícil entrever que cada
um desses caprichos do editor envolverá maior ou menor volume de capital.
Títulos caros, títulos raros - admitamos -, pois menor será o número de
pessoas com recursos suficientes para comprá-los.
Somente de posse desses dados será possível traçar a geografia do livro, ou
seja, determinar as regiões por onde circulou, os grupos sociais que a ele
tiveram acesso, as instituições que o adquiriram. Henri-Jean Martin e Lucien
Febvre, num estudo fundamental - O aparecimento do livro -, conseguem
demonstrar como o texto impresso se difundiu pela Europa, identificando os
principais centros de formação dos profissionais dedicados a essa arte, indo
em busca dos meios disponíveis - capital e ferramentas - para a tarefa, sem
esquecer que os obstáculos enfrentados pelos precursores vão além dos meios
materiais e esbarram no cultural. Interessante lembrar que a Igreja esteve por
muito tempo à frente dos movimentos de difusão de idéias, o que em diversos
momentos - como por exemplo no século XVII - preparou o campo para a
guerra dos livros: os sagrados contra os profanos, os escritos em língua
nacional contra os redigidos na língua divina, o latim.
Essa geografia do livro - ou, como prefere Chartier, a circulação da obra
implica também a noção do livro mercadoria. Desde o início de sua fabricação
- ainda nas oficinas monásticas produtoras dos manu scripti (manuscritos) -
ele é um objeto de cara execução. Febvre e Henri-Jean Martin dedicam um
capítulo da obra ao tema. É bom lembrar que os primeiros impressores,
pobres, seguiam para os centros burgueses ou buscavam a proteção de quem
pudesse contratar seus serviços. Ainda hoje vemos o quanto o poder aquisitivo
afasta ou aproxima as pessoas dos livros. Também esse aspecto se torna
relevante para a análise da circulação de uma obra. Em seu estudo Edição e
sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII, Robert Darnton
indica outros. Pesquisando os arquivos da Société Typographique de
Neuchâtel, na Suíça, ele descobre o fascinante roteiro dos livros proibidos,
como foi então chamada pelas autoridades a literatura libertária e libertadora
que marcou a França no auge de sua experiência revolucionária mais radical.
A História cultural: entre práticas e representações, de Roger Chartier,
tornou-se obra fundamental a ser lida por quem se interesse pelo tema. Na
riqueza de assuntos que aborda, encontramos referências à Bibliothèque Bleue
- coleção de livros de cordel a partir da qual o historiador destrincha as
relações entre a materialidade do livro e o circuito que ele veio a percorrer. O
autor define a biblioteca azul como uma fórmula editorial que teve por
objetivo atingir os leitores mais numerosos e mais populares, do começo do
século XVII a meados do XIX. A experiência revelou a apropriação de textos
eruditos, já editados, adequando-os à capacidade de leitura dos compradores
que têm o interesse de conquistar. Para isso, encurtam os conteúdos,
simplificam as frases e dividem a obra em vários novos capítulos,
multiplicando parágrafos, acrescentando títulos e resumos. A lógica, segundo
Chartier, é controlar e ao mesmo tempo torná-los mais facilmente decifráveis.
Para ampliar seu alcance - sua circulação - alteram a materialidade e o
conteúdo das mensagens. Eis por que não se pode dissociar - do estudo do
livro - as facetas que envolvem sua produção e circulação.
Por fim, a apropriação, da qual também nos fala Chartier. O
redimensionamento do que se pode entender como sendo um livro deixa claro
o quanto a sua significação extrapola a letra. No campo da teoria, porém, o
conceito, tal como o defendemos, esbarra em uma acirrada discussão, longe
chegar a termo. O debate já colocou frente a frente o historiador da cultura
Roger Chartier e o marxista Pierre Bourdieu. E as contribuições surgem de
parte a parte. Cabe ressaltar que, embora o primeiro defenda um conceito de
leitura aberto e o segundo desenvolva conceitos como "violência simbólica" e
"poder simbólico" - forma de acordo com ele transfigurada mas também
legitimada das outras formas de poder -, ambos admitem a necessária
contextualização dos textos. É preciso, afirma Bourdieu, que, como os
historiadores, se façam perguntas do tipo: como esta obra foi escrita? Para
quem? A questão está em determinar, afinal, quem coloca o ponto final nesta
História.
Enquanto Chartier aposta na tese de que um único livro pode suscitar leituras
as mais diversas, pois está no leitor o poder de decifrar sua mensagem,
Bourdieu evoca os "sistemas simbólicos" - que segundo ele incluem arte,
religião, língua - como carregados de "funções políticas". O "poder simbólico"
é capaz de crer e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo,
a ação sobre o mundo, o próprio mundo. Entretanto, mesmo ele entrevê uma
brecha, ao afirmar que existe um campo de combate, de luta simbólica entre
as diferentes classes e frações de classes - termos que ele mesmo adota em sua
obra. Transpondo essas idéias para o conteúdo simbólico do livro, poderíamos
imaginar que diferentes interpretações sobre um determinado conteúdo
resultariam num debate construtivo e no surgimento, quem sabe - a partir de
leituras tão díspares -, de algo novo. Mas o cerceamento ocorre no fim de todo
o combate, porque há de vencer a classe dominante.
No debate entre Roger Chartier e Pierre Bourdieu impresso nas páginas
de Práticas de leitura, uma coletânea de textos que o próprio Chartier
organizou, vemos claramente como cada um entende o poder do livro numa
sociedade determinada. Para Bourdieu, "por meio de um livro pode-se
transformar a visão do mundo social". Para o pesquisador da biblioteca azul,
"isto não seria supor igualmente que o livro tem uma eficácia total, imediata",
negando, portanto, o espaço próprio da leitura? O debate certamente não
termina neste ponto. Há situações obscuras. O que dizer, por exemplo, do
livro didático? Seria errado supor que nas salas de aula eles deveriam oferecer
uma base mínima no encontro de cada aluno? Como promover o aprendizado
se cada um fizesse a sua interpretação de maneira individualizada? Não
veríamos surgir discrepâncias radicais? E o que dizer de experiências nas
quais se busca a imposição de significações, como os regimes autoritários, por
exemplo?
Umberto Eco, que se tornou popular entre nós com O nome da rosa, faz uma
reflexão aprofundada do tema em Leitura do texto literário. Mostra como
funcionam os sememas, que ele define como "instrução orientada para o
texto", para então descobrir, a partir de uma criteriosa crítica textual, os
lugares onde ocorrem as brechas capazes de suscitar as diferentes
interpretações. E ele demonstra isso a partir de conceitos como co-texto, que
seria o conteúdo de possibilidades que lhe é próprio. Há palavras, como
"pescador", que - segundo ele - trazem um "programa narrativo" potencial.
Mas há outras - como "todavia" - que já não o possuem. Nos estudos de
Robert Darnton, vemos que Rousseau escreveu como gostaria de ser lido. Em
sua obra, mais especificamente a Nouvelle Heloise, ele relaciona leitura e
ação: quer que suas palavras transformem as pessoas. Eco, citando a
publicidade, lembra do quanto os profissionais da área se esforçam para
selecionar um target, um alvo. Mas, fora do contexto e das situações muito
bem traçadas pelos estrategistas, a subversão do conteúdo certamente irá
ocorrer.
Certo é que, ao terminar de ler essas linhas, o leitor terá elaborado suas
próprias idéias sobre o que nos parece ser a única interpretação possível de um
texto que tem como argumento central a defesa de um conceito de livro que se
expande ao reivindicar, para a sua confecção final, a parceria entre o autor e o
leitor. Ao ressaltar a proximidade da emissão e da recepção de uma obra. Que
esteja aberto ao debate algo que, afinal, já não nos pertence.
Priscila Leal Melo é jornalista, redatora da Agência Jornal do Brasil, mestranda em
História antiga e medieval pela UFF.