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O livro reportagem como extensão da literatura e da história Rosselane Giordani (FAG) [email protected] Resumo: Jornalismo e literatura um diálogo possível? A resposta para essa questão lança mão do desafio que é percorrer um caminho que parece inevitável: traçar paralelos, identificar semelhanças, aproximações e distanciamentos entre estes dois gêneros discursivos. A proposta é investigar a convergência entre jornalismo e literatura, suas confluências, bem como os efeitos discursivos produzidos na memória coletiva acerca das histórias narradas no livro- reportagem/biografia jornalística - Getúlio. Do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945), do jornalista Lira Neto. O caminho metodológico será percorrido a partir das noções acerca do Novo Jornalismo e seus elementos essenciais que se manifestam na biografia jornalística, aqui também entendida com um livro-reportagem. Para contemplar as inquietações que se avolumaram, é necessário trabalhar na busca bibliográfica em três grandes campos: literatura, jornalismo e história. O objetivo deste estudo foi traçar alguns paralelos entre as técnicas que permeiam o fazer histórico e também o do jornalismo, que em alguma medida também produz por meio do seu discurso uma narrativa histórica. A biografia em análise traz elementos que podem ser vistos como indícios na confluência dos fazeres discursivos e ao mesmo tempo traz a tona uma narrativa permeada por estratégias próximas a narrativa literária. Palavras chave: jornalismo literário; livro-reportagem; literatura; memória; história Abstract: Journalism and literature a possible dialogue? The answer to this question lays claim to the challenge that will be to walk a path that seems inevitable: to draw parallels, to identify similarities, approximations and distances between these two discursive genres. The proposal is to investigate the convergence between journalism and literature, its confluences, as well as the discursive effects produced in the collective memory about the stories narrated in the book / journalistic biography - Getúlio. From the Provisional Government to the dictatorship of the New State (1930-1945), by the journalist Lira Neto. The methodological path will be traced from the notions about the New Journalism and its essential elements that are manifested in the journalistic biography, here also understood as article-book. In order to contemplate the anxieties that have arisen, it is necessary to work on the bibliographical search in three great fields: literature, journalism and history. The purpose of this study was to describe some parallels between the techniques that permeate the historical and the journalism making and also that of journalism, which to some extent also produces through its discourse a historical make. The biography in analysis brings elements that can be seen as clues in the confluence of the discursive actions and at the same time brings to the fore a narrative permeated by strategies close to the literary narrative. Keywords: literary journalism; book-report; literature; memory; history.

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O livro – reportagem como extensão da literatura e da história

Rosselane Giordani (FAG)

[email protected]

Resumo: Jornalismo e literatura um diálogo possível? A resposta para essa questão lança mão

do desafio que é percorrer um caminho que parece inevitável: traçar paralelos, identificar

semelhanças, aproximações e distanciamentos entre estes dois gêneros discursivos. A proposta

é investigar a convergência entre jornalismo e literatura, suas confluências, bem como os

efeitos discursivos produzidos na memória coletiva acerca das histórias narradas no livro-

reportagem/biografia jornalística - Getúlio. Do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo

(1930-1945), do jornalista Lira Neto. O caminho metodológico será percorrido a partir das

noções acerca do Novo Jornalismo e seus elementos essenciais que se manifestam na biografia

jornalística, aqui também entendida com um livro-reportagem. Para contemplar as inquietações

que se avolumaram, é necessário trabalhar na busca bibliográfica em três grandes campos:

literatura, jornalismo e história. O objetivo deste estudo foi traçar alguns paralelos entre as

técnicas que permeiam o fazer histórico e também o do jornalismo, que em alguma medida

também produz por meio do seu discurso uma narrativa histórica. A biografia em análise traz

elementos que podem ser vistos como indícios na confluência dos fazeres discursivos e ao

mesmo tempo traz a tona uma narrativa permeada por estratégias próximas a narrativa literária.

Palavras chave: jornalismo literário; livro-reportagem; literatura; memória; história

Abstract: Journalism and literature a possible dialogue? The answer to this question lays claim

to the challenge that will be to walk a path that seems inevitable: to draw parallels, to identify

similarities, approximations and distances between these two discursive genres. The proposal

is to investigate the convergence between journalism and literature, its confluences, as well as

the discursive effects produced in the collective memory about the stories narrated in the book

/ journalistic biography - Getúlio. From the Provisional Government to the dictatorship of the

New State (1930-1945), by the journalist Lira Neto. The methodological path will be traced

from the notions about the New Journalism and its essential elements that are manifested in the

journalistic biography, here also understood as article-book. In order to contemplate the

anxieties that have arisen, it is necessary to work on the bibliographical search in three great

fields: literature, journalism and history. The purpose of this study was to describe some

parallels between the techniques that permeate the historical and the journalism making and

also that of journalism, which to some extent also produces through its discourse a historical

make. The biography in analysis brings elements that can be seen as clues in the confluence of

the discursive actions and at the same time brings to the fore a narrative permeated by strategies

close to the literary narrative.

Keywords: literary journalism; book-report; literature; memory; history.

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Introdução

O diálogo entre história, literatura e jornalismo entendidos neste estudo como campos1 de

saber discursivos entrelaça não somente modos e formas de compreensão do mundo em uma

dinâmica de transversalidade de saberes, mas conecta especialmente um esforço teórico para

compreender os limites e as fronteiras de seus territórios. Desse modo, para investigar as

convergências possíveis entre eles e perceber contornos que levam a confluência de suas

narrativas, é necessário anteriormente problematizarmos a partir de que noção de história

estaremos ancorando nossas discussões, a partir de que noção de literatura e jornalismo

referenciaremos a trama dessa análise.

Compreende-se, então, que história, literatura e jornalismo ancoram-se em um elemento

comum: a narrativa, compreendida como uma das bases de legitimação enquanto saberes,

formas de conhecimento e apreensão do mundo. Narrativa aqui entendida como uma produção

cultural, como “uma resposta diante do caos”, um modo de dar sentido à relação social,

conforme Medina.

Uma definição simples de narrativa é aquela que a compreende como uma

das respostas humanas diante do caos. Dotado da capacidade de produzir

sentidos, ao narrar o mundo, o sapiens organiza o caos em um cosmos. (...)

Sem essa produção cultural – narrativa – o humano ser não se expressa, não

se afirma perante a desorganização e as inviabilidades da vida. Mais do que

talento de alguns, narrar é uma necessidade vital (MEDINA, 2006, p.67).

As narrativas são, então, construções discursivas sobre a realidade humana. O mundo passa

a existir na medida em que as pessoas falam, descrevem, relatam e discutem sobre ele, na

medida em que organizam representações mentais sobre ele, conforme Motta (2007). A partir

dessa perspectiva é possível afirmar que a narrativa é produto daquele que narra e que está

atribuindo sentido ao caos por meio de sua organização em forma de discurso. Deste modo, a

narrativa enquanto discurso está submetida às inferências do narrador, do seu contexto sócio-

histórico. Ou seja, a narrativa traduz um olhar sob o tempo, uma trama enredada que forma o

“tecido da história”. Perspectiva essa adotada por Paul Veyne (2008) que defende que a história

1 O conceito de campo que é utilizado nesse texto advém, estruturalmente, da definição de Pierre Bourdieu (1983,

p. 122) de campo científico, entendendo-o como o lugar, o espaço de jogo de uma disputa pela autoridade

científica, definida como uma capacidade técnica e poder social; ou pela competência científica, compreendida

enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente.

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passaria pela armação de uma intriga. “Os fatos não existem isoladamente, no sentido de que

o tecido da história é o que chamaremos uma intriga, uma mistura muito humana e muito pouco

“científica” de causas materiais de fins e de acasos; numa palavra, uma fatia de vida, que o

historiador recorta a seu bel-prazer (Ibidem, p.48).

Ao pensar a história em tais termos, Veyne aponta a responsabilidade do historiador como

sendo aquele que tece a intriga na escolha daquilo que deve figurar como parte do enredo, e

isto contra todas e quaisquer pretensões “positivistas” de que toda a história já esteja contada

nas fontes. De acordo com o autor, a história é uma narrativa de eventos, constatação que, para

ele, define todas as outras produções do fazer histórico. Partindo dessa noção, ele não hesita

em estabelecer relação próxima entre o texto na história e também a produção textual na

literatura. Veyne vai dizer também que como o romance, a história seleciona, simplifica,

organiza, faz com que um século caiba numa página (VEYNE, 1982, p. 11-12). Seu argumento

está apoiado na constatação de que a investigação na história, portanto o trabalho do

historiador, não se dá de forma integral, com a apuração profunda no local dos acontecimentos,

mas “sempre incompleta, por documentos ou testemunhos, ou seja, por indícios, os mesmos

que revelam escolhas, olhares, narrativas. Do mesmo modo, o exercício narrativo do jornalismo

ao produzir seu discurso também seleciona, organiza e recorta fatos/acontecimentos fazendo

com que histórias ‘caibam’ em páginas de jornais. Essas narrativas da vida cotidiana no viés

do jornalismo, também se tornam registros históricos que vão compor a percepção de realidade

de uma determinada época.

História e literatura: fronteiras invisíveis

Partir do princípio de que a história também se constitui e se organiza como uma narrativa

nos leva a observar que nela há a presença de um narrador, que media aquilo que viu ou ouviu

falar e por sua vez irá contar a terceiros, produzir representações. Essa voz narrativa organiza

o acontecimento, apresenta os personagens, conferindo-lhe uma lógica que se desdobrará em

um ‘efeito de real’ ou de representação daquilo que aconteceu. Nesse movimento de mediação

a história transita nos limites de uma ficção controlada. “Porque a história aspira a ter, em sua

relação de representância com o real, um nível de verdade possível. Se não mais aquela verdade

inquestionável, única e duradoura, um regime de verdade que se apoie num desejável e íntimo

nível de aproximação com o real (PESAVENTO, 1999, p.820).

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O diálogo entre a literatura e a história está posto num processo que dilui fronteiras, ao passo

que o texto histórico comporta a ficção tendo em vista sua acepção de escolha, recorte e

ordenamento de modo a dar sentido. Estas atividades estão intrinsicamente ligadas à

capacidade de imaginação que se move para a recriação e construção de um passado, de modo

a representá-lo. Nesse processo de ‘ficção controlada’, como bem denomina Pesavento (1999),

o discurso histórico recria a partir dos vestígios do passado, conferindo-lhe o status de

acontecido. Esse esforço de ‘produzir um discurso de verdade’ que é exterior ao já acontecido

tomamos como a produção de um ‘efeito de real’. Ao analisar obras históricas como de

Capistrano de Abreu e do romancista José de Alencar ela vai dizer que o primeiro comporta

aquilo que ela denomina de ‘ficção controlada’, ao mesmo tempo que a obra Iracema de

Alencar, de ficção literária, aproximou-se do real ao cercar-se de estratégias documentais de

veracidade, e assim diluindo as fronteiras entre a história e literatura.

O historiador Carlo Ginzburg (1989) vai afirmar que o ofício do historiador é constituído

pela busca incessante de provas, indícios e sinais, enfim, das pistas, por mais microscópicas

que estas sejam. Por outro lado Sevcenko (1999) diz que a literatura é um produto do desejo,

seu compromisso maior é mais com a fantasia do que com a realidade. Observando-se a partir

dessa lógica de distanciamento entre história e literatura Rocha (2011) rejeita a insinuação de

que o historiador seja ficcionista constrangido, já que tal insinuação representaria, na

perspectiva do autor, uma precipitação semelhante à crença positivista na relação fiel dos fatos,

o que seria a mesma ingenuidade, ainda que em direção oposta. Para Rocha, a diferença entre

história e literatura está na forma como cada área desnuda suas ficcionalidades. “O pacto

ficcional proposto pelo romancista, e aceito pelo leitor, tem como base a aceitação da

verossimilhança interna à obra, em lugar da imposição de uma coerência externa a ela,

teoricamente submissa ao que se pôde reconstruir de um momento histórico determinado”

(ROCHA, 2011, p. 13). A partir desses intercâmbios possíveis entre os territórios da literatura

e da história partimos então para a encruzilhada onde estes se encontram também com o

Jornalismo.

Jornalismo e história: diálogos possíveis

O discurso jornalístico constitui-se numa colagem de vozes e sentidos que contornam os

fenômenos e relações do cotidiano, e configuram uma compreensão das situações tematizadas.

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Não é uma compreensão qualquer mas uma forma singular de produção do conhecimento

humano, e isso implica sempre num recorte temático que redesenha o mundo social, a partir de

um determinado enfoque e abordagem desses eventos. O jornalismo transporta uma concepção

do mundo, uma compreensão dos fenômenos e relações pautados pelos media. Nessa

perspectiva, os acontecimentos não possuem significações unívocas “em si”: são as narrativas

sobre eles, tanto as formuladas pelos sujeitos históricos quanto as elaboradas pelos

historiadores e jornalistas, que dão origem às múltiplas interpretações a respeito dos eventos.

A matéria do jornalismo seria então a própria vida, como substância plausível e

demonstrável, parte do cotidiano e das microhistórias das sociedades humanas, seguindo nessa

perspectiva volta-se o olhar para universos particulares, ou melhor, para a ‘história vista de

baixo’ como defende Peter Burke (1992) na perspectiva da Nova História. Esse movimento

não valoriza a história total, mas a história dos pequenos acontecimentos, localidades, aspectos

inicialmente tratados como periféricos, como a história da leitura, história da feminilidade,

história do corpo, a história interessada em toda atividade humana. Se encararmos isso como

um novo objeto para a ciência da história e, por sua vez, o estabelecimento de outras narrativas,

encontramos também no jornalismo exemplares de textos que não deixam de estabelecer

conexões com um discurso histórico, mas que toma como objeto de sua narrativa histórias do

ponto de vista dos personagens, dos atores sociais.

No Brasil, por exemplo, o texto exemplar disso e que inaugurou uma tradição de

microrelatos é a obra “Alma encantadora das ruas”, de João do Rio, pseudônimo do jornalista

Paulo Barreto. Ele opta por mostrar o lado pequeno das transformações que a cidade do Rio de

Janeiro vivenciou com o advento de uma reforma urbana, fruto da República recém-instalada

no país. João do Rio faz um mosaico de cenas em terreiros de candomblé, cortiços, zonas de

prostituição, mesas de espiritismo. Esse jornalista-escritor expoente nos anos de 1920 colocou

em evidência o encontro entre jornalismo, história e literatura. Sua obra compõe o mais

importante registro do contexto das transformações do início do século XX no Brasil.

Burke defende, por exemplo, que uma boa contribuição que a literatura pode dar para a

história são narrativas que valorizam vários pontos de vista. É o que faz o jornalista americano

John Hersey, no livro “Hiroshima”, que relata a partir do ponto de vista de seis personagens

diferentes a tragédia da bomba atômica que arrasou a cidade e matou milhares de pessoas.

Hiroshima é uma espécie de Cidadão Kane do jornalismo. Como o filme de Orson Welles, esse

texto lidera todas as listas de "melhor reportagem" já escrita. A reportagem que se tornou livro

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é um dos mais importantes relatos históricos sobre a tragédia que destruiu a cidade, e a vida de

milhares de pessoas no pós-guerra no Oriente. Esse é outro exemplo onde se cruzam

jornalismo, história e porque não dizer literatura, quando o jornalista se apropria da linguagem

literária e constrói uma narrativa que podemos nominar de literatura de fatos, de

acontecimentos reais, construída a partir da metodologia de apuração e investigação jornalística

para reportar a história do acontecido.

O encontro com a literatura

Na tentativa de compreender os limites fronteiriços, assim como os hibridismos discursivos

inerentes à literatura e jornalismo observa-se que a linha que contorna esses espaços nem

sempre foi tão definida. Em alguns momentos, jornalismo e literatura deixam de ser gêneros –

ou campos – estanques para ocupar um espaço que seria do outro, produzindo uma mescla de

gêneros. No caso específico da relação entre o discurso jornalístico e o discurso literário, é o

que Resende (2002) chama de encontro das águas, ou seja, uma construção textual capaz de

unir a ficção e a fantasia da literatura, com a objetividade informativa e a factualidade do

jornalismo.

Rapidamente retomamos aqui, sem a pretensão de esgotar o assunto, aspectos históricos que

compõem esse ‘encontro das águas’. A reflexão sobre as aproximações entre jornalismo e

literatura começa no início da era moderna, a partir do século XVI. Tanto o jornalismo quanto

a literatura moderna surgiram como parte do discurso da modernidade e da multiplicidade. A

ascensão da burguesia e a valorização do indivíduo na era moderna levaram à necessidade de

representação desse grupo múltiplo e crescente de leitores. A aproximação entre literatura e

imprensa fortaleceu-se devido, principalmente, aos avanços tecnológicos ocorridos em meados

do século XIX e dos episódios político culturais deles decorrentes. A segunda Revolução

Industrial na Europa representou uma grande evolução, a qual propiciou o lançamento do jornal

diário, da publicidade e, em seguida, da venda do periódico por assinaturas. Com o objetivo de

popularizar a literatura romances-folhetins começaram a ser publicados em jornais nesse

período. Escritores sobreviviam do jornalismo enquanto desenvolviam suas obras. Os livros,

originalmente muito caros, tiveram seus preços barateados, à medida que a revolução industrial

aperfeiçoava as máquinas e as tiragens aumentavam. O folhetim torna-se gênero referencial

para as mais diferentes camadas da população, sobretudo devido ao desenvolvimento de novas

técnicas narrativas e emprego de novos temas por parte dos autores.

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No século XIX, literatura e jornalismo vão ser indissociáveis. Os maiores escritores da

literatura universal passaram pela imprensa, não só como jornalistas, mas como cronistas,

escritores de folhetins e romancistas. Este período que vai de 1830 ao final do século pode ser

qualificado como de Jornalismo Literário e se caracterizou pela presença maciça de escritores

nos jornais, que melhoraram a qualidade do texto, produzindo um tipo de informação mais sutil

sobre a sociedade.

A popularização da literatura e do jornalismo alastrou-se rapidamente pelo continente

europeu. A febre do jornalismo literário não tardou a chegar no Brasil. A literatura e a imprensa

no Brasil confundem-se até os primeiros anos do século XX. Muitos jornais abrem espaço para

a arte literária, produzindo seus folhetins, publicando suplementos literários e, assim,

transformando os veículos jornalísticos em indústria periodizadora da literatura da época.

Muitos escritores trabalharam como jornalistas: Machado de Assis foi aprendiz de tipógrafo e

revisor de jornal; Manoel Antonio de Almeida escreveu no Correio Mercantil até 1850;

Gonçalves Dias escreveu para a Revista Popular; Joaquim Manoel de Macedo, na Revista

Popular; Olavo Bilac e Medeiros de Albuquerque, na Gazeta de Notícias e O País, em 1906 e

1907. Ciro Marcondes Filho (2000) considera esse período, compreendido entre 1789 e a

metade do século XIX, “primeiro jornalismo”, época de ebulição de um jornalismo

denominado político-literário.

Após a Segunda Guerra Mundial, a postura dos intelectuais e escritores muda. Os escritores

passam a discutir os problemas do país e tentar, via uma ficção participante, acelerar a

revolução, garantia de uma vida melhor para todos. É o realismo social que irá impulsionar

sobremaneira o jornalismo literário e contribuir para o livro-reportagem moderno. A literatura

brasileira dos anos 1960/70 foi marcada pelos romances-reportagem e por textos

memorialistas, com o mesmo objetivo de registrar a história imediata ou imediatamente

anterior. Nesse período o jornalismo brasileiro foi influenciado pelo New Jornalism dos

jornalistas norte-americanos, que quebraram as técnicas da pirâmide invertida2 e introduziram

um outro tipo de texto noticioso nos jornais e revistas do país. O New Jornalism quebrou a

barreira entre o texto jornalístico e o literário. Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote,

2 Segundo a técnica jornalística para se produzir um texto de uma notícia é preciso estruturá-la no modelo da

Pirâmide Invertida, que inicia com o lead(primeiro parágrafo) e responde a seis perguntas básicas: que, quem,

quando, como, onde e porque, o famoso lead (3Q+COP). Com essa estrutura não se narra a história de modo

cronológico dos acontecimentos. Isso não significa narrar o acontecido de trás para frente, e sim começar a contar

a história indo direto a que conseqüências algo levou, primando pelo princípio jornalístico da objetividade.

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Norman Mailer, John Hersey são alguns dos principais jornalistas do período. Entre as

principais características desse estilo estão: a descrição, a busca pela subjetividade dos

personagens, a exploração de recursos de pontuação, construção cena a cena, uso de diálogos,

narração em 3ª pessoa e registro de gestos e hábitos, além de uso de metáforas, figuras de

retórica e o uso da exposição.

Esse movimento nascido nos anos 60 nos EUA influenciou gerações de jornalistas e

reverberou inclusive no Brasil com produções que mesclam as técnicas literárias e se colocam

como narrativas que esboçam, em certa medida, um olhar histórico sobre pessoas e

acontecimentos. Nessa perspectiva surgiram os livros reportagens3 e as biografias jornalísticas,

como gêneros híbridos que materializam uma ‘outra’ narrativa histórica sobre determinados

fatos e vida de pessoas públicas. Importante aqui destacar que compreendemos a biografia

como um subgênero do livro-reportagem, por compreender que não somente histórias

biográficas podem ser objetos de narrativas em livros-reportagens.

A biografia jornalística em foco

Como corpus desse estudo foi selecionado o 2º volume da trilogia lançada pelo

jornalista Lira Neto - Getúlio: do governo provisório à ditadura do Estado Novo (1930 – 1945).

Conforme Lira Neto (2012) a trilogia está divida por períodos para atender a uma questão de

ordem estritamente didática e de contingência editorial. O primeiro volume abrange desde o

nascimento e seus antecedentes familiares até a sua chegada ao poder em 1930. O segundo

livro, objeto deste estudo, aborda os quinze anos subsequentes até 1945, cobrindo o primeiro

período da Era Vargas, com destaque para a ditadura do Estado Novo. O terceiro e último

volume consiste no “exílio” de Getúlio em São Borja, após sua derrubada pelos militares e a

volta à presidência pelo voto popular, chegando ao trágico desfecho de agosto de 1954.

Passemos agora a olhar para o gênero jornalístico em questão nesse estudo: a biografia4,

que vêm tornando-se popular entre o grande público e vista como fenômenos editorias. Mas a

questão que se coloca é que o enigma que muitos historiadores e jornalistas aceitaram resolver

3 Considera-se um livro-reportagem quando uma obra trata de acontecimentos ou de fenômenos reais e utiliza,

para sua produção, procedimentos metodológicos inerentes ao campo do jornalismo, sem, contudo, descartar certa

nuances literárias. 4Partimos da noção proposta por Vilas Boas (2002) que afirma que biografia significa basicamente a arte de

escrever vidas. Em rigor é a compilação de uma (ou várias) vida(s).

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é tentar dar conta da realidade a partir do individual, entendendo a biografia como um gênero

híbrido, uma mescla de ficção e realidade, que produz uma narrativa histórica. Pertinente ainda

assinalar que as biografias acabaram igualmente transformadas com o surgimento de novas

técnicas editoriais que ganharam ênfase pela ascensão do New Jornalism, movimento

revolucionário ocorrido nos Estados Unidos da década de 1960. As biografias começaram a

utilizar elementos literários em seus textos, o que pode ser definido como a aplicação das

técnicas ficcionais a textos de não ficção.

No universo do jornalismo, o jornalista coloca na escrita biográfica as características de

seu ofício que leva em consideração premissas como a investigação/apuração de informações

que irão estruturar seu texto, tendo como elemento estruturante de sua narrativa o universo do

real, do fato, do acontecido. Esse profissional se torna multifacetado, conectando a biografia

com diversas áreas, tornando-se um pouco historiador, romancista e escritor. Para o jornalista

biógrafo, a biografia é um produto de harmonia e discórdia entre a ficção e a realidade e “a

subjetividade do relato e o como dizer esta narrativa se interpõem como imbricações

conflitantes, como na historiografia.” (VIEIRA, 2011, p. 32).

Passemos então para um rápido resumo do corpus desse estudo. A biografia jornalística

analisada reporta um dos momentos históricos e períodos mais estudados e conhecidos da vida

do ex-presidente Getúlio Vargas, começando a partir do êxito do golpe de estado que derrubou

Washington Luís quando o então governador do Rio Grande do Sul assume o governo e se

encerra em 1945, quando é enxotado do poder, após 15 anos na presidência. Como fazer caber

em 500 páginas um período tão rico e dinâmico, eis o desafio para o autor que construiu uma

narrativa vigorosa e recheada de elementos históricos. Na obra é possível encontrar um relato

em pormenores do período de vida mais conhecido e público de Getúlio Vargas. As duas

principais fontes de pesquisa, o diário de Vargas e o relato dos jornais ajudam a construir uma

compreensão do pensamento e o modus operandi do biografado. No posfácio do livro, Lira

Neto relata que o maior desafio para escrever o segundo volume da trilogia foi sintetizar o

grande volume de informações a respeito do intervalo de tempo entre a posse de Getúlio no

Catete e a sua derrubada, por meio de um golpe de Estado em 1945.

É talvez, um dos períodos históricos mais estudados da história brasileira, por

envolver uma série de episódios específicos e, cada um deles, por si só, já

contemplados por uma bibliografia exaustiva e consolidada: a revolta paulista

de 32, o levante comunista de 35, o golpe getulista de 37, o putsch integralista

de 38 e a ditadura do Estado Novo, que sobreviveu até 45. Em nenhum

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momento ousei reescrever ou reinterpretar tais acontecimentos, empreitada

que fugiria ao limite de minha competência e ao escopo original deste livro.

Meu propósito, como biógrafo, foi articular o vasto pano de fundo com

aspectos da vida privada do biografado, sobrepondo cotidiano e contexto

histórico, para tentar compreender de que forma essas duas dimensões

interagiram e sofreram influência mútuas (LIRA NETO, 2013, p.493).

No período abraçado por esse volume, o Brasil viveu sua mais profunda transformação

em meio a uma turbulência de inúmeras crises políticas. Foi o período em que o país deixou de

ser um país meramente agrícola exportador basicamente de café e borracha para começar seu

processo de industrialização, principalmente com a siderurgia, quase que uma obsessão de

Getúlio, com bem descreve o livro. Assim como é bastante minucioso descrevendo a revolução

constitucionalista paulista de 1932, a intentona comunista de 1935, o putsh integralista de 1938

e implantação do Estado Novo. Para mergulhar nesse universo o autor percorreu dois conjuntos

de fontes, o primeiro o acervo pessoal de Getúlio, preservado e catalogado pelo Centro de

Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas,

e o segundo núcleo de pesquisa foram os 13 volumes de diários do biografado. Os arquivos do

CPDOC compreendem mais de 4 mil documentos manuscritos e audiovisuais ou impressos, já

o os diários de Getúlio quando foram publicados em livros somam mais de 1200 páginas.

A pesquisa atravessou os documentos oficiais, os diários pessoais do biografado, e

também pelo menos algumas dezenas de livros e pesquisas que tiveram este período histórico

como objeto de estudo. Para construir uma narrativa jornalística-literária Lira Neto não

prescindiu do rigor na apuração das informações e da premissa profissional de se reportar aos

fatos tendo como horizonte a necessidade de reportar algo acontecido, do universo do real, da

história.

O autor se utiliza por inúmeras vezes ao longo da biografia da citação literal de trechos

do diário de Getúlio, reafirmando nesses momentos seu compromisso em retratar fatos

fidedignos e por sua vez componentes de uma narrativa histórica sobre momentos da história

do Brasil. A narrativa histórica, presente na obra Lira Neto, esboça, por exemplo, como a

revolução constitucionalista paulista de 1932 se deu, e de que forma Getúlio lidou com a

situação.

Em dezembro de 1931, sob forte pressão da opinião pública, pedira ao

ministro da Justiça que acelerasse a elaboração de um esboço de legislação

eleitoral, com o qual pretendia aplacar as críticas dos que o acusavam de

querer perpetuar no poder de governar o país ao arrepio das tradições

constitucionais... o movimento popular organizado por ligas pró-constituinte

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em todo Brasil vinha concentrando multidões em praças públicas, exigindo a

redemocratização (Ibidem, 2013, p.27).

Sob este episódio o autor ampara-se em relatos publicados em jornais da época como o

Folha da Manhã, que registrou o fato em notícias e fotografias que exibiam o mar de gente

ocupando a Praça da Sé manifestando-se a favor da redemocratização. Na biografia, o autor

narra que o texto do novo código eleitoral encomendado por Getúlio ficou pronto e foi assinado

exatamente no dia 24 daquele ano, não por coincidência a data exata do 41º aniversário da

primeira Constituição republicana brasileira, a de 1891. “Pela primeira vez na história do país

se previa o voto secreto, a participação das mulheres nas urnas e a organização de uma Justiça

Eleitoral (Ibidem, p.27)”.

Os pronunciamentos de Getúlio aos jornais da época também são artifícios recorrentes

usados pelo autor mesclando ora narrativa histórica ora reprodução de discurso do biografado

reproduzido a partir dos seus diários pessoais ou de declarações publicadas na imprensa da

época. No recorte temporal no qual houve as discussões em torno do estabelecimento de uma

Assembleia Nacional Constituinte, Lira Neto narra:

Naquela tarde, discursando do Palácio Tiradentes, as ondas curtas se

encarregaram de remeter a mensagem de Getúlio para longe, aos rincões de

norte a sul do Brasil. O discurso trazia uma boa nova. O Tiradentes, em breve,

voltaria a funcionar. O país teria eleições para uma Assembleia Nacional

Constituinte (Ibidem, p. 625).

Logo em seguida na narrativa, o autor intercala trecho do discurso de Getúlio Vargas

no qual ele faz um elogio ao regime de exceção. Discurso este que foi criticado por editorial

do jornal Folha da Manhã, que o nominou como uma “encenação”, e que havia atraso no

anúncio da medida. No discurso de Getúlio segue:

O período ditatorial tem sido útil, permitindo a realização de certas medidas

salvadoras, de difícil ou tardia execução dentro da órbita legal. A maior parte

das reformas iniciadas e concluídas não poderia ser feita em um regime em

que predominasse o interesse das conveniências políticas e das injunções

partidárias... mas nunca me pretendi me manter indefinidamente no exercício

dos poderes discricionários que a Revolução me delegou. Dentro de um ano,

poderão finalmente realizar-se as eleições (Ibidem, p. 62).

5 Lira Neto referencia, por meio de nota no fim do livro, este episódio baseado em publicação do jornal Correio

da Manhã, 15 de maio de 1932.

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Na sequência da narrativa, Lira Neto contextualiza que mesmo com a fixação do

calendário eleitoral isto não fora o bastante para conter a onda de protestos que tomava conta

da capital paulista. E alterna com uma fala de Getúlio para ratificar o contexto histórico

inflamado que o país passava. “A revolução ainda não terminou”, dizia Getúlio (Ibidem, p.63).

Na página 98 o autor registra o início da revolução constitucionalista em São Paulo:

Rebentou em São Paulo um movimento armado contra o governo. Várias

guarnições estão sublevadas... dizem-se constitucionalistas. Mas isso é

pretexto. Há mais de um mês nomeei a comissão para elaborar o anteprojeto

da nova Constituição (Ibidem, p.986).

E narrativa segue registrando outro importante momento no qual pela primeira vez

Getúlio expressa a vontade suicida diante da possível derrocada. “Naquele 10 de julho de 1932,

imaginando que um grupo de militares estava prestes a enxotá-lo do poder, condenando-o

possivelmente ao eterno vexame e à permanente infâmia, Getúlio escreveu um inequívoco

bilhete de suicida (Ibidem, 105).

Na sequencia o narrador traz o discurso reproduzido do bilhete de Getúlio:

Meus intuitos, no exercício do governo, foram os mais nobres e elevados.

Procurei sempre inspirar-me nos interesses da pátria. Entreguei as posições

aos que se rebelaram contra mim e fui vencido pela traição, pela deslealdade,

pela felonia. Reservara para mim o direito de morrer como soldado,

combatendo pela causa que abraçara. A ignomínia duma revolução branca

não m’o permitiu. Escolho a única solução digna para não cair em desonra,

nem sair pelo ridículo (Ibidem, p.1057).

Estes trechos da biografia nos reportam as relações convergentes entre literatura,

jornalismo e história. Pois a narrativa da biografia jornalística sobre Getúlio Vargas dispõe uma

sequencia de eventos que ocorrem num tempo e espaço determinado com a participação de

personagens, e esta prática recai tanto sobre a prática literária quanto à jornalística.

Nos excertos retirados da obra é possível afirmar que a narrativa biográfica prioriza

uma perspectiva historiográfica para referendar a percepção de realidade dos fatos narrados,

ou seja, a história do biografado se confunde com a história oficial do Brasil. A perspectiva de

se narrar a história individual do biografado e desse modo singularizar o olhar sobre esse

6 Lira Neto referencia, por meio de nota, este episódio baseado na obra Getúlio Vargas, meu pai, de Alzira Vargas.

O livro de memórias narra a vida do político gaúcho, entre 1923 até 1937, por sua filha e principal confidente e

foi publicado originalmente em 1960. 7 Bilhete escrito por Getúlio Vargas, 10 de julho de 1932. Arquivo CPDOC-FGV. Documento GV C 1932.07.10/7.

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momento histórico ora se confunde com a linha mestre da biografia que não perde de vista a

narrativa histórica maior. Entretanto, as memórias que são reconstruídas na biografia a partir,

principalmente de trechos do diário de Getúlio, vão remontar as percepções individuais, e por

sua vez, particulares sobre os acontecimentos narrados. Deste modo, há a presença de dois

aspectos que conectam a biografia ao campo da história e da memória: a presença de

documentos considerados históricos, como base da narrativa, como também o uso referencial

dos Diários de Getúlio para reconstruir uma memória individual.

A biografia sobre Getúlio comunga da história essencialmente no tocante ao viés

memorialístico, e propõe uma metamorfose entre a história, o factual e o ficcional.

Na obra também é possível perceber o uso de técnica norteadoras dos praticantes do

New Jornalism como a construção cena-a-cena. Na construção cena a cena temos o relato

detalhado do acontecimento, o que Lima (1995) chama de cena presentificada da ação. Esse

detalhamento pode ser visto no seguinte trecho de Getúlio:

A batalha na ponte do rio Eleutério, na divisa de Minas com São Paulo, foi

palco do mais violento de todos os confrontos que o destacamento são-

borjense enfrentou ao longo da campanha. Em 26 de agosto, cercado pelos

paulistas, os homens “do catorze-de-pé-no-chão” foram surpreendidos em

inferioridade numérica e, por isso, receberam do comandante, coronel

Galdino Esteves, a ordem para recuar. Bejo Vargas, arrebatado pelo fragor da

luta, insistiu em romper o cerco, com ajuda de Gregório Fortunato. Mesmo

sob forte tiroteio, assistindo a camaradas varados pelas balas caindo mortos

ao chão, Bejo pediu reforços e munição extra, na intenção de seguir adiante

(Ibidem, p.116).

Wolf (1973) destaca a técnica da construção minuciosa como outra característica do

New Jornalism, que consiste em reunir e citar os gestos e hábitos cotidianos, a personalidade,

o comportamento com familiares, crianças, empregados, e vizinhos, além de outros pormenores

que permeiam a vida dos personagens e que servem para delimitar estilo de vida, por exemplo.

Euclides, o motorista oficial do Catete, acionou a buzina quando viu a luz

vermelha do semáforo acesa, no cruzamento da rua Silveira Martins com

Praia do Flamengo. O cadilac presidencial, que desfrutava de preferência no

trânsito do Rio de Janeiro, estava atrasado – e Getúlio, sabia-se, tinha

verdadeira obsessão pela pontualidade. Segundo a filha Alzira, quatro tipos

de gente o tiravam do sério, em ordem crescente de irritabilidade: as que lhe

contavam sempre as mesmas histórias, as muito burras, as demasiadamente

prolixas e, em especial, as que se atrasavam (Ibidem, p.406).

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Tom Wolfe comentava que quando se passa da reportagem para esta nova forma de

jornalismo “[...] descobre-se que a unidade fundamental do trabalho já não é o fato, mas a

cena”. Olhar com minúcia e traduzir isso na narrativa são um exercício que distancia o

jornalista do narrar apressado e cotidiano da prática profissional e o transporta para um

universo mais próximo da literatura.

Considerações finais

O retorno da biografia ao círculo de debates é um movimento internacional e perceptível

em diversas correntes recentes, como, por exemplo, a nova história francesa, o grupo

contemporâneo de historiadores britânicos de inspiração marxista, a microhistória italiana, a

psico-história, a nova história cultural norte-americana, a historiografia alemã recente e

também a historiografia brasileira atual. O fato é que apesar das diferenças entre elas, é

marcante em todas elas o interesse pelo resgate de trajetórias singulares, destacando-se as

biografias.

Este estudo que não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas sim contribuir para a

observação dos caminhos que se cruzam entre jornalismo, literatura e história permite afirmar

que na obra observada é possível perceber o constante uso do recurso jornalístico no uso de

fontes consideradas oficiais para respaldar o seu discurso de narrativa biográfica histórica. O

narrador em terceira pessoa utiliza-se de elementos/documentos históricos para dar

credibilidade e veracidade aos fatos narrados, de modo que asseguram em certa medida um

discurso pautado no real, na história de um personagem histórico. O biógrafo situa-se então na

intersecção do ofício entre jornalista e historiador, e deste modo construindo um gênero

discursivo impuro, hibrido.

A biografia se coloca então na intersecção entre história, jornalismo e literatura,

revelando nesse mosaico o hibridismo de seu gênero. Ela se coloca como um gênero de

fronteira entre a história e a ficção, a realidade e a imaginação. Produto híbrido, o gênero

biográfico se situa na divisa entre a vontade de reproduzir o real e o ficcional, de acordo com

as feições criativas do escritor. Entretanto, vale ressaltar que na biografia jornalística Getúlio,

o autor realizou uma minuciosa pesquisa bibliográfica e documental que se debruçou sob

inúmeros arquivos públicos, eletrônicos, obras consultadas, jornais e revistas e uma centenas

de documentos oficiais consultados. Sua preocupação com os detalhes é notável e transparece

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ao longo do livro, dando um ‘sabor de verdade’ à trama apresentada. Olhando-a como um

gênero fortemente híbrido, na fronteira entre a literatura, a história e o jornalismo, as técnicas

biográficas são usadas como peças de um jogo na trama do texto, de forma a criar um forte

efeito de realidade, que lembra à estética realista, com a pesquisa prévia, a obsessão por

pormenores descritivos, a exatidão de informações. Esse tom de literatura de fatos, pautada em

uma reprodução de realidade abriga o que nas teorias de jornalismo se conceitua como

literatura de realidade.

Olhar para a obra Getúlio e fazer a leitura dos rastros, indícios, traços e sentidos que se

depreendem da narrativa nos leva a compreender que a biografia origina-se e desenvolve-se na

fronteira entre história e literatura. Como também coloca o jornalismo em aproximação com a

reportagem de fôlego que transborda o simples narrar de fatos cotidiano do jornalista como um

‘historiador apressado do presente’ e o transporta para um universo que faz do seu ofício um

processo de construção de uma narrativa de reconstituição, que se constrói no devir da história

de vida do biografado e estabelece uma nova identidade narrativa do personagem e da obra. A

biografia entrelaça os campos da história, literatura e jornalismo, aproximando-os e mesclando

os seus modos de fazer e dizer, reafirmando-se como uma produção discursiva permeada por

fatores estéticos, éticos, que traduzem um olhar sob o mundo, sob a história do biografado.

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