O livro-negro-do-comunismo-crimes-terror-e-repressao

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  • 1. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 2 O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO Crimes, terror e represso JEAN-LOUIS PANN, ANDRZEJ PACZKOWSKI, KAREL BARTOSEK, JEAN-LOUIS MARGOLIN com a colaborao de Remi Kauffer, Pierre Rigoulot, Pascal Fontaine, Yves Santamaria e Sylvain Boulouque Traduo CAIO MEIRA BERTRAND BRASIL Ttulo original: L livre noirdu communisme Obra publicada sob a direo de Charles Ronsac Capa: Raul Fernandes Editorao: Art Line 1999 Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L762 O livro negro do comunismo: crimes, terror e represso / Stphane Courtois... [et ai.]; com a colaborao de Remi Kauffr... [et ai.]; traduo Caio Meira. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 924p., [32] p. de estampas: il. Traduo de: L livre noir du communisme ISBN 85-286-0732-1 1. Comunismo - Histria - Sculo XX. 2. Perseguio poltica. 3. Terrorismo. I. Courtois, Stphane, 1947-. CDD - 320.299-1236 CDU-321. Todos os direitos reservados pela: BCD UNIO DE EDITORAS S.A. Av. Rio Branco, 99 - 20 andar - Centro 20040-004 - Rio de Janeiro - RJ Tel: (OXX21) 263-2082 Fax: (OXX21) 263-6112 No permitida a reproduo total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prvia autorizao por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal. Contracapa e orelha: Outubro de 1917: o golpe de estado bolchevique significou bem mais do que a queda do czarismo e a subida ao poder de um grupo de polticos idealistas. A revoluo liderada por Lenin tornou-se o cone que representaria o comeo de uma nova era para a humanidade, anunciando uma sociedade mais justa e um homem mais consciente de sua relao com seu semelhante. Novembro de 1989: a queda do Muro de Berlim e a conseqente abertura dos arquivos dos pases comunistas apareceram para o mundo como a derrocada final do sonho comunista. O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO traz a pblico o saldo estarrecedor de mais de sete dcadas de histria de regimes comunistas: massacres em larga escala, deportaes de populaes inteiras para regies sem a mnima condio de sobrevivncia, expurgos assassinos liquidando o menor esboo de oposio, fome e misria provocadas que dizimaram indistintamente milhes de pessoas, enfim, a aniquilao de homens, mulheres, crianas, soldados, camponeses, religiosos, presos polticos e todos aqueles que, pelas mais diversas razes, se encontraram no caminho de implantao do que, paradoxalmente, nascera como promessa de redeno e esperana. Os autores, historiadores que permanecem ou estiveram ligados esquerda, no hesitam em usar a palavra genocdio, pois foram cerca de 100 milhes de mortos! Esse nmero assustador ultrapassa amplamente, por exemplo, o nmero de vtimas do nazismo e at mesmo o das duas guerras mundiais somadas. Genocdio, holocausto, portanto, confirmado pelos vrios relatos de sobreviventes e, principalmente, pelas revelaes dos arquivos hoje acessveis. O terror - o Terror Vermelho - foi o principal instrumento utilizado por comunistas tanto para a tomada do poder quanto para a sua manuteno, e tambm por grupos de oposio que jamais chegaram ao governo. Os fatos demonstram: o terrorismo de oposio e o terrorismo de Estado, com freqncia praticados contra o seu prprio povo, so as grandes caractersticas do comunismo no sculo XX.
  • 2. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 3 Obstinados, pragmticos, carismticos, os lderes comunistas, que guiariam o mundo a seu destino inelutvel, tm revelada a sua face sombria: Lenin, Stalin, Mao Zedong, Pol Pot, Ho Chi Minh, Fidel Castro e muitos outros tornam-se os responsveis diretos pelas atrocidades cometidas em nome do ideal comunista. Sob seus olhares zelosos, os "obstculos" - qualquer homem, cidade ou povo - foram sendo exterminados com violncia e brutalidade. O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO no quer justificar nem encontrar causas para tais atrocidades. Tampouco pretende ser mais um captulo na polmica entre esquerda e direita, discutindo fundamentos ou teorias marxistas. Trata-se, sobretudo, de dar nome e voz s vtimas e a seus algozes. Vtimas ocultas por demasiado tempo sob a mquina de propaganda dos PCs espalhados pelo mundo. Algozes muitas vezes festejados e recebidos com toda a pompa pelas democracias ocidentais. Todos que de algum modo tomaram parte na aventura comunista neste sculo esto, doravante, obrigados a rever as suas certezas e convices. Encontra-se, assim, uma das principais virtudes deste livro: luz dos fatos aqui revelados, o Terror Vermelho deve estar presente na conscincia dos que ainda crem num futuro para o comunismo. Como um ideal de emancipao e de fraternidade universal pode ter-se transformado, na manh seguinte ao Outubro de 1917, numa doutrina de onipotncia do Estado, praticando a disseminao sistemtica de grupos inteiros, sociais ou nacionais, recorrendo s deportaes em massa e, com demasiada freqncia, aos massacres gigantescos? O vu da denegao pode enfim ser completamente destrudo. A rejeio do comunismo pela maioria dos povos em questo, a abertura de inmeros arquivos que ainda ontem eram secretos, a multiplicao de testemunhos e contatos trazem o foco para o que amanh ser uma evidncia: os pases comunistas tiveram maior xito no cultivo de arquiplagos de campos de concentrao do que nos do trigo; eles produziram mais cadveres do que bens de consumo. Uma equipe de historiadores e de universitrios assumiu o empreendimento - - em cada um dos continentes e dos pases envolvidos - - de fazer um balano o mais completo possvel dos crimes cometidos sob a bandeira do comunismo: os locais, as datas, os fatos, os carrascos, as vtimas contadas s dezenas de milhes na URSS e na China, e aos milhes em pequenos pases como a Coreia do Norte e o Camboja. 8O ANOS APS O GOLPE DE ESTADO BOLCHEVIQUE, O PRIMEIRO LIVRO DE REFERNCIA SOBRE UMA TRAGDIA DE DIMENSO PLANETRIA. NUMEROSOS TESTEMUNHOS, MAPAS DOS "GULAGS" E DAS DEPORTAES, 32 PGINAS DE FOTOGRAFIAS. Os autores: Pesquisador-chefe do CNRS, o Centro Nacional de Pesquisa Cientfica francs, Stphane Courtois dirige a revista Communisme e co-autor do livro Histoire du parti communiste franais. Professor agrg de histria, pesquisador do CNRS, Nicolas Werth, especialista em URSS, principalmente o autor de uma Histoire de L'Union Sovitique. Jean-Louis Pann o autor da biografia Boris Souvorine. Pesquisador do CNRS, diretor da revista La Nouvelle Alternative, Karel Bartosek o autor de Aveux des Archives. Praga-Paris-Praga. Professor agrg de histria, jean-Louis Margolin matre de confrences da Universidade de Provence. Professor do Instituto de Estudos Polticos de Varsvia, Andrzej Paczkowski membro do Conselho dos Arquivos do Ministrio do Interior. Com a colaborao de Remi Kauffer, Pierre Rigoulot, Pascal Fontaine, Yves Santamaria e Sylvain Boulouque. BERTRAND BRASIL O editor e os autores dedicam este livro memria de Franois Furet, que havia concordado em redigir o seu prefcio. SUMRIO OS CRIMES DO COMUNISMO PRIMEIRA PARTE - UM ESTADO CONTRA O POVO 1. Paradoxos e equvocos de Outubro 2. O brao armado da ditadura do proletariado 3. O Terror Vermelho 4. A guerra suja
  • 3. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 4 5. De Tambov grande fome 6. Da trgua grande virada 7. Coletivizao forada e deskulakizao 8. A grande fome 9. Elementos estranhos sociedade e ciclos repressivos 10. O Grande Terror (1936-1938) 11. O imprio dos campos de concentrao 12. O avesso de uma vitria 13. Apogeu e crise do Gulag 14. O ltimo compl 15. A sada do Stalinismo guisa de concluso SEGUNDA PARTE - REVOLUO MUNDIAL, GUERRA CIVIL E TERROR 1. O Komintern em ao A revoluo na Europa Komintern e guerra civil Ditadura, incriminao dos opositores e represso no interior do Komintern O grande terror atinge o Komintern Terror no interior dos partidos comunistas A caa aos trotskistas Antifascistas e revolucionrios estrangeiros vtimas do terror na URSS Guerra civil e guerra de libertao nacional 2. A sombra do NKVD sobre a Espanha A linha geral dos comunistas Conselheiros e agentes Depois das calnias... as balas na nuca Maio de 1937 e a liquidao do POUM O NKVD em ao Um julgamento de Moscou em Barcelona Dentro das Brigadas Internacionais Exlio e morte na ptria dos proletrios 3. Comunismo e terrorismo TERCEIRA PARTE - A OUTRA EUROPA VTIMA DO COMUNISMO 1. Polnia, a nao inimiga O caso do POW (Organizao Militar Polonesa) e a operao polonesa do NKVD (1933-1938) Katyn, prises e deportaes (1939-1941) O NKVD contra a Armia Krajowa (Exrcito Nacional) Bibliografia Polnia 1944-1989: o sistema de represso conquista do Estado ou o terror de massa (1944-1947) A sociedade como objetivo de conquista ou o terror generalizado (1948-1956) O socialismo real ou o sistema de represso seletiva (1956-1981) O estado de guerra, uma tentativa de represso generalizada Do cessar-fogo capitulao, ou a confuso do poder (1986-1989) Bibliografia 2. Europa Central e do Sudeste Terror importado? Os processos polticos contra os aliados no comunistas A destruio da sociedade civil O sistema concentracionrio e a gente do povo Os processos dos dirigentes comunistas
  • 4. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 5 Do ps-terror ao ps-comunismo Uma gesto complexa do passado Bibliografia selecionada QUARTA PARTE - COMUNISMOS DA SIA: ENTRE REEDUCAO E MASSACRE 1. China: uma longa marcha na noite Uma tradio de violncia? Uma revoluo inseparvel do terror (1927-1946) Reforma agrria e expurgos urbanos (1946-1957) Os campos: submisso e engenharia social As cidades: ttica do salame e expropriaes A maior fome da histria (1959-1961) Um Gulag escondido: o laogai A Revoluo Cultural: um totalitarismo anrquico (1966-1976) A era Deng: desagregao do terror (depois de 1976) Tibet: um genocdio no teto do mundo? 2. Coreia do Norte, Vietn e Laos: a semente do Drago Crimes, terror e segredo na Coreia do Norte Antes da constituio do Estado comunista Vtimas da luta armada Vtimas comunistas do Partido-Estado norte-coreano As execues Prises e campos O controle da populao Tentativa de genocdio intelectual? Uma hierarquia estrita A fuga Atividades no exterior Fome e misria Balano final Vietn: os impasses de um comunismo de guerra Laos: populaes em fuga 3. Camboja: no pas do crime desconcertante A espiral do horror Variaes em torno de um martirolgio A morte cotidiana no tempo de Pol Pot As razes da loucura Um genocdio? Concluso Seleo bibliogrfica sia QUINTA PARTE - O TERCEIRO MUNDO 1. A Amrica Latina e a experincia comunista Cuba. O interminvel totalitarismo tropical Nicargua: o fracasso de um projeto totalitrio Peru: a longa marcha sangrenta do Sendero Luminoso Orientaes bibliogrficas 2. Afrocomunismos: Etipia, Angola, Moambique O comunismo de cores africanas O Imprio Vermelho: a Etipia Violncias lusfonas: Angola, Moambique A Repblica Popular de Angola Moambique 3. O comunismo no Afeganisto
  • 5. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 6 O Afeganisto e a URSS de 1917 a 1973 Os comunistas afeganes O golpe de Estado de Mohammed Daud O golpe de Estado de abril de 1978 ou a Revoluo de Saur A interveno sovitica A amplitude da represso PORQU? OS AUTORES NDICE ONOMSTICO OS CRIMES DO COMUNISMO [por Stphane Courtois | A vida perdeu para a morte, mas a memria ganha seu combate contra o nada. Tzvetan Todorov Os abusos da memria J se escreveu que a histria a cincia da infelicidade dos homens; nosso sculo de violncia parece confirmar essa frmula de maneira eloquente. verdade que nos sculos precedentes poucos povos e poucos Estados estiveram isentos da violncia de massa. As principais potncias europias estiveram implicadas no trfico de negros; a repblica francesa praticou uma colonizao que, apesar de algumas contribuies, foi marcada por numerosos episdios repugnantes, e isso at o seu trmino. Os Estados Unidos permanecem impregnados de uma certa cultura da violncia que se enraza em dois dos mais terrveis crimes: a escravido dos negros e o extermnio dos ndios. No resta dvida de que, a esse respeito, nosso sculo deve ter ultrapassado seus predecessores. Um olhar retrospectivo impe uma concluso incmoda: este foi o sculo das grandes catstrofes humanas - duas guerras mundiais, o nazismo, sem falar das tragdias mais circunscritas, como as da Armnia, Biafra, Ruanda e outros pases. Com efeito, o Imprio Otomano entregou-se ao genocdio dos armnios, e a Alemanha ao dos judeus e dos ciganos. A Itlia de Mussolini massacrou os etopes. Os tchecos tm dificuldades em admitir que seu comportamento em relao aos alemes dos Sudetos, em 1945-1946, no esteve acima de qualquer suspeita. A prpria Sua hoje alcanada por seu passado como o pas que gerenciava o ouro roubado pelos nazistas dos judeus exterminados, apesar desse comportamento no ser em nenhuma medida to atroz quanto o do genocdio. O comunismo insere-se nessa faixa de tempo histrico transbordante de tragdias, chegando mesmo a constituir um de seus momentos mais intensos e mais significativos. O comunismo, um dos fenmenos mais importantes deste curto sculo XX - que comea em 1914 e termina em Moscou em 1991 -, encontra-se no centro desse quadro. Um comunismo que preexistia ao fascismo e ao nazismo, e que sobreviveu a eles, atingindo os quatro grandes continentes. O que designamos precisamente com a denominao comunismo? Devemos, desde j, introduzir uma distino entre a doutrina e a prtica. Como filosofia poltica, o comunismo existe h sculos, e quem sabe, h milnios. Pois no foi Plato quem, em A Repblica, fundou a idia de uma cidade ideal na qual os homens no seriam corrompidos pelo dinheiro e pelo poder, na qual a sabedoria, a razo e a justia comandariam? No foi um pensador e estadista to eminente quanto Sir Thomas More, chanceler da Inglaterra em 1530, autor da famosa Utopia e morto sob o machado do carrasco de Henrique VIII, um outro precursor da idia dessa cidade ideal? O mtodo utpico parece perfeitamente legtimo como instrumento crtico da sociedade. Ele participa do debate das idias - oxignio de nossas democracias. Entretanto, o comunismo aqui abordado no se situa no cu das idias. um comunismo bem real, que existiu numa determinada poca, em determinados pases, encarnado por lderes clebres - Lenin, Stalin, Mo, Ho Chi Minh, Castro, e te., e, mais prximos da histria poltica francesa, Maurice Thorez, Jacques Duelos, Georges Marchais. Qualquer que seja o grau de envolvimento da doutrina comunista anterior a 1917 na prtica do comunismo real - retornaremos a esse ponto -, foi este quem ps em prtica uma represso metdica, chegando a instituir, em momentos de grande paroxismo, o terror como modo de governo. Isso faz com que a ideologia seja inocente? Os espritos ressentidos ou escolsticos sempre podero sustentar que o comunismo real no tem nada a ver com o comunismo ideal. Evidentemente, seria absurdo imputar a teorias elaboradas antes de Cristo, durante a Renascena ou mesmo o
  • 6. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 7 sculo XDC, eventos que surgiram no decorrer do sculo XX. Entretanto, como escreve Ignazio Silone, na verdade, as revolues so como as rvores, elas so reconhecidas atravs de seus frutos. No foi sem razo que os social- democratas russos, conhecidos como bolcheviques, decidiram, em novembro de 1917, chamar a si prprios de comunistas. Tampouco foi por acaso que erigiram junto ao Kremlin um monumento em glria daqueles que eles consideravam seus precursores: More ou Campanella. Excedendo os crimes individuais, os massacres pontuais, circunstanciais, os regimes comunistas erigiram, para assegurar o poder, o crime de massa como verdadeiro sistema de governo. certo que no fim de um perodo de tempo varivel - alguns anos no Leste Europeu ou vrias dcadas na URSS ou na China - o terror perdeu seu vigor, os regimes estabilizaram-se na gesto da represso cotidiana, censurando todos os meios de comunicao, controlando as fronteiras, expulsando os dissidentes. Mas a memria do terror continuou a assegurar a credibilidade e, consequentemente, a eficcia da ameaa repressiva. Nenhuma das experincias comunistas, populares durante algum tempo no Ocidente, escapou a essa lei: nem a China do Grande Timoneiro, nem a Coreia de Kim II Sung, nem mesmo o Vietn do gentil Tio Ho ou a Cuba do flamejante Fidel, ladeado pela pureza de um Che Guevara, no se esquecendo da Etipia de Mengistu, da Angola de Neto e do Afeganisto de Najibullah. Ora, os crimes do comunismo no foram submetidos a uma avaliao legtima e normal, tanto do ponto de vista histrico quanto do ponto de vista moral. Sem dvida, trata-se aqui de uma das primeiras vezes que se tenta uma aproximao do comunismo, perguntando-se sobre esta dimenso criminosa como uma questo ao mesmo tempo global e central. Podero retorquir-nos que a maioria dos crimes respondia a uma legalidade, ela prpria sustentada por instituies pertencentes aos regimes vigentes, reconhecidos no plano internacional e cujos chefes eram recebidos com grande pompa por nossos prprios dirigentes. Mas no ocorreu o mesmo com o nazismo? Os crimes que expomos neste livro no se definem em relao jurisdio dos regimes comunistas, mas ao cdigo no escrito dos direitos naturais da humanidade. A histria dos regimes e dos partidos comunistas, de sua poltica, de suas relaes com as sociedades nacionais e com a comunidade internacional no se resume a essa dimenso criminosa, ou mesmo a uma dimenso de terror e de represso. Na URSS e nas democracias populares depois da morte de Stalin, na China aps a morte de Mo, o terror atenuou-se, a sociedade comeou a retomar suas cores, a coexistncia pacfica - mesmo sendo ainda uma continuao da luta de classes sob outras formas - tornou-se um dado permanente da vida internacional. Entretanto, os arquivos e os testemunhos abundantes mostram que o terror foi, desde sua origem, uma das dimenses fundamentais do comunismo moderno. Abandonemos a idia de que tal execuo de refns, tal massacre de trabalhadores revoltados, tal hecatombe de camponeses mortos de fome, foram somente acidentes conjunturais, prprios a tais pases ou a tal poca. O nosso mtodo ultrapassa a especificidade de cada terreno e considera a dimenso criminosa como uma das dimenses prprias ao conjunto do sistema comunista, durante todo o seu perodo de existncia. Do que falaremos, de quais crimes? O comunismo cometeu inmeros: inicialmente, crimes contra o esprito, mas tambm crimes contra a cultura universal e contra as culturas nacionais. Stalin ordenou a demolio de centenas de igrejas em Moscou; Ceaucescu destruiu o corao histrico de Bucareste para construir edifcios e traar perspectivas megalomanacas; Pol Pot fez com que fosse desmontada pedra por pedra a Catedral de Phnom Penh e abandonou selva os templos de Angkor; durante a revoluo cultural maosta, tesouros inestimveis foram quebrados ou queimados pelas Guardas Vermelhas. Entretanto, por mais graves que tenham sido essas destruies, a longo prazo, para as naes envolvidas e para a humanidade inteira, em que medida elas pesam em face do assassinato em massa de pessoas, de homens, de mulheres, de crianas? Portanto, consideramos apenas os crimes contra as pessoas, os que constituem a essncia do fenmeno do terror. Esses respondem a uma nomenclatura comum, mesmo que tal prtica seja mais acentuada neste ou naquele regime: execuo por meios diversos - fuzilamento, enforcamento, afogamento, espancamento e, em alguns casos, gs de combate, veneno ou acidente de automvel; destruio pela fome - indigncia provocada e/ou no socorrida; deportao - a morte podendo ocorrer no curso do transporte (em caminhadas a p ou em vages para animais) ou nos locais de residncia e/ou de trabalhos forados (esgotamento, doena, fome, frio). O caso dos perodos ditos de guerra civil mais complexo: no fcil distinguir o que decorre do combate entre poder e rebeldes e o que massacre da populao civil. Contudo, podemos estabelecer os nmeros de um primeiro balano que pretende ser somente uma aproximao mnima e que necessitaria ainda de uma maior preciso, mas que, de acordo com estimativas pessoais, d uma dimenso da grandeza e permite sentir a gravidade do assunto: - URSS, 20 milhes de mortos, - China, 65 milhes de mortos, - Vietn, 1 milho de mortos, - Coreia do Norte, 2 milhes de mortos, - Camboja, 2 milhes de mortos,
  • 7. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 8 - Leste Europeu, 1 milho de mortos, - Amrica Latina, 150.000 mortos, - frica, 1,7 milho de mortos, - Afeganisto, 1,5 milho de mortos, - Movimento comunista internacional e partidos comunistas fora do poder, uma dezena de milhes de mortos. O total se aproxima da faixa dos cem milhes de mortos. Essa escala de grandeza recobre situaes de grande disparidade. incontestvel que, em valor relativo, o trofeu vai para o Camboja, onde Pol Pot, em trs anos e meio, conseguiu matar da maneira mais atroz - a fome, a tortura - aproximadamente um quarto da populao total do pas. Entretanto, a experincia maosta choca pela amplitude das massas atingidas. Quanto Rssia leninista ou stalinista, ela d calafrios por seu lado experimental, porm perfeitamente refletido, lgico, poltico. Essa abordagem elementar no poderia esgotar a questo cujo aprofundamento implica a utilizao de um mtodo qualitativo que repouse na definio de crime. Tal definio deve apoiar-se em critrios objetivos e jurdicos. A questo do crime cometido por um Estado foi tratada pela primeira vez, do ponto de vista jurdico, em 1945, no tribunal de Nuremberg institudo pelos Aliados para julgar os crimes nazistas. A natureza desses crimes foi definida pelo artigo 6 dos estatutos do tribunal, que designa trs crimes maiores: os crimes contra a paz, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade. Ora, um exame do conjunto dos crimes cometidos sob o regime leninis- ta/stalinista, e tambm no mundo comunista em geral, conduz-nos ao reconhecimento de cada uma dessas trs categorias. Os crimes contra a paz so definidos pelo artigo 6a e concernem a dire-o, a preparao, o incio ou o prosseguimento de uma guerra de agresso, ou de uma guerra de violao de tratados, garantias ou acordos internacionais, ou a participao num plano concertado ou num compl para a consecuo de qualquer um dos atos precedentes. Stalin cometeu incontestavelmente esse tipo de crime, pelo menos quando negociou secretamente com Hitler, atravs dos tratados de 23 de agosto e de 28 de setembro de 1939, a partilha da Polnia e a anexao dos Pases Blticos, da Bucovina do Norte e da Bessarbia URSS. O tratado de 23 de agosto, libertando a Alemanha do perigo de um combate em duas frentes, provocou diretamente o incio da Segunda Guerra Mundial. Stalin perpetrou um novo crime contra a paz ao agredir a Finlndia em 30 de novembro de 1939. O ataque imprevisto da Coreia do Norte contra a Coreia do Sul em 25 de junho de 1950 e a interveno macia do exrcito da China comunista so atos da mesma ordem. Os mtodos de subverso, assumidos durante um tempo pelos partidos comunistas comandados por Moscou, poderiam igualmente ser assimilados aos crimes contra a paz, pois sua ao desembocou em algumas guerras; assim, o golpe de Estado comunista no Afeganisto acarretou, em 27 de dezembro de 1979, uma interveno militar macia da URSS, inaugurando uma guerra que ainda no terminou. Os crimes de guerra so definidos no artigo 6b como as violaes das leis e costumes da guerra. Essas violaes compreendem - sem estarem limitadas a isto, porm - o assassinato, maus-tratos ou deportao para trabalhos forcados, ou ainda com outro objetivo, das populaes civis dos territrios ocupados, o assassinato ou maus-tratos de prisioneiros de guerra e de pessoas no mar, a execuo de refns, a pilhagem dos bens pblicos ou privados, a destruio sem motivos de cidades e povoados ou a devastao no justificada por exigncias militares. As leis e costumes de guerra esto inscritos em convenes, sendo que a mais conhecida dentre elas a Conveno de Haia de 1907, que estipula: Em tempos de guerra, as populaes e os beligerantes permanecem sob o imprio dos princpios do direito internacional, tais como os que resultam dos usos estabelecidos pelas naes civilizadas, as leis da humanidade e as exigncias da conscincia pblica. Ora, Stalin ordenou ou autorizou numerosos crimes de guerra, sendo a execuo da quase-totalidade dos oficiais poloneses aprisionados em 1939 -dos quais os 4.500 mortos de Katyn so apenas um episdio - o crime mais espetacular. Mas outros crimes de amplitude ainda maior passaram despercebidos, como o assassinato ou a morte no Gulagfreqncia de centenas de milhares de militares alemes aprisionados entre 1943 e 1945; a isto acrescentam-se os estupros em massa de mulheres alems pelos soldados do Exrcito Vermelho na Alemanha ocupada; sem falar da pilhagem sistemtica de todo o parque industrial dos pases ocupados pelo Exrcito Vermelho. Incorrem no mesmo artigo 6b o aprisionamento, o fuzilamento ou a deportao das resistncias organizadas que combatiam abertamente o poder comunista: por exemplo, os militares das organizaes polonesas de resistncia antinazista (POW, AK), os membros das organizaes de partidrios blticos e ucranianos armados, as resistncias afegs, etc. A expresso crimes contra a humanidade apareceu pela primeira vez em 18 de maio de 1915, numa declarao d Frana, da Inglaterra e da Rssia contra a Turquia, em razo do massacre dos armnios, qualificado como novo crime da Turquia contra a humanidade e a civilizao. As extorses nazistas levaram o tribunal de Nuremberg a redefinir a noo em seu artigo 6c: O assassinato, o extermnio, a escravido, a deportao e todo ato inumano cometido contra toda e qualquer populao civil, antes ou durante a guerra, ou ainda perseguies por motivos polticos, raciais ou religiosos, quando estes atos ou perseguies forem cometidos na sequncia de todo crime que
  • 8. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 9 entre na competncia do tribunal, ou que esteja ligado a este crime, quer violem ou no o direito interno do pas onde foram perpetrados. Em seu requisitrio em Nuremberg, Franois de Menthon, procurador geral francs, destacava a dimenso ideolgica dos crimes: Proponho-me a demonstrar-lhes que toda criminalidade organizada e sistemtica decorre do que me permitirei chamar de crime contra o esprito, quero dizer, de uma doutrina que, negando todos os valores espirituais, racionais ou morais, sob os quais os povos tentaram h milnios fazer progredir a condio humana, visa a devolver a Humanidade barbrie, no mais a barbrie natural e espontnea dos povos primitivos, mas a barbrie demonaca, j que consciente dela prpria e utilizando para os seus fins todos os meios materiais postos disposio dos homens pela cincia contempornea. Esse pecado contra o esprito a falta original do nacional-socialismo da qual todos os crimes decorrem. Essa doutrina monstruosa a do racismo. [...] Que se trate de crime contra a Paz ou de crimes de guerra, no nos encontramos diante de uma criminalidade acidental, ocasional, que os eventos pudessem, talvez, no apenas justificar, mas explicar, encontramo-nos sim diante de uma criminalidade sistemtica, que decorre direta e necessariamente de uma doutrina monstruosa, servida pela vontade deliberada dos dirigentes da Alemanha Nazista. Franois de Menthon explicava tambm que as deportaes destinadas a assegurar mo-de-obra suplementar para a mquina de guerra alem e as que visavam a exterminar os oponentes eram apenas consequncia natural da doutrina nacional-socialista, segundo a qual o homem no tem nenhum valor em si quando no est a servio da raa alem. Todas as declaraes no tribunal de Nuremberg insistiam numa das caractersticas maiores do crime contra a humanidade: o fato de que a potncia do Estado esteja a servio de polticas e de prticas criminosas. Porm, a competncia do tribunal estava limitada aos crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Era ento indispensvel ampliar a noo jurdica a situaes no implicadas nessa guerra. O novo Cdigo Penal francs, adotado em 23 de julho de 1992, define assim o crime contra a humanidade: a deportao, a escravido, ou a prtica macia e sistemtica de execues sumrias, de sequestro de pessoas seguido de sua desapario, da tortura ou de atos inumanos, inspirados por motivos polticos, filosficos, raciais ou religiosos, e organizados em execuo de um plano concertado que atinja um grupo de populao civil (grifo nosso). Ora, todas essas definies, em particular a recente definio francesa, aplicam-se a numerosos crimes cometidos no perodo de Lenin, e sobretudo no de Stalin, e tambm por todos os pases de regime comunista, com exceo (sob reserva de verificao) de Cuba e da Nicargua dos sandinistas. A condio principal parece incontestvel: os regimes comunistas trabalharam em nome de um Estado praticante de uma poltica de hegemonia ideolgica. exatamente em nome de uma doutrina, fundamento lgico e necessrio do sistema, que foram massacrados dezenas de milhes de inocentes sem que nenhum ato particular possa lhes ser censurado, a menos que se reconhea que era criminoso ser nobre, burgus, kulak, ucraniano, ou mesmo trabalhador ou... membro do Partido Comunista. A intolerncia ativa fazia parte do programa posto em prtica. assim que Tomski, o grande lder dos sindicatos soviticos, declarava em 13 de novembro de 1927, no Trud. Em nosso pas, outros partidos tambm podem existir. Mas eis o princpio fundamental que nos distingue do Ocidente; a situao imaginvel a seguinte: um partido reina, todos os outros esto na priso. A noo de crime contra a humanidade complexa e recobre crimes designados formalmente. Um dos mais especficos o genocdio. Aps o genocdio dos judeus pelos nazistas, e a fim de tornar mais preciso o artigo 6c do tribunal de Nuremberg, a noo foi definida por uma conveno das Naes Unidas, de 9 de dezembro de 1948: O genocdio compreendido como um dos atos infracitados, cometidos na inteno de destruir, todo ou em parte, um grupo nacional, tnico, racial ou religioso, como tal: a) mortes de membros do grupo; b) atentado grave integridade fsica ou mental de membros do grupo; c) submisso intencional do grupo s condies de existncia que acarretem sua destruio fsica, total ou parcial; d) medidas que visem a impedir nascimentos no seio do grupo; e) transferncias foradas de crianas do grupo a um outro grupo. O novo Cdigo Penal francs d ao genocdio uma definio ainda mais ampla: O fato, a execuo de um plano concertado que tenda destruio total ou parcial de um grupo nacional, tnico racial ou religioso, ou de um grupo determinado a partir de qualquer outro critrio arbitrrio (grifo nosso). Essa definio jurdica no contradiz a abordagem mais filosfica de Andr Frossard, para quem h crime contra a humanidade quando se mata algum sob o pretexto de que ele nasceu. Em seu curto e magnfico relato intitulado Toutpasse, Vassili Grossman diz a respeito de Ivan Grigorievitch, seu heri oriundo do campo: Ele permaneceu o que ele era em seu nascimento, um homem. precisamente esse o motivo de ele sucumbir ao golpe do terror. A definio francesa permite sublinhar que o genocdio no sempre do mesmo tipo - racial, como no caso dos judeus - e que tambm pode visar grupos sociais. Em um livro publicado em Berlim, em 1924 - intitulado La terreur rouge en Russie-, o historiador e socialista russo Serguei Melgunov cita Latzis, um dos primeiros chefes da Tcheka (a polcia poltica sovitica) que, em 19 de novembro de 1918, deu as seguintes diretivas a seus esbirros: Ns no fazemos uma guerra especfica contra as pessoas. Ns exterminamos a burguesia enquanto classe. No procurem, na investigao, documentos e provas do que o acusado fez,
  • 9. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 10 em atos ou palavras, contra a autoridade sovitica. A primeira questo que vocs devem colocar-lhe a que classe ele pertence, qual sua origem, sua educao, sua instruo, sua profisso. Desde o incio, Lenin e seus camaradas se situaram no contexto de uma guerra de classes sem perdo, na qual o adversrio poltico, ideolgico, ou mesmo a populao recalcitrante eram considerados - e tratados - como inimigos e deveriam ser exterminados. Os bolcheviques decidiram eliminar legalmente, mas tambm fisicamente, toda oposio ou toda resistncia - e mesmo a mais passiva - ao seu poder hegemnico, no somente quando esta era formada por grupos de adversrios polticos, mas tambm por grupos sociais propriamente ditos - tais como a nobreza, a burguesia, a intelligentsia, a Igreja, etc., e tambm as categorias profissionais (os oficiais, os policiais...) - conferindo, por vezes, uma dimenso de genocdio a esses atos. Desde 1920, a descossaquizao corresponde abertamente definio de genocdio: o conjunto de uma populao com implantao territorial fortemente determinada, os cossacos, era exterminado, os homens fuzilados, as mulheres, as crianas e os idosos deportados, os povoados destrudos ou entregues a novos habitantes no cossacos. Lenin assimilava os cossacos Vendia,freqncia durante a revoluo francesa, e desejava aplicar-lhes o tratamento que Gracchus Babeuf, o inventor do comunismo moderno, qualificava como populicdio. A deskulakizao de 1930-1932 no foi seno a retomada, em grande escala, da descossaquizao, com a novidade de a operao ser reivindicada por Stalin, para quem a palavra de ordem oficial, alardeada pela propaganda do regime, era exterminar os kulaks enquanto classe. Os kulaks que resistiam coletivizao eram fuzilados, os outros eram deportados junto com suas mulheres, crianas e os idosos. De fato, eles no foram todos diretamente exterminados, mas o trabalho forado ao qual foram submetidos, nas zonas no desbravadas da Sibria ou do Grande Norte, deixou-lhes pouca chance de sobrevivncia. Vrias centenas de milhares deixaram ali suas vidas, mas o nmero exato de vtimas permanece desconhecido. Quanto grande fome ucraniana de 1932-1933, relacionada resistncia das populaes rurais coletivizao forada, ela em poucos meses provocou a morte de seis milhes de pessoas. Aqui, o genocdio da classe junta-se ao genocdio da raa: matar de fome uma criana kulak ucraniana deliberadamente coagida indigncia pelo regime stalinista vale o matar de fome uma criana judia do gueto de Varsvia coagida indigncia pelo regime nazista. Essa constatao de modo algum repe em causa a singularidade de Auschwitz: a mobilizao dos mais modernos recursos tcnicos e a implantao de um verdadeiro processo industrial - a construo de uma usina de extermnio, o uso de gases, a cremao. Mas destaca uma particularidade de muitos regimes comunistas: a utilizao sistemtica da arma da fome; o regime tende a controlar a totalidade do estoque de comida disponvel e, por um sistema de racionamento por vezes bastante sofisticado, s o distribui em funo do mrito e do demrito de uns e de outros. Este procedimento pode mesmo provocar gigantescas situaes de indigncia. Lembremo-nos de que, no perodo posterior a 1918, somente os pases comunistas conheceram essa grande fome que levou morte de centenas de milhares, ou quem sabe at de milhes de pessoas. Ainda nesta ltima dcada, dois pases da frica que se dizem marxistas-leninistas - Etipia e Moambique - sofreram dessas indigncias assassinas. Um primeiro balano global desses crimes pode ser esboado: - fuzilamento de dezenas de milhares de refns, ou de pessoas aprisionadas sem julgamento, e massacre de centenas de milhares de trabalhadores revoltados entre 1918 e 1922; - a fome de 1922, provocando a morte de cinco milhes de pessoas; - execuo e deportao dos cossacos da regio do Don em 1920; - assassinato de dezenas de milhares de pessoas em campos de concentrao entre 1919 e 1930; - execuo de cerca de 690.000 pessoas por ocasio do Grande Expurgo de 1937-1938; - deportao de dois milhes de kulaks (ou supostos kulaks) em 1930-1932; - destruio por fome provocada e no socorrida de seis milhes de ucranianos em 1932-1933; - deportao de centenas de milhares de poloneses, ucranianos, blticos, moldvios e bessarbios em 1939- 1941, e posteriormente em 1944-1945; - deportao dos alemes do Volga em 1941; - deportao-abandono dos trtaros da Crimia em 1943; - deportao-abandono dos chechenos em 1944; - deportao-abandono dos inguches em 1944; - deportao-abandono das populaes urbanas do Camboja entre 1975 e 1978; - lenta destruio dos tibetanos pelos chineses, desde 1950, etc. No terminaramos nunca de enumerar os crimes do leninismo e do stalinismo, com freqncia reproduzidos de modo quase idntico pelos regimes de Mo Zedong, Kim II Sung, Pol Pot. Permanece uma difcil questo epistemolgica: o historiador est apto a usar, em sua caracterizao e em sua interpretao, fatos ou noes tais como crime contra a humanidade ou genocdio, relativos, como vimos acima, ao domnio jurdico? No seriam essas noes demasiado dependentes de imperativos conjunturais - a condenao do
  • 10. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 11 nazismo em Nuremberg - para serem integradas a uma reflexo histrica que vise estabelecer uma anlise pertinente a mdio prazo? Por outro lado, essas noes no esto demasiado carregadas de valores suscetveis de falsearem o objetivo da anlise histrica? Sobre o primeiro ponto, a histria deste sculo mostrou que a prtica do massacre de massa, feita por Estados ou por Partidos-Estados, no foi uma exclusividade nazista. Bsnia e Ruanda provam que essas prticas perduram e que elas constituiro, sem dvida, uma das caractersticas principais deste sculo. Sobre o segundo ponto, no se trata de modo algum de um retorno s concepes histricas do sculo XIX, segundo as quais o historiador procurava bem mais julgar do que compreender. Contudo, diante das imensas tragdias humanas diretamente provocadas por certas concepes ideolgicas e polticas, pode o historiador abandonar todo princpio de referncia a uma concepo humanista - ligada nossa civilizao judaico-crist e nossa cultura democrtica - como, por exemplo, o respeito pela pessoa humana? Numerosos e renomados historiadores, tais como Jean-Pierre Azema num artigo sobre Auschwitz? ou Pierre Vidal-Naquet com respeito ao processo de Touvier, no hesitam em utilizar a expresso crime contra a humanidade para qualificar os crimes nazistas. Parece-nos, ento, que no ilegtimo utilizar essas noes para caracterizar alguns dos crimes cometidos pelos regimes comunistas. Alm da questo da responsabilidade direta dos comunistas no poder, coloca-se a questo da cumplicidade. O Cdigo Criminal canadense, modificado em 1987, considera, em seu artigo 7 (3.77), que as infraes de crime contra a humanidade incluem as infraes de tentativa, cumplicidade, conselho, ajuda e encorajamento ou de cumplicidade de fato? So tambm assimilados aos crimes contra a humanidade - artigo 7 (3.76) - a tentativa, o compl, a cumplicidade aps o fato, o conselho, a ajuda ou o encorajamento a respeito desse fato (grifo nosso). Ora, dos anos 20 aos anos 50, os comunistas do mundo inteiro e vrias outras pessoas aplaudiram com entusiasmo a poltica de Lenin e, em seguida, a de Stalin. Centenas de milhares de homens engajaram-se nas fileiras da Internacional Comunista e nas sees locais do partido mundial da revoluo. Nos anos 50-70, outras centenas de milhares de homens veneraram o Grande Timoneiro da revoluo chinesa e cantaram os grandes mritos do Grande Salto Adiante ou os da Revoluo Cultural. J em nosso meio, muita gente se felicitou quando Pol Pot tomou o poder. Alguns respondero que no sabiam. verdade que nem sempre foi fcil saber, j que os regimes comunistas fizeram do segredo uma das estratgias de defesa privilegiadas. Mas, frequentemente, essa ignorncia era to-somente resultado de uma cegueira devida crena militante. E, desde os anos 40 e 50, muitos fatos eram conhecidos e incontestveis. Ora, se vrios desses bajuladores abandonaram seus dolos de ontem, foi com silncio e discrio. Mas o que pensar do profundo amoralismo que h em abandonar um engajamento pblico no maior dos segredos, sem tirar dele qualquer lio? Em 1969, um dos pioneiros no estudo do terror comunista, Robert Conquest, escreveu: O fato de tantas pessoas 'engolirem' efetivamente [o Grande Expurgo] foi, sem dvida, um dos fatores que tornaram possvel qualquer Expurgo. Os processos, principalmente, teriam tido muito pouco interesse se no tivessem sido validados por certos comentadores estrangeiros - ou seja, 'independentes'. Estes ltimos devem, pelo menos em parte, arcar com a responsabilidade de uma certa cumplicidade para com essas mortes polticas, ou, em todo caso, para com o fato de que elas vieram a se repetir quando a primeira operao, o processo Zinoviev [de 1936], foi beneficiada com um crdito injustificado. Se atribumos, atravs desse parmetro, uma cumplicidade moral e intelectual a um certo nmero de no-comunistas, o que dizer da cumplicidade dos comunistas? E no nos lembramos de ver Louis Aragon arrepender-se publicamente por ter, num poema de 1931, evocado a vontade da criao de uma polcia poltica comunista na Frana,12 mesmo que, algumas vezes, ele tenha criticado o perodo stalinista. Joseph Berger, antigo membro do Komintern, ele prprio expurgado e conhecedor dos campos, cita a carta recebida de uma antiga deportada do Gulag, mas que permaneceu membro do Partido aps ter retornado dos campos de concentrao: Os comunistas de minha gerao aceitaram a autoridade de Stalin. Eles aprovaram seus crimes. Isso vale no somente para os comunistas soviticos, mas tambm para aqueles do mundo inteiro, e essa ndoa nos marca individual e coletivamente. S podemos apag-la fazendo com que isso nunca mais se reproduza. O que aconteceu? Havamos perdido a razo ou somos traidores do comunismo? A verdade que todos ns, inclusive os que estavam mais prximos a Stalin, fizemos dos crimes o contrrio do que eles realmente eram. Ns os consideramos como uma importante contribuio para a vitria do socialismo. Acreditamos que tudo o que fortalecia a potncia poltica do Partido Comunista na Unio Sovitica e no mundo era uma vitria para o socialismo. No imaginvamos jamais que pudesse haver um conflito no interior do partido entre a poltica e a tica. Por sua vez, Berger desenvolve essa afirmao: Estimo que se podemos condenar a atitude daqueles que aceitaram a poltica de Stalin, o que no foi o caso de todos os comunistas, bem mais difcil censur-los por no terem tornado esses crimes impossveis. Acreditar que homens, mesmo aqueles com postos mais elevados, podiam opor-se a seus desejos no compreender nada do que foi o seu despotismo bizantino. Berger tem a desculpa de ter estado na URSS e, portanto, de ter sido tragado pela mquina infernal, sem poder escapar dela. Mas e os comunistas da Europa Ocidental que no sofriam nenhum constrangimento direto do NKVD, que cegueira fez com que continuassem fazendo a apologia do sistema e de seu chefe? Seria preciso que a poo mgica que os mantinha em submisso fosse potente!
  • 11. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 12 Em sua notvel obra sobre a Revoluo Russa - La Tragdie Sovitique - , Martin Malia traz um pouco de luz ao assunto falando desse paradoxo: um grande ideal que levou a um grande crime. Annie Kriegel, uma outra grande analista do comunismo, insistia nessa articulao quase necessria das duas faces do comunismo: uma luminosa e outra escura. A esse paradoxo, Tzvetan Todorov traz uma primeira resposta: O habitante de uma democracia ocidental queria pensar no totalitarismo como algo completamente estranho s aspiraes humanas normais. Ora, o totalitarismo no teria se mantido por tanto tempo, no teria arrastado tantos indivduos em sua senda, se ele fosse assim. Ele , ao contrrio, uma mquina de tremenda eficcia. A ideologia comunista prope a imagem de uma sociedade melhor e nos incita a desej-la: no faz parte da identidade humana o desejo de transformar o mundo em nome de um ideal? [...] Alm do mais, a sociedade comunista priva o indivduo de suas responsabilidades: so sempre eles quem decidem. Ora, a responsabilidade frequentemente um fardo pesado a ser carregado. [...] A atrao pelo sistema totalitrio, experimentada inconscientemente por numerosos indivduos, provm de um certo medo da liberdade e da responsabilidade - o que explica a popularidade de todos os regimes autoritrios ( a tese de Erich Fromm em O medo da liberdade); o que existe uma 'servido voluntria', j dizia La Botie. A cumplicidade daqueles que enveredaram na servido voluntria no foi - e continua no sendo - abstrata e terica. O simples fato de aceitar e/ou assumir uma propaganda destinada a esconder a verdade demonstrava e continua demonstrando uma cumplicidade ativa. Pois tornar pblico o nico meio - ainda que no seja sempre eficaz, como acaba de mostrar a tragdia de Ruanda - de lutar contra os crimes de massa cometidos em segredo, protegidos dos olhares indiscretos. A anlise dessa realidade central do fenmeno comunista no poder - ditadura e terror - no simples. Jean Ellenstein definiu o fenmeno stalinis-ta como uma mistura de tirania grega e despotismo oriental. A frmula sedutora, mas no d conta do carter moderno dessa experincia, de seu alcance totalitrio, distinto das formas anteriormente conhecidas de ditadura. Um rpido sobrevoo comparativo permitir uma melhor compreenso. Poder-se-ia inicialmente evocar a tradio russa da opresso. Os bolcheviques combatiam o regime terrorista do Czar, que, entretanto, empalidece diante dos horrores do bolchevismo no poder. O Czar denunciava os prisioneiros polticos diante de uma verdadeira justia; a defesa podia exprimir-se tanto quanto ou ainda mais do que a acusao e tomar o testemunho de uma opinio pblica nacional inexistente no regime comunista e, sobretudo, de uma opinio pblica internacional. Os prisioneiros e os condenados se beneficiavam de uma regulamentao nas prises, e o regime de desterro, ou mesmo o de deportao, era relativamente leve. Os deportados podiam partir com suas famlias, ler e escrever o que quisessem: caar, pescar e se encontrarem, nos momentos de lazer, com seus companheiros de infortnio. Lenin e Stalin puderam experimentar essa situao pessoalmente. Mesmo as Recordaes da casa dos mortos, de Dostoievski, que tanto chocaram a opinio pblica na poca de sua publicao, parecem andinas em face dos horrores do comunismo. Seguramente, houve, na Rssia dos anos 1880 a 1914, tumultos populares e insurreies duramente reprimidos por um sistema poltico arcaico. Porm, de 1825 a 1917, o nmero total de pessoas condenadas morte nesse pas, por sua opinio ou sua ao poltica, foi de 6.360, dos quais 3.932 foram executados - 191 de 1825 a 1905, e 3.741 de 1906 a 1910 - quantidade que j havia sido ultrapassada pelos bolcheviques em maro de 1919, aps somente quatro meses de exerccio de poder. O balano da represso czarista , assim, sem paralelo com o do terror comunista. Entre os anos 20 e 40, o comunismo censurou violentamente o terror praticado pelos regimes fascistas. Um rpido exame dos nmeros mostra que as coisas no so assim to simples. O fascismo italiano, o primeiro em ao e tambm quem abertamente reivindicou para si o ttulo de totalitrio, aprisionou e com freqncia maltratou seus adversrios polticos. Entretanto, ele raramente chegou a cometer assassinatos, de modo que, na metade dos anos 30, a Itlia tinha algumas centenas de prisioneiros polticos e vrias centenas de confinati - postos em residncia vigiada nas ilhas -, mas, verdade, tinha tambm dezenas de milhares de exilados polticos. At a guerra, o terror nazista visou alguns grupos; os oponentes ao regime - principalmente comunistas, socialistas, anarquistas, alguns sindicalistas - foram reprimidos de maneira aberta, encarcerados em prises e sobretudo internados em campos de concentrao, submetidos a humilhaes severas. No total, de 1933 a 1939, aproximadamente 20.000 militantes de esquerda foram assassinados com ou sem julgamento nos campos e prises; sem falar dos acertos de contas internos ao nazismo, como a noite dos punhais em junho de 1934. Outra categoria de vtimas destinadas morte foram os alemes que supostamente no correspondiam aos critrios raciais do grande ariano loiro - doentes mentais, deficientes fsicos, idosos. Hider decidiu executar seus intentos por ocasio da guerra: 70.000 alemes foram vtimas de um programa de eutansia com asfixia por gs, entre o fim de 1939 e o incio de 1941, at que as Igrejas protestassem e que o programa fosse encerrado. Os mtodos de asfixia por gs aperfeioados na ocasio so os que foram aplicados no terceiro grupo de vtimas, os judeus. At a guerra, as medidas de excluso contra eles eram generalizadas, mas sua perseguio teve seu apogeu na ocasio da Noite de Cristal - vrias centenas de mortos e 35.000 internamentos em campos de concentrao. Foi
  • 12. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 13 somente com a guerra, e sobretudo com o ataque URSS, que se desencadeou o terror nazista, cujo balano sumrio o seguinte: 15 milhes de civis mortos nos pases ocupados; 5,1 milhes de judeus; 3,3 milhes de prisioneiros de guerra soviticos; 1,1 milho de deportados mortos nos campos; vrias centenas de milhares de ciganos. essas vtimas se juntaram 8 milhes de pessoas destinadas a trabalhos forados e 1,6 milho de detentos sobreviventes em campos de concentrao. O terror nazista chocou as imaginaes por trs razes. Inicialmente, por ter atingido diretamente os europeus. Por outro lado, uma vez vencidos os nazistas, e com seus principais dirigentes julgados em Nuremberg, seus crimes foram oficialmente designados e condenados como tais. Enfim, a revelao do genocdio dos judeus foi um choque por seu carter de aparncia irracional, sua dimenso racista, o radicalismo do crime. Nosso propsito aqui no o de estabelecer uma macabra aritmtica comparativa qualquer, uma contabilidade duplicada do horror, uma hierarquia da crueldade. Entretanto, os fatos so tenazes e mostram que os regimes comunistas cometeram crimes concernentes a aproximadamente 100 milhes de pessoas, contra 25 milhes de pessoas atingidas pelo nazismo. Essa simples constatao deve, pelo menos, provocar uma reflexo comparativa sobre a semelhana entre o regime que foi considerado, a partir de 1945, como o regime mais criminoso do sculo, e um sistema comunista que conservou, at 1991, toda a sua legitimidade internacional e que, at hoje, est no poder em alguns pases, mantendo adeptos no mundo inteiro. Mesmo que muitos dos partidos comunistas tenham reconhecido tardiamente os crimes do stalinis-mo, eles no abandonaram, em sua maioria, os princpios de Lenin e nunca se interrogam sobre suas prprias implicaes no fenmeno terrorista. Os mtodos postos em prtica por Lenin e sistematizados por Stalin e seus mulos, no somente lembram os mtodos nazistas como tambm, e com freqncia, lhes so anteriores. A esse respeito, Rudolf Hoess, encarregado de criar o campo de Auschwitz, e tambm seu futuro comandante, sustentou afirmaes bastante indicativas: A direo da Segurana fizera chegar aos comandantes dos campos uma detalhada documentao sobre os campos de concentrao russos. Baseando-se nos testemunhos dos fugitivos, estavam expostas em todos os detalhes as condies reinantes no local. Destacava-se particularmente que os russos exterminavam populaes inteiras utilizando-as em trabalhos forados. Porm, se fato que a intensidade e as tcnicas da violncia de massa foram inauguradas pelos comunistas e que os nazistas tenham se inspirado nelas, isto no implica, a nosso ver, que se possa estabelecer uma relao direta de causa e efeito entre a tomada do poder pelos bolcheviques e a emergncia do nazismo. Desde o fim dos anos 20, a GPU (novo nome da Tcheka) inaugurou o mtodo das quotas: cada regio e cada distrito deviam deter, deportar ou fuzilar uma determinada percentagem de pessoas pertencentes s camadas sociais inimigas. Essas percentagens eram definidas centralmente pela direo do Partido. A loucura planificadora e a mania estatstica no diziam respeito somente economia; elas tambm se aplicavam ao domnio do terror. Desde 1920, com a vitria do Exrcito Vermelho sobre o Exrcito Branco, na Crimia, surgiram mtodos estatsticos, e mesmo sociolgicos: as vtimas so seleciona-das segundo critrios precisos, estabelecidos com a ajuda de questionrios aos quais ningum poderia deixar de responder. Os mesmos mtodos sociolgicos'' sero postos em prtica pelos soviticos para organizar as deportaes e execues em massa nos Estados Blticos e na Polnia ocupada de 1939- 1941. O transporte dos deportados em vages de animais acarretou as mesmas aberraes que as cometidas pelo nazismo: em 1943-1944, em plena batalha, Stalin fel com que milhares de vages e centenas de milhares de homens das tropas especiais do NKVD deixassem o fronte para assegurar em um curtssimo espao de tempo a deportao das populaes do Cucaso. Essa lgica do genocdio - que consiste, retomando o Cdigo Penal francs, na destruio total ou par cial de um grupo nacional, tnico, racial ou religioso, ou de um determinado grupo, a partir de qualquer outro critrio arbitrrio - aplicada pelo poder comunista a grupos designados como inimigos, a fraes de sua prpria socie dade, foi conduzida ao seu paroxismo por Pol Pot e seus khmers vermelhos. Fazer a aproximao entre o nazismo e o comunismo, no que diz respeito a seus respectivos extermnios, pode chocar. Entretanto, Vassili Grossman - cuja me foi morta pelos nazistas no gueto de Berditchev, escritor do primeiro texto sobre Treblinka e tambm um dos mestres do Livre noir sobre o extermnio dos judeus na URSS - que, em seu relato Tout passe, faz um de seus personagens dizer a respeito da fome na Ucrnia: Os escritores e o prprio Stalin diziam todos a mesma coisa: os kulaks so parasitas, eles queimam o trigo, matam as crianas. E nos disseram sem rodeios: preciso que as massas se revoltem contra eles, para aniquil-los todos, enquanto classe, esses mal ditos. E acrescenta: Para mat-los, seria preciso declarar: os kulaks no so seres humanos. Do mesmo modo que os alemes diziam: os judeus no so seres humanos. Foi o que Lenin e Stalin disseram: os kulaks no so seres humanos. E Grossman conclui, a respeito das crianas kulaks: como os alemes que assassinaram as crianas judias nas cmaras de gs: vocs no tm direito de viver, vocs so judeus. cada vez, no so tanto os indivduos que so atingidos, mas os grupos. O terror tem como objetivo exterminar um grupo designado como inimigo, que, na verdade, constitui-se somente como uma frao da sociedade, mas que atingido enquanto tal por uma lgica do genocdio. Assim, os mecanismos de segregao e de excluso do
  • 13. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 14 totalitarismo da classe se parecem singularmente queles do totalitarismo da raa. sociedade nazista futura devia ser construda em torno da raa pura; a sociedade comunista futura, em torno de um povo proletrio, purificado de toda escria burguesa. O remodelamento dessas duas sociedades foi planejado do mesmo modo, apesar de os critrios de excluso no serem os mesmos. Portanto, falso pretender que o comunismo seja um universalismo: se o projeto tem uma vocao mundial, uma parte da humanidade declarada indigna de existir neste mundo, como no caso do nazismo; a diferena que um recorte por estratos (classes) substitui o recorte racial e territorial dos nazistas. Logo, os empreendimentos leninista, stalinista, maosta e a experincia cambojana pem humanidade - assim como aos juristas e historiadores - uma nova questo: como qualificar o crime que consiste em exterminar, por razes poltico- ideolgicas, no mais indivduos ou grupos limitados de oponentes, mas partes inteiras da sociedade? preciso inventar uma nova denominao? Alguns autores anglo-saxes pensam dessa forma, criando o termo politicdio. Ou preciso chegar, como o fazem os juristas tchecos, a qualificar os crimes cometidos pelos regimes comunistas como crimes comunistas? O que se sabia dos crimes do comunismo? O que se queria saber? Por que foi preciso esperar o fim do sculo para que esse tema obtivesse o status de objeto de cincia? Pois evidente que o estudo do terror stalinista e comunista em geral, comparado ao estudo dos crimes nazistas, tem um enorme atraso a recuperar, mesmo que, no Leste, os estudos se multipliquem. Um grande contraste no pode deixar de nos causar surpresa: foi com legitimidade que os vencedores em 1945 situaram o crime - e em particular o genocdio dos judeus - no centro de sua condenao ao nazismo. Numerosos pesquisadores em todo o mundo trabalham h dcadas sobre essa questo. Milhares de livros lhe foram consagrados, dezenas de filmes, dos quais alguns muito famosos nos mais diferentes gneros - Noite e Neblina ou Shoah, A Escolha de Sofia ou A Lista de Schindler. Raul Hilberg, para citarmos apenas um autor, fez da descrio detalhada das modalidades da matana aos judeus no III Reich o centro de sua obra mais importante. Ora, no existe um trabalho como esse sobre a questo dos crimes comunistas. Enquanto que nomes como os de Himmler ou o de Eichman so conhecidos em todo o mundo como smbolos da barbrie contempornea, os de Dzerjinski, lagoda ou de lejov so ignorados da maioria. Quanto a Lenin, Mo, Ho Chi Minh e o prprio Stalin, eles sempre foram tratados com uma surpreendente reverncia. Um rgo do Estado francs, a Loto, chegou a ter a inconscincia de associar Stalin e Mo a uma de suas campanhas publicitrias! Quem teria a idia de utilizar Hitler ou Goebbels numa operao semelhante? A ateno excepcional concedida aos crimes hitleristas perfeitamente justificada. Ela responde vontade dos sobreviventes de testemunhar, dos pesquisadores de compreender e das autoridades morais e polticas de confirmar os valores democrticos. Mas por que os testemunhos dos crimes comunistas tm uma repercusso to fraca na opinio pblica? Por que o silncio constrangido dos polticos? E, sobretudo, por que um silncio acadmico sobre a catstrofe comunista que atingiu, h aproximadamente 80 anos, um tero da espcie humana, sobre quatro continentes? Por que essa incapacidade de situar no centro da anlise do comunismo um fator to essencial quanto o crime, o crime de massa, o crime sistemtico, o crime contra a humanidade? Estamos diante de uma impossibilidade de compreenso? No se trata, antes, de uma recusa deliberada de saber, de um medo de compreender? As razes dessa ocultao so mltiplas e complexas. Inicialmente, estava em jogo a vontade clssica e constante dos carrascos de apagar as marcas de seus crimes e de justificar o que eles no podiam esconder. O relatrio secreto de Kruschev (1956), que se constituiu como o primeiro reconhecimento dos crimes comunistas pelos prprios dirigentes comunistas, tambm o relato de um carrasco que vai procurar mascarar e encobrir seus prprios crimes - como chefe do Partido Comunista ucraniano no auge do terror - atribuindo-os somente a Stalin e valendo-se do fato de que obedecia a ordens; ocultar a maior parte do crime - ele fala somente das vtimas comunistas, bem menos numerosas do que todas as outras; atenuar o significado desses crimes - ele os qualifica como abusos cometidos pelo regime stalinista; e, enfim, justificar a continuidade do sistema com os mesmos princpios, as mesmas estruturas e os mesmos homens. Kruschev nos d um testemunho franco, relacionando as oposies com as quais ele se chocou ao preparar o relatrio secreto, particularmente no que diz respeito ao homem de confiana de Stalin: Kaganovitch era de tal modo um adulador, que ele teria cortado a garganta de seu pai se Stalin assim o ordenasse com uma piscada de olhos, dizendo-lhe que era no interesse da Causa: a causa stalinista, claro, f...] Ele argumentava contra mim por causa do medo egosta de perder o pescoo. Ele obedecia ao desejo impaciente de fugir a toda responsabilidade. Se havia crimes, Kaganovitch queria somente uma coisa: estar certo de que suas marcas foram apagadas. O fechamento absoluto dos arquivos dos pases comunistas, o controle total da imprensa, da mdia e de todas as sadas para o exterior, a propaganda do sucesso do regime, toda essa mquina de ocultar informaes visava, em primeiro lugar, impedir que viesse luz a verdade sobre os crimes. No contentes em esconder seus delitos, os carrascos combateram por todos os meios aqueles que tentavam relat-los. Pois alguns observadores e analistas tentaram esclarecer seus contemporneos. Aps a Segunda Guerra
  • 14. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 15 Mundial, isso foi particularmente claro em duas ocasies na Frana. De janeiro a abril de 1949 teve lugar em Paris o processo que ops Victor Kravchenko - um ex-alto funcionrio sovitico que havia escrito Jai choisi Ia liberte, livro no qual era descrita a ditadura stalinista - ao jornal comunista dirigido por Louis Aragon, Ls Lettres Franaises, que cobria Kravchenko de injrias. Teve lugar tambm em Paris, de novembro de 1950 a janeiro de 1951, um outro processo entre Ls Lettres Franaises (mais uma vez) e David Rousset, um intelectual, ex-trotskista, deportado da Alemanha pelos nazistas e que, em 1946, havia recebido o prmio Renaudot por seu livro LUniven concentrationnaire; Rousset convocara, em 12 de novembro de 1949, todos os antigos deportados dos campos nazistas para formar uma comisso de investigao sobre os campos soviticos, sendo ento violentamente atacado pela imprensa comunista, que negava a existncia desses campos. Em seguida convocao feita por Rousset, em 25 de fevereiro de 1950, num artigo do Figaro littraire intitulado Pour lenqute sur les camps sovitiques. Qui est pire, Satan ou Belzbuth? Margaret Buber-Neumann expunha sua dupla experincia de deportada dos campos nazistas e soviticos. Contra todos esses esclarecedores da conscincia humana, os carrascos desenvolveram, num combate sistemtico, todo o arsenal dos grandes Estados modernos, capazes de intervir no mundo inteiro. Eles procuraram desqualific-los, desacredit-los, intimid-los. A. Soljenitsyne, V. Bukovsky, A. Zinoviev L. Plichki foram expulsos de seu pas, Andr Sakharov foi exilado em Gorki, o general Piotr Grigorenko, abandonado num hospital psiquitrico, Markov, assassinado com um guarda-chuva envenenado. Diante de tal poder de intimidao e de ocultao, as prprias vtimas hesitavam em se manifestar, tornando-se incapazes de reintegrar a sociedade onde desfilavam seus delatores e carrascos. Vassili Grossman20 narra essa desesperana. Ao contrrio da tragdia dos judeus - em relao qual a comunidade judia internacional encarregou-se da celebrao dos mortos do genocdio - durante muito tempo foi impossvel s vtimas do comunismo e aos seus interessados manter uma memria viva da tragdia, estando proibido qualquer tipo de celebrao ou demanda de reparao. Quando no conseguiam manter a verdade escondida - a prtica dos fuzilamentos, os campos de concentrao, a fome imposta -, os carrascos tramavam a justificao dos fatos maquiando-os grosseiramente. Depois de terem reivindicado o terror, eles o erigiram como figura alegrica da revoluo: quando se corta a floresta, as farpas voam, no se pode fazer uma omelete sem se quebrarem os ovos. A isto Vladimir Bukovski replicava ter visto os ovos quebrados, mas no ter nunca provado omeletes. Mas, sem dvida, foi com a perverso da linguagem que se chegou ao pior. Atravs da magia vocabular, o sistema dos campos de concentrao tornou-se obra de reeducao, e os carrascos, educadores aplicados em transformar os homens de uma sociedade antiga em homens novos. Pedia-se, atravs da fora, aos zeks - termo que designa os prisioneiros dos campos de concentrao soviticos - para que acreditassem num sistema que os subjugava. Na China, o interno na concentrao denominado estudante: ele deve estudar o pensamento justo do partido e reformar o seu prprio pensamento imperfeito. Como acontece com freqncia, a mentira no , strcto sensu, o inverso da verdade, e toda mentira se apoia sobre elementos verdadeiros. As palavras pervertidas aparecem como uma viso deslocada que deforma a perspectiva de conjunto: somos confrontados a um astigmatismo social e poltico. Ora, fcil corrigir a percepo deformada pela propaganda comunista, mas muito difcil reconduzir aquele que percebeu erroneamente a uma concepo intelectual pertinente. A impresso primeira permanece e torna-se preconceito. Como fazem os praticantes do judo - e graas a sua incomparvel potncia propagandista, amplamente baseada na perverso da linguagem -, os comunistas utilizaram toda a fora das crticas feitas aos seus mtodos terroristas para retorn-las contra essas prprias crticas, reunindo, a cada vez, as fileiras de seus militantes e simpatizantes na renovao do ato de f comunista. Assim, eles reencontraram o princpio primeiro da crena ideolgica, formulada por Tertuliano, em sua poca: Creio porque absurdo. No contexto dessas operaes de contrapropaganda, os intelectuais, literalmente, se prostituram. Em 1928, Gorki aceitou ir em excurso s ilhas Solovki, um campo de concentrao experimental que, atravs de suas metstases (Soljenitsyne), dar origem ao sistema do Gulag. Ele trouxe de l um livro exaltando Solovki e o governo sovitico. Henri Barbusse, escritor francs ganhador do Goncourtfreqncia de 1916, no hesitou, em troca de uma recompensa financeira, em exaltar o regime stalinista, publicando, em 1928, um livro sobre a maravilhosa Gergia - onde, precisamente em 1921, Stalin e seu aclito Ordjonikidze se entregaram a uma verdadeira carnificina, e onde Beria, chefe do NKVD, se fazia notar por seu maquiavelismo e seu sadismo - e, em 1935, a primeira biografia oficiosa de Stalin. Mais recentemente, Ma-ria-Antonietta Macciochi fez a apologia de Mo, Alain Peyrefitte lhe fez coro, enquanto Danielle Mitterrand passeava ao lado de Castro. Cupidez, apatia, vaidade, fascinao pela fora e pela violncia, paixo revolucionria: qualquer que seja a motivao, as ditaduras totalitrias sempre encontraram os bajuladores dos quais necessitavam, tanto a ditadura comunista quanto as outras. Diante da propaganda comunista, o Ocidente mostrou-se durante muito tempo de uma cegueira excepcional, mantida tanto pela inocncia em face de um sistema astuto, quanto pelo medo da potncia sovitica, sem falar do cinismo dos polticos e dos interesseiros. Cegueira presente em Yalta, quando o presidente Roosevelt deixou o Leste Europeu entregue a Stalin, contra a promessa, redigida de forma clara e limpa, de que ele organizaria eleies livres na
  • 15. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 16 regio o mais rapidamente possvel. O realismo e a resignao estavam presentes em Moscou quando, em dezembro de 1944, o General de Gaulle trocou o abandono da infeliz Polnia ao Moloch pela garantia da paz social e poltica, assegurada pela volta de Maurice Thorez a Paris. Cegueira que foi fortalecida, quase que legitimada, por uma crena - entre os comunistas ocidentais e muitos homens de esquerda - segundo a qual esses pases estavam construindo o socialismo, e que a utopia que nas democracias alimentava os conflitos sociais e polticos tornava-se para eles uma realidade cujo prestgio Simone Weil destacou: Os trabalhadores revolucionrios so felizes por terem um Estado por detrs deles - um Estado que d s suas aes esse carter oficial, uma legitimidade, uma realidade que somente ele, o Estado, pode conferir, e que, ao mesmo tempo, est situado longe deles o suficiente para no causar-lhes desgosto. O comunismo apresentava, ento, sua face clara: ele se declarava Iluminado, inserido numa tradio de emancipao social e humana, de sonho da igualdade real e da felicidade para todos inaugurada por Gracchus Babeuf. essa face luminosa que ocultava quase que totalmente a face das trevas. ignorncia - desejada ou no - da dimenso criminosa do comunismo juntou-se, como sempre, a indiferena de nossos contemporneos para com seus irmos humanos. No que o homem tenha o corao de pedra. Pelo contrrio, em inmeras situaes-limite, ele mostra insuspeitadas fontes de solidariedade, de amizade, de afeio e mesmo de amor. Entretanto, como destaca Tzvetan Todorov, a memria de nossos lutos nos impede de percebermos o sofrimento dos outros. E, terminada a Primeira e, em seguida, a Segunda Guerra Mundial, que povo europeu ou asitico no estava ocupado em curar as chagas de inmeros lutos? As dificuldades encontradas na prpria Franca no afrontamento dos anos sombrios so suficientemente eloquentes. A histria - ou melhor, a no-histria - da Ocupao continua a envenenar a conscincia francesa. Acontece o mesmo, talvez com menos intensidade, com a histria dos perodos nazi na Alemanha, fascista na Itlia, franquista na Espanha, da guerra civil na Grcia, etc. Neste sculo de ferro e sangue, cada um esteve demasiadamente ocupado com suas prprias mazelas para poder compadecer-se das dos outros. A ocultao da dimenso criminosa do comunismo remete, porm, a trs razes especficas. A primeira refere- se ao apego prpria idia da revoluo. Ainda hoje, o luto dessa ideia, tal como ela foi preconizada nos sculos XIX e XX, est longe de terminar. Seus smbolos - bandeira vermelha, a Internacional, punho erguido - ressurgem por ocasio de todo movimento social importante. Che Guevara retorna moda. Grupos declaradamente revolucionrios permanecem ativos e se manifestam com toda legalidade, tratando com desprezo a menor reflexo crtica sobre os crimes dos seus predecessores e no hesitando em reiterar os velhos discursos justificativos de Lenin, de Trotski ou de Mo. Paixo revolucionria que no acometeu somente aos outros. Muitos dos prprios autores deste livro acreditaram durante algum tempo na propaganda comunista. A segunda razo refere-se participao dos soviticos na vitria sobre o nazismo, o que permitiu aos comunistas mascarar sob um patriotismo intenso seus fins ltimos, que visavam tomada do poder. A partir de junho de 1941, os comunistas do conjunto dos pases ocupados entraram numa resistncia ativa - e com freqncia armada - ocupao nazista ou italiana. Do mesmo modo que os demais resistentes aos regimes de sujeio, eles tiveram de pagar o imposto da represso, com milhares de fuzilados, massacrados, deportados. Eles se serviram desses mrtires para sacralizar a causa do comunismo e proibir toda crtica a seu respeito. Alm disso, no curso dos combates da Resistncia, muitos dos no-comunistas estabeleceram laos de solidariedade, de combate, de sangue com comunistas, o que impediu que muitos olhos se abrissem; na Frana, a atitude dos gaullistas foi com freqncia comandada por essa memria comum e encorajada pela poltica do general de Gaulle que utilizava o contrapeso sovitico diante dos americanos. A participao dos comunistas na guerra e na vitria sobre o nazismo fez triunfar definitivamente a noo de antifascismo como critrio de verdade da esquerda, e, certamente, os comunistas se colocaram como os melhores representantes e os melhores defensores desse antifascismo. O antifascismo tornou-se um rtulo definitivo para o comunismo, sendo fcil, em nome do antifascismo, silenciar os recalcitrantes. Franois Furet escreveu pginas esclarecedoras sobre esse assunto crucial. Com o nazismo vencido, designado pelos Aliados como o Mal Absoluto, o comunismo saltou quase que mecanicamente para o campo do Bem. O que ocorreu, evidentemente, na ocasio do processo de Nuremberg, quando os soviticos estiveram sentados no banco da acusao. Assim, episdios embaraosos para os valores democrticos foram escamoteados, tais como os pactos germano-soviticos de 1939 ou o massacre de Katyn. A vitria sobre o nazismo deveria supostamente fornecer a prova da superioridade do sistema comunista. Na Europa libertada pelos anglo-americanos, ela teve, sobretudo, o efeito de suscitar um duplo sentimento de gratido para com o Exrcito Vermelho (do qual no se teve que suportar a ocupao) e de culpa em face dos sacrifcios suportados pela populao da URSS, sentimentos que a propaganda comunista no hesitou em manipular a fundo. Paralelamente, as modalidades de libertao feitas pelo Exrcito Vermelho no Leste Europeu permanecem amplamente desconhecidas no Ocidente, onde os historiadores assimilaram dois tipos de libertao bastante diferentes: o primeiro deles conduzia restaurao das democracias, o outro abria caminho instaurao das ditaduras.
  • 16. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 17 Na Europa Central e no Leste Europeu, o sistema sovitico postulava sucesso do Reich de mil anos, e Witold Gombrowicz exprimiu em poucas palavras o drama desses povos: O fim da guerra no trouxe libertao aos poloneses. Nesta triste Europa Central, significou somente a troca de uma noite por outra, dos carrascos de Hitler pelos de Stalin. No momento exato em que, nos cafs parisienses, as nobres almas saudavam com um canto radiante a 'emancipao do povo polons do jugo feudal', na Polnia, o mesmo cigarro aceso simplesmente mudava de mo e continuava a queimar a carne humana. Aqui reside a falha entre duas memrias europias. Entretanto, certas obras revelaram rapidamente a maneira pela qual a URSS libertou do nazismo poloneses, alemes, tchecos e eslovacos. A ltima razo dessa ocultao a mais sutil, e tambm a mais delicada a exprimir. Aps 1945, o genocdio dos judeus apareceu como o paradigma da barbrie moderna, chegando mesmo a ocupar todo o espao reservado percepo do terror de massa no sculo XX. Aps negarem, durante algum tempo, a especificidade da perseguio dos nazistas aos judeus, os comunistas compreenderam toda a vantagem que eles podiam tirar de um tal reconhecimento, reutilizando regularmente o antifascismo. O espectro do animal imundo cujo ventre ainda fecundo - segundo a frmula famosa de Bertolt Brecht - foi agitado com freqncia, com ou sem motivo justificado. Mais recentemente, o fato de ter sido posta em evidncia a singularidade no genocdio dos judeus, focalizando a ateno sobre sua atrocidade excepcional, tambm impediu que se percebessem outras realidades da mesma natureza no mundo comunista. Como imaginar que eles prprios, que tinham contribudo com sua vitria na destruio de um sistema de genocdio, pudessem tambm praticar os mesmos mtodos? A reao mais corrente foi a recusa em admitir tal paradoxo. A primeira grande virada no reconhecimento oficial dos crimes comunistas situa-se em 24 de fevereiro de 1956. Nessa noite, Nikita Kruschev, primeiro-secretrio, vem tribuna do XX Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica, o PCUS. A sesso a portas fechadas; somente os delegados do congresso esto presentes. Em silncio absoluto, aterrorizados, eles escutam o primeiro-secretrio do Partido destruir metodicamente a imagem do pequeno pai dos povos, do Stalin genial que foi, durante 30 anos, o heri do comunismo mundial. Esse relato, conhecido como o relatrio secreto, constitui uma das inflexes fundamentais do comunismo contemporneo. Pela primeira vez, um dirigente comunista do mais alto escalo reconheceu oficialmente, ainda que assistido somente pelos comunistas, que o regime que tomara o poder em 1917 cometera uma deriva criminosa. As razes que levaram o Senhor K a quebrar um dos maiores tabus do regime sovitico eram mltiplas. Seu principal objetivo era o de imputar os crimes do comunismo somente a Stalin, circunscrevendo e extraindo o mal para poder salvar o regime. Tambm fazia parte de sua deciso a vontade de atacar o cl dos stalinistas que se opunham a seu poder em nome dos mtodos de seu antigo chefe. Alis, aps o vero de 1957, esses homens foram demitidos de todas as suas funes. Contudo, pela primeira vez desde 1934, a morte poltica destes ltimos no foi acompanhada da morte real, podendo-se inferir, atravs desse simples detalhe, que as razes de Kruschev eram mais profundas. Ele, que tinha sido durante anos o grande chefe da Ucrnia e, por isso mesmo, havia conduzido e acobertado gigantescas chacinas, parecia cansado de todo esse sangue. Em suas memrias, onde, sem dvida, tem o papel de mocinho, Kruschev relembra o que lhe passava pelo esprito: O Congresso vai terminar; resolues sero tomadas, todas para cumprir com as formalidades. Mas para qu? Aqueles que foram fuzilados s centenas de milhares permanecero em nossas conscincias. Ao mesmo tempo, ele censura duramente seus camaradas: O que faremos com os que foram detidos, assassinados? [...] Sabemos agora que as vtimas das represses eram inocentes. Temos a prova irrefutvel de que, longe de serem inimigos do povo, eram homens e mulheres honestos, devotados ao Partido, Revoluo, causa leninista da edificao do socialismo e do comunismo. [...] impossvel tudo esconder. Cedo ou tarde, os que esto na priso, nos campos, sairo e retornaro a suas casas. Eles relataro ento aos seus parentes, seus amigos, seus camaradas o que lhes aconteceu. [...] por isso que somos obrigados a confessar aos delegados tudo a respeito do modo como o Partido foi dirigido naqueles anos. [...] Como pretender nada saber do que acontecia? [...] Sabemos que reinava a represso e a arbitrariedade no Partido, e devemos dizer ao Congresso o que sabemos. [...] Na vida de todos os que cometeram um crime, vem o momento em que a confisso assegura a indulgncia, e mesmo a absolvio. Em alguns dos homens que haviam participado diretamente dos crimes perpetrados pelo regime stalinista - e que, em sua maioria, deviam sua promoo ao extermnio de seus predecessores na funo - emergia um certo tipo de remorso; um remorso constrangido, claro, um remorso interesseiro, um remorso poltico, mas, ainda assim, um remorso. Efetivamente, era preciso que algum terminasse com o massacre; Kruschev teve essa coragem, mesmo no tendo hesitado, em 1956, em enviar uma frota de tanques soviticos a Budapeste. Em 1961, na ocasio do XXII Congresso do PCUS, Kruschev evocou no somente as vtimas comunistas, mas tambm todo o conjunto das vtimas de Stalin, chegando a propor que fosse erigido um monumento em memria delas. Sem dvida, ele havia transposto o limite invisvel alm do qual o prprio princpio do regime estava posto em causa: o monoplio do poder absoluto reservado ao Partido Comunista. O monumento jamais veio luz. Em 1962, o primeiro-
  • 17. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 18 secretrio autorizou a publicao de Une journe d'Ivan Denissovitch, de Alexandre Soljenitsyne. Em 24 de outubro de 1964, Kruschev foi brutalmente demitido de todas as suas funes, mas ele tampouco foi assassinado, morrendo no anonimato em 1971. Todos os analistas reconhecem a importncia decisiva do relatrio secreto que provocou a ruptura fundamental na trajetria do comunismo no sculo XX. Franois Furet, que justamente acabava de deixar o Partido Comunista Francs em 1954, escreve a este respeito: Ora, eis que o 'relatrio secreto' de fevereiro de 1956 transtorna de uma s vez, assim que ele veio a pblico, o estatuto da idia comunista no universo. A voz que denuncia os crimes de Stalin no vem mais do Ocidente, mas de Moscou, e do santo dos santos de Moscou, o Kremlin. No se trata mais de um comunista infringindo seu exlio, mas do primeiro dos comunistas no mundo, o chefe do Partido Comunista da Unio Sovitica. Ento, em lugar de ser alvo das suspeitas que acometem os discursos dos ex-comunistas, esta voz est investida da autoridade suprema outorgada pelo sistema ao seu chefe. [...] O extraordinrio poder do 'relatrio secreto' sobre as conscincias vem do fato de ele no ter contraditores. Desde o comeo, o evento era to paradoxal, que numerosos contemporneos haviam prevenido os bolcheviques contra os perigos de seus procedimentos. Desde 1917-1918 batiam-se no prprio interior do movimento socialista os que acreditavam no grande claro do Leste e os que criticavam sem remisso os bolcheviques. A disputa recaa essencialmente sobre o mtodo de Lenin: violncia, crimes, terror. Enquanto que, dos anos 20 aos anos 50, o lado sombrio da experincia bolchevique foi denunciado por numerosas testemunhas, vtimas, observadores qualificados, e tambm por incontveis artigos e obras, foi preciso esperar que os prprios comunistas no poder reconhecessem essa realidade - ainda que de modo limitado - para que uma frao cada vez maior da opinio pblica pudesse tomar conhecimento do drama. Reconhecimento enviesado, j que o relatrio secreto abordava somente a questo das vtimas comunistas. Ainda assim, um reconhecimento que trazia a primeira confirmao de testemunhos e estudos anteriores, e que corroborava o que muitos desconfiavam h bastante tempo: o comunismo havia provocado na Rssia uma imensa tragdia. Os dirigentes de muitos dos partidos irmos no se persuadiram, de imediato, de que era preciso que se engajassem no caminho das revelaes. Ao lado do precursor Kruschev, eles pareciam um tanto retardados: foi necessrio esperar 1979 para que o Partido Comunista chins distinguisse na poltica de Mo grandes mritos - at 1957 - e grandes erros em seguida. Os vietnamitas somente abordam essa questo luz da condenao do genocdio perpetrado por Pol Pot. Quanto a Castro, ele nega as atrocidades cometidas sob sua gide. At ento, a denncia dos crimes comunistas vinha somente da parte dos seus inimigos, dos dissidentes trotskistas ou dos anarquistas; e ela no tinha sido particularmente eficaz. A vontade de testemunhar era to forte nos sobreviventes dos massacres comunistas quanto nos sobreviventes dos massacres nazistas. Mas eles foram muito pouco - ou quase nada - escutados, em particular na Frana, onde a experincia concreta do sistema de campos de concentrao sovitico s afetou diretamente a grupos restritos, tais como os Malgr-nous da Alsace-Lorraine.^ Na maior parte das vezes, os testemunhos, as erupes de memria, os trabalhos das comisses independentes criadas sob a iniciativa de algumas pessoas - assim como a Commission Internationale sur l regime concentrationnaire, de David Rousset, ou a Commission pour Ia vritsur ls crimes de Stalinefreqncia - foram encobertos pelo tamanho da verba para a propaganda comunista, acompanhado por um silncio covarde ou indiferente. Esse silncio, que sucede geralmente a algum momento de sensibilizao provocado pela emergncia de uma obra - UArchipel du Goulag, de Soljenitsyne -. ou de um testemunho mais incontestvel do que outros - Ls Rcits de Ia Kolyma, de Variam Chalamov, ou LUtopie meurtrire, de Pin Yathay -, mostra uma resistncia prpria aos vrios e diferentes segmentos das sociedades ocidentais no que diz respeito ao fenmeno comunista; eles se recusam, at o momento, a encarar a realidade: o sistema comunista comporta, ainda que em graus diversos, uma dimenso fundamentalmente criminosa. Com esta recusa, as sociedades participaram da mentira, no sentido aludido por Nietzsche: Recusar-se a ver algo que se v; recusar-se a ver algo como se v. A despeito de todas essas dificuldades na abordagem da questo, vrios observadores tentaram a empreitada. Dos anos 20 aos anos 50 - na falta de dados mais confiveis, cuidadosamente dissimulados pelo regime sovitico - a pesquisa repousava essencialmente sobre os testemunhos dos desertores. Suscetveis de estarem imbudos de um esprito vingativo, ou difamatrio, ou ainda de serem manipulados por um poder anticomunista, esses testemunhos - passveis de contestao pelos historiadores, como todo testemunho - eram frequentemente desconsiderados pelos bajuladores do comunismo. O que se poderia pensar, em 1959, da descrio do Gulag feita por um desertor dos altos escales da KGB, tal como ela fora recuperada no livro de Paul Barton32 E o que pensar de Paul Barton, ele prprio um exilado tcheco, cujo verdadeiro nome Jiri Veltrusky, um dos organizadores da insurreio antinazista de 1945 em Praga, obrigado a fugir de seu pas em 1948? Ora, a confrontao com os arquivos doravante abertos mostra que essa informao era perfeitamente confivel. Nos anos 70 e 80, a grande obra de Soljenitsyne LArchipel du Goulag, e depois o ciclo dos Ns da Revoluo Russa - provocou um verdadeiro choque na opinio pblica. Sem dvida, um efeito produzido muito mais
  • 18. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo - Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 19 pela literatura, pelo cronista genial, do que por uma tomada de conscincia geral do horrvel sistema por ele descrito. Entretanto, Soljenitsyne encontrou dificuldades em perfurar a crosta da mentira, chegando a ser comparado, em 1975, por um jornalista de um grande jornal francs, a Pierre Lavai, Doriot e Dat, que acolhiam os nazistas como libertadores. Seu testemunho foi, todavia, decisivo para uma primeira tomada de conscincia, assim como o de Chalamov sobre a Kolyma, ou o de Pin Yathay sobre o Camboja. Mais recentemente, Vladimir Bukovski, uma das principais figuras da dissidncia sovitica no perodo Brejnev, ergueu um novo grito de protesto que reclamava, sob o ttulo Jugement Moscou, a instaurao de um novo tribunal de Nuremberg para julgar as atividades criminosas do regime; seu livro foi recebido no ocidente com grande sucesso de crtica, mas no de pblico. Simultaneamente, vemos as publicaes que tentam a reabilitao de Stalin35 florescerem. Que motivao pode encorajar, neste fim de sculo XX, a explorao de um domnio to trgico, to tenebroso, to polmico? Hoje, no somente os arquivos confirmam a exatido desses testemunhos, como tambm permitem ir muito mais adiante. Os arquivos internos do sistema de represso da ex-Unio Sovitica, das ex- democracias populares e do Camboja evidenciam uma realidade aterradora: o carter macio e sistemtico do terror, que, em vrios casos, conduziu ao crime contra a humanidade. Chegou o momento de abordar de maneira cientfica - documentada por fatos incontestveis, e livre das implicaes pol-tico-ideolgicas que a sobrecarregavam - a questo recorrente que todos os observadores se puseram: que lugar ocupa o crime no sistema comunista? Nessa perspectiva, qual pode ser a nossa contribuio especfica? Procuramos utilizar procedimentos que respondam, em primeiro lugar, a um dever para com a histria. Nenhum tema tabu para o historiador, e as implicaes e presses de todo tipo - polticas, ideolgicas, pessoais - no devem impedi-lo de seguir o caminho do conhecimento, da exumao e da interpretao dos fatos, sobretudo quando estes estiveram por um longo tempo voluntariamente enterrados no segredo dos arquivos e das conscincias. Ora, a histria do terror comunista constitui-se como um dos maiores panos de fundo da histria europeia, sustentando com firmeza os dois extremos da grande questo historiogrfica do totalitarismo. Este ltimo teve uma verso hitlerista como tambm as verses leninista e stalinista, no sendo mais aceitvel elaborar uma histria hemiplgica, que ignore a vertente comunista. Do mesmo modo, a posio defensiva que consiste em reduzir a histria do comunismo unicamente a sua dimenso nacional, social e cultural insustentvel. Sobretudo porque o fenmeno totalitrio no se limitou Europa e ao episdio sovitico. Ela compreende tambm a China maosta, a Coreia do Norte, o Camboja de Pol Pot. Cada comunismo nacional esteve ligado por algum tipo de cordo umbilical matriz russa e sovitica, o que tambm contribuiu para o progresso desse movimento mundial. A histria com a qual nos confrontamos a de um fenmeno que se desenvolveu em todo o mundo e que diz respeito a toda a humanidade. O segundo dever ao qual responde esta obra o de um dever para com a memria. E uma obrigao moral honrar a memria dos mortos, sobretudo quando so vtimas inocentes e annimas do Moloch conduzido por um poder absoluto que procurou, inclusive, apagar a sua